CEM FLORES

QUE CEM FLORES DESABROCHEM! QUE CEM ESCOLAS RIVALIZEM!

Teoria

Notas sobre a relação entre o materialismo histórico e o materialismo dialético

 

A propósito do texto de Georges Gastaud “o renascimento do materialismo dialético no coração do antagonismo entre revolução e contra-revolução no séc. XXI”

(O texto original em francês de Gastaud e a tradução para a língua portuguesa encontram-se no sítio do encontroMarx em maio, ocorrido entre 3 e 5 de maio de 2012 na Universidade de Lisboa. Link: http://marxemmaio.wordpress.com)

 

Vantuir Negrão [1]

 

“La crítica no ha desahojado las flores imaginarias que adornaban las cadenas para que el hombre las siga llevando despojadas de todo ornato de fantasia, sino para que se sacuda las cadenas y tienda la mano hacia la flor viva”. (K. Marx, Crítica de la filosofia hegeliana del derecho)

 

Talvez não seja demais afirmar que, desde o surgimento do marxismo, o ‘materialismo dialético’ ou ‘dialética materialista’ tenha sido um dos assuntos mais controversos, mais debatidos e ao mesmo tempo mais acessíveis ao revisionismo.

Avançar na compreensão do papel de uma ‘filosofia marxista’ reveste assim de uma grande importância, não somente teórica, mas, sobretudo prática, com reflexos na linha política da revolução.

Os precedentes falam por si: Engels e seu ‘Anti-Duhring’ e Lenin e seu ‘Materialismo e Empiriocriticismo’, textos ‘de combate’, escritos no calor da luta política, com o objetivo de sustentar uma posição materialista em filosofia que demarcasse o marxismo dos vários ataques e, principalmente, da ideologia burguesa que ameaçava penetrar o campo do marxismo.

Segundo citação de um historiador bolchevique contemporâneo de Lenin e reproduzida noutra intervenção deste mesmo Marx em maio:

“Quando Ilitch [ou seja, Lénine] começou a disputa com Bogdánov sobre o assunto do empiriomonismo, lançámos as mãos à cabeça e concluímos que Lénine havia perdido o juízo. O momento era crítico. A revolução retrocedia. Enfrentávamos a necessidade de uma viragem radical das nossas tácticas. E, apesar disso, nesse momento Lénine submergiu-se na Biblioteca Nacional [de Paris]. Sentava-se lá dias inteiros e como resultado escreveu um livro… sobre filosofia. As piadas, as provocações, foram intermináveis. A resposta de Lénine foi Materialismo e Empiriocriticismo”. (Fagundes, J. V., Sobre Lénine e a dialéctica materialista apud. Paul LE BLANC, Lenin and the Revolucionary Party, New Jersey, Humanities Press International, 1990, p. 160.)

Do texto de Lenin surgiu o que poderíamos chamar de uma peculiar ‘epistemologia’ materialista, que enunciava não uma teoriado conhecimento, mas teses para o conhecimento.

A tese principal, todos o sabem, é a do primado da matéria sobre a consciência ou, de uma forma mais geral, a tese de que a realidade material é anterior à ideia que dela se tem. Como tese subordinada à anterior, Lenin consequentemente sustentava a possibilidade do conhecimento objetivo da realidade. Desta forma, ele se demarcava das correntes ‘empiriocriticistas’ que atacavam o marxismo sob a desculpa de ‘rejuvenescer a teoria marxista’.

Entendendo que o camarada Georges Gastaud pretende com sua intervenção contribuir para a tarefa de retomada teórica do marxismo, é com espírito camarada que tentaremos criticar alguns dos pontos de vista ali expostos.

O ponto de partida escolhido por Gastaud, a contraposição entre o dogmatismo soviético e o revisionismo teórico que se seguiu à ‘desestalinização’, não nos parece um ponto de partida adequado tendo em vista que em ambos o problema central é o mesmo, qual seja, a tentativa de substituir o marxismo pela ideologia burguesa. Se do lado do dogmatismo soviético isso foi alcançado pelo discurso dogmático de cientificidade do “marxismo oficial”, abafando correntes de pensamento dissidentes, do outro lado se tratou de revisar, alterar o marxismo, transformando-o em ideologia burguesa através da falsificação dos conceitos do materialismo histórico, o rotulando como teoria incapaz de produzir conhecimentos que pudessem servir ao proletariado. Os resultados não tardaram a surgir, como prova a ‘dispersão teórica’ em que vivemos.

Georges Gastaud acerta quando afirma a necessidade de retomar as discussões em torno do materialismo dialético e não renegar a ‘herança’ dos desenvolvimentos – dos erros e acertos – do marxismo ao longo de sua história. Porém, em nosso entendimento, ele deixa a porta aberta para o revisionismo quando afirma que Marx e Engels “…pensaram e articularam [o materialismo dialético] conscientemente” a partir de uma tradição filosófica iniciada por Heráclito, ligando esse materialismo “… à dialética hegeliana repensada de forma materialista.[2]

Não será perda de tempo lembrar que esta ‘tese’ da dialética hegeliana “repensada de forma materialista” corresponde à tese da ‘inversão da dialética hegeliana’ que teria sido operada por Marx, e que manteve escancarada a porta para vários ataques ao marxismo.

Como alerta Althusser em seu ensaio Sobre o jovem Marx, a “inversão” da dialética hegeliana (a “colocação sobre os próprios pés” da dialética hegeliana) atribuída a Marx não corresponde à realidade histórica do surgimento ou do desenvolvimento da teoria marxista, tendo em vista que esta “inversão,” restrita ao campo da filosofia, não corresponde à mudança de problemática (ou de objeto) que de fato ocorreu com o surgimento do materialismo histórico – a ciência da história. [3]

Este não é, no entanto, em nosso entendimento, o maior dos problemas do texto de Gastaud. Ora, se é constatada a necessidade de retomada da filosofia marxista ao mesmo tempo em que é reafirmada sua importância para as lutas do proletariado, devemos entender que essa retomada deve partir de algum ponto – o ponto no qual os desenvolvimentos teóricos foram abandonados devido ao descenso na luta de classes do movimento revolucionário a partir das últimas três décadas do século XX.

Em outras palavras, em nossa opinião o que está na ordem do dia para a retomada da teoria marxista são os conceitos do materialismo histórico e a função, a relação do materialismo dialético com a ciência da história.

Portanto, em nossa opinião, não é uma questão de apresentar, como faz Gastaud em seu texto, ‘exemplos’ da “…utilidade do método materialista dialético…” em diferentes campos do pensamento e das lutas concretas, mas de questionar a ideia mesma de ‘método’ atribuída ao materialismo dialético.

Em nossa opinião, é evidente que todos os fenômenos, todas as questões, são mais bem compreendidos quando sua complexidade, suas determinações e mediações, são levadas em consideração, ao invés de usar de aporias ao gosto da chamada lógica formal. Porém, não basta afirmar que os fenômenos, os processos, as questões são ‘dialéticos’ e pensar com isso ter resolvido alguma coisa.

Então vejamos. Gastaud se propõe “… mostrar a utilidade do método materialista dialético …” no campo das lutas ideológicas, mas para isso contrapõe o que ele chama de “novilíngua”, ou seja, a manipulação do discurso usada para legitimar a posição ideológica da classe dominante, à necessidade de colocar “…o conteúdo de classe (…) em primeiro plano… Cabe a pergunta: o que tal exortação tem a ver com a retomada do materialismo dialético?

A resposta, talvez, esteja mais adiante no texto, quando Gastaud propõe, a respeito da relação entre patriotismo e internacionalismo, “… dialetizar …” ambos e ao mesmo tempo os “… materializar, dando-lhes um conteúdo de classe determinado.” Ou seja, para o autor, materialismo e dialética são nomes de operações distintas e não um único e mesmo conceito.

A confusão teórica aparece mais claramente na discussão sobre a “dialética do exterminismo e do anti-exterminismo”, onde o autor discute o colapso da URSS. Permitam-nos transcrever um longo trecho:

Conceber dialecticamente, na sua continuidade e no seu conteúdo de classe, as relações entre a política imperialista e as cruzadas exterministas de Reagan, teria permitido compreender a continuidade política objectiva entre o exterminismo capitalista e a contra-revolução soviética, o social-pacifismo de Gorbatchev que prolongava e interiorizava a política imperialista no próprio interior do sistema, a implosão final da URSS podendo assim ser compreendida como resultado de uma luta de classes e não, como o fizeram tantos observadores superficiais, como a simples decomposição do «modelo» bolchevique.

Mas, perguntamos – como tal concepção seria possível sem o instrumental teórico necessário? Gastaud faz aqui abstração das condições concretas nas quais o processo de degeneração e de dissolução da URSS se desenvolveu, processo este iniciado muito tempo antes e embasado teoricamente em posições não marxistas, consolidadas no dogmatismo dos manuais soviéticos, em última análise expressões da limitação da posição proletária na luta de classes. Muito esquematicamente, podemos afirmar que na conjuntura posterior à revolução de outubro não se desenvolveram as condições para o avanço da posição proletária na luta contra a ideologia burguesa, ou em outras palavras, o estado da luta de classes não permitiu a apropriação ou o desenvolvimento suficiente da teoria marxista que permitissem ao partido comunista da URSS elaborar a linha justa para o desenvolvimento da revolução sob a ditadura do proletariado. Não cabe desenvolver aqui este ponto, mas o balanço das experiências de construção do socialismo é uma tarefa ainda inconclusa para os revolucionários, e deste necessário e inadiável balanço podem surgir as condições para o desenvolvimento do marxismo. [4]

De volta à questão levantada no texto de Gastaud, essa mesma limitação, já sob o peso do revisionismo e do consequente recuo das posições marxistas na luta de classes, norteava o movimento revolucionário internacional da década de 1980, com algumas honrosas exceções.

De nossa parte, entendemos que a compreensão do processo acima mencionado depende do desenvolvimento de conceitos no campo do materialismo histórico, e não da mera ‘concepção dialética’ dos processos, o que quer que isso signifique.

Continuando, a ideia de que o materialismo dialético possa ser um método universal aparece logo a seguir no texto de Gastaud, quando o autor faz “… um apelo ao necessário ressurgimento da dialética da natureza.” Para tal, ele parte da premissa – ainda por se comprovar – de que estamos na véspera de uma revolução científica na física e na cosmologia.” E conclui profeticamente que esta dialética tem uma “dimensão ontológica”, a partir da qual “nasce talvez uma nova figura da cientificidade: esta não irá mais opor, mas pelo contrário unirá de um modo inédito, nem especulativo, nem estritamente científico, a ciência e a filosofia materialista (…).

Novamente nada de concreto sobre o ‘renascimento do materialismo dialético’, mas apenas ‘exemplos’ de sua pretensa ‘superioridade’ enquanto ‘método’, independente do campo de pensamento ou de pesquisas…

Entendemos, em concordância com outros camaradas, que o materialismo dialético “não deve servir como uma “filosofia interdisciplinar” usando os métodos de uma ciência na outra, o que quase sempre significa desrespeitar as características do objeto de cada ciência. Os tipos de causalidade na biologia e na história, por exemplo, não tem nada a ver com a causalidade na física quântica”. http://rodrigosilvadoo.blogspot.com.br/2012/03/fisica-quantica-e-marxismo.html

As consequências dessa ‘interdisciplinaridade’ podem ser desastrosas, como de fato ocorre com Gastaud:

Da mesma forma que as revistas científicas repetem que a «matéria desaparece», é também repetido que «a classe operária desaparece», que «a luta de classes é um arcaísmo», que o neoliberalismo substitui o capitalismo monopolista de Estado, em suma, que a «modernidade» é inacessível às categorias de análise marxistas.

Estranha analogia! Na tentativa de reafirmar a capacidade analítica do marxismo, Gastaud, ao defender o materialismo dialético enquanto ‘método’, desvia o foco da tarefa incontornável de retomar os conceitos do materialismo histórico. E é disso que se trata, se concordamos com Lênin, em seus Cuadernos Filosóficos, quando afirma que

En El Capital, Marx aplicó a una sola ciencia la lógica, la dialéctica y la teoria del conocimiento del materialismo [no hacen falta 3 palabras: es una y La misma cosa],(…)” (Lênin, Obras Completas, v. 29, Progreso. p. 300, sublinhados nossos).

Ou alguns anos antes, no Apêndice III de Quiénes son los “amigos del Pueblo”:

Pero Marx veía todo el valor de su teoría en que “por su misma esencia es uma teoría crítica y revolucionária”.”

Para depois escrever, em nota, sobre o ‘crítica’ da frase acima:

Obsérvese que Marx habla aqui de la crítica materialista, la única que El considera científica, es decir, la crítica que compara los hechos políticojurídicos, sociales, habituales y otros con la economia, con el sistema de lãs relaciones de producción, con los intereses de las clases que inevitablemente se forman en el terreno de todas las relaciones sociales antagônicas.” (Lenin, Obras Escogidas en doce tomos, Tomo I, Editorial Progreso, Moscú, 1975, p. 212. sublinhados nossos)

Assim, entendemos que cabe trabalharmos os conceitos do materialismo histórico, da ciência da história, nas condições concretas da luta de classes sob o imperialismo, a partir da retomada das posições do marxismo no movimento operário, indo além das ‘críticas morais’ ao capitalismo, velharias tão em moda atualmente. Essa é também a condição necessária e talvez suficiente para a crítica do materialismo dialético, e não o contrário.

O tema da relação entre o materialismo dialético e o materialismo histórico decerto precisa ser desenvolvido, e podemos partir das posições sustentadas por Althusser no seu ‘curso de filosofia para cientistas’, onde afirma que

“(…) a imensa maioria das filosofias (…) mantém com as ciências uma relação deexploração.” [pg. 120]. E, consequente, agrega: “O que implica que as filosofias materialistas, (…), caiam também sob esta lei. Mesmo se não exploram as ciências para provar a existência de Deus, ou exibir os grandes valores da moral e da estética, mesmo que consagrem, como todas fizeram, à defesa materialista das ciências e à sua defesa contra a exploração idealista das ciências, não estão desligadas de uma ideologia prática, que é as mais das vezes ideologia política, mesmo se é fortemente contaminada, (…) pela ideologia jurídico-moral”.

E, continuando, exorta:

“Importa pois ir até aí. Mas é preciso ir bastante mais longe. Pois se reconhecemos esta dependência da filosofia em relação às ideologias práticas e aos seus conflitos, porque seria a filosofia votada a sofrer passivamente a dependência destas realidades (as ideologias práticas) sem recorrer ao conhecimento e à natureza do mecanismo destas realidades? Ora, acontece que os princípios deste conhecimento foram fornecidos por Marx no materialismo histórico: e que este conhecimento transformou o antigo materialismo num materialismo novo, o materialismo dialético.”

E, talvez de modo mais claro, na nota da página 123: “Este conhecimento não transformou a filosofia em ciência, como se diz frequentemente: a nova filosofia permanece filosofia, mas o conhecimento científico da sua relação com as ideologias práticas faz dela uma filosofia ‘justa’”. (L. Althusser, Filosofia e filosofia espontânea dos cientistas. Presença, 1976, pg. 122-123.)

Estamos, porém convencidos de que é preciso avançar ainda mais, e para tanto contamos não apenas com a ajuda dos camaradas interessados neste debate, mas também com algumas ‘pistas’ deixadas pelos fundadores do marxismo, como mostram passagens de Engels, que, em sua reconhecida modéstia, atribuindo a Marx a descoberta “(…) [d]a concepção materialista da história e a revelação do segredo da produção capitalista através da mais-valia, (…)”, afirma que graças a essas descobertas “o materialismo converte-se numa ciência (…)” a qual “só nos resta desenvolver em todos os seus detalhes e concatenações.” (F. Engels, Do socialismo utópico ao socialismo científico, s.d., Moraes. p. 48)

Para nós está claro que isso não quer dizer que a filosofia materialista (mesmo na sua forma moderna de materialismo dialético) tenha sido convertida no materialismo histórico, mas sim que Marx, e o próprio Engels, tenham colocado as ‘pedras angulares’, como quer Lenin, do longo (e, por que não dizer interminável) processo de construção de uma nova ciência, a ciência da história.

Ciência que permite conhecer as leis tendenciais nos processos históricos, mas nunca dosprocessos históricos em abstrato, isto é, ciência que, como toda ciência, deve sempre realizar ‘a análise concreta da situação concreta’, e que deve lutar contra toda exploração filosófica, contra toda teleologia e contra todo reducionismo. Ciência da história ou materialismo histórico, iniciado por Marx e Engels e desenvolvido por Lenin, teoria revolucionária do proletariado na luta de classes rumo ao comunismo.

Desta forma, com estas notas, certamente ainda por demais esquemáticas, ambicionamos retomar este debate, tendo em vista que tradicionalmente se considera o materialismo dialético e o materialismo histórico disciplinas ligadas necessariamente “por razões teóricas e históricas” (Algumas teses para retomar o marxismo: materialismo dialético. In Luta de classes, crise do imperialismo e a nova divisão internacional do trabalho. Coletivo Cemflores, 2011), mas que, estamos convencidos, para avançar é preciso estabelecer ou pelo menos indicar a natureza dessas “razões teóricas e históricas”.

 

[1] Estas notas contaram com a colaboração e a leitura crítica de vários camaradas, aos quais sou grato. No entanto, as insuficiências e eventuais erros aqui expressos são de inteira responsabilidade do autor.

[2] O parágrafo, na íntegra, é: “É por isso que gostaria de sublinhar vivamente o quão necessário é um retorno ao coração da filosofia marxista, a esse materialismo dialéctico que Engels não inventou, cuja tradição remonta a Heraclito de Éfeso, mas que os fundadores do marxismo pensaram e articularam conscientemente, ligando-o ao materialismo histórico, à dialéctica hegeliana repensada de forma materialista, à crítica da economia capitalista e ao movimento geral das ciências da natureza”.

[3] Cf. Althusser, L., Sobre o Jovem Marx, in Análise Crítica da Teoria Marxista, Zahar, Rio de Janeiro, 1967, especialmente as páginas 60 e 61 e a nota de rodapé 36.

[4] Cabe mencionar que esta tarefa foi iniciada por militantes comunistas dos quais citamos apenas Charles Bettelheim, por sua contribuição exemplar para a análise da URSS. (Em português temos A luta de classes na União Soviética, Paz e Terra, 1976 (V.I) e 1983 (V.II)).

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- 29/07/2012