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1917: O “golpe dos bolcheviques”

Há dez anos, a organização comunista Política Operária de Portugal, publicava em seu jornal o artigo abaixo reproduzido, de autoria de Francisco Martins Rodrigues. Como segue plenamente atual, tanto nos relatos dos acontecimentos da Revolução de Outubro como na crítica àqueles que tentam deturpar os fatos de um dos mais importantes acontecimentos da história, principalmente do ponto de vista da classe operária e dos povos de todo o mundo, oferecemos aos camaradas e leitores do Cem Flores a íntegra do texto como parte da comemoração dos 100 anos da revolução bolchevique.

O original pode ser acessado em aqui

 

1917: O “golpe dos bolcheviques”

Francisco Martins Rodrigues

Quase um século mais tarde, a burguesia continua obcecada com a grande revolução, em busca de explicações para o facto aterrador de o proletariado poder apossar-se do poder de Estado, declarar abolida a “ordem natural das coisas” e expropriar as “pessoas de bem”.

A “revolução democrática” de Agosto de 1991, em Mos­covo, impeliu até à sua conclusão lógica a revisão geral que vinha a ser feita da revolução de 1917. Hoje qualquer liberal ou socialista retoma sem vacilar as invenções a que outrora só se aventuravam os escribas desclassificados da extrema-direita. Podemos agora ler que Outubro foi uma “contra-revolução” porque os bolcheviques “assaltaram o poder a golpe”, “os sovietes não tinham legitimidade”, e, além disso, “os bolcheviques estavam lá em minoria”, “o governo de Kerensky era apoiado pela maioria da população”, “Lenine esmagou os partidos democráticos graças à organização mili­tarizada do Partido Bolchevique”, dissolveu pela força a Assembleia Constituinte “por ter medo da vontade do povo”, “começou por prometer ‘todo o poder aos sovietes’ para iludir os trabalhadores mas depois confiscou todo o poder para o seu partido único”, esmagou a comuna de Cronstadt, “lançou a Rússia no caos e na anarquia”, “Kautsky viu justo quando avisou que a chamada ‘revolução socia­lista’ não passava de uma aventura totalitária”, etc., etc.

Enfim, tudo o que agora se diga contra os bolcheviques e a revolução é aceite sem reparo. É o vale-tudo. O ambiente de impunidade é tal que o conhecido “democrata liberal” João Carlos Espada não receia retomar, textualmente, tiradas outrora exclusivas da PIDE e do Patriarcado: o “barbarismo asiático de Lenine e de Trotsky”, os sovietes, “estúpida orga­nização corporativa”, os bolcheviques, “burocratas cruéis e sem imaginação, demagogos irresponsáveis que mergulha­ram a Rússia numa nova idade das trevas”… Esperamos pelo dia em que “descubra” que a revolução russa não pas­sou duma manobra da espionagem alemã…

A campanha contra as tendências “jacobinas e autori­tárias” do bolchevismo é uma revisão da História, bem à medida desta época de restauracionismo desenfreado. Para consolidar no plano ideológico as suas vitórias políticas, a burguesia tem que riscar, fazer desaparecer da História esse momento fatídico em que operários e soldados em armas derrubaram um governo “legal” e declararam abolida a or­dem natural das coisas. Com os ataques ao leninismo, é a própria ideia de revolução anticapitalista que se procura banir, apresentando-a como uma aventura de consequências trágicas. Trata-se de fazer crer que, para além da ordem bur­guesa, só existe o abismo…

Claro, quando a actual vaga contra-revolucionária se con­sumir na sua própria infâmia, a verdade histórica será resta­belecida e estas tolices cairão no ridículo. Mas isto não quer dizer que devamos ficar passivamente à espera que as menti­ras se desmascarem por si. E preciso voltar a falar de Outu­bro.

E embora a acusação de “saudosismo” neste caso seja da praxe, não nos incomoda. Temos os olhos no futuro, não no passado. É justamente para preparar novos avanços que o pensamento revolucionário precisa de varrer a mon­tanha de lixo com que lhe ocultam a experiência da grande revolução.

DOIS PODERES

Quem hoje leia as furibundas denúncias das malfeitorias dos bolcheviques contra a república democrática de 1917 julgará que estes teriam vindo desestabilizar um regime de equilíbrio parlamentar e paz social. Isto não tem nada a ver com a realidade. Desde a queda do czarismo, perante um país ingovernável, a República virava-se contra os trabalha­dores.

Por uma razão simples: a revolução democrática de Feve­reiro não foi detonada pelo clássico levantamento de oficiais com as suas tropas atrás e o povo a seguir. A burguesia liberal tinha adiado tantas vezes a sua “revolução de palácio” contra o decrépito czarismo, por medo duma explosão re­volucionária, que acabou por perder a oportunidade. A ini­ciativa insurreccional coube apenas aos operários e ao povo de Petrogrado que, ao fim de vários dias de greves e luta de ruas, conquistaram os soldados para o seu lado, desorgani­zaram o exército, prenderam os ministros e generais e liberta­ram os presos políticos. Foi uma revolução popular na plena acepção do termo, como raras vezes se viu, antes ou depois, inspirada na grande revolução derrotada de 1905.

Só quando, a 27 de Fevereiro, se constitui o conselho (soviete) dos operários e soldados de Petrogrado, quando já não pode haver dúvidas de que o poder “cai na rua”, os liberais e monárquicos conseguem recompor-se do pânico e tomam iniciativas para organizar o seu próprio poder. Forma-se um governo provisório que ficará a coexistir com o soviete.

A sucessão de crises que nos oito meses seguintes condu­zem à insurreição de Outubro nascem desta situação sem precedentes: dois poderes paralelos e com objectivos anta­gónicos digladiando-se no mesmo país — o governo provisó­rio, controlado pela burguesia e subordinado ao imperialis­mo anglo-francês, e os sovietes, sob a influência dos operá­rios, soldados e camponeses que reclamam uma “democracia do trabalho”.

“O governo provisório existe apenas na medida em que o soviete o tolera”, lastimava-se na primeira semana do novo regime o ministro da Guerra. Os soldados pediam ordens ao soviete antes de obedecer aos oficiais. Por toda a parte havia milícias armadas. A jornada de 8 horas foi introduzida por iniciativa das fábricas. Nas cidades industriais do Ural e na Finlândia, os operários não reconheciam a autoridade do governo. Em Cronstadt, os marinheiros tinham mesmo formado a sua “República” local. E tudo isto acontecia quando a influência dos bolcheviques no movimento era reduzida.

A EUFORIA DEMOCRÁTICA

Apesar da amplitude das suas conquistas iniciais, ater­radoras para os adeptos da ordem, o poder dos sovietes era vulnerável em extremo.

Na euforia provocada pela desintegração do czarismo, o estado de espírito dominante dos operários – mais ainda dos soldados, que dominavam no soviete – era de achar os “socialistas” moderados mais aptos para consolidar as suas conquistas. Elegeram para a direcção do soviete uma maioria de mencheviques e socialistas-revolucionários. Estes, por sua vez, vendo-se à cabeça de um movimento “anárquico” que os alarmava, tentaram estabilizar a “democracia socia­lista” pedindo aos liberais que se responsabilizassem pelo governo. E os liberais, pela sua parte, só acederam mediante a concordância da direita monárquica…

O resultado desta cadeia de compromissos foi o soviete, senhor do poder armado, consentir na formação de um governo provisório dominado pelos liberais (e presidido por um príncipe!) e deixar o poder escapar-lhe por entre os dedos. A gravidade da cedência não foi desde logo entendida. Era ideia geral (inclusive dos bolcheviques) que o soviete não devia aspirar a governar: “Estamos numa revolução democrática, não ainda socialista; a burguesia que assuma as suas responsabilidades de governo. O papel do soviete é fiscalizar o governo, mantê-lo sob vigilância”.

A onda das ilusões conciliadoras deixou uma larga mar­gem de manobra à burguesia. As massas acreditavam que, devido à República, a guerra com a Alemanha deixara de ser imperialista e se transformara numa guerra de defesa nacional; era preciso dar tempo ao governo para negociar a paz, do mesmo modo, a distribuição da terra aos campone­ses chegaria logo que fosse aprovada uma lei de reforma agrária; e nada impediria que mencheviques e bolcheviques se aliassem doravante na tarefa comum da “consolidação da revolução democrática”.

Quando Lenine observou em Abril que os operários não deviam dar nenhum apoio ao governo provisório por­que a burguesia era incapaz de chefiar a revolução burguesa e recebera o poder “apenas por insuficiência de pensamento consciente e de organização do proletariado”; que “os sovie­tes são a única forma possível de governo revolucionário”; e que os bolcheviques deveriam separar-se ainda mais dos reformistas —, ele não seguia “esquemas dogmáticos”, como hoje deduzem os seus críticos; discernia com lucidez a alter­nativa criada pela vida. Em pouco tempo, os acontecimentos vieram demonstrar que tinha razão.

A REPÚBLICA CONTRA O POVO

O primeiro governo provisório caiu durante os motins de 18-21 de Abril, quando o ministro dos Estrangeiros teve a imprudência de assegurar aos Aliados que “a guerra mun­dial será levada até à vitória total”. Soldados e operários saíram à rua enfurecidos, exigindo a sua demissão. Teve que se lhes fazer a vontade.

Compreendendo que a guerra só poderia ser prosseguida com uma cobertura “socialista”, os liberais exigiram e conse­guiram um maior comprometimento de mencheviques e socialistas-revolucionários no governo. Em início de Maio o soviete de Petrogrado aprovou o programa do novo gover­no, com Kerensky no ministério da Guerra.

“Forçados a entrar à pressa na composição do governo — escreve Trotsky — os socialistas tomaram a seu cargo cerca de um terço do poder e a totalidade da guerra”. Foi o começo do seu fim. Queriam fazer ver à burguesia que eram aptos para governar o país e “meter os trabalhadores na ordem’ mas não tinham forças para tal. Com o exército em plena decomposição e com dois milhões de desertores vagueando pelo país, Kerensky lançou-se a organizar a grande ofensiva reclamada pelos Aliados. Impôs a pena de morte na freníe e sacrificou muitos milhares de vidas. Em Julho, a ofensiva acabava num desastre total. Deu-se nova explosão de furor em Petrogrado, com meio milhão de operários armados reclamando o fim da guerra e todo o poder aos sovietes. Travaram-se confrontos, prenunciando uma guerra civil.

Envergadura insurreccional tomava também o movimen­to agrário. Os sovietes camponeses que, durante os primei­ros três meses da República, tinham esperado pacientemente receber as terras do governo, no respeito pela ordem, passa­ram a ocupar as terras em massa e a recusar o pagamento das rendas.

Perdida a esperança de que os sovietes “morressem de morte natural”, os socialistas (que ainda detinham a maioria nos órgãos de cúpula destes) decidiram-se a liquidá-los pela força. Deram assim o último passo que lhes faltava no cami­nho da contra-revolução: puseram os bolcheviques fora da lei sob a acusação de tentativa de golpe de Estado e de entendimento com os alemães e incitaram o general de di­reita Kornilov a um golpe militar que varresse os sovietes. O golpe foi um fiasco total. Conquistados pelos agitadores bolcheviques, os soldados recusaram-se a combater.

Estava feita a prova real de que o poder já não pertencia ao governo mas aos sovietes. O fim da República burguesa era uma questão de tempo.

ONDE SE FALA DE ELEIÇÕES

Em Agosto/Setembro, milhões de trabalhadores perdem definitivamente a confiança nos socialistas e procuram a salvação nas propostas dos bolcheviques, que se tornam maioritários através do voto. Ouçamos o testemunho insus­peito do historiador social-democrata Oskar Anweiler:

“Esta subida em flecha da influência bolchevique podia ler-se nos resultados das eleições, quase diárias um pouco por todo o país, para os sovietes, para as direcções sindicais, para os comités de fábrica, para os órgãos de administração municipal e rural, etc. (…) Desde o Verão, os comités de fábrica de Petrogrado e de Moscovo, do Ural e da bacia do Donetz, tinham quase sempre maioria bolchevista. No de­curso do Outono, os sindicatos, até então coutada dos mencheviques, começaram a cair uns atrás dos outros sob o domínio dos bolcheviques (…) Nas vésperas de Outubro, quase todos os sindicatos dos grandes centros industriais seguiam o partido de Lenine (…). As eleições para as dumas urbanas… revelavam também uma deslocação maciça da po­pulação; em Petrogrado, os bolcheviques tornaram-se a se­gunda força ao passar, nas eleições de Agosto, de 37 para 67 lugares (…) Os resultados mais espectaculares foram regis­tados na duma de Moscovo, quando das eleições de fins de Setembro, em que os bolcheviques saltaram de 12% para 51% dos votos”…

“Embora não se possa falar duma bolchevização integral dos sovietes no momento da revolução de Outubro — continua —, o fenómeno crescia contudo com rapidez”. As elei­ções realizadas ao longo de Setembro para estes órgãos “tra­duziram-se quase por toda a parte por uma progressão dos bolcheviques, dos socialistas-revolucionários de esquerda e dos grupúsculos maximalistas e anarquistas. Um dos factos que decidiram do êxito da insurreição de Outubro foi a preponderância que os bolcheviques tinham adquirido nos sovietes-chave do ponto de vista político ou estratégico”.

E enumera: Cronstadt, Petrogrado, Moscovo, frota do Báltico, V Exército, Helsingfors, Viborg, Reval, Iekaterinemburgo, Saratov, Minsk, Armavir, Kiev… Não está mal, para uma “minoria usurpadora”…

A “CULPA” DOS BOLCHEVIQUES

A recusa a reconhecer este facto que lhes parece mons­truoso — a rejeição do regime burguês pela massa dos traba­lhadores, o seu apoio maioritário ao partido dos comunistas — leva os críticos do bolchevismo às mais extravagantes con­torções, que se podem ler a cada passo em obras considera­das “sérias”.

Os operários e soldados, indignados com a política do governo, passam-se em massa para as posições bolchevi­ques? Era a “consciência nebulosa” dos trabalhadores a dei­xar-se aprisionar pela “demagogia dos leninistas”.

A notícia da derrota militar, em Julho, desencadeia uma explosão espontânea de protestos que os bolcheviques pro­curam evitar que se transforme numa insurreição prematura? Os críticos não se deixam enganar: “Foi uma provocação bolchevique, para tentar a sua sorte”.

Activistas bolcheviques são eleitos aos milhares como delegados aos sovietes? “Estava em marcha um plano impla­cável de ‘bolchevização’ e de cisão dos sovietes” (o facto de, até aí, os sovietes estarem “menchevizados” não lhes merece reparos).

A política cada vez mais direitista de mencheviques e socialistas-revolucionários provoca importantes cisões nas suas fileiras? “Os bolcheviques fomentavam maquiavelica­mente o aparecimento de facções de esquerda nos partidos socialistas”.

Lenine insiste em que a paz e a terra não poderão ser obtidas através de um governo comprometido com a grande burguesia e o imperialismo? Eis o que demonstra a sua “táctica demolidora” e “vontade de poder”…

E assim por diante, numa argumentação absurda que não resiste a qualquer análise.

Se, para os bolcheviques, a tomada do poder pelos sovie­tes era uma cortina para a “ditadura do seu próprio partido”, como entender que eles se batessem por essa palavra de ordem no I Congresso dos Sovietes, quando dispunham de apenas 12% dos delegados, e em Abril, quando tinham ainda menos?

Se os “manejos obscuros” dos bolcheviques justificaram a perseguição aos seus dirigentes e o encerramento dos seus jornais em Agosto, porquê precisamente em Agosto alastra vertiginosamente a sua influência?

E se mencheviques e S-R eram os guardiães da democra­cia, porque se destacaram tão pouco na resistência ao golpe militar de Kornilov, derrotado precisamente pela audácia dos bolcheviques?

Na verdade, a “culpa” dos bolcheviques, pela qual ainda hoje são condenados, foi terem ajudado os trabalhadores a descobrir a verdadeira face antipopular dos reformistas. Para não reconhecer que os partidos “socialistas” defendiam a ordem burguesa e os bolcheviques defendiam os trabalha­dores, os nossos críticos fazem figura de débeis mentais.

A “MÁQUINA MILITARIZADA”

Uma outra tentativa para desacreditar a revolução con­siste em atribuir ao Partido Bolchevique o carácter de uma máquina “elitista”, “semimilitarizada, enquadrada por revo­lucionários profissionais e dominada por um chefe carismá­tico, “à sombra do slogan do centralismo democrático”. Transpondo para 1917 o regime de terror estabelecido mais tarde por Staline, pretende-se pintar o partido bolchevique como um precursor dos partidos fascistas e desacreditar a revolução como uma espécie de golpe totalitário.

Mas a mentira cai pela base. Nenhuma fabricação pode apagar os factos há muito conhecidos sobre a vida interna do partido bolchevique nesta época. Enquanto os efectivos cresciam vertiginosamente (80 mil membros em Abril, 240 mil em Agosto, 400 mil às vésperas da insurreição), o debate era permanente, as divergências exprimiam-se na imprensa partidária e a busca de consenso era a regra, como documen­tam as actas do Comité Central.

Dois exemplos, no período crucial de Outubro quando tudo estava em jogo, fazem luz sobre o pretenso “militarismo” dos bolcheviques: no primeiro, é o comité central que se recusa a discutir, por mais de uma vez, apelos veementes de Lenine para a preparação da insurreição; no segundo, Zinoviev e Kamenev, depois de derrotados na votação sobre a insurreição, dirigem livremente uma carta às organizações do partido, defendendo as suas opiniões.

A isto poderia acrescentar-se a polémica na Pravda em torno das Teses de Abril, inicialmente mal recebidas pelo parti­do; as reuniões em que Lenine fica minoritário; a publicação de boletins internos de discussão e a abertura de uma tribuna livre na revista do partido; a adopção pelo VI Congresso do partido, em fins de Julho, de novos estatutos amplamente democráticos, em substituição dos que vinham do tempo da clandestinidade; etc.

O “militarismo” do Partido Bolchevique, assim como os “poderes arbitrários” de Lenine, não passam de uma lenda grosseira. Só pela persuasão conseguia Lenine fazer aprovar os seus pontos de vista. Escreve o historiador Carr, insus­peito de simpatia pelos bolcheviques: “O poder de Lenine sobre o partido… assentava num raciocínio lúcido e incisivo, que transmitia uma impressão irresistível de domínio incom­parável da situação.”

É verdade, todavia, que o partido dos bolcheviques não tinha nada de comum com os seus competidores. Entre uns e outros havia um abismo. Os partidos “socialistas” debatiam-se em jogos parlamentares, equilibrismos e alianças entre notáveis, numa crise perpétua, resultante, em última análise, de não saberem como desviar as massas da revolução sem se isolarem. No partido bolchevique, pelo contrário, a paixão revolucionária dos operários electrizava a vida interna com um clima de entusiasmo, unidade e disciplina militante. Era o partido da revolução. Compreende-se que isto ainda hoje pareça assustador e “totalitário” aos herdeiros dos mencheviques.

A INSURREIÇÃO

Perguntam os legalistas: Se a influência dos bolcheviques se tornava maioritária, para quê então tramar uma conspira­ção e desencadear uma insurreição armada contra a Repúbli­ca? Porque não esperar que o poder lhes fosse entregue pelo funcionamento dos mecanismos democráticos?

Manifestamente, as situações revolucionárias não cabem no seu sistema de valores. Custa-lhes compreender que, após oito meses de massacres na frente de batalha, de fome, de caos económico, os trabalhadores, ansiosos pela paz, pela terra, pelo poder dos sovietes, tenham chegado à conclusão de que nada havia a esperar dos partidos “socialistas” nem do governo e se tenham voltado para esses mesmos bolchevi­ques que meses antes lhes pareciam demasiado “extremistas”.

Na situação de catástrofe em que se vivia, esta deslocação não era meramente eleitoral; era uma deslocação revolucio­nária. Tornando-se maioritário nos sovietes e outros orga­nismos democráticos, o Partido Bolchevique recebia o encar­go de levar à prática as reivindicações populares e bater as crescentes ameaças de direita, o que exigia o derrubamento do governo provisório.

As clássicas perorações sobre o “blanquismo” de Lenine, oposto a uma linha de massas marxista, fingem ignorar que a insurreição nascia das fábricas, dos campos, da rua. Só reaccio­nários podem acreditar que “na situação anárquica que se vivia, qualquer grupo de homens decididos poderia ter feito o mesmo que os bolcheviques” (A. Ulam). Pelo contrário, só um partido gozando dum apoio popular esmagador, co­mo era nesse momento o caso dos bolcheviques, poderia ter tomado o poder.

Lenine disse-o claramente na carta ao Comité Central, em Setembro: “A maioria do povo está connosco”. “Depois de ter conquistado a maioria nos sovietes de deputados ope­rários e soldados em ambas as capitais, os bolcheviques po­dem e devem tomar nas suas mãos o poder do Estado”. Mantinha-se coerente com o que dissera em Abril, ao chegar à Rússia: “Para se transformar em poder, os operários cons­cientes têm que ganhar a si a maioria… Não somos blanquistas, não somos partidários da tomada do poder por uma minoria”.

Querer ver uma contradição entre estas opiniões e o próprio acto insurreccional dos bolcheviques é não ter em conta que o governo, repudiado pela massa da população trabalhadora, se mantinha no poder pela força e só pela força podia ser desalojado. Só uma acção militar de surpresa poderia garantir o êxito da insurreição. Insurreição que teve afinal um custo mínimo em vidas humanas, justamente por­que o apoio massivo do povo paralisava a capacidade de resistência das forças da burguesia.

O que se condena afinal aos bolcheviques? Foi não se terem limitado ao estatuto de partido de oposição (como reclamavam alguns dos seus dirigentes), deixando que a si­tuação apodrecesse e que os trabalhadores fossem esmaga­dos, para vir depois manifestar o seu “desacordo veemente” com a repressão…

Felizmente para os trabalhadores não foi assim. O facto de o Partido Bolchevique ter tido a lucidez e a coragem para se assumir como organizador da revolução que crescia na Rússia, ao criar a primeira república de sovietes, provocou uma aceleração da História que ainda hoje temos dificuldade em avaliar, independentemente das derrotas que vieram mais tarde.

Como é óbvio, os ideólogos da burguesia não podem compreender que operários, camponeses e soldados decidis­sem governar o país directamente através de representantes seus. Parece-lhes isso uma aberração tão grande que só o entendem como fruto de manobras de “demagogos” ávidos de poder… A lógica duma revolução proletária em marcha é algo que não cabe no seu horizonte mental. Estamos certos de que ainda terão novas oportunidades de a estudar na prática.

LIVROS CITADOS

Lenine, Obras escogidas, 3 volumes. Moscovo, 1960.

Trotsky, Histoire de la révolution russe. Seuil, Paris, 1950.

História do Partido Comunista (bolchevique) da URSS. Povo e Cultura, Lisboa, 1975.

Adam Ulam, Os Bolcheviques. Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1976

Les bolchéviks et la révolution d’octobre. Procès-verbaux du CC., aoüt 1917-février 1918. Maspéro, Paris, 1964.

Oskar Anweiler, Les Soviets en Russie. Gallimard, Paris, 1972.

Política Operária nº 112, Nov-Dez 2007

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- 24/11/2017