CEM FLORES

QUE CEM FLORES DESABROCHEM! QUE CEM ESCOLAS RIVALIZEM!

A Revolução Comunista e a restauração capitalista na China, Cem Flores, Conjuntura, Imperialismo, Internacional, Teoria

O Debate Bettelheim-Sweezy Sobre a Transição Para o Socialismo – 1ª parte

70 Anos da Revolução Comunista na China e 41 Anos do Início da Restauração Capitalista

Arte de Huang Jun, China, 1950.

Cem Flores

Publicamos, em 05/10/2019, o artigo A Restauração Capitalista na China: textos de Francisco Martins Rodrigues, afirmando o caráter capitalista e imperialista da atual formação econômico-social chinesa. O artigo gerou um debate na página do facebook do Cem Flores e fizemos uma nova publicação, Debate sobre a Restauração Capitalista na China, respondendo aos argumentos do companheiro que criticava nossa formulação.

Como afirmamos no primeiro artigo que publicamos sobre esse tema:

“Não obstante suas centenas de bilionários e sua forte burguesia; as montanhas de investimentos estrangeiros e a crescente liberalização da propriedade privada; seus monopólios, seu capital financeiro, sua exportação de capitais e suas ações para uma (re)partilha do mundo; sua integração ao mercado mundial de mercadorias e capitais; mas, principalmente, não obstante o impressionante grau de exploração da classe operária e demais trabalhadores na China; apesar de tudo isso, a China atual ainda é uma esfinge que devora boa parte daqueles que a enfrentam, que titubeiam na resposta à simples questão feita pelo monstro: capitalista ou socialista?”

A análise da restauração capitalista na China é um problema que consideramos importante para avançar em nossa compreensão da crise que se abateu sobre o campo socialista e sobre o marxismo. Visando aprofundar essa análise, resgatamos o debate que Charles Bettelheim, marxista francês e profundo conhecedor da realidade chinesa e soviética, travou com Paul Sweezy, economista marxista estadunidense e fundador da Monthly Review, acerca da transição para o socialismo. Trata-se de um conjunto de seis artigos, publicados na Monthly Review de outubro de 1968 a outubro de 1971, e que foram traduzidos em língua portuguesa no livro A transição para o socialismo, pela Edições 70[i].

Conjunto de artigos do debate Bettelheim-Sweezy sobre a transição para o socialismo (1968-1971)

  1. Checoslováquia, Capitalismo e Socialismo – Paul Sweezy
  2. Acerca da Transição do Capitalismo para o Socialismo – Charles Bettelheim
  3. Réplica – Paul Sweezy
  4. De Novo Acerca da Sociedade de Transição – Charles Bettelheim
  5. Réplica – Paul Sweezy
  6. Ditadura do proletariado, classes sociais e ideologia do proletariado – Charles Bettelheim

Nesta primeira publicação sobre o debate, o Cem Flores realizará um sucinto resumo comentado das cinco primeiras intervenções. 

Como os leitores e camaradas poderão ver, são muitas as contribuições dos autores para uma compreensão mais aprofundada sobre o que é de fato o caminho para o socialismo, sobre como identificar uma formação econômico-social que transita para o socialismo. Os dois marxistas se utilizam de um firme embasamento na teoria marxista, assim como de uma análise crítica e do ponto de vista do proletariado das experiências revolucionárias do século XX, sobretudo a soviética e a chinesa. Assim, como tentaremos também mostrar em breves comentários, o debate se faz bastante útil para analisar de forma marxista a atual situação chinesa, mais precisamente, a consolidação de sua restauração capitalistas, cujos riscos já existiam na época dos autores. 

Em uma segunda publicação, pretendemos divulgar e discutir o último artigo, de Charles Bettelheim, Ditadura do proletariado, classes sociais e ideologia do proletariado, uma valiosa síntese da polêmica entre ele e Sweezy, cuja leitura integral se faz necessária.

* * *

Checoslováquia, Capitalismo e Socialismo – Paul Sweezy

O debate inicia com uma publicação de Paul Sweezy  em torno da questão da invasão da União Soviética à Tchecoslováquia, em agosto de 1968. Um dos argumentos apresentados para justificar tal invasão era o de que, sem ela, a Tchecoslováquia regressaria ao capitalismo, voltando assim ao bloco de países imperialistas. Após mostrar as contradições dessa decisão, o autor concorda, no entanto, que a Tchecoslováquia de fato estava a orientar-se em direção ao capitalismo a partir de três características: controle da produção pelas próprias empresas, coordenação geral da economia através do mercado e apelo ao estímulo e incentivo material individualizado. Não por acaso, características também presentes na restauração capitalista na China, anos depois[ii].

Naquele momento, a economia tcheca seria um misto de “socialismo de mercado” (termo que o autor critica afirmando ser contraditório) e planificação administrativa e centralizada (“modelo” surgido na URSS e exportado para os países do leste europeu após a 2ª Guerra Mundial). Porém, o autor afirma que, independentemente dessa dupla composição, o país estava a suprimir os obstáculos em direção a uma economia de mercado por completo. 

Paul Sweezy mostra ainda que todo o bloco da Europa do Leste, incluindo a União Soviética, estava seguindo esse mesmo caminho de regressão ao capitalismo e afirma que uma alternativa teria sido uma revolução cultural no sentido específico dado a esse termo pelos chineses: “uma vigorosa campanha visando mobilizar as massas, elevar o nível de consciência política, revivificar os ideiais socialistas, conferir uma maior responsabilidade aos próprios produtores em todos os níveis de decisão”. (p. 21).

Acerca da Transição do Capitalismo para o Socialismo – Charles Bettelheim

Charles Bettelheim responde a Paul Sweezy  concordando que as políticas e reformas tchecas de então consolidavam um passo na via capitalista. 

O francês ainda reforça a importância da diferenciação feita por Paul Swezzy  entre as categorias jurídicas e as relações de produção. A partir desse ponto de vista marxista, é possível considerar que a propriedade capitalista não é necessariamente uma propriedade “privada”. É possível se ter uma propriedade dita estatal mas que tenha por base e reproduza relações de produção capitalistas.

A partir desses pontos de concordância, Bettelheim critica as formulações de Paul Sweezy a partir de duas questões fundamentais: 1) o problema da natureza do socialismo e 2) o problema das raízes das tendências para a restauração do capitalismo. A tese de Sweezy, sobre o segundo ponto, afirmava que a origem dessa restauração provinha, basicamente: do papel econômico atribuído ao mercado, dos estímulos materiais e das “formas de organização” da produção (o controle das empresas por elas mesmas). Bettelheim afirma:

“Pela minha parte, penso que esta enumeração não designa mais que ‘fatos secundários’, índices ou resultados, e não o fator decisivo.

A meu ver, o fator decisivo, isto é, dominante, não é de natureza econômica mas política.

Esse fator político decisivo (…) consiste no fato de que o proletariado (soviético ou tchecoslovaco) perdeu o poder político a favor de uma nova burguesia, de modo que a direção revisionista do Partido Comunista da União Soviética é hoje o instrumento dessa nova burguesia.

Se não se reconhecer que o proletariado perdeu o poder, não se pode explicar nem a invasão da Tchecoslováquia, nem a política da URSS (…), nem as ‘reformas’ e os resultados para que tendem (o pleno desenvolvimento do ‘mercado’ e a dominação econômica, política e ideológica sobre as massas que as formas mercantis permitem).

Colocar como fator primeiro – como V. faz – não as relações de classe (a existência de uma burguesia ‘coletivamente’ proprietária dos meios de produção) mas as relações mercantis parece-me basear-se num erro de princípio e conduzir a uma série de outros erros” (p. 30 e 31, grifos no original).

Assim, isolar o reforço das relações mercantis como fator principal e não relacioná-lo à luta de classes é uma das críticas centrais que Bettelheim faz a Sweezy. Ou seja, na prática, o francês retoma uma tese fundamental do marxismo-leninismo[iii] sobre a ditadura do proletariado: a continuidade da luta de classes, de sua centralidade, também durante as experiências revolucionárias, na própria transição para o socialismo. A restauração capitalista, a retomada do poder pela burguesia, continua à espreita! 

Ora, o abandono dessa tese marxista-leninista, e sua substituição pela ideologia capitalista é o que caracteriza boa parte das análises “de esquerda” sobre a China hojeOs atuais argumentos para defender a China partem do seu crescimento econômico, de sua posição na economia mundial, dos índices de seu desenvolvimento industrial ou da incorporação de força de trabalho (identificado como “redução da miséria”). E pouco ou nada se ouve sobre qual classe efetivamente exerce o poder lá, qual é a conjuntura da luta de classes naquele país.[iv]

Bettelheim avança em sua análise e nos esclarece: afinal, como podemos caracterizar essa fase de transição que é o socialismo?

“O que caracteriza o socialismo, por oposição ao capitalismo, não é (como seu texto sugere) a existência ou inexistência de relações mercantis, da moeda e dos preços, mas sim a existência da dominação do proletariado. É pelo exercício desta ditadura em todos os domínios – econômico, político, ideológico – que as relações mercantis podem ser progressivamente eliminadas, por meio de medidas concretas adaptadas a situações e conjunturas concretas. Esta eliminação não pode ser ‘decretada’ nem ‘proclamada’: exige uma estratégia e uma tática políticas. Na sua falta, as mais belas proclamações podem conduzir ao resultado inverso do que se afirma (e pensa) querer atingir” (p. 34).

Dessa forma, a partir da análise do poder de classe que efetivamente exerce a ditadura, o poder, em determinada formação econômico-social após um processo revolucionário, do sentido de suas decisões e políticas, de sua estratégia e de sua tática, é possível identificar o caminho (a via capitalista ou socialista) que se está a tomar em tal formação. Bettelheim exemplifica com o período da NEP na URSS para mostrar que recuos momentâneos e circunscritos podem ser necessários na construção do socialismo, com a condição de que sejam entendidos claramente, pela vanguarda e pelas classes revolucionárias, como recuos e não como vitórias[v] (pois aí sim seriam derrotas, brechas para a restauração capitalista). 

Ou seja, o oposto vivenciado pela China nas últimas décadas, na qual o Estado exerce uma política capitalista, imperialista, de contínuo avanço das relações mercantis e de exploração de classe, sob um cínico malabarismo revisionista sintetizado no dito socialismo com características chinesas. Todos os reforços da economia de mercado, todos os sinais e políticas de restauração capitalista, segundo o discurso oficial chinês, há muito, nem são considerados recuos, mas “mecanismos econômicos”[vi] de modernização, acima das classes, e que têm ocasionado grandes êxitos no desenvolvimento nacional e na construção de uma sociedade moderadamente abastecida (sic).

Bettelheim critica ainda a forma como Sweezy apresenta o que seria uma solução do problema (a opção por algo semelhante à Revolução Cultural na China), mostrando que não se trata de uma escolha, mas de uma luta entre duas linhas (uma burguesa e outra proletária) que se expressa inclusive no seio do partido proletário. Há ainda uma aproximação aos problemas da construção do socialismo em Cuba, que não abordaremos aqui.

Réplica – Paul Sweezy

O debate prossegue com a resposta de Paul Sweezy afirmando que a contradição entre planificação estatal e mercado pode ser demonstrativa da luta que se estabelece para a construção do socialismo, já que, por sua abordagem, “trata-se de uma contradição no sentido em que as duas forças se opõem e se encontram necessariamente ligadas numa luta ininterrupta cujo objetivo é a dominação. (…) Trata-se, sim, de uma questão de poder de Estado e de política econômica.” (p. 45).

Mas ressalta que não considera o desenvolvimento de uma nova burguesia nos países socialistas e o alargamento do mercado uma simples relação de causa/efeito, mas uma relação de “tipo dialética e de interação recíproca” (p. 46). Esse autor destaca uma relação em que, primeiro, estabelece-se a consolidação do poder por uma camada burocrática dirigente acompanhada pela despolitização das massas. Assim a planificação torna-se cada vez mais autoritária e rígida, com o agravamento das dificuldades econômicas. Para enfrentar esse problema os dirigentes burocráticos apelam para as técnicas capitalistas de gestão, dão maiores poderes aos dirigentes das empresas e confiam cada vez menos na planificação centralizada e cada vez mais no mercado. A partir disso “a forma jurídica da propriedade de Estado esvazia-se progressivamente do seu conteúdo e o verdadeiro poder que se exerce sobre os meios de produção, poder que constitui a essência do conceito de propriedade, passa para as mãos da elite diretiva” (p. 46/47).

Sweezy discorda ainda da crítica de Bettelheim, afirmando que não apresentou a saída chinesa da revolução cultural como uma “escolha”, mas sim como uma das “respostas possíveis”, acrescentando que, por razões históricas, os soviéticos não eram capazes de optar pela revolução cultural.

De Novo Acerca da Sociedade de Transição – Charles Bettelheim

Nessa intervenção, Charles Bettelheim aprofunda o debate inicialmente mostrando que os dois chegaram a um acordo quanto ao problema da planificação x mercado, ou seja, que “durante um dado período, o recuo ou o progresso das relações mercantis não basta para caracterizar o avanço para o socialismo ou o recuo em relação a este, e que o que é significativo politicamente, ou seja, de um ponto de vista de classe, é o modo como é tratado um eventual progresso das relações de mercado” (p. 54).

O francês avança mais um passo na definição de socialismo, destacando a importância das condições políticas e de classe na planificação econômica, que deve ser expressão concreta do poder dos produtores imediatos, dos trabalhadores:

“Fundamentalmente, o avanço para o socialismo não é mais que a detenção crescente pelos produtores imediatos das suas condições de existência e, portanto, em primeiro lugar, dos seus meios de produção e dos seus produtos. Esta detenção não pode deixar de ser coletiva, e aquilo a que se chama ‘plano econômico’ é um dos meios desta detenção, mas só em condições politicamente determinadas, na falta das quais o plano não passa de um meio particular posto em prática por uma classe dominante, distinta dos produtores imediatos, que vivem do produto de seu trabalho, para assegurar a sua própria dominação sobre os meios de produção e sobre os produtos correntemente obtidos” (p. 54).

Trata-se assim de mudar de terreno (p. 58), sair do debate da superfície dos fenômenos econômicos e políticos e passar à análise da realidade concreta, do controle dos meios de produção e dos produtos (e de seus impactos na economia, na política, na ideologia); sair da estreita análise do avanço ou recuo das forças produtivas e mergulhar na análise das relações de produção que predominam e se fortalecem em uma determinada formação econômico-social. Como ele mesmo diz “(…) pondo a claro as contradições profundas (que dizem respeito às relações de produção e às relações de classes) de que a contradição ‘plano/mercado’ é apenas uma manifestação” (p. 55).

Bettelheim demonstra que é necessário romper, como fez Lenin, com o desvio “economicista” (que faz com que a análise fique sempre limitada à superfície dos fenômenos econômicos) esquecendo o essencial: a luta de classes, sua luta violenta e contínua pelo poder, pela dominação. Para conhecer objetivamente as relações de produção em determinada formação econômico-social, para “dominá-las”, é preciso analisar concretamente as formas específicas de produção nessas formações, trabalho análogo ao de Marx para o modo de produção capitalista: “é preciso tornar claras as relações sociais reais que são simultaneamente reveladas e dissimuladas pelas formas da representação e pelas complexas noções ideológicas nela baseadas” (p. 59). A contradição real a ser analisada “é a da dominação ou da não-dominação dos produtores sobre as condições e os resultados da sua atividade” (p. 60). 

Ou seja, novamente estamos diante da máxima marxista-leninista de que a luta de classes persiste no caminho da construção do socialismo. E o fato de persistirem, ainda no socialismo, relações de produção oriundas do modo de produção capitalista, agentes inseridos em posições hierarquicamente distintas no processo de produção, forças sociais burguesas em plena atuação. Por isso, a necessidade da ditadura do proletariado, da continuidade em outro nível da luta de classes proletária, é fundamental, mesmo com a planificação e a estatização dos meios de produção. Caso contrário, como já dizia Bettelheim no final dos anos 1960, “uma das saídas possíveis desta luta é o regresso ao poder, sob formas não imediatamente detectáveis, das forças sociais burguesas. Isto verifica-se quando os representantes dessas forças tomam a direção do estado e do partido dirigente; a partir daí, o caráter de classe do estado, da propriedade estatal e da planificação já não é proletário mas burguês” (p. 63).[vii]

Tal qual ocorreu na China, cujo avanço do revisionismo, da via capitalista, deu-se através de uma suposta correção, a partir de Xiaoping, dos “desvios” da Revolução Cultural Proletária e da centralidade da luta de classes. Essa revisão visa esconder uma brutal ruptura com o socialismo, a vitória das forças burguesas no país, que se apossaram de vez do Partido Comunista e do Estado. 

Assim, pode-se concluir, nesse momento do debate, que o essencial das relações de produção socialistas, o que permite o avanço na via do socialismo (e não o recuo na via do capitalismo) é a dominação dos produtores diretos sobre suas condições de existência (meios de produção e produtos de seu trabalho) e a profunda transformação de classe das formas dessa dominação, uma verdadeira revolucionarização das relações de produção (e seus efeitos nos diferentes aparelhos econômicos, ideológicos e políticos). O que “é decisivo – do ponto de vista do socialismo – não é o modo de ‘regulação’ da economia mas sim a natureza da classe no poder. (…) Se se coloca em primeiro plano o papel da direção do estado sobre a economia, relega-se para o segundo plano o papel da natureza de classe do poder, isto é, deixa-se de lado o essencial (p. 64).

Bettelheim lembra ainda que Estado (condição no nível político da dominação burguesa) e mercado (condição no nível econômico da dominação burguesa) podem complementar-se no capitalismo, cabendo o papel principal a um ou a outro em cada conjuntura concreta. Os Estados de Novo Tipo, como detacou Lenin (Sovietes, Comuna de Paris) já são embriões da destruição desse aparelho e do deslocamento das relações burguesas para um segundo plano. O poder deve estar cada vez mais concentrado na organização das próprias massas, da classe operária e do proletariado. Distinto do Estado burguês (aparelho separado das massas, dominando-as e reprimindo-as) o Estado da classe operária “já não é verdadeiramente um Estado porque é o instrumento do exercício do poder pelas próprias massas trabalhadoras” (p. 66), que inclusive já se exerce para além deste aparelho.

Réplica – Paul Sweezy

Na última réplica de Paul Sweezy, ele concorda que a forma como havia apresentado a dicotomia planificação x mercado prestava-se mais a confusões e que essa maneira de apresentar o problema deveria ser descartada. Concorda também com “a definição que Bettelheim dá do socialismo: uma sociedade em que os produtores controlam as condições e os resultados da sua atividade de produção” (p. 71). Mas levanta uma pertinente questão: a de que Charles Bettelheim, para saber se o proletariado está ou não no poder, não oferece outro critério além do das políticas prosseguidas pelo governo e pelo partido.

Nas palavras de Sweezy:

“Não será essencial para que a teoria tenha um valor explicativo que ela forneça um método independente que permita estabelecer a identidade da classe no poder? Ou ainda, quais as modalidades e as etapas de crescimento da nova burguesia de Estado? E, o que talvez seja o mais importante, em que condições se pode esperar uma vitória do proletariado e em que condições se pode esperar uma vitória da nova burguesia de Estado?” (p. 72).

Em sua réplica Sweezy mostra ainda o papel que a guerra revolucionaria prolongada pode cumprir para temperar as classes dominadas na luta revolucionária e pela construção da via do socialismo e afirma que, em sua opinião há dois caminhos políticos a adotar, duas vias: “Uma consiste em enfraquecer a burocracia, politizar as massas e confiar cada vez mais iniciativas e responsabilidades aos próprios operários. É o caminho que leva às relações socialistas de produção.” (p. 77).

E, adiantando o que seria a atual “linha chinesa” (e russa etc.) de retorno ao capitalismo afirma:

“A outra via consiste em confiar cada vez mais no mercado, não a título de retirada temporária (como foi o caso da NEP com Lenin), mas como um meio para pretensamente atingir uma economia ‘socialista’ mais eficaz. Isto equivale a fazer do lucro o motor principal do processo econômico e a dizer aos operários que se ocupem dos seus assuntos, isto é, que trabalhem duramente para poderem consumir mais. É recriar as condições em que opera o fetichismo dos bens de consumo, com a falsa consciência alienada que lhe corresponde. É, receio-o, o regresso à dominação de classe e, finalmente, à restauração do capitalismo.” (p. 77).

Uma descrição precisa da China 70 anos depois de sua Revolução! 

* * *

Na próxima publicação, veremos como Bettelheim responde aos questionamentos de Sweezy e sintetiza, assim, o debate. 


[i] Todas as citações do debate serão provindas dessa edição.

[ii] Segundo os próprios dados oficiais chineses, analisados por Branko Molanovic, em seu último livro Capitalism, alone (2019): “Antes de 1978, a parcela da produção industrial produzida por empresas estatais na China era de quase 100%, uma vez que a maioria das empresas industriais era estatal. […] Em 1998, a participação estatal na produção industrial já havia caído para metade acima de 50%, […]. Desde então, tem diminuído consistentemente, ano após ano, e atualmente está um pouco acima de 20%”. Os empregos e os investimentos nessas empresas, que já operam em muitos níveis sob o mercado, só caem, ano após ano, em contraposição ao abertamente setor privado, cada vez mais povoado por novos empresários bilionários! 

[iii] Lenin: “A ditadura do proletariado é a guerra mais severa e implacável da nova classe contra um inimigo mais poderoso, a burguesia, cuja resistência está decuplicada, em virtude de sua derrota (mesmo que em apenas um país), e cuja potência consiste não só na força do capital internacional, na força e na solidez das relações internacionais da burguesia, como também na força do costume, na força da pequena produção”.

[iv] O abandono da tese marxista-leninista, como não poderia deixar de ser, também é explícito no atual discurso oficial chinês: “após a entrada na nova época do socialismo com características chinesas, a principal contradição de nossa sociedade já se transformou na contradição entre as crescentes demandas do povo por uma vida melhor e o desenvolvimento desequilibrado e insuficiente”. Então, trata-se do avançar das forças produtivas, não importando por qual via. Afinal, como já dizia o mestre da restauração capitalista chinesa, Deng Xiaoping: “Não importa a cor do gato, desde que cace os ratos”.

[v] Lenin, sobre o período de capitalismo de Estado e suas concessões: “O concessionário é um capitalista. Dirige as empresas à maneira capitalista, com o objetivo de obter lucro, estabelecendo um acordo com o poder proletário tendo a finalidade de obter lucros extras, superlucros […] A política de concessões, feita com cuidado […] as concessões representam um aspecto da luta, a continuidade da luta de classes sob outra forma, e de modo nenhum a substituição da luta de classes pela paz de classes”.

[vi] Discurso de Jiang Zemin no XIV Congresso do PCCh, em 1992. Para uma análise mais completa desse discurso: https://cemflores.org/index.php/2019/10/11/debate-sobre-a-restauracao-capitalista-na-china/

[vii] Mao diz algo semelhante em 1966: “Os representantes da burguesia que se infiltraram no partido, no governo, no exército e nos sectores culturais são um bando de revisionistas contra-revolucionários. Se lhes dermos ocasião, transformarão a ditadura do proletariado em ditadura da burguesia”.
Em texto do comunista brasileiro Pedro Pomar, encontramos ainda a seguinte citação do dirigente chinês: “Que acontecerá se não estabelecermos a economia socialista? Nosso país converter-se-á num Estado burguês como a Iugoslávia e a ditadura do proletariado numa ditadura da burguesia, ditadura, além do mais, reacionária e fascista”.

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- 20/12/2019