Resposta ao Camarada R. N.
Após o envio de um e-mail para o endereço de nosso blog contendo críticas e contribuições, a nosso ver, importantes, vinculadas ao nosso último “post”: “O caleidoscópio da ideologia dominante”, resolvemos publicá-las como comentários a essa matéria, bem como, resolvemos debatê-las. O tamanho da resposta, bem como, sua importância, criaram a necessidade de fazê-la em um novo “post”.
Segue abaixo nossa resposta.
“Que cem flores desabrochem! Que cem escolas rivalizem!”
Prezado camarada R.N.,
Agradecemos sua leitura atenta do nosso último artigo e seus comentários. Quando nosso coletivo decidiu criar o Blog Cem Flores, nosso objetivo era o de criar um espaço para publicarmos nossas posições e promover o debate sobre a teoria revolucionária marxista e sobre sua prática militante. Com os comentários que temos recebido, inclusive o seu, parece que estamos no caminho correto. Convidamos você e seus companheiros a lerem e discutirem nossos textos anteriores que estão publicados no Blog.
Sua carta aborda vários temas relevantes. Sobre alguns deles, podemos dizer que estamos de firme acordo, pois são questões de princípios para os revolucionários. Em outros, temos discordâncias importantes. Vamos aos pontos.
Achamos, em primeiro lugar, que os aspectos mais relevantes de sua carta são os chamamentos que você faz
- para a organização de um partido revolucionário do proletariado, de estilo leninista(nas suas palavras, a “arma mais elaborada que o proletariado já construiu, a dizer, o partido leninista“).
- Partido presente nas lutas concretas da classe operária e demais classes dominadas do país (“militância viva nas ruas, nos bairros, nos locais de trabalho, universidades” e “não nos fóruns estéreis da esquerda“) e
- armado da ciência revolucionária do proletariado, o marxismo (“marxismo é ciência“, é preciso “enraizar o marxismo como uma ferramenta para a compreensão da marcha do imperialismo, ou nossa classe continuará afogada com as ideologias nacionais, ecológicas, democráticas, racistas, elitistas, religiosas, etc.“).
Ao longo de nossa trajetória de militância coletiva, temos nos batido sucessivamente em defesa desses princípios, o que você poderá constatar nos textos publicados no Blog. Esses princípios, no entanto, embora fundamentais e imprescindíveis para a construção do processo revolucionário e sua arma – o partido leninista –, não são suficientes. É preciso conjuga-los ao que Lênin chamava de alma viva do marxismo, a análise concreta de uma situação concreta. E aqui temos algumas divergências significativas.
Estamos de pleno acordo em que o Partido – partido leninista, partido revolucionário, partido proletário, enfim, o Partido Comunista – não pode seguir o que você chamou de “qualquer pauta burguesa“. Temos uma história repleta, no mundo e no Brasil, desse seguidismo à “burguesia nacional” que, só para ficarmos em um exemplo, desarmou completamente o PCB para combater o golpismo de direita que desembocou no golpe militar de 1964 e nos 21 anos de ditadura militar.
No entanto, é inteiramente incorreto chamar de “pauta burguesa” o que você chama de “questão nacional“, que você traduz como a “discussão entre países dominados e dominantes“. Em primeiro lugar, na história do marxismo e do movimento comunista, questão nacional refere-se, por um lado, à formação de Estados Nacionais agregando dentro de si várias nacionalidades, das quais uma exerce a condição de dominante, ou, por outro lado, à dominação colonial. Essas situações colocavam aos comunistas contradições específicas que deveriam ser tratadas no curso de cada processo revolucionário, como por exemplo, na Revolução Bolchevique de 1917, na Chinesa de 1949 e na Revolução no Vietnã. Ora, nesses termos, não temos uma questão nacional no Brasil atual como uma contradição relevante no processo revolucionário.
Mesmo assim, é importante esclarecer que a posição marxista sobre esse tema – definida por Stálin em seu livro O Marxismo e a Questão Nacional (1913) – nada tinha com a subordinação a uma “pauta burguesa“. Veja alguns trechos:
“A luta, para sermos exatos, começou e ascendeu-se não entre nações inteiras, mas entre as classes dirigentes das nações dominantes e das oprimidas … A burguesia é a protagonista” (pg. 291).
“Às vezes a burguesia consegue atrair o proletariado para o movimento nacional, e então a luta nacional assume, exteriormente, um caráter ‘popular’, mas só exteriormente. Na sua essência, a luta permanece sempre burguesa, vantajosa e útil sobretudo para a burguesia” (pg. 294).
“O proletariado colocar-se-á ou não sob a bandeira do nacionalismo burguês, segundo o grau de desenvolvimento das contradições de classe, segundo a sua consciência e organização. Um proletariado consciente possui a própria bandeira provada, e não tem motivo para colocar-se sob a bandeira da burguesia” (pg. 293).
“Não há outro caminho: os princípios vencem, mas não ‘se conciliam’. Portanto: o princípio da união internacional dos operários como elemento indispensável à solução da questão nacional” (pg. 348).
- Stálin. O Marxismo e a Questão Nacional (1913). Obras, vol. 2 (1907-1913). Rio de Janeiro: Editorial Vitória, 1952, pg. 278-348.
Em segundo lugar, nosso artigo ao qual você dirige seus comentários não trata de países dominantes (imperialistas) e de países dominados do ponto de vista da questão nacional. Tratamos, isso sim, da economia mundial, do sistema imperialista, que efetivamente se constitui em um todo contraditório no qual há o antagonismo entre países dominantes (imperialistas) e países dominados, bem como contradições dentro do conjunto dos países imperialistas entre si, além das contradições de classe entre burguesia e proletariado em cada um desses países (e entre as distintas frações da burguesia) e, em alguns casos, questões nacionais ainda por resolver.
Estamos convictos de que não apenas essa análise da conjuntura econômica e social do sistema mundial do imperialismo é fundamental para a análise da luta de classes no Brasil – seja como “pano de fundo”, seja como, mais precisamente, os determinantes primeiros da reprodução do capital no país, seus ajustamentos e reestruturações (que nós atualmente denominamos como regressiva, como “regressão a uma situação colonial de novo tipo“) – mas que ela é, também, feito no espírito da análise de Lênin em O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, indispensável para a correta compreensão revolucionária da conjuntura.
Para Lênin, a passagem para a fase imperialista do capitalismo (“el imperialismo es la fase monopolista del capitalismo“, pg. 405) é o traço fundamental de nossa época. Para o que nos interessa aqui, entre outras características, ressalta “el reparto del mundo entre las grandes potencias“, que analisa no item 6 do livro, que agrava ainda mais, entre outros, a tendência à guerra (que você aponta corretamente). As frases abaixo resumem bem o sentido da análise de conjuntura, da avaliação da contradição entre os países dominantes (imperialistas) e o Brasil enquanto país dominado, que buscamos fazer em nosso texto:
“El capital financeiro es una fuerza tan considerable, puede afirmarse que tan decisiva, en todas las relaciones económicas e internacionales, que es capaz de subordinar, y en efecto subordina, incluso a los Estados que gozan de la independência política más completa” (pg. 398).
“las formas variadas de países dependientes que desde un punto de vista formal, político, gozan de independencia, pero que, en realidad, se hallan envueltos en las redes de la dependencia financiera y diplomática … Modelo … es, por ejemplo, la Argentina” (pg. 402).
- Lênin. El Imperialismo, Fase Superior del Capitalismo (1916). Obras Completas, vol. 27 (1915-1916). Moscou: Editorial Progreso, 1985, pg. 313-449.
Substitua, por favor, Argentina por Brasil na citação acima. Veja também, no livro de Lênin, a importância que ele atribui à produção de matérias-primas, à dominação do capital financeiro, e veja se não é necessário partir daí para a análise da conjuntura atual.
Talvez o mais importante, no entanto, é que nosso artigo se dedica a negar cabalmente o que você considera como um “fato“, a saber, a “ascensão do Brasil ao nível de potência imperialista“. É a partir dessa sua concepção – a nosso ver completamente equivocada – que você pode afirmar, logo no início, que “Não interessa ficar discutindo os benefícios para a fração brasileira da nossa classe, o problema da ascensão do Brasil ao nível de potência imperialista. Essa ascensão é fato“. É a partir desse equívoco que você conclui que “É uma pauta da esquerda, e portanto da burguesia, a discussão entre países dominados e dominantes“.
Todo o nosso artigo é uma crítica radical da tese de José Luís Fiori sobre a conquista de uma suposta “autonomia” por parte do Brasil. Crítica radical da tese de José Luís Fiori de que “o Brasil já entrou no grupo dos Estados e das economias nacionais que fazem parte do ‘caleidoscópio central’ do sistema“. Ao considerar isso como um “fato“, acreditamos que você acaba por cair – de forma passiva e involuntária – na rede das teses do nacionalismo e do desenvolvimentismo burgueses, ainda quando coberta com um manto socialista.
Em relação à sua negativa de que esta crise seria uma “terceira grande depressão”, achamos que a resposta final sobre isso será dada pelos fatos, pelos “datos generales de la estadística burguesa irrefutable” (pg. 317), como dizia Lênin em O Imperialismo. As estatísticas, até agora, para o conjunto do sistema imperialista, mostram que trata-se da mais severa crise desde a de 1929, sendo que para diversos países (Letônia, Estônia, Islândia, Irlanda, Grécia, e talvez Portugal e Espanha) trata-se de algo ainda mais grave. Para nos resumirmos a um número: o FMI tem, atualmente, mais de 80 países sob programas de “assistência financeira”, em valores que totalizavam US$104 bilhões, em 28 de fevereiro passado (veja em http://www.imf.org/external/np/fin/tad/extcred2.aspx?date1key=2011-02-%2028&reportdate=2011-02-28.
Os valores estão em Direitos Especiais de Saque e precisam ser convertidos em dólares. As taxas estão em http://www.imf.org/external/np/fin/data/rms_mth.aspx?SelectDate=2011-02-28&reportType=CVSDR). Isso sem contar os valores gastos pelos Tesouros Nacionais e pelos bancos centrais em cada país.
Agora, em relação à sua afirmação de que “crises muito mais profundas estão no horizonte de médio-longo prazo (20-30 anos)“, concordamos inteiramente, pois isso nada mais é que uma expressão da tendência ao agravamento das contradições do capitalismo em sua fase imperialista. Inclusive a tendência à guerra.
Dois últimos comentários breves, para não prolongar demais esta resposta. Em relação à história das magníficas experiências de construção do socialismo, não deixe seus preconceitos prejudicarem a sua análise. Não caia no conto dos ideólogos burgueses disfarçados de historiadores, alguns até marxistas de nome e pequeno-burgueses de fato. Os acertos e erros das experiências de construção do socialismo na URSS, na China, no Vietnã, em Cuba (e antes disso, a Comuna!), são fatos inescapáveis da nossa reflexão teórica e da nossa prática política. As revoluções, a tomada do poder político, a ditadura do proletariado, a expropriação da burguesia e demais classes dominantes, a coletivização no campo, as revoluções culturais, são marcos fundamentais aos quais devemos dedicar estudo detalhado, teórico e dos fatos.
Por fim, seus comentários por diversas vezes citam os “seres humanos“, seja como unidade de análise, seja como objetos de uma pauta revolucionária. Sobre isso afirmamos, como já dizia Louis Althusser, que o marxismo não é um humanismo. A análise marxista não parte dos “seres humanos“, de uma “rede material de relações entre os seres humanos“, mas sim das classes sociais e da sua luta, que são “o motor da história”. Partir dos indivíduos – um passo para considera-los todos iguais! – é cair na ideologia jurídica, própria da burguesia; nos princípios da economia política, as “robinsonadas” que Marx tanto criticou; e ainda em uma a-historicidade, antagônica ao marxismo, pois seres humanos existem há milênios, enquanto que o proletariado surge com o capitalismo e acabará com a sua derrubada.
Portanto, dizer que o “capitalismo é desenvolvimento para o mercado, e não para os seres humanos“, é um equívoco. Ninguém se beneficia tanto dos mercados quanto as classes dominantes, também compostas, salvo melhor juízo, de seres humanos…
Só para encerrar com um famoso comentário do Marx sobre o assunto, feito às vésperas da redação do Manifesto, em 1847:
“Nos novos estatutos [da Liga dos Comunistas, novo nome da anterior Liga dos Justos] o slogan anterior ‘Todos os homens são irmãos’ foi substituído por ‘Proletários de todos os países, uni-vos’ (Marx teria declarado que havia muitos homens de quem ele não desejava ser irmão de modo algum)” (pg. 188).
McLELLAN, David. Karl Marx: vida e pensamento. Petrópolis: Vozes, 1990, 525 pg.
Saudações revolucionárias,
Coletivo do Blog Cem Flores