CEM FLORES

QUE CEM FLORES DESABROCHEM! QUE CEM ESCOLAS RIVALIZEM!

Cem Flores, Conjuntura, Nacional

Teses sobre a conjuntura nacional

 

No começo deste ano, o Blog Cem Flores publicou um documento sobre a conjuntura internacional para a discussão com nossos camaradas e leitores, “A Crise do Imperialismo «Globaliza» o Acirramento da Luta de Classes”. Dos debates que se seguiram, ficou evidente a necessidade de um esforço similar para a avaliação da conjuntura nacional, com o desenvolvimento, a atualização e a crítica das nossas próprias formulações anteriores.

A partir dessa constatação foi elaborado o documento a seguir, na tentativa de contribuir com a discussão sobre a conjuntura brasileira com nossos camaradas e leitores, buscando analisar tanto os fatos mais atuais dessa conjuntura quanto seus condicionantes “estruturais”. Esse documento sobre a conjuntura brasileira, que se inicia nesta postagem, será seguido de outras três postagens sequenciais. A primeira, abaixo, inicia com o acompanhamento da evolução dessa conjuntura neste ano, a partir da última divulgação do PIB, avaliando o desempenho mais recente da economia brasileira, sendo seguida dos traços mais gerais da nossa formulação, tanto da crise do imperialismo, quanto da regressão a uma situação colonial de novo tipo.

Os posts seguintes trarão nossas análises sobre a desindustrialização e sobre a reprimarização, tendências constitutivas da já mencionada regressão, finalizando com a avaliação dos impactos dessa conjuntura sobre as condições da classe operária e demais classes exploradas.

Blog Cem Flores

 

Brasil: Crise e Regressão (Parte 1)

 

“A intelectualidade socialista só poderá pensar num trabalho fecundo quando acabar com as ilusões e passar a buscar apoio no desenvolvimento real e não no desenvolvimento desejável da Rússia, nas relações socioeconômicas efetivas e não nas prováveis. Seu trabalho TEÓRICO deverá, ademais, encaminhar-se para o estudo concreto de todas as formas de antagonismo econômico existentes na Rússia, ao estudo de sua conexão e de seu desenvolvimento consecutivo; deverá colocar a nu este antagonismo em todas as partes onde esteja encoberto pela história política, pelas peculiaridades do ordenamento jurídico e pelos preconceitos teóricos estabelecidos. Deverá oferecer um quadro completo da nossa realidade como sistema determinado de relações de produção, assinalar a necessidade da exploração e da expropriação dos trabalhadores neste sistema, assinalar a saída desta ordem das coisas, indicada pelo desenvolvimento económico.

Esta teoria, baseada no estudo detalhado e minucioso da história e da realidade russas, deve dar resposta às demandas do proletariado, e se satisfizer as exigências científicas, todo o despertar do pensamento rebelde do proletariado conduzirá inevitavelmente este pensamento ao leito da socialdemocracia. Quanto mais progrida a elaboração desta teoria tanto mais rápido será o crescimento da socialdemocracia…”.

LÊNIN [1]

 

 

No dia 29 de agosto, o IBGE divulgou as estatísticas do PIB do segundo trimestre deste ano, revelando que tanto nesse trimestre quanto no anterior houve queda do conjunto da atividade econômica. Esses resultados negativos expressam a crise econômica atravessada pelo país, atingindo o conjunto dos setores da economia, ainda que de forma heterogênea. Conforme o semanário lulista Carta Capital:

As quedas seguidas do PIB lideraram a onda de notícias negativas sobre o desempenho recente da economia. O déficit primário do setor público de 4,7 bilhões de reais em julho, a redução da produção de veículos em 22,4% em agosto, uma nova queda na confiança dos empresários da indústria e do setor de serviços e as taxas de juros mais altas desde 2011 integraram o quadro de informações ruins. Houve fatos positivos, insuficientes para reverter o pessimismo. O principal deles foi o aumento de 0,7% na produção industrial de julho sobre o mês anterior, segundo o IBGE, depois de cinco quedas sucessivas.” (O Brasil Não Vive Recessão, Mas Uma Estagnação, de 10.09.2014).

Diante dessa crise e, à época, em plena campanha eleitoral, os candidatos governista e oposicionista trocam acusações e apontam culpados, na tentativa de aparecerem para as classes dominantes como a melhor alternativa para “gerenciar” o país e retomar os lucros da burguesia. A Presidente Dilma saiu-se com a risível explicação de que se tratava de questão “momentânea”. Para ela, a Copa do Mundo causou “a maior quantidade de feriados na história do Brasil”. Já o (quase ex-) Ministro Mantega, além da Copa do Mundo, citou desde a economia internacional até o crédito escasso, os altos juros (como se não fossem aumentar ainda mais, só passada a eleição…) e a seca. Para a oposição, trata-se da adoção de políticas econômicas incorretas e do fracasso do modelo do PT [2].

Na disputa eleitoral entre as candidaturas das classes dominantes, a crise brasileira atual tornou-se mera questão semântica. Para os oposicionistas, é “recessão técnica”, devido aos dois trimestres consecutivos de queda do PIB, como apregoa a revista Veja. Para os governistas, por outro lado, “apenas” uma “estagnação”, como ilustra o título da mencionada matéria de Carta Capital [3]. Seria, assim, o velho dilema entre o copo meio cheio ou meio vazio. O mais importante, no entanto, é o que podemos concluir a partir desse jogo de palavras: ambas as “explicações” para a crise brasileira atual situam-se no mesmo ponto de vista em termos de classe, ou seja, e como não poderia ser diferente, as candidaturas governista e oposicionista expressavam e defendiam os interesses e a ideologia das classes dominantes [4].

Neste artigo queremos contribuir para a análise marxista da crise econômica brasileira, apresentando os dados empíricos mais relevantes e os analisando a partir da noção de regressão a uma situação colonial de novo tipo.

A crise econômica brasileira atual nos dados do PIB do IBGE

O IBGE apresenta quatro métricas para analisar a evolução do PIB, alterando tanto o período de referência quanto o comparativo. Como pode ser visto na tabela 1, o “enfraquecimento” da economia é inequívoco em todas elas. Ou seja, como diriam os economistas, a crise é “robusta”, qualquer que seja sua especificação.

Na última linha da tabela 1 pode-se desmentir facilmente o aspecto meramente “momentâneo” da crise, mencionado por Dilma. Dos quatro últimos trimestres, três apresentaram variações negativas quando comparados ao imediatamente anterior. Ou seja, faz já um ano que a crise da economia brasileira se acentuou.

Na comparação com o mesmo trimestre do ano anterior, há desaceleração constante, até a queda do segundo trimestre deste ano. Por fim, o PIB acumulado em quatro trimestres só apresenta crescimento de 1,4% por uma questão estatística. Até o final do ano, mesmo se houver uma improvável retomada do crescimento econômico (mais uma vez, meramente estatística), esse percentual cairá para algo entre zero e 0,5% [5].

Tabela 1
Principais resultados do PIB a preços de mercado 
do 2o trimestre de 2013 ao 2o trimestre de 2014.

Taxas (%) 2013.II 2013.III 2013.IV 2014.I 2014.II
Acumulado ao longo do ano / mesmo
período do ano anterior
< Anexo: Tabela 3 >
2,7 2,6 2,5 1,9 0,5
Últimos quatro trimestres / quatro
trimestres imediatamente anteriores
< Anexo: Tabela 4 >
2,0 2,4 2,5 2,5 1,4
Trimestre / mesmo trimestre do ano
anterior
< Anexo: Tabela 2 >
3,5 2,4 2,2 1,9 -0,9
Trimestre / trimestre imediatamente
anterior (com ajuste sazonal)
< Anexo: Tabela 7 >
2,1 -0,6 0,5 -0,2 -0,6

http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&id=1&busca=1&idnoticia=2705

 

Ao analisarmos esses dados econômicos de uma forma mais desagregada, na tabela 2, fica evidente que a crise é puxada pela indústria, em queda já faz quatro trimestres, com destaque para a chamada indústria de transformação, embora a construção civil também tenha registrado uma queda forte recentemente [6]. Os dados revelam uma profunda recessão na indústria brasileira (com possível exceção da indústria extrativa mineral) que detalharemos na postagem seguinte ao tratarmos dadesindustrialização, fenômeno constitutivo da regressão a uma situação colonial de novo tipo.

Acompanha a recessão industrial a acentuada contração dos investimentos, denominados pelo IBGE de Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF), que voltaram ao nível do começo de 2010. Essa queda – de 5,3% na variação trimestral (a maior desde a recessão de 2008/09) e de 11,2% na anual – ocorre não obstante as centenas de bilhões de reais de empréstimos do BNDES a juros reais negativos, além da continuidade e aprofundamento das mesmas medidas em prol do aumento das taxas de lucro da burguesia já adotadas pelos governos petistas ao menos desde 2009.

O investimento capitalista, a capitalização da mais-valia ou reprodução ampliada do capital, ocorre em função das perspectivas de lucro, e não apenas do dinheiro subsidiado (que, é claro, é muito bem vindo para o capital!). Com a economia em crise, o aumento dos investimentos apenas iria aumentar a capacidade produtiva instalada e não utilizada. Ou seja, esse investimento, de forma agregada, não atuaria efetivamente como capital – valor que consegue se valorizar em escala crescente. Assim, o dinheiro subsidiado acaba financiando seja a centralização de capital, seja sua acumulação fictícia, especulativa, quer no mercado de títulos de dívida a juros elevadíssimos, quer na bolsa de valores [7].

 

Tabela 2 – Evolução do PIB desagregado

 

Período de comparação Indicadores
PIB Agrope-cuária Indús-tria Servi-ços FBCF Consumo Famílias Consumo Governo
2o TRI 2014 / 1o TRI 2014 -0,60% 0,20% -1,50% -0,50% -5,30% 0,30% -0,70%
2o TRI 2014 / 2o TRI 2013 -0,90% 0,00% -3,40% 0,20% -11,20% 1,20% 0,90%
Acumulado em 4 tri / 4 tri imediatamente anteriores 1,40% 1,10% 0,50% 1,60% -0,70% 2,10% 2,20%
Acumulado 2014 / Acumulado 2013 0,50% 1,20% -1,40% 1,10% -6,80% 1,70% 2,10%
VALORES CORRENTES NO TRIMESTRE (R$) 1.271,2
bilhões
82,5
bilhões
255,0
bilhões
750,1
bilhões
209,8
bilhões
799,4
bilhões
271,8
bilhões

http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&id=1&busca=1&idnoticia=2705

 

Embora não apresentado na tabela 2, o setor externo também é considerado nas contas nacionais, mediante as exportações e importações de bens e serviços. No segundo trimestre, informa o IBGE, as exportações cresceram devido a petróleo e carvão, produtos agropecuários, metalúrgicos e siderúrgicos e óleos vegetais. Veremos em postagem posterior que isso está relacionado à reprimarização das exportações brasileiras e ao predomínio da produção de commodities. Já as importações caíram no período, com a diminuição tanto de bens de capital como de consumo, o que reflete a recessão industrial e queda dos investimentos, além da própria crise econômica.

 

Apenas essa breve análise dos dados do PIB, conforme a divulgação do IBGE ao final de agosto, já é mais que suficiente para mostrar o cenário generalizado de crise que atinge a economia brasileira e que deve prolongar-se pelos próximos anos. Estamos vivendo um período de forte contração dos investimentos, recessão industrial prolongada, queda nas exportações, nas importações e nos serviços (especialmente no comércio), desaceleração do consumo e estagnação/redução do emprego. Ocorre que essa análise meramente empírica não explica as causas mais profundas da crise. Nos itens a seguir apresentaremos os principais aspectos de nossa análise da crise atual, bem como buscaremos fundamentá-la nos dados disponíveis da realidade econômica e social da luta de classes no país.

 

1. “Regressão a uma situação colonial de novo tipo” como explicação da crise econômica brasileira atual

 

Em texto de fevereiro de 2006, “Formação econômico-social brasileira: regressão a uma situação colonial de novo tipo” – que reproduzimos como capítulo em nosso livro “Luta de Classes, Crise do Imperialismo e a Nova Divisão Internacional do Trabalho” (http://www.quefazer.org/formacao_economico-social%20brasileira.html) – caracterizamos a regressão como o conjunto de transformações na estrutura da formação econômico-social brasileira, desdobramento das modificações na economia mundial, no sistema imperialista.

 

A reconfiguração do sistema imperialista – que se efetua a partir dos movimentos do capital na busca por reagir ou mesmo tentar superar sua crise iniciada a meados dos anos 1970 e, com isso, retomar as taxas de lucro – impulsionou maiores centralização e internacionalização dos monopólios transnacionais dos países imperialistas, levando à transferência de importante parcela de sua produção para países nos quais, entre outras vantagens para a produção capitalista, a força de trabalho tem baixíssima remuneração, principalmente a China. Essa configuração de uma nova divisão internacional do trabalho redefiniu o “lugar” do Brasil no sistema imperialista. Os rearranjos na estrutura produtiva brasileira, cujo conjunto denominamos de regressão a uma situação colonial de novo tipo, respondem (de forma ativa) a essas determinações externas, nas possibilidades e nos limites estabelecidos pelas contradições internas e pela luta de classes.

 

regressão a uma situação colonial de novo tipo, portanto:

 

significa uma mudança na estrutura econômica, social e política da formação social brasileira sob o peso de forte ofensiva econômica, política, ideológica e militar do imperialismo na esfera mundial.

As mudanças na estrutura econômica se expressam em transformações que visam atender as necessidades da nova configuração da divisão internacional do trabalho que vai tomando a economia mundial:

1 – fornecimento de commodities; matérias-primas (petróleo, ferro, aço, alumínio, cobre, etc. madeira, couro, etc.) e alimentos (grãos, carne bovina, frango, sucos, açúcar etc.) para o novo pólo industrial asiático;

2 – ocupação do mercado interno por bens de consumo superproduzidos no mercado mundial;

3 – obtenção de ganhos de escala para o setor industrial nas mãos do capital externo, oferecendo infraestrutura e força de trabalho barata;

4 – constituição de um mercado financeiro capaz de valorizar o capital sobreproduzido na economia mundial.” (negrito nosso).

 

As principais mudanças na estrutura econômica brasileira, visando atender essas determinações externas – ou seja, o capital se movendo de setores que passaram a ser menos dinâmicos e, em geral, com menor lucratividade, para aqueles que se tornaram mais dinâmicos, com maior demanda (principalmente externa) e, portanto, com perspectiva de maior taxa de lucro –, que identificamos ainda em 2006, incluíam:

 

1)   a desindustrialização;

2)   a constituição/o reforço das plataformas de produção e montagem para exportação;

3) a especialização na produção e exportação de commodities agrícolas (a rigor, agropecuárias, embora predominantemente agrícolas) e minerais;

4)   e a montagem/o desenvolvimento de sistema voltado à remuneração do capital financeiro e fictício.

 

O desenvolvimento desse processo de regressão – a partir do final dos anos 1980, tendo como marco o governo Collor e se intensificando nos governos FHC e Lula – no bojo das tendências que moveram o imperialismo, anteriores à eclosão da crise ao final de 2007, especialmente o elevado crescimento chinês, possibilitou relativo aumento nas taxas de crescimento do país no quinquênio 2004-8, para uma média anual de 4,8%. Caracterizam o período a colossal demanda chinesa por commoditiesagrícolas e minerais, criando um boom nos preços internacionais desses produtos, e o crescimento dos fluxos de capitais para os chamados “mercados emergentes”.

 

Esse processo permitiu ao Brasil registrar saldos comerciais recordes, que superaram US$ 40 bilhões; obter inéditos superávits seguidos nas suas transações correntes de 2003 a 2007; registrar ingressos recordes de capitais estrangeiros em todas as modalidades, atingindo US$ 87,5 bilhões líquidos em 2007; e acumular centenas de bilhões de dólares em reservas internacionais (aplicados em títulos da dívida pública dos EUA). Além disso, o crescimento e esses fluxos de capitais permitiram uma rápida expansão do mercado de crédito (que, por sua vez, estimulou o crescimento e os lucros do capital financeiro, endividando as classes dominadas) e uma relativa “folga” de recursos fiscais no governo, fonte da expansão dos programas sociais destinados a conter a revolta dos despossuídos (e que também estimularam o crescimento).

 

eclosão da crise do imperialismo no final de 2007 – crise que está ainda longe de se encerrar, seja qual for o critério utilizado – bloqueia, no primeiro momento, as condições de acumulação em todo o sistema, mediante brutal queima de capitais, que se expressa nas / é a expressão das vertiginosas quedas da produção, da demanda e do comércio mundiais. O capital, em busca de retomar sua valorização, acirra sua ofensiva contra a classe operária e demais trabalhadores, buscando das mais diferentes formas rebaixar seus salários e as condições de sua reprodução, bem como impedir os protestos da classe sofisticando seus mecanismos de repressão estatal; ao tempo que obtém de seus Estados programas sucessivos de “incentivos”, dinheiro a juros negativos, reduções de impostos e subsídios diversos. Nessas novas condições de acumulação e da luta de classes, o capital retoma seu processo errático de buscar melhores condições para sua reprodução e lucratividade, considerando as novas diferenças que os impactos da crise do imperialismo causaram nas condições de acumulação nos diferentes países.

 

Esses movimentos provocam mudanças significativas no sistema imperialista mundial, seja do ponto de vista econômico, seja incorporando aspectos políticos e ideológicos, que buscamos analisar no texto “A crise do imperialismo «globaliza» o acirramento da luta de classes”, de janeiro deste ano. Enumeramos abaixo essas principais tendências decorrentes da crise do imperialismo em curso:

 

1)    importante rearranjo no sistema econômico mundial, modificando a divisão internacional do trabalho;

2) questionamento das existentes zonas de influência/dominação dos países imperialistas, e impulso/fortalecimento, de forma contraditória, de novos acordos/alianças interimperialistas;

3)    modificação das condições de acumulação do capital em todos os países, rebaixando os custos de reprodução da força de trabalho;

4)    ajuste às novas condições de todas as políticas voltadas a ampliar as condições de acumulação do capital por meio dos aparelhos de estado, buscando aumentar as taxas de lucro;

5)    aprofundamento da luta de classes entre burguesia e proletariado.

 

No Brasil, a crise do imperialismo provocou forte recessão do final de 2008 ao início de 2009, seguida de uma curta recuperação em 2010 e de já quatro anos de crise, de 2011 a 2014, com crescimento econômico baixo e em queda, média anual por volta de 1,6% (idêntica a dos anos 1980, conhecidos como “década perdida”), condição que deverá permanecer nos próximos anos. Ou seja, longe da “marolinha” da propaganda lulista, a crise do imperialismo e os rearranjos da economia mundial dela decorrentes provaram ter impactos de longo prazo na formação econômico-social brasileira.

 

Acreditamos poder avançar a tese geral de que os rearranjos da economia brasileira às determinações do sistema imperialista, a regressão a uma situação colonial de novo tipo, se por um lado possibilitaram um relativo aumento do crescimento no quinquênio 2004-2008, por outro, nas novas condições geradas/em geração a partir da crise do imperialismo, constituem as principais causas da crise econômica que atravessamos atualmente.

 

III. Impactos da crise do imperialismo atual na economia brasileira

 

Sete anos já se passam desde o início da recessão nos países imperialistas, agudizando a crise do imperialismo que segue sem final a vista. Se, por um lado, a crise do imperialismo está provocando importantes modificações no sistema da economia mundial (para a análise das quais remetemos ao nosso texto de janeiro deste ano: “A crise do imperialismo «globaliza» o acirramento da luta de classes”, por outro, essas próprias modificações, atuando nos limites das contradições internas e da luta de classes em cada país, geram as atuais recessões, estagnações ou desacelerações que vemos ao redor do mundo. Cada fugaz expectativa de retomada logo se desmancha no ar.

 

Apenas para usarmos uma de inúmeras constatações recentes desses fatos, o Interim Economic Assessment, da OCDE, de 15 de setembro passado, rebaixou as previsões de crescimento para todos os países analisados neste ano (exceção da Índia) e no próximo (exceção do Reino Unido, +0,1%, o que pode se revelar excesso de otimismo!). Para a China, as projeções foram mantidas em 7,4%, em 2014, e 7,3%, em 2015, longe do padrão médio de 10% registrado de 1980 a 2011.

 

Em termos dos ritmos de crescimento da economia mundial, portanto, poderíamos afirmar, de forma sintética, que nos principais países imperialistas há uma fraca recuperação nos EUA, a continuidade da estagnação no Japão, a permanência da recessão na Europa e a desaceleração da economia chinesa. Em todos esses países, no entanto, se registram aumentos de produtividade e reduções dos salários (com exceção da China, onde os salários sobem, como consequência da luta de classes constitutiva do seu desenvolvimento capitalista), resultando em maior competitividade dos seus capitais. Dentre os países dominados no sistema mundial do imperialismo, a regra parece girar em torno de variações de economia estagnada/em recessão com alta inflação, ou seja, a denominada “estagflação” [8].

 

Especificamente em relação à China – que constitui o polo dominante de uma verdadeira zona internacional integrada de produção no sudeste asiático, incluindo o Japão – parecem estar ocorrendo importantes mudanças estruturais em sua economia, destacadamente a tendência ao aumento dos salários e o acirramento da luta de classes da classe operária, com o crescimento de manifestações e greves [9]. Essas modificações, que ocorrem em paralelo à redução de suas taxas de crescimento, impulsionam a produção industrial chinesa para bens manufaturados de maior “valor agregado” ou maior intensidade tecnológica; deslocam os ramos de produção mais intensivos em trabalho para os países vizinhos, que apresentam níveis salariais ainda mais baixos; tendem a reduzir seu superávit comercial e apreciar sua taxa de câmbio; e implicam crescimento cada vez menor da sua demanda internacional por commodities. A queda do crescimento chinês, por sua vez, impulsiona repetidos programas de estímulo governamentais, da magnitude de centenas de bilhões de dólares, para aumentar os investimentos (infraestrutura, habitação) e o crédito, gestando uma crise de superacumulação de capital e uma crise bancária.

 

Focando nossa análise nos aspectos mais específicos da crise do imperialismo, aqueles que mais diretamente afetam as condições de reprodução do capital no Brasil, podemos listar:

 

1)    a recessão e/ou o baixo crescimento tanto nos países imperialistas quanto nos dominados, e a consequente desaceleração das exportações mundiais (e queda nas exportações brasileiras) [10];

2)  a desaceleração do ritmo de crescimento e as transformações pelas quais a economia chinesa atravessa, reduzindo o ritmo de crescimento de sua demanda internacional porcommodities e fazendo cair seus preços no mercado mundial;

3)    a redução do valor da força de trabalho (juntamente com o pagamento de salários abaixo desse valor) e os ganhos de produtividade nos países imperialistas e dominados, aumentando sua competitividade;

4)    como consequência dos três itens acima, uma maior concorrência nos mercados mundiais de bens e serviços;

5)   ainda como consequência, a inflexão do que os economistas burgueses chamam de termos de troca (preço das exportações dividido pelo das importações) do comércio exterior brasileiro, que passam a cair;

6)     dados os juros reais negativos nos países imperialistas e suas políticas de geração de enormes montantes de capital fictício, abundantes fluxos de capitais para o país em todas as modalidades.

 

Em suma, passou a haver menor demanda externa (e a preços mais baixos) pelas commodities exportadas pelo Brasil, ao mesmo tempo em que aumentou a concorrência internacional, praticamente excluindo as manufaturas brasileiras do mercado internacional, afetando inclusive essas exportações para o que se constitui virtualmente seu último reduto, a América Latina, fato que é agravado pelas graves crises econômicas por que passam Argentina e Venezuela [11]. O outro lado da moeda da maior concorrência internacional foi o crescimento das importações, seja de bens de capital e de insumos, seja de bens de consumo. Nesses últimos anos, portanto, restou eliminado o impulso da demanda externa ao crescimento [12], que caracterizou a economia brasileira na década anterior.

 

À eliminação desse impulso externo se somou o esgotamento do modelo de expansão do consumo que puxava o mercado interno. Geração de cada vez menos postos de trabalho (e demissões na indústria), tendência de aumento das taxas de desemprego, cada vez menores ganhos reais de rendimentos, e elevado nível de endividamento [13] dos trabalhadores e das camadas médias (que faz o mercado de crédito estagnar) – temas que analisaremos em detalhes na quarta e última postagem desta série – reduzem as vendas do comércio e as receitas do setor de serviços. Ou seja, por qualquer lado que se escolha observar, a crise econômica brasileira está a olhos vistos.

 

São esses aspectos da crise do imperialismo e seus impactos na economia brasileira que analisaremos com mais detalhes e dados empíricos nas postagens seguintes.

 

Ao trazer para a discussão com os camaradas e amigos do blog Cem Flores essas questões fundamentais da economia, os “números frios”, temos por objetivo apontar para a imprescindível tarefa de reorganizar as lutas da classe operária e dos trabalhadores, como diz Lênin: “acabar com as ilusões e passar a buscar apoio no desenvolvimento real e não no desenvolvimento desejável”.

[1] Lênin (1894). Quem São os “Amigos do Povo” e Como Lutam Contra os Socialdemocratas (Resposta aos artigos do Rússkoe Bogatstvo contra os marxistas). Obras Completas, tomo 1. Moscou: Editorial Progresso, 1981, pg. 323. Tradução nossa do espanhol. Disponível (em inglês) aqui.

[2] As referências deste parágrafo foram tiradas de:

Declarações da Presidente Dilma sobre o PIB;

Mantega como quase ex-ministro; e a coluna do Jânio de Freitas, As Hipóteses Estão Abertas, sobre suas incapacidades “políticas, funcionais, e talvez psicológicas”;

Declarações do (ainda) Ministro Mantega sobre o PIB;

Estudo do Ministério da Fazenda apontando o aumento dos juros como principal responsável pela queda do PIB.

Declarações de Aécio Neves, então candidato do PSDB, sobre o PIB.

[3] Após as eleições foi divulgada uma Carta de Conjuntura do Ipea caracterizando a situação econômica do país como “recessão técnica”, embora buscando, em diversos momentos, atenuar essa qualificação.

[4] Sobre o tema, ver nossos artigos “Dilma ou Aécio? Direito de resposta a uma falsa questão. Ou: organizar as lutas da classe operária e dos trabalhadores” e Caiu a Máscara de Dilma Rousseff do PT.

[5] Essas projeções são praticamente consensuais entre os chamados “analistas econômicos” e foram reforçadas no dia 15 de setembro com a divulgação de relatório da OCDE que diminuiu a previsão de crescimento do país, de 1,8% para 0,3%. O relatório da OCDE, Interim Economic Assessment, está disponível aqui.

[6] Além da indústria de transformação, o agregado “indústria” no PIB inclui extrativa mineral, construção civil e “eletricidade e gás, água, esgoto e limpeza urbana”.

[7] Nos últimos quatro anos, por exemplo, mesmo com a queda do índice Bovespa, o volume negociado (ou seja, a valor movimentado nas compras e vendas de ações) na bolsa aumentou, indicando o crescimento da especulação com esses papeis.

Como exemplos da utilização do “capital subsidiado” (via BNDES) para o financiamento da centralização do capital no país, nos mais diversos setores, podemos citar matéria de Vinícius Torres Freire, “Lula, BNDES, Fusões & Aquisições”:

“O BNDES articula a fusão de grandes usinas de álcool … No ano passado, o BNDES emprestou quase R$ 6 bilhões a grandes usinas (de Odebrecht e Bertin inclusive).

Em 2008, a Totvs (softwares de gestão) comprou a Datasul com ajuda de R$ 404 milhões do BNDES; ambas têm um terço do mercado. Outro negócio do ano passado foi a compra da Azaléia pela Vulcabrás, que recebeu R$ 314 milhões do BNDES.

No início de 2008, o BNDES retomou planos para criar um grande laboratório farmacêutico nacional. Em 2006, o BNDES emprestara R$ 295 milhões para o Aché, maior grupo nacional do setor, comprar a Biosintética”.

[8] Estagflação assombra países emergentes, mencionando Brasil, Rússia, África do Sul, Argentina, Chile, Turquia, Tailândia, Paquistão e Venezuela.

[9] O Le Monde Diplomatique Brasil, de setembro deste ano (ano 8, número 86), publicou o artigo Na China, a raiva persegue os sindicatos. Não obstante o revisionismo do seu autor, o texto traz informações relevantes sobre greves e manifestações operárias recentes no país. Dentre as greves que “explodem quase todos os dias”, destacou-se a greve de duas semanas, iniciada em abril, de 40 mil operários da enorme fábrica de calçados Yue Yuen, de capital taiwanês, na cidade de Dongguan contra o não pagamento pela empresa de suas (poucas) obrigações sociais. O relato inclui a total paralisia do sindicato, a ação do governo local na defesa do capital e o cerco dos operários dentro da fábrica por mais de mil policiais.

Vale a pena transcrever o relato de um grevista: “O problema da proteção social serviu de detonador.Os trabalhadores se apoderaram dele para exprimir sua cóleraA questão essencial é a dos salários. Cada vez que o salário mínimo [fixado pelas autoridades locais] aumenta, Yue Yuen reduz nossos bônus na mesma proporção. Por muito tempo, contivemos nossa indignação” (negritos nossos).

[10] A Organização Mundial do Comércio (OMC) recentemente reduziu a projeção de crescimento das exportações mundiais para este ano, de 4,7% para 3,1%. Para a América Latina, a projeção é de aumento de apenas 0,4%, com a queda nas exportações brasileiras puxando a região para baixo.

[11] Ver nosso texto “Sobre a Situação Atual da Luta de Classes na Venezuela”e o debate que se seguiu.

Ver, também, o texto “A crise do processo de acumulação venezuelano e o empobrecimento da classe operária”, de Juan C. Villegas P., do “Centro de Investigación y Formación Obrera (CIFO) / Asociación Latinoamericana de Economía Política Marxista (ALEM)”, reproduzido pelo Resistir.info.

[12] Como afirma o Grupo de Economia da Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap) de São Paulo: “o setor externo deixou de ser um vetor de crescimento econômico” desde 2011 (Nível de atividade no governo Dilma: determinantes do baixo crescimento econômico. Boletim de Economia [28], de junho de 2014).

[13] De acordo com as estimativas oficiais, o endividamento bruto total das famílias brasileiras com os bancos já é de 46% da sua renda anual. Em média, as famílias gastam mais de um quinto da renda mensal com os juros e o pagamento das dívidas bancárias.

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- 24/11/2014