Estudar a crise do marxismo. Resposta aos Comunistas Americanos, de Francisco Martins Rodrigues.
Há algum tempo atrás conclamamos àqueles que queriam pensar com suas próprias cabeças, que não tinham abandonado a luta sob a perspectiva da classe operária, a retomar o marxismo e esgrimirem suas ideias sobre os rumos do socialismo e a teoria que o ilumina. No texto de lançamento do blog Cem Flores afirmamos:
“Percebemos que muito mais do que uma discussão sobre organização, tática ou estratégia, o que necessitamos é discutir a situação, o estado da teoria marxista, sua crise escancarada após o XX Congresso do PCUS e a cisão do movimento comunista em 1963, a necessidade urgente e incontornável de tomá-la a sério e perguntarmos por suas causas. Perguntar as causas da crise que desembocou em Kruschev, no rompimento da URSS com a China, cisão na teoria e na prática, e no desmanche das experiências de construção do socialismo, principalmente na URSS e na China por seu papel de exemplo.
A crise do movimento comunista não pode ser somente o resultado dos erros cometidos pelos partidos comunistas em sua prática na luta de classes, resultado de uma conjuntura, nem da ação dos inimigos de sempre e, que desde sempre, se uniram contra ele na luta de classes, se fossem esses os motivos da crise do movimento comunista teríamos de perguntar por que razão tornou-se possível o triunfo da conjuntura, dos acontecimentos sobre uma teoria cuja “ onipotência” (numa expressão que se tornou clássica por Mao) deriva da verdade inquestionável dos conceitos que a articulam.”
Como contribuição ao estudo dessa questão, queremos apresentar abaixo o texto de Francisco Martins Rodrigues, Resposta aos Comunistas Americanos. Esse brilhante dirigente comunista português pergunta, nesse texto:
“Quando aos trabalhadores de todo o mundo o fim do comunismo aparece como um facto consumado, a nova corrente comunista tem que começar por responder à questão: como pôde afundar-se nesta miserável perestroika um movimento que inscreveu na história da humanidade feitos tão brilhantes como a revolução de Outubro ou a guerra revolucionária na China? Porque foi a revolução proletária do século XX engolida pelo capitalismo? Esse deveria ser, quanto a nós, o eixo dum documento que pretende, como dizeis, “contribuir para a discussão entre os comunistas de todo o mundo sobre o que fazer”, porque só da resposta a essa questão viva sairão conceitos marxistas vivos e, forçosamente, uma perspectiva nova sobre as questões do partido e da revolução, da estratégia, da táctica e do estilo de trabalho. Se o marxismo nunca pode voltar a ser o que era, muito menos o será depois de ter atravessado uma experiência tão vasta.”
Convidamos a todos os leitores do blog Cem Flores a estudarem o texto abaixo reproduzido, importante contribuição à análise da crise do marxismo e da luta por sua retomada.
RESPOSTA AOS COMUNISTAS AMERICANOS.
Francisco Martins Rodrigues
Correspondendo à vossa proposta de debate em torno da declaração “Tarefas do comunismo operário durante a derrocada do revisionismo”, publicada no Workers’ Advocate de Janeiro, fazemos em seguida algumas observações que a sua leitura nos sugeriu. Decidimos tornar pública esta carta porque, tal como vós, consideramos um debate alargado sobre a linha geral como a prioridade mais vital para os comunistas de todo o mundo.
Por onde começar?
A vossa Declaração consiste essencialmente numa exposição elementar dos princípios marxistas-leninistas sobre o partido comunista, a ligação às massas, a táctica de frente única, o centralismo democrático, o internacionalismo, etc. E se é certo que enuncia “a necessidade de levar a cabo um novo estudo da história soviética e dos princípios básicos do socialismo”, a ideia que transmite é a de que o essencial para uma nova corrente comunista é o retorno aos princípios que guiavam o movimento comunista internacional antes do 7° Congresso da Internacional Comunista.
Discordamos deste ponto de vista. Quando aos trabalhadores de todo o mundo o fim do comunismo aparece como um facto consumado, a nova corrente comunista tem que começar por responder à questão: como pôde afundar-se nesta miserável perestroika um movimento que inscreveu na história da humanidade feitos tão brilhantes como a revolução de Outubro ou a guerra revolucionária na China? Porque foi a revolução proletária do século XX engolida pelo capitalismo? Esse deveria ser, quanto a nós, o eixo dum documento que pretende, como dizeis, “contribuir para a discussão entre os comunistas de todo o mundo sobre o que fazer”, porque só da resposta a essa questão viva sairão conceitos marxistas vivos e, forçosamente, uma perspectiva nova sobre as questões do partido e da revolução, da estratégia, da táctica e do estilo de trabalho. Se o marxismo nunca pode voltar a ser o que era, muito menos o será depois de ter atravessado uma experiência tão vasta.
Podereis dizer-nos que a vossa busca de respostas novas está documentada nos artigos de investigação até agora publicados sobre a história da União Soviética. Mas, justamente, nesses artigos encontramos a mesma resistência a questionar velhas ideias feitas que nos eram servidas como análise marxista da revolução russa.
Passamos por isso a expor os nossos desacordos, deixando claro que as críticas que vos fazemos são simultaneamente autocrítica por opiniões nossas anteriores. Seguiremos o percurso da União Soviética em sentido inverso, do presente para as origens. Talvez assim seja mais fácil desmontar a cadeia de raciocínios viciados em que fomos educados e descobrir, nas manifestações da derrocada actual, as marcas da doença que sufocou a revolução.
A burguesia está “nervosa” ou eufórica?
Diz-se na vossa Declaração que “o estagnado sistema de tirania burocrática está sendo despedaçado” por uma “genuína rebelião” e que a burguesia imperialista, embora gabando-se da sua vitória na Guerra Fria, está “um tanto nervosa face aos efeitos desestabilizadores do colapso do revisionismo”. Consideramos isto uma imagem falseada e mesmo invertida dos acontecimentos deste último ano. O que vemos é a burguesia percorrida por uma autêntica embriaguês de vitória enquanto cresce a submissão do movimento operário internacional à tenebrosa “democracia” imperialista.
Como explicar que façamos apreciações tão diferentes? Aparentemente, a vossa posição foi guiada pela intenção de desmistificar a propaganda burguesa de que “o comunismo faliu” e tomar claro que os comunistas não lamentam o colapso do falso campo socialista; capitalizar a nosso favor os movimentos de massas no bloco de Leste e a perda de credibilidade do revisionismo; reagir ao actual “dilúvio anticomunista” com uma atitude optimista quanto ao futuro da revolução.
Quanto a nós, isto é uma forma de ocultar a situação real. Naturalmente, pode sempre dizer-se sem errar que a derrocada do revisionismo veio clarificar o terreno da luta de classes internacional e preparar embates de classe decisivos no futuro. Mas não devemos permitir que verdades gerais sirvam para encobrir as pesadas dificuldades que nos esperam a curto e médio prazo.
Que dificuldades? Ao romper-se o equilíbrio que se estabelecera entre o campo imperialista e o campo do capitalismo de Estado, a burguesia imperialista conseguiu uma vitória que se materializa em vários aspectos:
1) as massas populares, ao levantar-se contra as tiranias burocráticas, funcionam como acelerador da transição do decrépito capitalismo estatizado para o capitalismo privado; no Leste os operários estão a ser conduzidos, no melhor dos casos, pela democracia pequeno-burguesa, quando não pelo nacionalismo e pela Igreja;
2) o colapso do revisionismo, ao consumar o último acto da longa agonia degenerativa da revolução russa, reforçou entre os trabalhadores de um e do outro campo a convicção da inviabilidade do socialismo e da inexistência de alternativa para o capitalismo;
3) ao caírem os últimos entraves à reconstituição do mercado capitalista mundial abre-se um vasto campo novo à exportação de capitais, atenuando o espectro da crise e dando novo fôlego à finança;
4) ao desistir a União Soviética do lugar de rival dos EUA, que já não aguentava, e ao deslocar-se o centro das contradições imperialistas para o eixo EUA-Japão-Alemanha, põe-se fim a um período de contenção relativa dos conflitos inter-imperialistas e preparam-se novas conflagrações militares.
Porque fecha a vossa Declaração os olhos a esta gigantesca guinada à direita na situação política mundial? Para manter coerência com a tese de que o capitalismo de Estado nada mais é do que uma variante do capitalismo moderno. O vosso raciocínio parece ser: “Afunda-se um bloco imperialista, tão anti-operário e agressivo como o do Ocidente — logo, o sistema capitalista fica mais fraco”. Mas isto não é verdade. É um preconceito que herdámos da defunta corrente marxista-leninista e que não podemos carregar por mais tempo.
Confundimos um aborto com um gigante
O colapso do sistema de capitalismo de Estado foi tão inesperado para os comunistas como para a generalidade das forças políticas. E não o previmos porque o julgávamos impossível. Nenhuma potência capitalista deste mundo entraria num processo semelhante de capitulação e desagregação, reconvertendo o seu sistema económico, renunciando aos seus valores ideológicos, entregando pacificamente os seus satélites, etc. Muito menos o faria tratando-se duma burguesia poderosa e em expansão, como supúnhamos.
Isso mostra que não compreendíamos esse sistema. Sem dúvida, a corrente M-L tinha razão ao apontar sob o falso socialismo da URSS um regime anti-operário, explorador e opressor, mas as leis do seu funcionamento escapavam-lhe. Com lógica mecanicista, procurava-se sob a mentira do “socialismo real” provas de vitalidade capitalista, o que levou, não poucas vezes, os M-L a auto-intoxicarem-se com factos deturpados.
Negavam-se os ritmos de trabalho relativamente baixos, o pleno emprego, a satisfação das necessidades básicas a baixo preço, porque isso não se enquadrava na exploração capitalista normal; fechava-se os olhos às provas de ineficácia e desperdício do regime económico soviético porque se partia do princípio de que ele deveria ser guiado pela corrida ao lucro máximo; exagerava-se a amplitude da apropriação e do negócio privado para tentar encontrar “provas” do crescimento da nova burguesia; apresentava-se a relação da URSS com os países satélites como de exploração imperialista, quando ela visava sobretudo a dominação política e militar e pagava para isso; negava-se o real papel de guarda-chuva da URSS aos movimentos de libertação nacional, porque isso não se enquadrava na imagem duma potência imperialista em luta pela partilha do mundo.
Por mais duma vez, surgiu nas nossas fileiras a ideia de que o sistema capitalista entrava numa nova etapa — o capitalismo de Estado, tendo a burocracia como nova classe dirigente. A URSS, apoiada na monopolização integral do capital e na fusão da burguesia com o Partido e o Estado, seria um precursor dessa nova etapa e estaria a caminho de se tornar um supergigante imperialista. A teoria “EUA-URSS, inimigos iguais” (já sem falar na delirante tese maoísta sobre o “social-fascismo, poder de tipo hitleriano e principal inimigo dos povos de todo o mundo”) manifestou de forma gritante a incapacidade da corrente M-L para entender de onde vinha e para onde ia o regime de capitalismo de Estado.
Pela nossa parte, só em Dezembro de 1987 começámos a levantar objecções à teoria do “social-imperialismo” e, mesmo assim, ficámo-nos pelo aflorar da questão. Apercebemo-nos de que o capitalismo de Leste não era o gigante que se dizia. Mas não enfrentámos a pergunta difícil: pode haver um capitalismo sem concorrência, um imperialismo sem exportação de capitais? Ou esta aparente excepção ao marxismo indica apenas uma formação económico-social transitória, em processo de gestação?
O problema só parecia insolúvel porque não se queria admitir que o gigante soviético cobria um esqueleto económico-social ainda em elaboração. Era um capitalismo embrionário, o qual tinha que dar lugar; num país militarmente poderoso como a URSS, a um imperialismo também embrionário, mas, de qualquer forma, privado de futuro como sistema económico-social justamente porque o casulo da estatização tolhia o livre jogo da acumulação capitalista.
Liquidatários duma revolução falida
Agora que se fecha o ciclo deste regime é-nos possível abarcá-lo em corpo inteiro, como uma formação excepcional, transitória, abortiva, que existe apenas enquanto a sociedade percorre o caminho da ditadura do proletariado fracassada até à restauração plena do livre jogo do capital e à reconstrução de todos os seus mecanismos, formação vulnerável em extremo e por isso obrigada a entrincheirar-se no abafamento repressivo de toda a vida social, em nome da “ditadura do proletariado”.
As originalidades desnorteantes desse regime, que pareciam excluí-lo tanto do capitalismo como do socialismo (lembremos as teses sobre um “novo modo de produção”, a recusa a admitir que a burocracia pudesse constituir-se em classe burguesa uma vez que não desfrutava da propriedade legal dos meios de produção, etc.) eram apenas fruto dessa lenta transição.
Mas o mistério começou a dissipar-se. A exploração capitalista nacionalizada, que tinha proporcionado na época de Staline altos ritmos de crescimento quando se estava ainda na fase de acumulação, veio perdendo dinamismo à medida que a diferenciação e a concorrência inerentes ao capital começaram a furar a rígida centralização e planificação que eram a espinha dorsal do regime. E, ao tornar-se um estorvo à elevação da produtividade e à reprodução do capital, a burguesia burocrática de Estado condenou-se à ruína.
Apesar dos temíveis meios militares, económicos e policiais à sua disposição, ela revelou-se frágil, dada a sua função económica de burguesia de empréstimo, nascida com a missão subalterna de liquidatária de uma revolução falida, encarregada de administrar o capital nacionalizado até se criarem as condições para a privatização. Receosa da metamorfose que teria que atravessar, desde os anos 50 sobrevivia dificilmente bloqueando o caminho à burguesia nascente, até que acabou por se entaipar, ela própria, no imobilismo.
Porque não houve revolução anti-revisionista
Quando na vossa Declaração se exalta a “rebelião” das massas contra os regimes apodrecidos do Leste, tenta-se salvar algo da tese optimista da corrente M-L que previa o derrubamento revolucionário do capitalismo de Estado. Nesse aspecto, os M-L tinham uma perspectiva semelhante, por exemplo, à de Tony Cliff quando este considerou inevitável que a luta de classes na URSS viesse a assumir a forma de “explosões gigantescas” que seriam “o primeiro capítulo da revolução proletária vitoriosa”.
De facto, se os mecanismos capitalistas actuassem livremente nesses países, a sua evolução seria no sentido duma confrontação proletariado-burguesia. Só que o capitalismo de Estado, como etapa de transição para a reconstituição plena do capital, tinha outra dinâmica económica e gerava outros conflitos de classe.
A burguesia burocrática já não cabia no colete “bolchevique” do tempo de Staline, não tinha força ou autoridade para impor à classe operária a disciplina de outro tempo, nem sequer acreditava já no seu próprio futuro. O sistema afogava-se na inoperância, no desperdício, na paralisia politica, no vazio ideológico.
A esperança de desagregação do imperialismo desvanecia-se. O ex-movimento comunista, acomodado aos interesses das suas burguesias nacionais, desertava da função de cunha no coração do inimigo. Os aliados nacionalistas em que a URSS apostara grandes recursos, na esperança de que sangrassem as reservas do imperialismo, capitulavam ou tornavam-se um fardo insuportável.
Um regime destes não podia ser derrubado pela revolução proletária, como acreditávamos, pela simples razão de que a tarefa na ordem do dia era a libertação do capital amordaçado pela estatização. Toda a vida económica, social, ideológica, girava em torno da busca dessa saída.
Por isso, até mesmo as reivindicações e revoltas com forte participação operária: (Hungria, Polónia, etc.) se inscreviam involuntariamente no papel de aceleradores do parto capitalista. Foi o que compreenderam desde cedo as forças burguesas do Ocidente mas nem sempre os M-L. Na actual derrocada, a dinâmica é a mesma. Apoiando incondicionalmente as reivindicações operárias do Leste contra a exploração, não podemos ter ilusões quanto ao alcance das palavras de ordem políticas dos seus movimentos na fase actual.
Com isto, não pomos em dúvida que a URSS, China, Polónia, etc., estão grávidas de revolução social e poderão evoluir em prazos historicamente curtos para crises revolucionárias, dada a carga insuportável que a reconversão capitalista lança sobre as massas. Mas é só na medida em que o capital deixe de estar encoberto sob a ficção da “propriedade socialista de todo o povo” que os conflitos directos de classe farão renascer nos operários o objectivo revolucionário e com ele, o partido comunista.
Porque nos escapou este processo de decomposição tão evidente? Porque não fizemos uma ruptura completa com a romanesca tese maoísta da “contra-revolução revisionista no 20.º Congresso do PCUS”.
A “grande luta de princípios” teve poucos princípios
A campanha do PC da China e do PTA contra o revisionismo no início dos anos 60, se teve o mérito de denunciar a nova burguesia, os seus privilégios, violências e trapaças ideológicas, enredou-se num novelo insolúvel de contradições ao situar no 20.° Congresso a sua ascensão ao poder. Pretendeu ver uma inversão de marcha, uma contra-revolução, naquilo que era simplesmente o anúncio da decadência dum regime que vinha de trás.
Decerto, havia nessa campanha uma componente revolucionária, na medida em que, na crítica ao 20.° Congresso, começou a redescobrir as ideias do leninismo e da revolução de Outubro. Mas essa redescoberta foi limitada, balbuciante e a breve trecho afogada pela tendência dominante antimarxista; o objectivo central era justificar o capitalismo de Estado e as suas instituições, tomando como modelo a URSS e a IC dos anos 30, a política de Staline e de Mao, etc.
Quando o PCCh e o PTA falavam no “retorno ao leninismo e ao espírito da revolução de Outubro” tinham em vista a sua própria tradução mutilada e deformada do bolchevismo. Atravessando ainda a fase de crescimento do sistema, julgavam poder evitar por meio de uma vigilância apertada e de alguns antídotos anti-revisionistas, a degeneração liberal soviética, sem ver que estavam a percorrer, à sua maneira, o mesmo caminho que a URSS trilhara decénios antes.
Erigindo em fosso intransponível aquilo que eram apenas épocas diferentes de maturação, tentavam apagar os laços de parentesco que os uniam aos países revisionistas. Isto não significa que falsificassem deliberadamente o marxismo. Eles não podiam entender a natureza social da burguesia de Estado soviética, que era a sua própria. Não admira por isso que a sua “grande luta de princípios” fosse incapaz de desencadear uma revolução teórica — ela não visava a revolução; procurava um ponto intermédio entre bolchevismo e revisionismo (por isso lhe chamamos centrista). Era essencialmente uma batalha de retardamento, a tentativa da burguesia de Estado de suster a sua evolução que adivinhava desastrosa.
Se quisermos olhar com lucidez o nosso passado e as nossas ideias sobre a revolução russa, não podemos subestimar a carga conservadora que esta perspectiva incutiu na ideologia do chamado movimento marxista-leninista.
A ruptura ainda mal começou
A vossa Declaração dirige-se às “forças do comunismo operário”, cuja origem localiza nas “importantes confrontações com o revisionismo que se deram como parte do ascenso da luta de massas das décadas de 1960 e 70”. Parece-nos que esta formulação escamoteia uma avaliação crítica ao chamado movimento M-L (que nunca é mencionado na Declaração).
Certamente, não se pode reduzir o movimento M-L a uma mera “corrente interna do revisionismo moderno”, como fazem os camaradas suecos de Rod Gryning. É uma inexactidão histórica que nega o processo real em que se gerou a luta anti-revisionista e serve em última análise o trotskismo, interessado em atribuir-se uma mitológica antiguidade “bolchevique-leninista”.
Mas não podemos também ignorar que o movimento M-L surgiu como uma extensão externa do PCCh e do PTA, vinculado à defesa da sua política e sem verdadeiro arcaboiço marxista revolucionário. Pintá-lo como uma “onda revolucionária” e valorizar o seu “trabalho revolucionário apaixonado” (WAS, 15.5.90) é esquecer que ele era, basicamente, a crítica do capitalismo de Estado decadente segundo os valores do capitalismo de Estado ascendente.
Reacção contraditória às primeiras manifestações de apodrecimento do sistema, este movimento tinha que se desintegrar e desintegrou-se. O conjunto dos partidos e grupos M-L aplicaram-se a engendrar uma fusão do leninismo com o stalinismo ou com o maoísmo, ou com ambos, e, à medida que foram entrando na acção política, ficaram condenados a refazer, com meio século de atraso, o percurso degenerativo do velho movimento comunista internacional. Hoje disperso numa série de agrupamentos rivais stalinistas ou maoístas, o mal chamado movimento M-L debate-se num lento e inevitável afundamento “democrático” e “popular” no revisionismo.
Quanto à nova corrente comunista, ainda hoje em esboço, ela não nasceu nas “lutas de massas dos anos 60-70” mas apenas quando alguns contingentes (muito minoritários) do movimento começaram a descobrir, em choque com a linha oficial, que os embriões e as raízes do revisionismo se encontravam em Staline, em Mao, na teoria da “democracia popular”, no 7.° Congresso da Internacional, e passaram a submeter o último meio século a uma crítica marxista.
Ao fazê-lo (no que o MLP teve um papel pioneiro que não esquecemos), iniciámos uma ruptura mais profunda do que o corte anti-revisionista dos anos 60. Mas para que ela desenvolva todas as suas potencialidades é preciso libertarmo-nos da nossa exasperante timidez; viemos arrastando ao longo de três cisões parcelares (em 1963 com a URSS, em 1978 com a China, em 1983, com a Albânia) um corte que ainda hoje se debate em indefinições e vacilações. Para se completar o enterro teórico do movimento M-L é preciso responder à questão em que ele se afundou: quando, como, porquê se decompôs a ditadura do proletariado?
Albânia — porquê as dúvidas?
A prova de que a vossa crítica ao capitalismo de Estado ainda não se desprendeu por completo da estreiteza da chamada “corrente M-L”, vemo-la na vossa atitude face à Albânia. Embora admitindo que o regime albanês ”tem marchado para trás já há muitos anos” e tem adoptado “ideias revisionistas”, a vossa Declaração ressalva com prudência dubitativa que “não temos informação suficiente para julgar em que aspectos as instituições albanesas degeneraram de uma forma decisiva no sentido do capitalismo”.
Pensamos que a apreciação do regime albanês não depende de mais ou menos informações mas de saber se rompemos ou não por completo com a concepção estreita e falseada de ditadura do proletariado que herdámos da corrente M-L. Mesmo antes das provas recentes de capitulação e renegação dadas por Tirana já não havia lugar para as reservas da vossa declaração. Não apenas pelo monstruoso ajuste de contas palaciano do caso Mehmet Shehu nem pelas relações amistosas com o fascismo turco ou iraniano; um regime onde não há indícios de livre expressão e organização das massas trabalhadoras não pode ser uma ditadura do proletariado; é essencialmente semelhante ao dos outros países do Leste. Chegar ao mesmo grau de podridão é apenas uma questão de tempo.
Assombra-nos que a vossa Declaração fale nas “consequências perigosas” que poderão advir para a Albânia da “estagnação do PTA” (!!); a Albânia não está “em perigo” porque está perdida; o problema com o PTA não é de “estagnação” mas de degeneração.
Só podemos explicar a vossa relutância em reconhecer este facto pela persistência na ideia instilada pelo movimento M-L de que o carácter social de um regime poderia ser determinado pela “linha justa” do partido no poder e não pelas relações sociais concretas que nele vigoram. Assim, o regime albanês, saído duma revolução popular e dirigido por um partido comunista que esteve na vanguarda da crítica ao revisionismo, deveria, segundo esta opinião, gozar do benefício da dúvida e ser considerado “em princípio” como uma ditadura do proletariado enquanto não houver provas insofismáveis de que a sua direcção entrou na via da renegação explícita dos princípios do leninismo e da revolução.
Mas não ver o carácter capitalista do regime albanês devido ao seu radicalismo anti-imperialista e anti-revisionista (hoje aliás passado à história) é, em nossa opinião, limitar a crítica do capitalismo de Estado apenas à sua fase decadente, corrupta, senil, não reconhecer que ele também teve uma fase ascendente, juvenil, mas não menos oposta à ditadura do proletariado.
Também o capitalismo de Estado foi jovem
A corrente M-L teve razão ao falar da URSS como capitalismo de Estado (no que aliás se limitou a retomar um conceito há muito usado por outras correntes). Mas confundiu todos os dados do fenómeno devido a tê-lo descoberto tardiamente. Julgou ver ascenso da burguesia burocrática de Estado naquilo que era o início da sua decadência e continuou a apelidar de “ditadura do proletariado” a fase juvenil desse poder burguês. Esse foi o seu erro capital.
Argumentava-se que não se podia confundir a política e a ideologia do tempo de Staline com o revisionismo corrupto trazido por Kruchov. A diferença era de facto flagrante — na intransigência face às forças burguesas internas, na defesa da independência económica e politica da URSS face ao imperialismo, no valor atribuído ao movimento comunista internacional, na proclamação duma fidelidade inabalável ao socialismo, ao leninismo e ao caminho de Outubro.
Havia, é claro, muitas coisas no stalinismo incompatíveis com o leninismo e com uma ditadura do proletariado — mas convencionou-se explicá-las com a tese de que houvera “uma linha justa com erros, umas vezes dogmáticos, outras vezes oportunistas”. Uma boa desculpa “ideológica” para fugir à análise da luta de classes real, truque a que a corrente M-L recorria com frequência.
Na realidade, tão imaginária era a “linha justa” como os “erros” e “desvios”. O que havia era a política burguesa dum regime de propriedade estatal dotado de vitalidade, em crescimento impetuoso, confiante nas suas forças e no seu futuro, disposto a fazer frente à agressão imperialista, e por isso dotado de radicalismo e conservando uma falsa consciência comunista.
Mas porque esta consciência era ilusória, ele tinha que tratar o marxismo de forma cada vez mais dogmática e desligada da realidade e, ao mesmo tempo, incorrer com frequência crescente no oportunismo, porque só assim defendia os seus interesses burgueses.
Quando a pressão subterrânea desses valores burgueses, na economia, na política, na ideologia, começou a transbordar para fora dos limites “marxistas” oficiais, o regime passou da maturidade ao envelhecimento, do centrismo stalinista ao revisionismo kruchovista.
Querer pois avaliar o regime stalinista segundo o dilema “revolucionário ou contra-revolucionário?”, “marxista ou revisionista?” não nos ajuda a compreender o seu lugar na trajectória global da URSS. Ele ocupou uma posição intermédia que se distingue tanto dos anos revolucionários como da decadência revisionista. E isto porque o seu nascimento não foi fruto duma contra-revolução mas de uma longa degeneração.
Contra-revolução ou degeneração?
Em resposta aos camaradas suecos de Rod Gryning que vos acusavam duma posição ambígua quanto à mudança do poder na URSS, foi por vós afirmado que “o nosso Partido sempre defendeu que houve na União Soviética uma contra-revolução que restaurou o capitalismo no plano económico e político” (WAS, 15.6.90). O certo, contudo, é que em nenhum dos vossos artigos se indica quando teria ocorrido a convulsão brusca e violenta que acompanha forçosamente uma contra-revolução, muito mais ao se tratar da passagem do poder proletário ao poder burguês (pensemos no esmagamento da Comuna de Paris).
A vossa opinião parece ser muito mais a duma degeneração gradual do regime: a meio dos anos 30, “a União Soviética atingira um novo patamar no processo de transição para o socialismo”. É nesse momento, contudo, que “se começa a institucionalizar a revolução numa direcção burguesa. Já não se avança em direcção ao socialismo mas entra-se numa trajectória de degeneração. E como o capitalismo privado fora largamente derrotado, a degeneração é no sentido do capitalismo monopolista de Estado” (WAS, 15.1.89). Essa degeneração ter-se-ia estendido, pelo que depreendemos das vossas observações, por um longo período de “declínio” e “corrosão” entre o 17.° e o 20.° Congresso (1934-1956), durante o qual “as conquistas da revolução não desapareceram instantaneamente”.
Em si, a ideia da lenta corrosão e declínio do poder proletário não nos parece ter nada de estranho nem de ambíguo. A exigência de Rod Gryning de que se indique a fronteira de passagem de um poder a outro, o “salto qualitativo”, reflecte uma ideia demasiado simplista da mudança de poder. Mesmo incorrendo na ironia de Trotsky acerca daqueles que imaginam “o filme reformista a passar ao contrário”, podemos conceber perfeitamente a degeneração gradual do poder proletário em poder burguês, embora a inversa seja impossível.
A razão parece-nos evidente. O poder político burguês, assente sobre uma base económica capitalista a que corresponde perfeitamente, não é susceptível de ser “minado por dentro”; tem que ser derrubado. Mas um poder político proletário incipiente, fundado sobre relações económicas ainda capitalistas, pode sofrer uma degeneração gradual e imperceptível, sem chegar a haver uma contra-revolução em forma.
Houve na Rússia soviética, não uma contra-revolução mas uma gradual mudança da natureza de classe dos órgãos de poder. O que não podemos aceitar é que se queira encontrar nos anos 30 o início dessa degeneração, o “começo do declínio das conquistas da revolução”. A nosso ver, o que a URSS apresenta em meados dos anos 30 são já outras conquistas, não em declínio mas em expansão: as conquistas dum novo regime burguês.
1936 — declínio proletário ou ascenso burguês?
O mais surpreendente é que as provas de que o regime da URSS perdera por essa altura quaisquer traços proletários revolucionários não precisam ser enumeradas — elas constam dos vossos artigos. O rebaixamento dos operários a mera mão-de-obra (mesmo antes das leis laborais de tipo penitenciário de 1938-40), os fuzilamentos em massa e o ambiente político asfixiante, a redução dos sovietes a uma casca vazia, a nova Constituição, o poder e os privilégios da burocracia, o renascimento do nacionalismo…
Por alguma razão, contudo, estas provas esmagadoras não vos parecem suficientes para admitir que o poder político do proletariado se extinguira. Que razão é essa? Só pode ser o facto de o regime continuar ainda nesta época a definir-se em antagonismo com a burguesia, apoiar-se no movimento operário internacional e não ter enveredado pela revisão aberta do marxismo-leninismo.
Essa postura centrista, já o dissemos, prova apenas um alinhamento burguês em concorrência com o capital internacional. O que está à vista no regime “soviético” desta época é um ascenso burguês impetuoso, cheio de vitalidade, que revoluciona as forças produtivas e as relações de classe. Fala, naturalmente, em nome do socialismo — mas um “socialismo” tal como o concebiam os stalinistas, com a consciência equivocada que toda a classe exploradora tem de si própria: o socialismo emergia automaticamente da trindade industrialização/ colectivização agrária/planificação; cabia ao partido disciplinar o proletariado, regenerar pelo trabalho a pequena burguesia, guiar com mão firme a intelectualidade e, para garantir o seu papel de vanguarda, depurar-se inflexivelmente de todas as ameaças de divisão. Era o ascenso do capitalismo de Estado cobrindo-se com um simulacro tenebroso da reconversão socialista da sociedade que o proletariado não conseguira empreender.
E era indiscutivelmente já neste período o poder absoluto da burguesia burocrática, como administradora do monopólio capitalista estatal, reforçada pelos espantosos êxitos do I plano quinquenal, unificada em torno do seu guia genial (sem ironia), Staline. Uma burocracia que nesta época ainda se fazia aceitar como tuteladora indispensável dos operários e kolkozianos na marcha para o socialismo, que ainda não revestia os aspectos parasitários e decadentes que assumiu mais tarde, e que por isso se pôde entregar em pleno à orgia do terror.
Não esquecer o terror
O vosso exame a este período torna-se estranhamente superficial e evasivo quando toca na questão do terror. Diz-se que surgiram “tendências negativas para aplicar leis cada vez mais severas como resposta a problemas sociais” e que “a meio dos anos 30 o uso da repressão foi em crescendo” (WAS, 15.1.89); ao mesmo tempo, foca-se o exagero fantasista de algumas das histórias sobre o terror stalinista postas a correr no Ocidente — e acaba por se apagar esse traço essencial do regime: os processos de Moscovo, o carrossel do terror nas fileiras do partido, ceifando os culpados, os inocentes e os acusadores de inocentes, a mortífera deportação de milhões, o crescimento monstruoso dos trabalhos forçados como fonte de receita do Estado, a supressão de toda a crítica, o culto do chefe e a paranóia dos “agentes do inimigo”, a esterilização da vida cultural.
Dá a ideia de que não sabeis como encaixar esta explosão de terror no quadro dum regime que, em vossa opinião, estaria então a entrar ainda no “declínio das conquistas da revolução”. E como não quereis alimentar as lágrimas de crocodilo da burguesia, que pinta todo o ataque à propriedade privada como “caos” e “genocídio”, preferis não dramatizar o assunto.
Estamos contudo perante uma questão de princípio. É forçoso reconhecer que aqui não há nada que se assemelhe ao legítimo terror revolucionário do jovem poder soviético contra o terror burguês em 1918. Não se pode atribuir tudo a uma ideia errada de Staline sobre a “exacerbação da luta de classes à medida que se avança para o socialismo”. Nem se pode circunscrever uma explosão terrorista desta amplitude a uma reacção excessiva, face à iminência dum ataque imperialista. Há no desencadeamento desta violência cega uma necessidade social que nos cumpre compreender.
O terror teve uma função simultaneamente económica e política. Ele foi o cimento da “revolução” de Staline. A burocracia fez a sua estreia como classe dominante através duma “depuração” gigantesca porque precisava meter a sociedade no colete-de-forças do monopólio total: preservar a sua autoridade absoluta como árbitro entre as classes em presença, assegurar-se do monolitismo integral, suprir a ausência da coacção económica capitalista pela coacção policial, ceifar a contestação operária e a corrupção burguesa privada como ameaças igualmente intoleráveis para o regime.
Nada há de extraordinário nisto, afinal. Uma sociedade que pela primeira vez na história centralizava forças produtivas tão poderosas, suprimindo a acção reguladora das leis do capitalismo sem lhe substituir a apropriação colectiva e a auto-administração pelos produtores, só pelo terror podia impor ordem no caos. E é, quanto a nós, prova de metafísica “marxista” acreditar que um partido com “a linha justa” poderia ter dado melhor solução ao problema.
O partido, espelho do regime
A “natureza de classe do partido” é destacada num dos vossos artigos como um dos critérios principais para avaliar se ainda existia nesta época ditadura do proletariado na URSS (WAS, 15.6.90): Mas, justamente, essa natureza transparece dos processos de Moscovo, um dos episódios mais reveladores da luta de classes na época, e acerca do qual não conhecemos posições explícitas da vossa parte.
A “revolução por cima” empreendida em 1929, ao convulsionar a sociedade soviética, desintegrou o que ainda restava do partido bolchevique. Os stalinistas, condutores do rnovimento, dedicaram-se a forjar um partido “de tipo novo” (e um “marxismo-leninismo” à sua medida), que fosse um instrumento eficiente do poder. Embriagados pelo êxito inacreditável do plano quinquenal que acabava com a URSS pobre, atrasada, à mercê dos kulaks e do imperialismo, descobriam que podiam tudo; o assassinato de Kirov pôs em movimento uma verdadeira caça aos oposicionistas, usando já sem qualquer escrúpulo os recursos da polícia secreta. Em 1936, Staline e a sua clique já nada têm de comum com a direcção comunista da década anterior.
E a oposição? Caluniada, desarticulada, banida, também ela mudara de natureza nesses breves anos. As transformações sociais vertiginosas tinham-na lançado para fora do carro da história. Staline desmentira todas as previsões catastróficas e realizara o impossível, fossem quais fossem os custos humanos — o “socialismo num só país”. A base de apoio operário dos oposicionistas, já reduzida, tornou-se nula, o que acelerou a sua degenerescência. Derrubar o ditador era a única saída que lhes restava.
Foi o que Trotsky traduziu na nova plataforma da “revolução política” destinada a libertar o “Estado operário” da casta burocrática parasitária que o desfigurava. Isto significava muito simplesmente que o objectivo traçado à Oposição não era conduzir as massas a uma nova revolução social semelhante à de 1917 (estava “feita a prova da superioridade do socialismo”, nas palavras do próprio Trotsky) mas preparar o derrubamento de Staline. Tudo indica que Trotsky tomou muito a sério a preparação dessa “revolução política” e que nem todas as acusações dos processos foram inventadas.
Era falsa, sem dúvida, a acusação de espiões fascistas com que as execuções foram justificadas; isso chega por si só para dar o retrato do stalinismo como regime terrorista anti-operário. Mas também a versão da “velha guarda bolchevique” sacrificada porque mantinha de pé a bandeira da revolução foi uma lenda romântica inventada por Trotsky. A verdade é que a passagem tumultuosa ao regime capitalista de Estado, fazendo emergir novas relações sociais, acarretou uma degeneração paralela dos stalinistas e da oposição: os antigos gigantes comunistas ficaram reduzidos a pigmeus. E uma vez que o regime assentava na unificação absoluta e sem partilha do comando, os vencedores aniquilaram sem contemplações os vencidos.
Erros oportunistas ou anti-imperialismo burguês?
Nesta perspectiva, não vemos sentido em analisar a política internacional da URSS sob Staline como manchada por desvios ideológicos ou “erros lamentáveis”, como fazem os vossos artigos; ela era a política externa coerente do novo regime burguês instaurado na URSS.
Aqui, mais uma vez, se manifesta o carácter intermediário desse regime. Tão absurdo é atribuir-lhe motivações socialistas, com mais ou menos erros, como compará-lo com o nazismo. A tese burguesa de que a regulação estatal da economia, a arregimentação e o terror na União Soviética eram semelhantes aos da Alemanha nazi e visavam como esta a conquista do mundo ignora que aqui não havia grupos de capital financeiro, expansionistas e agressivos, mas um capitalismo nacional buscando a aliança de forças populares para fazer frente à ameaça de agressão imperialista.
Inicialmente marcada por um forte radicalismo anti-imperialista (1929-32), a política externa stalinista foi dando lugar ao pragmatismo à medida que a burocracia assumia a consciência dos seus interesses de classe governante e delineava uma estratégia nacional burguesa. Céptica quanto à capacidade revolucionária das massas a Ocidente e a Oriente, pôs-se a buscar novos pontos de apoio que lhe proporcionassem tréguas até estar preparada para a agressão imperialista iminente. Resultou daí a viragem ideológica e diplomática expressa na linha do 7.° Congresso da IC.
O antifascismo reformista e patriótico das frentes populares, que conduziria em linha recta à dissolução da Internacional Comunista e que contém já em germe todo o arsenal revisionista, não teve nada dum desvio; correspondeu à perspectiva internacional da nova burguesia russa: o “socialismo” burguês de Staline procurava a aliança com a ala esquerda da pequena burguesia imperialista e com as burguesias nacionalistas apoiadas pelos respectivos proletariados, de modo a formar um cordão protector contra a iminência de uma agressão imperialista.
Criticar esta política na base do internacionalismo proletário parece-nos inteiramente deslocado. Era uma política nacionalista burguesa encadeada a miragens reformistas e pacifistas. Isso mesmo lhe deu a sua face dupla: para comprar as frentes populares, promoveu a dissolução da Internacional e a degeneração reformista nos partidos comunistas de todo o mundo; com a sua fé na burguesia “democrática”, condenou à derrota as revoluções nascentes em Espanha, na Áustria, no Brasil; e só não afundou a revolução chinesa no compromisso porque não teve poder para tanto.
Mas ao mesmo tempo afirmou-se como a única política de oposição ao expansionismo nazi, com o qual acabou por ser obrigada a confrontar-se. O pacto germano-soviético, que continua a suscitar a ira sagrada dos democratas virtuosos, foi apenas um episódio na sucessão de manobras com que as várias burguesias procuravam assegurar-se de vantagens na guerra que ia começar; se tivéssemos que o acusar como infame, o que deveríamos dizer da política anglo-francesa de “não intervenção” em Espanha e de Munique, de que ele foi uma consequência?
Pode uma viragem à esquerda produzir uma viragem à direita?
Mas como podia estar já consumada em 1936 a vitória do novo regime capitalista estatal — perguntareis — se, poucos anos antes, no início do I Plano Quinquenal, “a revolução continuava viva”, “havia um esforço para se guiar pela linha de classe proletária” e se davam “passos positivos na construção do socialismo”? (WAS, 15.1.89). Faremos a pergunta em sentido contrário: poderia uma revolução proletária viva, lançada na construção do socialismo, afundar-se tão subitamente na explosão burguesa de 1936?
O desastre teria sido provocado — dizeis — pela insuficiente confiança nas massas, pelo abuso dos métodos administrativos, pela euforia do êxito e falta de vigilância, pela baixa na consciência política do proletariado devido ao seu brusco alargamento, pelo descuramento do trabalho organizativo, pela ausência de novas respostas teóricas. Mas estas “causas” pecam por situar na superestrutura a origem de transformações sociais.
Como podiam factores destes ter anulado o tremendo impulso revolucionário que deveria ter sido libertado pelo crescimento vertiginoso duma economia colectivista planificada, pela eliminação do capital privado, pela derrota em toda a linha dos restos da burguesia?
Pelo contrário, a viragem de 1929, se fosse orientada para a construção do socialismo, deveria ter desencadeado, pelo seu êxito, uma explosão nunca vista de forças revolucionárias em toda a sociedade e no interior do partido comunista. Se aceitarmos a vossa interpretação de uma “viragem positiva” em 1929, a viragem regressiva de 1936 torna-se inexplicável.
Isto só mostra que a “revolução” conduzida por Staline entre 1929-36 não pode ser artificialmente dividida numa parte boa e numa parte má, mas deve ser vista como um todo. Temos que partir do facto de que esta espécie original de revolução, à medida que realizava o seu programa “socialista”, produzia as suas verdadeiras e imprevistas relações de classe, instituições, ideologia; as verdadeiras e não as que imaginara.
Assim, o ardor revolucionário das comunas de produção e das brigadas de choque acaba na campanha contra o “igualitarismo”, na corrupção dos stakanovistas e na disciplina de caserna nas fábricas; a expropriação violenta da pequena burguesia culmina nos privilégios dos directores e quadros; o “novo humanismo soviético” floresce nos campos de concentração e nos fuzilamentos maciços; a campanha contra o oportunismo desemboca no aniquilamento de todos os vestígios de organização comunista; a “revolução cultural” e a campanha ateísta degeneram numa cultura arregimentada, na proibição do aborto e na utilização da Igreja; o radicalismo do 6.° Congresso da IC dá lugar ao reformismo do 7.° e a aposta de 1930 na revitalização da Internacional conduz à sua prática liquidação.
Não são tendências contraditórias nem provas do “cinismo” de Staline; são dois tempos duma mesma transformação que não tinha antecedente histórico — o capitalismo de Estado. Daí a aparente incongruência de medidas “socialistas” que escravizam os operários, de uma acumulação capitalista que liquida a pequena burguesia, dum nacionalismo que se cobre com a bandeira do comunismo, duma ordem burguesa que precisa de banir a concorrência e com ela, todas as liberdades.
A classe operária como força de choque no ascenso da burocracia
Classificar a viragem de 1929 como uma “contra-revolução” (como quer Rod Gryning para manter coerência com o seu esquema teórico e prestar uma homenagem póstuma a Trotsky) é falsear por completo os factos. A “colectivização” foi uma guerra aberta contra a pequena burguesia e os seus representantes no interior do partido, conduzida com o apoio activo e entusiasta dos operários e camponeses pobres e da ala esquerda do partido (e da ala esquerda da Internacional), para os quais Staline encabeçava uma “segunda revolução” bolchevista.
Razões para a confusão não faltavam. O ascenso fulgurante, em plena crise mundial do capitalismo, deste país sem patrões, arvorando as bandeiras do socialismo, da elevação maciça da instrução, das culturas nacionais e da libertação da mulher, e apelando de novo à revolução mundial, produziu nas massas trabalhadoras um choque comparável ao de 1917.
Foi essa imagem que chegou até nós, como parte da herança de esquerda da revolução russa, e que suscita a vossa simpatia a adesão. Mas quando celebrais o “grande avanço” representado pela “produção em larga escala” como “alicerce” para o socialismo (WAS, 15.1.89), não tendes em conta que esta estranha “revolução” não desencadeou em nenhum momento a formação de órgãos de poder proletários autênticos, como acontecera em Outubro de 17. E, por favor, não nos digam que esses órgãos já existiam nos sovietes. Os sovietes não estavam apenas “enfraquecidos”, como se escreve nos vossos artigos; eram órgãos administrativos sem nenhum poder político, e desde bastante antes.
Mesmo que se queira ver no partido comunista deste período o representante genuíno da classe operária, teremos de registar que este era já um conceito novo de socialismo. Lenine tinha dito que o socialismo era o poder dos sovietes mais a electrificação. Staline corrigiu a fórmula: o socialismo sairia do poder do partido mais a electrificação.
As massas operárias exibiram um grande entusiasmo e iniciativa na transformação da economia, na elevação do seu nível cultural, mas, politicamente, o poder e a iniciativa nunca saíram da cúpula fechada do partido; foi esta que conduziu as operações, naquilo a que se chamou com razão a “revolução por cima”.
A segunda revolução burguesa russa
A vossa polémica com os camaradas suecos e os camaradas iranianos do PCI sobre a viragem de 1929 teve para nós a vantagem de nos obrigar a olhar mais de perto esse momento fulcral da transformação da URSS. Se a encararmos sem os preconceitos tradicionais, reconheceremos que uma transformação que
1) institui uma nova ordem social fundada na exploração dos produtores assalariados;
2) desencadeia um crescimento colossal das forças produtivas, fazendo da URSS uma potência moderna, e
3) eleva a burocracia a administradora do capital nacionalizado, só pode ser classificada como uma revolução burguesa, sejam quais forem as suas peculiaridades.
Celebrada pelos seus promotores como “segunda revolução de Outubro” que superava definitivamente a etapa capitalista na URSS, ela foi na realidade, e sem que estes o suspeitassem, uma segunda revolução de Fevereiro, uma reedição da tentativa fracassada do início de 1917 para acelerar a acumulação capitalista na Rússia. Mas agora, com a burguesia decapitada e a pequena burguesia sem envergadura estratégica, apesar da sua reanimação, o capitalismo só podia avançar sobre a nacionalização integral do capital. É por isto que Staline tem tão pouco de comum com Kerensky.
Daí o apoio na classe operária, a planificação “socialista” e a ofensiva contra a apropriação privada e a concorrência — tudo o que deu ao novo regime, na sua fase heróica, a aparência de uma revolução proletária.
Os que pretendem que uma viragem para o capitalismo teria que assumir forçosamente um carácter contra-revolucionário aberto, de esmagamento das conquistas a instituições revolucionárias, por surgir na sequência da revolução de Outubro, não tomam em conta o facto de que, entre uma e outra há um intervalo de pântano, de malogro e degenerescência da revolução proletária, o período da NEP.
O stalinismo, produto do esgotamento da revolução
Mas não enfrentava a União Soviética dos anos 20 uma necessidade imperiosa de se industrializar a de colectivizar a agricultura? Não era apenas ao imperialismo que interessava que continuasse atrasada e vulnerável? Não temos qualquer dúvida a esse respeito. As condenações do programa de industrialização como “prioridade burguesa à acumulação sobre o consumo”, gosto da “acumulação pela acumulação” só para competir com o imperialismo, sinal de que Staline estava dominado pelo “determinismo económico” e via o motor das transformações nas forças produtivas e não na luta de classes — objecções que estão a surgir de várias origens — não passam, quanto a nós, de uma recaída no “socialismo místico” e camponês, de origem maoísta. Esse é que esperava milagres da doutrinação ideológica das massas e recusava admitir que a passagem ao socialismo é inseparável da abundância proporcionada por um tremendo crescimento das forças produtivas.
À URSS de 1927 não restava outra alternativa senão a revolucionarização das forças produtivas, e esse era o factor-chave para a evolução da luta de classes. O plano equilibrado de Bukarine para o avanço para o socialismo “a passo de caracol” era um sonho suicida (por isso mesmo agradava aos kulaks). O impasse a que tinha chegado a economia devido à chantagem da pequena burguesia engordada pela NEP só deixara aberta uma via ao regime — a da multiplicação das forças produtivas, o que pressupunha uma concentração drástica de toda a propriedade e de todo o poder nas mãos do Estado em regime de monopólio.
Mas é claro que isto implicava o ascenso da camada administradora do Estado ao posto de comando dum poder político ditatorial, pondo termo ao que ainda restava da democracia soviética. A expropriação económica da pequena burguesia implicava assim um novo passo na expropriação política do proletariado. E este dilema significa justamente que a revolução de Outubro tinha esgotado as suas potencialidades.
O ponto desesperado a que a revolução chegara está reflectido no carácter prodigioso, sobre-humano, da opção stalinista. Como a pressão camponesa obrigara a cair no buraco da NEP e como a revolução europeia não viera em socorro da revolução russa, era preciso que o Partido usasse o controlo do poder para fabricar as condições sociais para uma futura revolução socialista: se não havia classe operária para exercer a ditadura, havia que criá-la; se o campesinato já não era aliado do proletariado havia que eliminá-lo e criar um campesinato novo, colectivizado, fiel ao socialismo. A realização desta obra ciclópica de engenharia social só podia recair naturalmente sobre a camada administradora do Partido-Estado, investida de poderes extraordinários (só temporariamente, segundo se supunha…).
Ou seja: a crise colocou o partido bolchevique na contingência desesperada de produzir, por um salto sobre o abismo, as premissas duma nova revolução. É precisa melhor prova de que em 1929 a revolução dos sovietes já era só uma recordação?
O “socialismo num só país”
No vosso debate com Rod Gryning transparece a velha disputa entre stalinistas e trotskistas durante a luta interna partidária em 1923-28, cada grupo pretendendo acreditar-se como o autêntico defensor do “legado do leninismo”. Mas tomar essa polémica à letra é induzirmo-nos em erro. Aquilo que se jogava nesse período era já só a escolha entre as vias para o reforço do capitalismo de Estado instaurado com a NEP. O leninismo já não estava presente na discussão.
O debate suscitado por Trotsky sobre a impossibilidade do “socialismo num só país”, debate académico como quase todas as suas batalhas principistas, servia para encobrir, sob frases grandiosas acerca da revolução mundial, uma perplexidade que era geral entre os dirigentes bolcheviques: se a revolução mundial não estava para breve, que fazer com uma República dos sovietes atascada na pequena produção?
Sem dúvida, Trotsky e outros oposicionistas tinham uma percepção aguda da doença da burocratização, faziam críticas certeiras ao oportunismo da política externa, mas não tinham nenhuma alternativa global porque partiam das mesmas premissas económico-sociais que Staline. Os principais documentos da chamada “Oposição de Esquerda” demonstram-no. Foi essa a razão por que ficaram politicamente desarmados quando o “novo Bonaparte”, em vez de entregar o poder à burguesia como eles prediziam, se lançou contra ela e realizou o “socialismo num só país” que eles diziam impossível.
Staline levou a melhor sobre Trotsky, Zinoviev e Bukarine, não por ser mais “astuto”, mas por ter interpretado melhor as necessidades nacional-burguesas que se escondiam sob o slogan do “avanço para o socialismo”. Com as perspectivas antagónicas das duas correntes rivais de direita e “esquerda” foi delineando por tentativas as duas etapas dum único programa político: primeiro, com o campesinato e a pequena burguesia, para reconstituir a economia, ganhar tempo, e sobretudo, organizar o aparelho de poder, o partido “de tipo novo”; depois, contra a pequena burguesia, pela industrialização a marchas forçadas, pela colectivização agrária, pelo “socialismo”.
Com este movimento duplo, foi cortado o nó do dilema em que se debatia a URSS — não era obrigatório escolher entre o definhamento e o livre curso ao capitalismo privado; podia-se fazer uma “segunda revolução” que nem mesmo Lenine sonhara. Só que essa “revolução” era a liquidação final de tudo o que Outubro de 1917 criara.
Medidas de transição para o socialismo ou para o capitalismo?
A necessidade de medidas especiais de “transição para o socialismo” num país como a União Soviética surge com insistência na vossa argumentação, como justificativa das opções do partido ao longo da década de vinte. Em nossa opinião, essa perspectiva obscurece a reconstrução capitalista que se realizava sob a NEP, e isto porque receais pôr em causa uma política iniciada sob a direcção de Lenine e “passar da crítica de Staline à crítica de Lenine”.
Dizer, como é habitual perante a degradação da vida política e partidária na década de vinte, que Staline teria errado ao transformar medidas excepcionais em princípios permanentes, teria deturpado as directivas de Lenine, etc., é recusar a crítica à política de NEP. A verdade é que, ao enunciar a passagem ao regime de capitalismo de Estado e, posteriormente, à NEP, com tudo o que isso implicava (métodos de gestão, autoridade sem partilha dos directores de empresa, multiplicação da burocracia, concessões ao capital estrangeiro, liberdade, vigiada mas liberdade de qualquer modo, para a pequena burguesia, abolição do controlo operário, consagração de privilégios materiais, “organização científica e racional do trabalho”, concentração de todo o poder nas mãos do partido, proibição de plataformas, etc.) Lenine desbravou o caminho depois trilhado por Staline.
Nunca ocultou que se tratava de recuos ditados por uma situação de emergência, ao contrário de Staline que os erigiu em princípios “socialistas”. Mas se este se afastou cada vez mais da clarividência revolucionária marxista de Lenine foi porque o caminho escolhido se estreitava cada vez mais e entaipava consigo os caminhantes. Uma vez posta em marcha, a NEP foi moldando o partido e os dirigentes à sua medida. Em 1928, a ditadura do proletariado na URSS estava perdida e os seus dirigentes destruídos como bolcheviques.
Quer isto dizer que devemos culpar Lenine por não ter previsto aonde conduziria a opção do capitalismo de Estado e da liberdade de comércio? Fazê-lo seria ignorar o extremo de emergência a que estava reduzido o poder soviético. Essas medidas surgiram não como aplicação do programa bolchevique mas como um último recurso para um país exausto e que precisava de ganhar tempo, até surgir eventualmente socorro de alguma parte. Como esse socorro não surgiu, a NEP funcionou em pleno como acumulador de forças para o capitalismo, não para o socialismo.
O partido de “tipo novo” é o mesmo que fez a revolução?
O mesmo receio de atingir Lenine ao criticar Staline, leva-vos a uma reserva extrema no que toca à transformação do partido bolchevique — e não nos referimos ao terror dos anos 30 mas aos anos 20. No entanto, esse é outro elemento central para seguir o percurso da degeneração da revolução russa.
Staline assegurou-se do triunfo sobre os adversários em grande medida porque pressentira, antes de qualquer outro, que a chave da situação original da Rússia estava em edificar um partido inteiramente novo, depurado de conflitos internos, que fosse a armadura e a força agregadora inflexível do novo poder. Aqui mais uma vez as suas inclinações autoritárias e “vontade de poder” vieram ao encontro das exigências objectivas da passagem ao capitalismo.
Embora Staline nunca o expressasse, a lógica da sua acção torna claro que para ele tudo se resumia a corrigir a tradição polémica do partido bolchevique, a brandura de Lenine perante os oposicionistas e sobretudo a intolerável recuperação de Trotsky como figura preponderante do partido. Tratou pois de fazer do marxismo uma matéria moldável para fins tácticos e do centralismo democrático um sinónimo de terrorismo unanimista.
As Questões do Leninismo, que formaram o pensamento de gerações de comunistas e que a corrente M-L insiste em defender como uma obra clássica no combate ao oportunismo, mostram como toma forma esse partido de “tipo novo”, que depois iria ser exportado para todo o mundo: visão da luta política como uma sucessão de campanhas militares em que, em última análise a linha revolucionária se resume a uma questão de táctica (porque a teoria já nos foi legada pelos clássicos…), pastilhas de citações destinadas a “assimilar”, clima de coacção na polémica com adversários amordaçados, exigência de uma unidade de acção “completa e absoluta”, em que a apresentação de plataformas, proibida pelo 10º Congresso, é banida para sempre e os dissidentes não têm que ser vencidos na luta ideológica (essa é uma “ideia podre”) mas expulsos.
Os bolcheviques tinham forjado, sob a direcção de Lenine, um partido operário poderoso, apto como nenhum outro para a revolução e a conquista do poder. Coube a Staline remodelá-lo em quartel-general da fortaleza do capitalismo de Estado. Mas é necessário dizer, contra o trotskismo, que esta obra foi efeito e não causa da degeneração da revolução.
O vazio do poder
Não nos parece que se possa provar a vossa afirmação de que, apesar do ziguezague da NEP, “o poder permaneceu nas mãos do proletariado” (WAS, 15.1.89). Tudo leva a concluir que por esta altura o poder proletário já estava na agonia e a partir daí viveu os seus últimos estertores.
A revolta de Cronstadt e a ameaça de levantamentos camponeses generalizados em começos de 1921 marcaram um ponto de viragem — não porque a repressão bolchevique tivesse um carácter contra-revolucionário, como pretendem os anarquistas, mas precisamente porque esse levantamento, que exprimia a voz da pequena burguesia com a sua exigência de liberdade de comércio e “sovietes sem bolcheviques”, ganhava vastos sectores das massas. Materializava-se o perigo que Lenine entrevira:
“O poder soviético assenta sobre a aliança de duas classes; se essa aliança se romper, estará perdido”.
Chegou-se assim a um equilíbrio de forças temporariamente insolúvel. O proletariado não podia governar mas a profundeza do desmantelamento da ordem burguesa também não permitia o regresso da burguesia ao poder. O regime já não podia avançar para o socialismo mas o impulso dado pela revolução impedia-lhe o retorno ao capitalismo. Surgiu, sob a ditadura do partido comunista, um vazio social de poder, que mais cedo ou mais tarde teria que ser preenchido.
É esse vazio social de poder que explica a polarização extrema de todas as questões políticas ao nível da direcção do partido, cerca de 1921-22. Quando Lenine ocupa os seus últimos esforços a propor a reforma dos órgãos centrais do partido, para evitar uma cisão por efeito do conflito entre Staline e Trotsky, ou a procurar corrigir a ineficácia da Inspecção Operária e Camponesa por um superorganismo de técnicos, ou a conceber um órgão de comando do Gosplan à margem da autoridade dos sovietes, não o faz porque tenha esquecido a luta de classes mas porque o destino do poder já está de facto nesse momento suspenso da superestrutura — sinal de que tudo o mais está perdido.
O aparelho de poder já não era constituído por uma rede de órgãos democráticos de massas mas pelo partido apoiado na burocracia, em grande parte herdada do czarismo. Apesar dos perigos que todos sabiam que isso acarretava, o único meio de acudir à ameaça de desagregação era reforçar cada vez mais os poderes dos executivos partidários apoiados numa burocracia sempre mais ramificada e omnipotente. A democracia operária proclamada pela revolução esvaíra-se; porque não reconhecer que o poder soviético estava perdido?
Quando os sovietes se transformam numa casca vazia
A vossa tímida hipótese de que os sovietes se teriam “enfraquecido” por se ter entrado num “período de refluxo do movimento de massas” (WAS, 15.4.89) mascara a situação catastrófica que se vivia à altura da adopção da NEP. Já em Março de 1919 Lenine constatava que os sovietes estavam reduzidos a órgãos de governo para os trabalhadores. Pouco tempo depois, o seu poder já se tinha transferido por inteiro para as mãos do partido.
Os sovietes — tal como os comités de fábrica e os comités de camponeses pobres, ou seja, todos os órgãos revolucionários genuínos — afundaram-se ou foram dissolvidos durante a grande convulsão causada pela intervenção imperialista e pela guerra civil. Não por culpa do “autoritarismo” dos bolcheviques como acusavam e acusam os anarquistas, mas porque na Rússia camponesa, mergulhada no caos da guerra e da fome, já não havia a mínima hipótese de auto-organização descentralizada dos trabalhadores, pressuposto dum regime soviético — só restava o último recurso dum poder ultracentralizado e militarizado.
Mas isto significa que a vitória do regime soviético sobre a intervenção e a guerra civil foi apenas aparente. A burguesia internacional, se falhou no objectivo de pôr no poder um governo contra-revolucionário, nem por isso deixou de aniquilar a revolução dos sovietes, ao dizimar a classe operária já diminuta, desmantelar a indústria, desorganizar a economia, fazer virar à direita a massa dos camponeses e da pequena burguesia, com os mencheviques e socialistas-revolucionários na vanguarda, tornando a situação insustentável e deixando ao partido bolchevique como única alternativa o controlo ditatorial do poder através de medidas de emergência.
Por seu lado, a tempestade de críticas que as várias oposições de esquerda faziam à direcção do partido (nomeadamente as dos bolcheviques de esquerda) apontavam em muitos casos desvios incontestáveis e fizeram previsões proféticas sobre as consequências da burocratização, mas as suas pretensas alternativas (como a da entrega do poder económico aos sindicatos) conduziriam a um desastre ainda mais rápido pela desintegração do poder central.
Quando hoje se confrontam as diversas posições em luta no 10º Congresso, o que ressalta é a justeza parcelar dos alertas de cada uma das plataformas e a ausência global de alternativas. Era a situação que fechava o futuro ao poder proletário.
Os sovietes eram vitais?
No conjunto, vemos nos vossos textos um interesse muito reduzido por esta questão, e isso, parece nos, não é casual. É fruto duma tradição herdada da corrente M-L, a qual, na sua campanha contra o revisionismo de Kruchov, deixou praticamente esquecido o critério que logicamente deveria estar no centro do debate — como podia ser socialista um regime onde não havia órgãos de democracia proletária?
O papel dos sovietes como pilares da ditadura do proletariado tornara-se há muito no movimento comunista uma expressão convencional, mera bandeira propagandística. De tal modo que os anos iniciais da revolução em que os sovietes tinham exercido um poder efectivo eram vistos como uma espécie de esquerdismo anarquizante próprio dos “tempos heróicos”. Nesse assunto, talvez como em nenhum outro, abrira-se um abismo entre a teoria e a prática do movimento comunista.
Em matéria de ditadura do proletariado, aquilo que chegou até nós, através do movimento M-L, foi a versão revista por Staline:
“A ditadura do proletariado — escrevia ele em 1926 — consiste nas directivas do Partido, mais o cumprimento destas directivas pelas organizações de massas do proletariado mais a sua execução prática pela população” (!).
Embora demarcando-se (por vezes, e em voz baixa) desta visão “excessiva”, os comunistas continuaram a considerar natural que a ditadura do proletariado, cercada e atacada, se exprima através da ditadura dum partido, por analogia com os períodos de ditadura política em regime burguês.
Já lemos na imprensa comunista revolucionária a tese de que uma primeira etapa, de “governo provisório da ditadura do proletariado”, baseada numa centralização extrema, seria normal e necessária como preparação da passagem a uma segunda etapa de gradual ampliação da democracia operária; isso só não teria acontecido na Rússia devido às “debilidades ideológicas de Staline e do Partido bolchevique”.
Simplesmente, estes argumentos esquecem que a ditadura do proletariado não consente a mesma margem de delegação de poderes que a ditadura burguesa; enquanto aí o poder burguês se ampara no movimento automático de produção e reprodução do capital e pode consequentemente exercer-se através de assembleias mais ou menos representativas, regimes militares, etc., a ditadura do proletariado só subsiste na medida em que os órgãos de poder directo das massas produtoras paralisem a resistência encarniçada da burguesia, eliminem diariamente os mecanismos capitalistas e destruam todos os vestígios da velha ordem. Não há decretos revolucionários, acções de vanguarda comunista ou coerção policial que possam substituir-se a essa máquina trituradora do capitalismo que é o poder dos conselhos de trabalhadores liderados pela iniciativa política da classe operária. Por este motivo muito concreto e não por romantismo ou demagogia escrevia Lenine que a ditadura do proletariado “tem que ser mil vezes mais democrática do que a mais democrática república burguesa”. E por isso não ter sido possível se perdeu a revolução russa.
Acerca duma concepção idealista da História
Donde nasceu a receptividade dos comunistas para explicações históricas que filiam tudo nos “traços negativos do carácter de Staline”, na “acção cisionista de Trotsky”, ou na “debilidade teórica do partido que levou a que não se tivessem em conta os alertas de Lenine”? Ela nasceu da ideia de que o poder da classe operária poderia reduzir-se, em última análise, ao poder político do partido comunista. Passou a situar-se na linha do partido o critério para saber se persistia ou não a ditadura do proletariado, em vez de perguntar até quando os operários e camponeses exerceram realmente o poder. Viu-se concentrada apenas no partido a expressão da luta de classes. E, logicamente, depois de se imaginar a ditadura do proletariado delegada no partido, o passo seguinte foi vê-la expressa nas personalidades dirigentes do partido e, por fim, meramente em ideias.
Não fazemos caricatura. Temos lido repetidamente a tese de que a revolução se perdeu devido à “falta de preparação teórica do proletariado” ou à “falta de uma perspectiva económica clara por parte dos bolcheviques”. Exemplos abundantes desta perspectiva encontram-se também nos vossos materiais. As ideias erradas “foram um importante factor na origem da evolução para o capitalismo de Estado” (WAS, 15.6.90); “o socialismo entrou em declínio porque a meio dos anos 30 a direcção soviética abandonou a via revolucionária” (3º Congresso do MLP); “a direcção soviética reviu o marxismo-leninismo, o que permitiu a uma burocracia anti-operária levar a União Soviética na via da restauração do capitalismo” (WAS, 1.11.89); “se em 1936 houvesse respostas correctas ainda tudo se poderia salvar”; “infelizmente, a partir de certa altura, os dirigentes do partido abandonaram a via leninista”; etc., etc.
Evidentemente, as ideias dos dirigentes exercem uma influência determinante nos acontecimentos, nem é necessário dizê-lo. Mas não é tarefa do marxismo procurar as raízes sociais, de classe, que dão o enquadramento geral dessas ideias? Atribuir os acontecimentos às opções dos dirigentes não é uma forma de escamotear os movimentos de classe que se exprimem através dessas opções?
O capitalismo de Estado tem que ser estudado por nós como um sistema económicosocial que eclodiu em certas condições históricas e segundo certas leis; não como um erro, um desvio ou um pecado. É tempo de rompermos com a tradição recebida do stalinismo, que reflecte a perda de contacto da direcção revolucionária com os interesses de classe do proletariado e começa a imaginar o socialismo em separado da ditadura real do proletariado. Com essa lógica, pôde o PTA demonstrar que a sua subida ao poder instaurara na Albânia a ditadura do proletariado, apesar de então ainda não haver proletariado no país…
Pôr em causa o papel dirigente do partido comunista?
Como em muitas outras passagens da vossa Declaração, não temos nada a objectar àquelas em que se refere a importância do partido comunista como “a forma mais elevada de organização da classe operária” e onde se repudiam o anarquismo e o social-democratismo. Criticamos sim que se ignore a questão nova trazida pela revolução russa — como pode o partido comunista, após a revolução, exercer o papel de vanguarda política sem se substituir aos órgãos de massa do poder proletário? Esta tornou-se também uma questão tabu para o movimento M-L, como tudo o que se julgasse pôr em causa o “papel dirigente do partido”.
Pela nossa parte, pensamos que não se pode continuar a tirar a “lição” stalinista, que se resumia a garantir por qualquer meio o poder para o partido, uma vez que ele era a “expressão superior da ditadura do proletariado”. A vida mostrou qual é o produto final desta filosofia. O partido único, detentor do poder em monopólio, foi invadido pelas correntes sociais em luta e a “fortaleza inexpugnável” mudou de qualidade por dentro, sem sequer se dar conta.
Teremos então que adoptar os pontos de vista dos críticos “democráticos” da revolução russa, de todos os que vêem o partido comunista como inimigo dos sovietes, coveiro da democracia operária? De maneira nenhuma. Acreditamos que em novas revoluções futuras a luta partidária, como forma superior da luta de classes, se exprimirá através e não à custa dos conselhos, sindicatos e outros órgãos da democracia proletária.
O dilema em que se perdeu a revolução russa — ou o partido afoga os sovietes (e todas as outras formas de expressão democrática) ou os sovietes são tomados pela pequena burguesia e afundam a revolução — não é de modo nenhum uma lei geral. Ele apenas retrata a imaturidade das relações de classe na Rússia para a ditadura do proletariado.
O argumento tradicional de todos os “socialistas democratas” de que o “vanguardismo” leninista conduziu os bolcheviques a apossar-se do poder em exclusivo e a ilegalizar os outros partidos abstrai deliberadamente das circunstâncias em que a coligação de partidos soviéticos desejada pelos bolcheviques se tornou impossível pela passagem de mencheviques e socialistas-revolucionários para o campo da contra-revolução.
Os comunistas não têm pois que se autocriticar do objectivo de se constituírem em vanguarda da revolução proletária. A lição que recolhem da experiência soviética é que quanto mais vasta, diversificada e criadora for a rede de órgãos da democracia proletária, melhores as condições para a direcção política do partido comunista conduzir a revolução e vencer sucessivas etapas, em disputa com os partidos da pequena burguesia.
Afinal era Kautsky que tinha razão?
Em resumo: discutir se a revolução russa podia ter sido salva com uma outra política parece-nos sem sentido. A ditadura de um proletariado pigmeu, envolvido por um campesinato gigante, cercado, atacado e desorganizado pelo imperialismo, não dispunha de forças próprias para romper, estava reduzida a ganhar tempo e a agonizar se não surgisse uma outra revolução em seu socorro.
Dizemos assim que a revolução russa não podia triunfar porque era, como a Comuna de Paris, obra de um proletariado “lançado ao assalto do céu”. Anúncio precursor de novas revoluções proletárias que amadurecem, não pôde ir além de intuições geniais e de experiências larvares na instauração da ditadura do proletariado e na transição para a economia socialista.
Dir-nos-eis possivelmente que isto é uma visão “pessimista” da revolução e que equivale a retomar a “teoria das forças produtivas” com que Kautsky e os mencheviques pretendiam demonstrar, em nome do marxismo, que a revolução proletária na Rússia era prematura, era uma utopia saída do “blanquismo” de Lenine, visto que as condições económicas e sociais não permitiam ir além da revolução burguesa.
Não aceitamos a crítica. Não temos dúvida de que o partido bolchevique teve razão ao explorar a crise de poder da burguesia para conduzir o proletariado à tomada do poder. Os primeiros anos da revolução demonstraram, de resto, a sua autenticidade, tremenda vitalidade e possibilidade de êxito. A revolução proletária era tão possível e necessária na Rússia de 1917 como é hoje em qualquer país — mas isto não significa que não estivesse condicionada à marcha do movimento revolucionário internacional.
A sensatez marxista dos social-democratas de ontem e de hoje quanto à “impossibilidade de forçar a História” faz parte da sua postura de comissários da burguesia. A conhecida e muito citada fórmula de Marx — “nenhuma ordem social desaparece antes de desenvolver todas as forças produtivas que contém; novas relações de produção mais elevadas só surgem depois das condições materiais da sua existência terem amadurecido no seio da velha sociedade” — refere-se evidentemente à sucessão histórica global dos modos de produção. Aplicada a cada país e a cada período em particular, como se obrigasse o proletariado a esperar pelo completo apodrecimento da sua burguesia antes de pensar na revolução socialista, torna-se uma caricatura.
Vivemos na época do imperialismo, da passagem do capitalismo putrefacto ao socialismo, época que se traduz por uma multiplicidade de situações revolucionárias em países com os mais diversos níveis de desenvolvimento. Em cada um deles, os comunistas serão os que souberem interpretar e pôr em marcha as necessidades revolucionárias do proletariado. O partido bolchevique permanece até hoje como o exemplo mais completo de fusão do marxismo com o movimento operário.
Lenine e os bolcheviques não podem ser responsabilizados por não terem conhecido antecipadamente o destino da revolução. Sabiam que o seu dever de revolucionários era tirar proveito da impotência da burguesia e levar a revolução o mais longe possível, na expectativa de que factores imponderáveis, como uma revolução na Alemanha, criassem uma base sólida para o desenvolvimento combinado a caminho do socialismo. Não tendo surgido esse apoio, não capitularam; entrincheiraram-se na expectativa de um longo cerco. É isso que faz da sua acção um modelo de comportamento revolucionário durante esses breves anos que foram o pico mais avançado da história da humanidade. Foram submergidos, a partir de 1920-22, pela agonia da revolução que não estava na sua mão evitar.
Um ciclo revolucionário que se encerra
Qual é afinal a diferença de fundo no balanço que fazemos sobre o movimento revolucionário deste século? Para vós, a revolução teria sido perdida pela sucessão de erros e desvios ocorridos sucessivamente na União Soviética, na China, na Albânia. Para nós, os erros foram a manifestação necessária dos limites do próprio movimento. A degeneração da revolução num quarto do planeta ao longo de meio século é um fenómeno demasiado vasto para poder ser explicado por conjunturas desfavoráveis, por traições ou por azares.
Desde 1917, abriu-se, espraiou-se e por fim encerrou-se um primeiro ciclo da revolução socialista mundial, que se caracterizou por uma série de revoluções em países de capitalismo incipiente. Apoiado na aliança com os camponeses, o proletariado pôde elevar-se a condutor de revoluções que a burguesia já não era capaz de levar a cabo nestes “elos fracos da cadeia imperialista”; mas o mesmo atraso económico que lhe permitiu protagonizar a revolução ditou depois o seu fracasso. Não havendo condições para a passagem ao socialismo nesses países, a revolução sucumbiu sob o peso das tarefas capitalistas ainda não realizadas e o proletariado foi submergido pela massa pequeno-burguesa.
Com efeito, o que se passou de novo na Rússia foi que a revolução operária pôde triunfar porque soube arrastar atrás de si, armar e organizar uma revolução camponesa antifeudal. A revolução operária, apontada para o socialismo, pondo ao seu serviço a revolução camponesa apontada para o capitalismo — foi esta a singularidade de 1917, própria de uma época em que as revoluções burguesas retardatárias começam a ser atropeladas pelas primeiras revoluções proletárias.
Na China, no Vietname, etc., a combinação ainda foi mais complexa, porque o proletariado, para ganhar a hegemonia, teve que assumir não só as reivindicações das massas camponesas, mas as reivindicações nacionalistas de toda a pequena burguesia, dando à revolução um cunho ainda mais híbrido e ambíguo. As pretensas alternativas novas que se quiseram fundar nessas experiências não fizeram mais do que confundir o dilema que a revolução russa revelara em toda a nitidez: se o proletariado não tem forças para exercer a ditadura, como arrastará a pequena burguesia para o socialismo?
As “inovações criadoras” de Mao sobre a edificação do socialismo num país atrasado — “democracia nova”, “caminhar sobre as duas pernas”, comunas populares, “justa solução das contradições no seio do povo”, revoluções culturais — foram em grande medida combinações eclécticas da linha stalinista com a linha bukarinista, porque não havia muito mais para inventar nessa questão.
O que o maoísmo trouxe de novo, para além da sua genial mobilização da guerra camponesa prolongada ao serviço da derrocada da burguesia, foi ter sabido tirar partido dum sistema muito flexível de suborno da pequena burguesia e mesmo da burguesia nacional “patriótica”. O consenso social assim obtido (sobretudo porque o diminuto proletariado não se fazia notar pelas suas ambições revolucionárias) foi a fonte do breve esplendor da China Popular. Mas também a reacção burguesa foi aí mais fulminante que na União Soviética, onde as forças vivas do capitalismo tinham sofrido golpes profundos.
Em todos os casos, porém, chegou o momento em que a conjunção de interesses entre operários, camponeses e pequena burguesia em geral deixou de se verificar. A revolução dividiu-se em dois ramos divergentes e o ramo burguês fez estiolar o ramo proletário, economicamente mais fraco do que o oceano da pequena economia agrícola, comercial, artesanal, apoiada na pressão do mercado capitalista mundial.
Nesta luta desigual, criam-se todas as condições para que o partido operário, limitado às reformas democráticas e ao capitalismo de Estado, delegue as tarefas de transformação, administração e coerção numa enorme burocracia que se eleva como uma espécie de árbitro na situação de impasse social criada e, agindo como gestor do capital nacional, submete à sua ditadura todas as forças sociais.
Nasceram assim regimes transitórios, resultantes do aborto da revolução no desvio do capitalismo de Estado, administrado por uma burocracia que vai mudando de natureza à medida que realiza o seu programa de “socialismo”. Penetrada, subornada pelas forças do capital, ela não é mais do que uma incubadora do capitalismo e desenvolve-se como uma nova burguesia que acaba por renegar as suas ambições ao capitalismo estatal planificado e descobre enfim a sua vocação real — a “libertação” do capital aprisionado.
Em busca da hegemonia do proletariado
Defende-se na vossa Declaração a necessidade de um “movimento político independente da classe operária” face à burguesia e à conciliação pequeno-burguesa, apela-se a que os operários “se coloquem no centro de uma corrente de revolta contra o capitalismo e o imperialismo” e sublinha-se o crescimento numérico do proletariado à escala mundial. Isto é evidentemente justo mas não tem grande substância e toma um pouco o aspecto dum exorcismo se não pusermos em discussão o facto mais marcante do último meio século — a crescente hegemonia pequeno-burguesa sobre o proletariado.
Causas para o explicar não faltam. Ou porque as novas tecnologias retiram aos operários voz activa no processo produtivo, colocam-nos na dependência dos técnicos e desvalorizam as suas capacidades, no plano político como no reivindicativo; ou porque crescem desmesuradamente as camadas assalariadas da administração e serviços, em grande parte parasitárias e por isso adeptas fanáticas da ordem; ou porque tende a extinguir-se nos países desenvolvidos a massa dos camponeses arruinados que, por já não terem nada a perder, aderiam à revolução; ou porque as massas dos novos semiproletários urbanos tardam em reconhecer que os seus interesses estão do lado da classe operária; ou porque a pequena burguesia se integra cada vez melhor na função de capataz político e ideológico do imperialismo; ou porque os meios repressivos modernos e os novos meios de comunicação/manipulação de massa geram nos trabalhadores um sentimento de impotência perante a ordem burguesa e aceleram a assimilação ideológica geral — o facto é que a consciência pequeno-burguesa se propaga sem cessar ao conjunto da sociedade.
Criou-se um estrangulamento na marcha da revolução: nos centros imperialistas, objectivamente maduros para o socialismo, não se declaram situações revolucionárias devido à proliferação das camadas improdutivas, à liberdade de manobra dos aparelhos políticos e sindicais reformistas, à corrupção de parte do proletariado e semiproletariado, subornado pelas multinacionais, à decomposição da ideologia e de todos os aspectos da vida social. Mas nos países dependentes, reduzidos à miséria pelo imperialismo e sacudidos por grandes convulsões, as condições também não são favoráveis para a revolução proletária devido à vitalidade do nacionalismo burguês nesses países. Num caso como no outro, desaparece do espírito das massas proletárias o objectivo da revolução e da ditadura do proletariado e perde-se o sentimento da sua identidade de classe.
A constatação deste recuo (agora ainda mais acentuado face à derrocada do campo “socialista”) levou os agrupamentos da extrema esquerda a adoptar objectivos sucessivamente mais acessíveis, para não perder o contacto com o movimento de massas real. Há que dizer que não têm ganho muito com isso.
Nesse aspecto, a insistência da vossa Declaração sobre a necessidade de uma maior ligação às lutas diárias da classe operária, como uma espécie de bússola ou talismã para encontrarmos a saída da actual crise, não nos convence. Sabemos que somos parte integrante da luta operária e que não nos podemos alhear dela, sob pena de degeneração; mas sabemos também que qualquer concessão ao espontaneísmo para obter popularidade é uma porta aberta ao reformismo. O que está no centro dos interesses do proletariado não é a resistência diária; é definir de novo o caminho da revolução, sem o qual não há movimento operário real.
Por um programa comunista
Porquê esta aparente fatalidade da hegemonia pequeno-burguesa sobre o proletariado? Ela não é mais do que a imagem invertida do fenómeno real: a perda pelo movimento operário da meta da revolução e da ditadura sobre a burguesia. É a ausência de um programa comunista que enfraquece o movimento operário. É ela que limita os comunistas ao “desmascaramento” das forças burguesas, os torna politicamente estéreis e portanto vulneráveis à degeneração.
Naturalmente, a elaboração de um programa comunista não depende de um acto de vontade, não é uma invenção de utopias; é um acto de conhecimento. Devolver ao proletariado a teoria da revolução, à luz das experiências deste século e particularmente da revolução russa, parece-nos o factor-chave para a sua reorganização como força revolucionária internacional.
Isso implica encontrar resposta para muitas perguntas que temos deixado em aberto. Por exemplo: Como entrelaçar os órgãos de ditadura de classe (partidos, sovietes, sindicatos, etc.) por forma a garantir que esta não será substituída pela degeneração burocrática? Como garantir liberdade de expressão e de organização política que não possam ser capitalizadas pela burguesia? Como assegurar que o controlo operário nas empresas domine a gestão e a técnica e não seja dominado por elas? Como assegurar que as funções do aparelho de Estado centralizado vão sendo gradualmente transferidas para a autogestão pelos produtores? Como caminhar desde a conquista do poder e de forma ininterrupta no sentido de suprimir os privilégios e eliminar a estratificação entre trabalhadores manuais e intelectuais, dirigentes e executantes? Como combinar uma ampla democracia e estrita legalidade operária e popular com a repressão inflexível sobre a contra-revolução?
O facto de o comunismo enfrentar perguntas que não se colocavam no tempo de Marx e Engels indica o caminho desde então percorrido, mesmo através das derrotas. Só encontrando-lhes respostas conseguiremos elevar as contínuas acções de revolta das massas ao nível revolucionário socialista.
O mais importante é, pois, quanto a nós, ter claro um programa comunista que volte a unificar os explorados de todo o mundo e os prepare para um novo assalto à fortaleza capitalista, mais vasto e eficaz do que o de 1917. Para traçar esse programa é necessária a colaboração das forças que se situam no terreno do leninismo. A edição de uma revista internacional de propaganda comunista, assente numa plataforma clara, poderia ser um passo positivo nesse sentido. Pela nossa parte, estamos disponíveis para colaborar convosco e com outros agrupamentos nessa tarefa, assim como para examinar outras propostas de trabalho.
Política Operária nº 27, Nov-Dez 1990