Neste período de comemorações dos cem anos da revolução de outubro trazemos, do recente número 25 da revista “O Comuneiro”, a primeira parte de um artigo intitulado “Outubro e nós” do camarada Ângelo Novo.
Ângelo Novo faz parte daqueles comunistas que, do permanente exercício da sensibilidade, se encontraram com a revolução. Como diz na sua página pessoal, “Foi no desenvolvimento e aprofundamento da sua linguagem poética que ele se foi aproximando da teoria, história e prática revolucionárias, nas quais se acabaria por fixar. Para si, poesia e revolução tendem a tornar-se sinónimos. Ângelo Novo é comunista.”
Este artigo, que abaixo reproduzimos, é mais uma importante contribuição[i] desse camarada.
Demonstra que ao longo da história da luta de classes, da luta entre explorados e exploradores, sempre esteve presente, em algum grau, o retorno ou uma contingência de uma vida comunitária, um determinado comunismo, mesmo que contaminado ideologicamente por preceitos e preconceitos religiosos. Mesmo não sendo uma necessidade histórica, mesmo sendo a divisão de classes um período pequeno de nossa história, essa ideia brota e resiste, sempre como retorno a um passado de vida comunitária ou da necessidade de na luta dividir o pão.
E isso é o que no texto responde à pergunta: por que somos comunistas? Ao mesmo tempo que apresenta ao leitor o grandioso primeiro passo para romper com esse passado ideológico e construir, no fogo da luta, um instrumento científico, régua e compasso para a realidade que cerca e traspassa as batalhas de classes, o marxismo-leninismo.
Outubro e nós (Parte I)
Ângelo Novo (*)
Três hominídios caminhavam pela savana arborizada de Laetoli, ao norte da atual Tanzânia. Os seus passos ficaram marcados em cinza vulcânica humedecida por uma chuva leve. Chegaram assim até nós de uma forma bem nítida, como um eco fantástico reverberando no tunel do tempo. As passadas de dois indivíduos surgem distintamente, por cerca de 24 metros. Um terceiro parece ter seguido ostensivamente, neste troço, as passadas de um dos precedentes. Seria um jovem a brincar com o seu progenitor? Trata-se, provavelmente, de Australopithecus afarensis mas a sua planta de pé é surpreendentemente moderna, em contorno, curvatura e apoios. O indivíduo de menores dimensões aparenta estar carregado para um dos lados, podendo perfeitamente ser uma fêmea com um filho à ilharga. Humano, demasiado humano. Foi há 3.700.000 anos.
Porque somos comunistas?
Excetuados os últimos 10.000 anos, ou seja, durante a esmagadora maioria do tempo da sua história, as comunidades humanas viveram em bandos de caçadores-recoletores, sem conhecer a propriedade privada nem distinções sociais[ii]. Na verdade, a história humana era então um rio plácido e langoroso, que mal ainda se distinguia da história natural. Seguramente nenhum ser pensante tomava dela consciência. No entanto, ainda que impercetível para os seus atores, o Paleolítico tinha efetivamente a sua própria história. Houve, desde logo, o próprio processo de especiação humana, por intermédio do trabalho, o que implicou um acréscimo constante da destreza manual e das capacidades de raciocínio e de comunicação vocal, logo, um alargamento, densificação e estruturação do cérebro[iii]. Sucederam-se depois as grandes migrações, a partir de África até aos restantes quatro continentes. Deram-se eventos cruciais como o domínio do fogo, a construção de habitáculos, o início do uso de vestuário, a invenção da jangada ou do arco, a domesticação do cão, o nascimento da arte e da espiritualidade.
Ao longo de centenas e centenas de milhares de anos, as técnicas de talhagem do sílex foram-se aperfeiçoando, provavelmente dando origem a um ofício especializado. A memória dos gestos transmitiu-se de geração em geração de forma cumulativa. Os paleoarqueólogos identificaram padrões na indústria lítica (olduvense, acheulense, mousteriense, etc.) que percorrem um certo trajeto progressivo. Por cada quilograma de pedra, foi-se conseguindo uma cada vez maior extensão de fio cortante útil, o que permitiu uma sempre crescente autonomia de deslocação aos grupos humanos. Com instrumentos mais variados, eficazes e facilmente transportáveis, grandes expedições podiam ser empreendidas sem necessidade de regresso às pedreiras conhecidas[iv]. Consequentemente, a divisão técnica do trabalho tomava necessariamente novas formas. Já então operava uma interdependência dialética entre forças produtivas e relações de produção. Como que em surdina, a grande roda da história estava em movimento, mas a vida efetiva dos homens era embalada por um sopro idílico de aparente eternidade. Sem prejuízo, naturalmente, da ocorrência de episódios cruéis e dramáticos, próprios de toda a luta pela existência.
Os bandos paleolíticos foram a única sociedade de abundância que a humanidade conheceu até hoje. O trabalho necessário a assegurar a subsistência básica – em caça, pesca, recolha de espécimes vegetais, fabrico de instrumentos e tarefas domésticas – era assegurado em não mais que quatro horas diárias, em média[v]. O resto do tempo seria dedicado ao convívio, à aprendizagem, ao namoro, à aventura, à brincadeira com as crianças e, sem dúvida, à reflexão. A acumulação individual de riquezas excedentes, em relação à subsistência básica, não fazia qualquer sentido, como ainda hoje o não faz para as tribos contemporâneas de caçadores-recoletores. Nem seria aliás possível, dado o nomadismo habitual destes grupos. Consequentemente, não havia distinções sociais. A vida comunitária, em bandos que raramente excederiam a centena de membros, regia-se por princípios igualitários, cooperativos e de partilha, que englobavam sem qualquer dúvida as mulheres. Não há, aliás, provas de que houvesse uma divisão sexual do trabalho muito marcada, embora se pense que os homens predominavam na caça. Todos eram livres na condução da sua vida pessoal e os assuntos fundamentais à vida coletiva eram normalmente resolvidos por deliberação pública participada. Em caso de discordâncias insanáveis, poderiam ocorrer abandonos e cisões, sendo os episódios de violência entre grupos muito excecionais. O ostracismo é a sanção mais comum para comportamentos socialmente nocivos, incluindo tentativas de exercer poder pessoal.
O igualitarismo dos caçadores-recoletores não é expressão de uma qualquer essência humana. Não há um estado primordial de virtude que tenha sido corrompido pelos usos sociais. Bem ao inverso, este igualitarismo é um elaborado produto social que superou as tendências hierárquicas e de imposição agressiva de domínio que a espécie humana compartilhou de origem com muitos dos primatas que lhe são mais próximos. Pensa-se inclusivamente que esta herança ainda se fazia sentir na vida social do baixo paleolítico, sendo apenas progressivamente superada no paleolítico médio e alto. Os pequenos campos habitacionais paleolíticos foram assim verdadeiras escolas de democracia e comunismo. Face às pressões de um meio ambiente que podia bem ser hostil ou sáfaro, aí se aprendeu a partilhar recursos e aptidões, em constante esforço coletivo. Os grupos humanos que cultivaram estas caraterísticas tiveram mais sucesso de sobrevivência e reprodução. Os homens (e mulheres?) com aspiração ao domínio sobre os outros habituaram-se a submeter-se à coligação alargada dos seus opositores, daí resultando uma “hierarquia de dominação invertida”, via aberta para o igualitarismo[vi].
Há cerca de 10.000 anos, na região hoje denominada como Médio Oriente, ocorreu uma grande transformação social que Gordon Childe denominou como a “revolução neolítica”[vii]. Grupos humanos maiores começaram a cultivar o solo, reunidos de forma sedentária em aldeias, usando peças de olaria para armazenagem e cozedura de alimentos, domesticando novos animais (a ovelha, a cabra, o gato, o porco, o boi). As condições de vida destes agrupamentos humanos sofreram uma alteração radical. Agora existe já alguma acumulação de recursos, em celeiros e estábulos, como prevenção para épocas de escassez. Esses bens têm de ser defendidos do assalto de grupos vizinhos famintos ou invejosos. É necessário um grau maior de coordenação técnica no trabalho. As discordâncias têm de ser negociadas e resolvidas, pois que a opção de partir (abandonando o produto de anos de trabalho) já não pode ser encarada com a mesma ligeireza. Mantendo-se embora a propriedade comum do solo, verificam-se graus diferenciados de acumulação privada.
Nos primeiros estádios do neolítico (os tempos da horticultura) ocorreu o estabelecimento de algumas distinções sociais, mas não a divisão em classes antagónicas. As unidades domésticas mais produtivas doavam uma parte do seu excedente, gerando um complexo sistema de obrigações sociais – dar, aceitar e retribuir – que fascinou Marcel Mauss[viii]. Para além do prestígio assim adquirido, estes “grandes homens” ganharam algum ascendente social, que lhes permitiu ter uma voz determinante em assuntos de guerra e paz. A complexificação das relações sociais exigia funções de coordenação e redistribuição que se cristalizariam nas “chefias”. Em muitas sociedades horticultoras a proeminência ficou dependente do mérito produtivo e de uma permanente emulação mais ou menos ritual de generosidade. Noutras, a “chefia” tornou-se hereditária.
Entretanto, há uns seis mil anos, entre os rios Tigre e Eufrates, surgiram o arado (e logo a tração bovina) e os grandes canais de irrigação. Os metalúrgicos aprenderam a fundir uma liga à base de cobre e estanho, temperada com outros elementos, que permitiu o fabrico de armas e ferramentas poderosas, em bronze. Surgiram os carros com rodas e a navegação à vela. A agricultura tornou-se extensiva e a disposição efetiva sobre as terras foi concentrada. As aldeias neolíticas de centenas de pessoas tornaram-se grandes cidades, com dezenas de milhares de habitantes. Os excedentes alimentares eram agora acumulados em grandes armazéns públicos, que eram aliás templos religiosos, dirigidos por uma classe sacerdotal. Criam-se padrões para medir e pesar. Para contar e registar foram inventadas escritas simbólicas. Para orientar os trabalhos, um calendário, por observação astronómica. A geometria dá os primeiros passos, entre os agrimensores. A divisão técnica do trabalho é agora muito mais complexa, existindo muitos artesões especializados, para além de mercadores e amanuenses. Com a intensificação das trocas surgiu, naturalmente, o equivalente geral, dinheiro. Mas, sobretudo, emergem uma classe trabalhadora sem posses e uma classe dirigente que se apropria e/ou dispõe do sobreproduto social produzido por aquela. Para garantir e reproduzir esta divisão social antagónica, num dado território, projetando a sua força coesa sobre o exterior, surge um aparato político-militar a que chamamos Estado, servido por uma burocracia especializada. A mulher é relegada a um estatuto de subalternidade, em casamentos monogâmicos patrilocais, sendo a propriedade privada transmitida hereditariamente por via patrilinear[ix].
Os traços essenciais das sociedades “civilizadas” surgiram, em alturas diversas mas de forma independente, em numerosos locais: a Mesopotâmia, o Egito, o Irão, o vale do Indus, a China, o Nilo médio (Sudão), a Etiópia, a Meso-América, os Andes, o oeste e sudeste da África bantu. Para além disso, difundiram-se por conquista ou imitação por todo o mundo, deixando apenas pequenas bolsas marginalizadas de resistência. A partir daqui, verdadeiramente, a história humana tem sido a história das lutas de classes. Os modos de produção a as correspondentes classes sociais têm-se sucedido ou articulado de forma compósita. Mas o que se tem mantido invariável é que as classes possidentes consideram sempre que não têm ainda tudo aquilo que verdadeiramente valem e merecem. É-lhes devido sempre mais, muito mais.
Eis o que se lê num édito da cidade de Lagash, datado de há 4.500 anos:
“O alto sacerdote entrou no pátio do pobre e tirou daí lenha. Se a casa de um grande homem está adjacente à de um cidadão comum, o primeiro pode anexar as instalações deste sem pagar a devida compensação ao seu dono. Se um bom asno nascer a um súbdito e o seu senhor disser «compro-to», o comprador privilegiado raramente pagará um preço satisfatório.”
Pois bem, o bravo soberano Urukagina tomou a peito corrigir estes abusos, “restaurando a velha ordem, como ela existiu desde o princípio”[x]. Enfim, pelos vistos, já nesse tempo havia demagogos bonapartistas. Mas o mais interessante aqui é o declarado propósito restauracionista de uma ordem ancestral de fraternidade. Com maior, menor ou nenhuma sinceridade, não mais deixou de haver manifestações destas, até aos nossos dias.
O Velho Testamento dá-nos testemunho de que o profetismo judaico está pejado de “propaganda anticapitalista”, para usar a curiosa expressão de um observador arguto e bem informado[xi], mas também de verdadeiros movimentos de sublevação comunista, ao longo de mais de um milénio antes da nossa era. A sociedade de classes na Palestina não poderia ser muito mais antiga do que isso. “Naquele tempo não havia rei em Israel, por isso cada um fazia o que bem lhe parecia”, lê-se a terminar o Livro dos Juízes. Quando começou a escrita histórica, havia ainda uma memória bem viva da sociedade sem poder central e sem classes, transmitida oralmente de geração em geração. Foi só muito mais tarde que essa memória direta se diluiu, tingindo-se de contornos míticos e de imaginação literária.
Os registos subsistentes e as narrativas dos historiadores modernos falam-nos de uma gloriosa ascenção, a magnífica aurora da civilização. Para quem se habituou a ler a história sob o ponto de vista popular e com uma grelha analítica marxista, o que se adivinha é uma transição extraordinariamente violenta e traumática, a mãe de todas as “acumulações primitivas”. Estendendo-se embora ao longo de vários séculos, este processo de estratificação classista não pode ter ocorrido senão com uma agressão constante e sem tréguas, grandes tumultos, guerras e dissidências violentas. Certo é que a memória das vítimas e dos vencidos ficou para sempre sepultada no tempo.
Samuel, fundador do grande profetismo israelita, via assim o advento da monarquia, que procurou desaconselhar:
“Eis como será o poder do rei que vos há-de governar: tomará os vossos filhos para guiar os seus carros e a sua cavalaria e para correr diante do seu carro. Fará deles chefes de mil e chefes de cinquenta, empregá-los-á nas suas lavouras e nas suas colheitas, na fabricação das suas armas e dos seus carros. Tomará as vossas filhas como suas perfumistas, cozinheiras e padeiras. Há-de tirar-vos também o melhor dos vossos campos, das vossas vinhas e dos vossos olivais, e dá-los-á aos seus servidores. Cobrará ainda o dízimo das vossas searas e das vossas vinhas, para o dar aos seus cortesãos e ministros” (1, Samuel, 8).
Os primeiros reis de Israel seriam ungidos por este mesmo Samuel, por volta de 1100 a.c.. Houve profetas judaicos de vários tipos, alguns deles tendo sido cortesãos, embora críticos (Elias, Eliseu). O modelo mais comum, porém, é o do profeta contestatário da ordem vigente, praticando o proselitismo, por vezes de modo ambulante, fazendo vida igualitária em comunhão, produzindo objurgatórias violentas contra a podridão da vida urbana e os vícios dos poderosos, predizendo e apelando a uma intervenção divina regeneradora e castigadora dos ímpios opressores, por vezes com requintes extremos de crueldade (Amós, Isaías, Jeremias, Sofonias). O Livro dos Salmos é emblemático deste espírito. Ouçamos um pouco, quase à sorte:
“Senhor, porque te conservas à distância e te escondes nos tempos de angústia?
No seu orgulho, o ímpio persegue o infeliz; que ele seja apanhado na cilada que armou.
O pecador vangloria-se da sua ambição; o ganancioso blasfema e despreza o Senhor.
O ímpio diz, na sua arrogância: «Ele não me castigará! Deus não existe!» É só nisto que ele pensa.
Julga que os seus caminhos hão-de prosperar sempre, mas os teus juízos estão muito acima dele; ele despreza todos os seus adversários.
Diz em seu coração: «Jamais serei abalado; não hei-de cair na desgraça.»
A sua boca está cheia de maldição e mentira; na sua língua só há malícia e maldade.
Põe-se de emboscada junto aos povoados e esconde-se para matar o inocente; os seus olhos espiam o infeliz.
Escondido como o leão no seu covil, arma ciladas para assaltar o indefeso e, quando o apanha, arrasta-o na sua rede.
Abaixa-se, deita-se por terra e as suas garras caem em cima dos infelizes.
Depois, diz em seu coração: «Deus esquece-se e desvia o rosto para não ter de ver mais.»
Levanta-te, Senhor! Ó Deus, ergue a tua mão e não te esqueças dos miseráveis.
Porque há-de o ímpio desprezar a Deus e dizer no seu coração que Tu não castigas?
Mas Tu vês a angústia e o pesar, observas tudo e tomas essa causa nas tuas mãos.
A ti se abandona confiadamente o pobre; Tu és o amparo do órfão.
Quebra o braço dos ímpios e dos pecadores; castiga a sua maldade, para que ela desapareça.
O Senhor é rei para sempre; desapareçam os pagãos, da terra que lhe pertence.
Ouve, Senhor, o grito dos humildes; atende-os e conforta-os no seu coração.
Faz justiça aos órfãos e oprimidos; e que ninguém, neste país, volte a espalhar o terror.”
(Salmos, 10, Oração pelos oprimidos).
Este salmo é interessante por sugerir fortemente um conflito social que assume proporções de verdadeira guerrilha civil. A mágoa pela inação divina perante o sangue inocente derramado parece chegar a roçar a blasfémia revoltada, para logo retomar uma súplica desesperada. Não sabemos nada sobre quem foram as pessoas que fizeram chegar até nós este grito lancinante. Mas sabemos de muitas que passaram e continuam a passar por experiências semelhantes.
Os essenianos (séc. II a.c.-68) foram um movimento religioso comunitarista próximo do profetismo clássico, de que nos chegaram testemunhos já extra-bíblicos, por Flavius Josephus e Fílon de Alexandria. O cristianismo alimentar-se-á e fará reviver toda esta tradição, espalhando-a depois ecumenicamente por todo o mundo antigo.
Não temos testemunhos fiáveis sobre a vida de Jesus, mas tudo indica que ele e seus discípulos pregavem e praticavam o comunismo. Isso é particularmente evidente a partir da leitura do Evangelho de Lucas (porventura o que nos chegou menos adulterado) e dos Actos dos Apóstolos. Trata-se de um comunismo apenas ao nível do consumo, com bem salientou um dos expoentes do socialismo industrial progressista[xii]. O trabalho produtivo era encarado com o maior desprezo. O apelo lançado por este profeta era que se abandonasse a família e se alienassem todos os bens possuídos, a fim de colocar o produto em comum, com os novos companheiros, colhendo-se depois confiadamente, de forma itinerante, todos os meios de subsistência a partir da natureza ou de dávidas de ocasião. Ora, isto é nada menos que uma réplica anacrónica e espiritualizada da vida dos caçadores recoletores. Porventura com menos carga mística e escatológica, esta mesma sede de contestação e o apelo a viver, de forma mais simples e genuína, nas margens da sociedade estabelecida, ainda nos dias de hoje continuam a fazer-se sentir em amplos setores da juventude.
As mulheres e os mendigos, ao que parece, gozavam de autonomia e consideração, participavam nas refeições comuns e tinham voz aceite. Aliás, ao tempo, terá sido esse o maior escândalo provocado pela seita do nazareno. Até que – conforme resulta do confronto entre as informações disponíveis ligadas entre si com alguma lógica comum – Jesus terá entrado em Jerusalém à frente de uma multidão, praticado aí graves atos de rebelião armada, inclusive no Templo, pelos quais terá sido capturado e sentenciado à morte na cruz, decisão partilhada entre as autoridades judaicas e as da ocupação romana.
A partir do mito da ressurreição de Jesus, o culto cristão espalhou-se rapidamente por todas as cidades mediterrânicas. Primeiro entre as colónias judaicas, dando expressão ao seu messianismo, depois entre os gentios das classes urbanas mais desqualificadas. Era a fé da revolta desesperada dos humildes. A ressurreição e a vida eterna são as armas de quem parte para o combate com a certeza do martírio. Porém, o sucesso deste novel credo foi de tal ordem que começou muito cedo a ganhar adeptos entre elementos das classes mais altas, atormentados pela má-consciência. De pequenas seitas proletárias crípticas, passa-se a grandes congregações socialmente diversificadas. Os administradores dos bens coletivos destas comunidades (episcopi) passam a ter um interesse claro na moderação do seu incipiente discurso doutrinal, de forma a garantir a fluidez das doações pias das classes mais abastadas.
Dos grandes Padres da Igreja, nos primeiros séculos do crstianismo, eram clara e expressamente comunistas Justino, Tertuliano, Cipriano, Basílio, Gregório de Nazianzo, Jerónimo, Ambrósio, Asterius de Amasea, João Crisóstomo e Salviano. É certo que o eram com diferentes graus de convicção e, sobretudo, de consequência. Apareceram também os primeiros defensores doutrinais da riqueza e da propriedade (Ireneu, Clemente de Alexandria, Lactâncio). E, sobretudo, grandes mestres da ambivalência e do sofisma, de que o expoente máximo é Agostinho[xiii]. À medida que a Igreja se foi aproximando e congraçando com os restantes poderes tornou-se inabitual ouvir pregações revolucionárias dos seus ministros. A partir do primeiro concílio de Niceia (325), promovido pelo imperador Constantino, as coisas entraram definitivamente nos eixos.
Um comunismo ordeiro, bucólico e bem tolerado continuou a ser praticado nas ordens monásticas. O papel de veículo de expressão religiosa para a revolta social passou no entanto a ser assumido pelas diversas seitas heréticas ou notórios heresiarcas que se foram sucedendo ao longo de perto de mil e quinhentos anos[xiv]. A começar logo nos inícios do século IV com os donatistas e os circuncélios no norte de África. Vamos só aqui recordar mais alguns nomes: os carpocratas, os pelagianos, Scotus Erigena, os cátaros, os valdenses, os bogomilos, Arnaldo de Brescia, William de Occam, Marsílio de Pádua, Dolcino e os irmãos apóstolos, Jean de Meung, John Wycliffe, John Ball, os taboritas, Thomas More, Thomas Müntzer, Sebastian Franck, os anabatistas, Tommaso Campanella, os ranters, Gerrard Winstanley e os diggers, Jean Meslier, os shakers.
Entretanto, até aos dias de hoje, houve sempre vozes na Igreja oficial (após as cisões e a reforma, sobretudo na Igreja Católica) capazes de dizer aos ricos e poderosos coisas bastante desconfortáveis, escoradas nas escrituras[xv]. Houve sempre no seu seio quem sentisse necessidade de reviver a mensagem apostólica do cristianismo primitivo. E a Igreja não teria sido capaz de sobreviver até aos dias de hoje se não tivesse sido capaz de acolher, assimilar e dissolver essas sucessivas vagas regeneradoras, do franciscanismo à teologia da libertação.
No mundo ocidental, só a partir dos séculos XVII-XVIII é que as aspirações políticas passaram a expressar-se em linguagem mundana. E logo o comunismo passou então a ser defendido por ensaístas laicos como Denis Vairasse d’Allais, John Bellers, Morelly, Victor d’Hupay, Gabriel Mably e William Godwin. A “conspiração dos iguais” de Grachus Babeuf foi a tentativa de instaurar estas ideias por meio da sedição de um escol de revolucionários idealistas. A partir da revolução industrial entramos já na era do movimento operário e do socialismo utópico. O comunismo é agora um horizonte histórico que se integra programaticamente na luta social de massas. Nessa esteira chegariam Karl Marx e Friedrich Engels.
Na Antiguidade Clássica, as ideias comunistas estiveram também bem representadas. A nostalgia de uma Idade de Ouro ancestral ou a bem-aventurança de ilhas distantes em que se praticava o comunismo foram celebradas por Hesíodo, Platão, Heródoto, Píndaro, Jambulus, Teopompo de Quíos, Ovídio, Luciano e Séneca, que estavam no entanto longe de professar esse ideal político, tanto quanto sabemos. Pitágoras merece também aqui a sua referência, como fundador de academias que, em muitos aspetos, prefiguraram o ideal de vida monacal. Entre amigos todos os bens são comuns, foi o seu lema. Todavia, entre os não-amigos, estes amigos comportavam-se antes como uma sociedade secreta ao assalto do poder. Em registo satírico, Aristófanes ficcionou, na peça A Assembleia das Mulheres, um regime comunista e feminista, o que indicia fortemente que o comunismo (e a questão feminina) estava bem presente no debate ideológico e político da democracia ateniense.
Uma espécie de regime comunista aristocrático (eunomia) poderá ter existido em Esparta, sob inspiração do mítico Licurgo. Um regime deste tipo é aliás propugnado por Platão em A República. Em As Leis, porém, o filósofo propõe antes, sempre para a elite, um regime de propriedade privada igualitária. Por esta altura, em Atenas, vigorou um regime de recorte mais contemporâneo, em que a igualdade perante a lei (isonomia) se articulava com a desigualdade económica. Entre a inteletualidade grega que apoiava a equalização social, segundo o testemunho reprovador de Aristóteles, encontramos Fáleas de Calcedónia e o arquiteto e urbanista Hipodamo de Mileto. Tanto quanto podemos apreciar, a partir de citações e críticas de terceiros, não havia comunistas na escola filosófica da democracia ateniense, os sofistas. Mas na sua derivação cínica já encontramos defensores abertos do comunismo, como Antístenes e Diógenes de Sinope, que propugnavam a abolição da escravatura, o fim das distinções sociais e nacionais e a supressão parcial da propriedade privada.
O fenício Zenão de Cítio fez-se filósofo aderindo aos cínicos, fundando depois o estoicismo. Defendeu a abolição da família, da instrução, dos tribunais e do exército. Foi um filósofo estóico, Gaius Blossius de Cuma, quem se notabilizou por ser conselheiro de dois malogrados reformadores amigos da plebe: Tibério Graco, que tentou realizar uma reforma agrária em Roma, e Aristonico, que pretendeu, contra o império romano, sustentar a sua pretensão ao trono de Pérgamo numa autêntica revolução social, estabelecendo a Heliopólis (cidade do sol). Pouco sabemos dos ideais exprimidos nas grandes revoltas de escravos que se sucederam na Sicília e no sul de Itália, no II e I séculos a.c., lideradas sucessivamente por Eunous, Salvius e Spartacus. Foram três trágicas epopeias militares que, sem dúvida, marcaram o imaginário social por muitas gerações.
Sendo evidente a sobrerepresenção que temos hoje das tradições helénica e judaico-cristã nos testemunhos sobre a alvorada da civilização, há indicações que nos levam a crer que houve também revoltas e dissidências comunísticas em todos os outros locais em que se ergueram as sociedades de classes. Um caso exemplar é o movimento Mazdak, na Pérsia da dinastia sassânida (séculos V-VI). O islão primitivo estava também imbuído de um espírito igualitário e comunitário[xvi]. Um dos companheiros de Maomé, Abu Darr Al-Ghifari, abominava a riqueza e a procura do lucro. Foi o fundador do sufismo. E foi justamente um sufista turco, o Sheikh Bedreddin, quem pregando a comunidade dos bens, chegou a tornar-se ideólogo de uma grande insurreição camponesa nos inícios do século XV.
As revoltas camponesas igualitárias, hostis ao açambarcamento de terras e mulheres pelos ricos e poderosos, foram um fenómeno recorrente no Médio Oriente muçulmano. Foi o caso da insurreição de Abu Muslin que levou, em 750, à sucessão da dinastia califal dos Omíadas pelos Abássidas. Alguns destes movimentos eram animados por uma versão muçulmana do milenarismo, o regresso do Mahdi libertador, que livrará o mundo do erro, da injustiça e da tirania. A tradição mahdista manteve-se ao longo de toda a história do Islão. Em 869-883 deu-se a insurreição dos escravos negros (zendj) do Baixo Eufrates, que fundaram um Estado igualitário na região de Bassorá. Hamdan Qarmat liderou, no século IX, um movimeno coletivista que alastrou pela Arábia, Iémen e Síria, tendo conseguido manter por algum tempo um Estado comunitário no Bahrein. As comunidades aldeãs (djemaa) e as corporações de ofícios (sinf) foram refúgio de igualitarismo e comunitarismo em todo o período muçulmano clássico.
Sobre a China existe imensa informação disponível. Um sinólogo competente poderá compilar um volumoso dicionário com centenas de entradas sobre tradições de utopismo igualitarista e comunitário no império celeste. Não vamos aqui fazê-lo. Assumimos assim o ónus de um notório desequilíbrio eurocêntrico nesta narrativa, que neste caso não se deve a falta de registo, mas, pura e simplesmente, à nossa ignorância dele. O esteio principal da tradição comunitarista chinesa é a filosofia taoista. A expressão deriva de Tao Te Ching (Livro do Caminho e da Virtude), obra escrita entre 350 e 250 a. c. e atribuída a Lao Tzi, que não se sabe se foi uma personalidade real. Os taoistas são nostálgicos de uma Idade de Ouro fundada na cooperação e não na aquisição. Entre o seu acervo inteletual constam os conceitos de taiping (grande harmonia) e pingjun (igualação). Aproximadamente na mesma época viveu o filósofo confucionista Mêncio, que defendia o primado do povo sobre o soberano e descreveu aprovadoramente uma forma de comunismo agrário primitivo (jingtian). Da tradição budista, avulta o mito do advento do messias Maitreya, que deverá abrir uma era de harmonia e abundância.
Estes componentes doutrinais alimentaram diversos ciclos de revoltas camponesas igualitaristas e os propósitos reformadores utopistas de alguns letrados. Utopistas importantes foram Wang Fu (82-167), Zongchang Tong (179-220), Tao Yuanming (365-427), autor de A Fonte do Jardim dos Pessegueiros, Pao Ching-yen (405-466), Li Kou (1009-1059), Huang Zongxi (1610-1695) e Li Ruzhen (1763-1830). Foram notáveis reformadores de sentido socializante o usurpador Wang Mang (45 a.c.-23) e Wang Anshi (1021-1086). Eminentes revoluções camponesas foram a revolta dos Turbantes Amarelos e a da seita dos Cinco Alqueires de Arroz, no século III, que provocou o derrube da dinastia Han; a revolta capitaneada por Wang Xianzhi, no século IX, que provocou a ruína da dinantia Tang; as revoltas comunitaristas que assolaram a dinastia Song; novas revoltas camponesas que provocaram também a queda das dinastias Yuan (mongol) e Ming; finalmente a revolta Taiping (1851-1864), que chegou a estabelecer um Estado chinês dissidente, o “Reino Celeste da Grande Harmonia”, com capital em Nanjing.
Não deve aqui ficar sem menção o facto de que, em todas as épocas históricas e em todas as latitudes, quando os oprimidos não encontraram inspiração e alento numa doutrina religiosa ou num programa político determinado, as suas revoltas, quando armadas, assumiram um caráter que podemos abarcar no conceito de banditismo social com caráter localizadamente redistributivo[xvii]. Nesta matéria os casos são realmente inúmeros e não vamos aqui sequer dar exemplos.
O advento das sociedades de classe trouxe consigo uma instabilidade social permanente, propulsionado em primeira instância pela ânsia acumuladora das classes possidentes. Estas nunca estão satisfeitas e crêm sempre ser sua missão abrir os caminhos do futuro a novos golpes de esbulho e rapina. Contra isso, as classes oprimidas vão opondo uma resistência constante e, de forma esporádica, mas tenaz, iniciativas coletivas reintegradoras, de resultados, até aqui, sempre escassos e transitórios. Por fim, só a dissolução das classes sociais poderá colocar um fim a este incessante movimento social de aparência mecânica, de vai e vem, exclusivo e inclusivo.
Bento de Jesus Caraça exprimiu esta ideia de forma genial, com recurso à sua imaginação matemática, e da forma um tanto críptica que então se exigia, da seguinte maneira:
“No seio das sociedades humanas manifestam-se permanentemente dois princípios contrários – o individual e o colectivo – de cuja luta resultará um estado superior dessas mesmas sociedades, em que o primeiro princípio – o individual – chegado a um elevado grau de desenvolvimento, se absorverá no segundo”[xviii].
Hoje, como ontem, uma consciência jovem que se interrogue com desprendimento, empenho e intransigência sobre a condição social do seu tempo, é impelido com uma força compulsiva irresistível para um horizonte comunista. Este pode até ser uma “ilusão”, como repetem os seus adversários. Mas não é menos, por isso, uma necessidade vital inelutável. E resta a explicar porque ela se impõe assim desta maneira recorrente.
A melhor teoria de que já tomei conhecimento sobre essa questão é a de que a longa permanência da espécie humana na Idade Paleolítica terá criado condições favoráveis à seleção natural de disposições altruísticas, igualitárias[xix] e, porque não, também, de partilha, com repugnância pela apropriação privada e a competição. Embora permaneçamos generalizadamente céticos quanto à transmissão genética de traços comportamentais, não deixamos de registar a ironia que constitui, depois de séculos em que nos martelaram a mente com a ideia de que a “natureza humana” era uma barreira ao socialismo, podermos afinal chegar à conclusão de que, na verdade, é o inverso que sucede: a natureza humana, conforme ela foi moldada culturalmente nos primórdios da humanidade, ao longo de dezenas de milhares de gerações, é um obstáculo… ao capitalismo[xx].
Não podemos debruçar-nos aqui sobre a questão da natureza humana, senão para dizer que ela não está, de forma alguma, encerrada. Nem a questão nem a própria natureza humana, que não é uma entidade fixa. Não é o anjo de Rousseau nem o demónio de Hobbes (que é na verdade de Tucídides). A hominização é um processo em curso. A natureza humana é um tornar-se[xxi], em que os desenvolvimentos culturais e biológicos se foram dando ímpeto reciprocamente, de forma coevolutiva. Somos assim uma obra em aberto. Mas não uma página em branco, em que se possa inscrever expeditamente o que quer que nos seja socialmente imposto, como uma leitura apressada da sexta tese sobre Feuerbach poderia deixar supor. A nossa dimensão noética não é infinitamente elástica. Vivemos, aliás, um tempo em que se acumulam os sinais de que a aceleração infrene dos ciclos de rotação capitalista, com a consequente imposição de uma rápida obsolescência das tecnologias e do imaginário mercantilizado, a desestabilização constante das referências estruturantes de emprego, família, residência, cognitivas, éticas e de padrões de sociabilidade, enfim, tudo aquilo a que se associa normalmente o nome de pós-modernidade, provocaram já uma rotura profunda nas capacidades humanas de adaptação.
A grande novidade da revolução comunista, como ela se concebe na nossa época, é que ela é agora ecológica e antropologicamente conservadora. Em lugar de lutar pela criação de um “homem novo”, a ideia é bem antes a de salvar o velho. Para isso, far-se-á apelo aos hábitos de solidariedade, cuidado e auxílio mútuo que são o património imorredouro das lutas populares contra todos os ciclos de agressão crematística que se foram sucedendo ao longo das eras.
O triunfo definitivo das forças que querem impor o destaque e a supremacia social dar-se-á com a emergência de uma nova espécie a partir do tronco do homo sapiens, vindicando assim Nietzsche. Teremos, enfim, o super-homem, novo senhor do universo conhecido. Se isso suceder, o longo rosário histórico de crimes das classes dominantes estará sanado retrospetivamente. Passará a fazer parte da história natural, onde não há crime, direito ou justiça. Se vencerem, de forma duradoura, as forças que se opõem àquelas, pugnando pela unidade solidária da espécie humana e no seio das comunidades em que esta está repartida, o resultado não pode ser senão a sociedade sem classes, o comunismo.
Entretanto, a única certeza é a luta. Estamos aqui a falar de um horizonte temporal que se pode situar a dezenas, a centenas, a milhares, ou, na primeira hipótese, seguramente (salvo alguma automanipulação genética de resultados imprevisíveis), a milhões de anos de distância. Na alternativa assim colocada, penso que são as forças que referi em primeiro lugar as que têm mais razões para sentir ansiedade.
O espetro ameaça a Europa
O comunismo não é apenas um anseio de almas generosas, porventura orgulhosas ou embriagadas por um sopro anímico de re-ligação ontológica. O comunismo é também um pesadelo sempre presente, como terrífica sombra perseguidora, na vida de homens de poder bem prosaicos, por vezes brutalmente materialistas. Quando Karl Marx escreveu, a abrir o Manifesto do Partido Comunista:
“Anda um espectro pela Europa – o espectro do Comunismo. Todas as potências da velha Europa se aliaram para uma santa caçada a este espectro, o papa e o tsar, Metternich e Guizot, radicais franceses e agentes da polícia alemã”[xxii].
não estava, de modo algum, a usar uma flor de retórica. As classes possidentes e dirigentes sentem permanentemente este calafrio na nuca, embora quase nunca o deixem registado nas suas reflexões. Do seu ponto de vista, esse é um interdito que se esconjura, ou se trata explicitamente como sendo a suprema aberração social, mas que não deixa de lhes ser teimosamente presente. Não é sem um surdo sentimento de culpa que se acumulam individualmente riquezas produzidas pela sociedade. A ostentação desbragada com que se repele esse inconfessado remorso não é afinal senão uma contínua fuga em frente, de geração em geração, face à maldição pressentida do comunismo.
As sociedades de classes foram-se sucedendo historicamente, segundo diversos padrões de organização da produção e os correspondentes modelos de apropriação do produto. Vivemos presentemente em sociedades capitalistas, em que os produtores foram separados dos meios de produção e de subsistência, sendo obrigados, para assegurar a sua manutenção em vida, a vender a sua força de trabalho aos detentores dos meios de produção[xxiii]. Em finais do século XVIII, na Europa Ocidental, o processo de produção começou a ser industrializado e submetido integralmente aos imperativos mercantis[xxiv].
O pauperismo extremo causado pela revolução industrial deu origem ao movimento operário socialista, que veio trazer uma extraordinária revivescência ao velho “espectro”. As grandes massas laboriosas, escravas da mecanização, trabalhando doze ou catorze horas por dia, homens, mulheres e crianças, acantonadas em bairros miseravelmente insalubres, trouxeram à condição humana um novo sentido de epopeia redentora. Os que nada têm, podem bem vir a ser tudo. A rebelião luddita lavrou na Inglaterra central, entre 1811 e 1816. Em Vienne (Auvergne-Rhône-Alpes) estalaram motins operários em 1819. As grandes revoltas dos trabalhadores da seda (canuts) em Lyon, com tomada completa da cidade, ocorreram em 1831 e 1834. Neste segundo evento, os republicanos de Paris e Saint-Étienne ergueram barricadas de solidariedade. Os tecelões da Silésia (região da velha Prússia hoje integrada na Polónia) intentaram também um trágico levantamento em 1844, cantado por Heinrich Heine.
A organização económica e social do movimento operário começou a tomar forma, com a constituição de sindicatos, associações mutualistas e de socorros mútuos, cooperativas, jornais, clubes de instrução e recreio, comités de correspondência. No plano político surge o movimento cartista (People’s Charter Movement, 1838-56) em Inglaterra e numeroras sociedades secretas, sobretudo em França, Alemanha, Bélgica e Suíça. Circulavam por estes meios as ideias de autores socialistas, por vezes ditos “utópicos”, como Thomas Hodgskin, Robert Owen, William Thompson, Charles Fourier, Saint-Simon, Étienne Cabet, Louis Blanc, Pierre Leroux, Philippe Buchez, Constantin Pecqueur, Pierre-Joseph Proudhon, Wilhelm Weitling, etc.. No plano da ação, merece aqui destaque a atividade conspiratória destemida e incansável de Louis-Auguste Blanqui, que recebera o testemunho de Babeuf, via Philippe Buonarroti.
1848 foi um ano de revoluções em grande parte da Europa. Em Paris, porém, estava ainda fresca a implantação da II República, em fevereiro, quando estala o levantamento operário de 23 de junho. Durante três dias a capital francesa é palco de ferozes batalhas de rua, até que que a insurreição é afogada em sangue por 120.000 soldados comandados pelo general Cavaignac. Foi o trampolim para a chegada plebiscitária ao poder imperial de Napoleão III.
Mas 1848 foi um ano revolucionário sobretudo por ter sido o da publicação do Manifesto do Partido Comunista de Karl Marx e Friedrich Engels. Trata-se de uma obra-prima absoluta do panfletismo político, que serviria de referência a todo o movimento revolucionário durante gerações. Os dois autores tinham travado amizade quatro anos antes e o seu entendimento inteletual logo começou a dar resultados fulgurantes, em obras que, aliás, na altura permaneceram inéditas. Teses sobre Feuerbach de Karl Marx (1845) esboça genialmente uma nova conceção do conhecimento e da ação transformadora do homem em sociedade. Com A Ideologia Alemã, concluído em 1846, os dois amigos delinearam uma nova conceção da história humana, que viria posteriormente a ser cunhada com o rótulo de materialismo histórico. Toda uma imensa revolução epistemológica, cultural e política. Exilado da Prússia natal, expulso de França e da Bélgica, apátrida, Karl Marx fixa residência em Londres em 1949, onde, vivendo excruciantes dificuldades pessoais, começou a coligir materiais para a escrita de O Capital.
O marxismo abriu a História ao conhecimento científico dos próprios que a fazem. Ninguém é fautor das circunstâncias em que veio ao mundo, mas a todos será dada a possibilidade de conhecer rigorosamente essas circunstâncias e, consequentemente, a capacidade de agir sobre elas de uma forma esclarecida, intencional e direcionada. A vida social da humanidade deixará um dia de ser regida pelo tumultuoso entrechoque de forças egoístas cegas. Poderá ser objeto de uma intervenção consciente, culminando na tomada em mãos do seu próprio destino pela coletividade democraticamente organizada[xxv].
Caberá ao proletariado a missão histórica de abir estes horizontes novos à humanidade, pois que só ele é uma classe dotada de grilhetas radicais, uma classe que não poderá libertar-se a si própria sem libertar simultaneamente, e para sempre, a vida social da multimilenária opressão e exploração do homem pelo homem, que são os fautores de toda a opacidade, alienação e inversão ideológica. A boa nova é assim anunciada aos simples trabalhadores. O movimento operário deve fundir-se com o socialismo mais avançado, para assim, na luta, se temperar um instrumento de transformação social imparável, que franqueará finalmente, de par em par, o reino da liberdade, autodeterminação e plena realização humana. O marxismo é congénita e irremissivelmente constituído por esta tensão entre ciência e profetismo revolucionário.
Marx e Engels tornaram-se ambos comunistas por volta de 1842-43, antes de se conhecerem, antes de formularem conjuntamente a conceção materialista da história e antes de o primeiro ter iniciado os seus estudos sistemáticos de economia política, a “anatomia da sociedade civil”. É insustentável pretender que tenham deduzido logicamente a necessidade do advento de um modo de produção comunista ao fim de aturados e desapaixonados estudos científicos, como é evidente para quem quer que tenha lido algumas dezenas de páginas de O Capital que elas estão percorridas por uma intensa revulsão moral contra a exploração do homem pelo homem. Certas coisas não mudam. Melhor, repetem-se, de forma transfigurada. Os fundadores do marxismo são ainda, sem dúvida, profetas rebeldes na tradição bíblica[xxvi], como aliás muito bem o entenderam, sem deixarem de os seguir, Walter Benjamin e Ernst Bloch.
Marx adquiriu finalmente uma nova pátria, em setembro de 1864, com a fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), a que assistiu, em Londres, na St. Martin’s Hall. Por incumbência do seu conselho-geral, onde tinha assento, redigiu os estatutos e a programática Mensagem Inaugural da novel associação. Começava a tomar forma a consigna do Manifesto “proletários de todos os países, uni-vos!” e nascia um novo lema: a emancipação da classe operária será obra da própria classe operária. A classe trabalhadora deveria organizar-se económica e politicamente, como meio de autodefesa e com vista a abrir caminho ao fim da escravatura salarial e da exploração capitalista.
Em 1869 foi fundado em Eisenach o Partido Social-Democrata dos Trabalhadores da Alemanha. Marx era amigo e mentor dos seus fundadores Wilhelm Liebknecht e August Bebel. Foi o primeiro partido político de inspiração claramente marxista e, depois de algumas vicissitudes, haveria de exercer grande influência no movimento operário internacional. O congresso da A.I.T. realizado em Haia em 1872 aprovou a diretiva geral da criação de partidos operários em todos os países com vista à tomada do poder de Estado como condição indispensável à transformação socialista. Mas este congresso foi na verdade o canto de cisne da A.I.T., minado por graves dissensões internas entre “marxistas” e “bakuninistas”. A transferência do conselho-geral para Nova Iorque, longe do “campo de batalha”, foi uma eutanásia decerto calculada, que levaria ao definhamento e melancólica dissolução, quatro anos após, em Filadélfia, da que viria a ser conhecida como I Internacional. A realidade é que o movimento operário se achava então aturdido, exaurido e desmoralizado com os trágicos acontecimentos que se haviam vivido em Paris no ano precedente.
A carreira de Napoleão III terminou de forma abrupta, em 1870, com uma derrota ignominiosa em Sedan face ao exército prussiano, que prontamente assediou Paris. O Governo e a Assembleia Nacional franceses, depois de negociarem a capitulação com as forças invasoras, retiraram-se para Versalhes (onde Bismarck já se instalara triunfalmente), acompanhados de boa parte das elites citadinas, temerosas face às disposições revolucionárias e de resistência demonstradas pela plebe urbana. A cidade da luz está entregue a si própria. No momento em que a quiseram desarmar, sublevou-se, proclamando a Comuna de Paris. Foi o primeiro governo revolucionário da classe trabalhadora – a que se juntou alguma pequena-burguesia, nomeadamente escritores e artistas – em todo o mundo e a sua experiência continua a ser estudada, debatida e reverenciada até aos dias de hoje[xxvii]. A experiência durou setenta e dois dias, sendo estrangulada a sangue vivo pelas tropas versalhesas em finais de maio de 1871. Era o tempo das cerejas.
Em julho de 1889, Paris assistiu a duas conferências internacionais socialistas simultâneas e rivais. A delegação portuguesa, como outras, hesitou e acabou por assistir um pouco a ambas. Numa delas foi criada a Internacional Operária Socialista, vulgarmente conhecida como II Internacional, agrupando associações socialistas e trabalhistas essencialmente europeias, embora chegasse a ter secções nos Estados Unidos, Argentina e Uruguai.
Se a A.I.T. teve o seu centro de gravidade no eixo franco-britânico, a II Internacional deslocou-o mais no sentido continental. Um dos seus objetivos centrais era a promoção e defesa da paz entre a França e a Alemanha[xxviii]. Um grande peso doutrinal e político no seu seio veio a ser reconhecido ao partido alemão, onde a influência marxista estava mais consolidada. Agora denominado Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD, no acrónimo original), nele pontificava inteletualmente outro velho conhecido de Marx e, sobretudo, de Engels, o austríaco Karl Kautsky. A classe operária alemão era também, indiscutivelmente, a mais compacta e melhor organizada, mas a sua burocracia sindical sempre esteve muito pouco interessada em agitação política insurreicional. O marxismo serviu de cimento ideológico aglutinador de um poderoso movimento social e político, sem que lhe conseguisse injetar um ânimo verdadeiramente revolucionário. O certo, porém, é que muito rapidamente este modelo seria difundido por todo o continente europeu, e para além dele.
A paisagem política do socialismo francês era muito mais variegada, com marxistas (Jules Guesde, Paul Lafargue), blanquistas (Édouard Vaillant), possibilistas (Paul Brousse), republicanos radicais (Jean Jaurès), sindicalistas revolucionários (Fernand Pelloutier, Georges Sorel) e outras correntes menores. Diversas organizações coexistiram, a partir de 1878. A maioria delas viria finalmente a fundir-se, em 1905, sob a sigla de Secção Francesa da Internacional Operária (SFIO). Na Grã-Bretanha, a segunda metade do século XIX assistiu ao surgimento de um vigoroso movimento sindical (trade-unions) que, apesar de ter aderido à A.I.T. e aí alinhado com as posições de Marx, só viria a encontrar-se verdadeiramente com o socialismo a partir de 1885. E, ainda então, a influência marxista foi ténue no seu seio. Era bem mais marcante a ideologia reformista de Sidney e Beatrice Webb, difundida pela Sociedade Fabiana – assim crismada em homenagem ao general romano Quintus Fabius o “contemporizador”, conhecido por ter adiado o mais possível o confronto direto e frontal com as tropas cartaginesas de Aníbal – ou o esteticismo romântico do movimento arts & crafts, liderado por William Morris. Foi basicamente com estes afluentes doutrinais que viria a ser formado o Partido Trabalhista (Labour Party) em 1900[xxix].
A segunda metade da década de 1890 foi de retoma para a economia capitalista. Embora isso possa hoje fazer-nos sorrir, logo surgiram então vozes ponderosamente graves decretando a “crise do marxismo”. Edouard Bernstein, peso pesado do SPD, também ele algum tempo amigo e confidente de Engels, resolveu aproveitar o ensejo para propor uma “revisão” doutrinal à social-democracia, de modo a compaginá-la com o que era já, na verdade, a sua prática efetiva na Alemanha. Após uma vigorosa troca pública de argumentos, a social-democracia alemã ficou dividida em três correntes: uma abertamente revisionista, que propugnava um reformismo social gradualista; uma ala central “ortodoxa”, que mantinha fidelidade oficial ao marxismo mas com um entendimento do mesmo de sentido claramente evolucionista; finalmente, uma fação revolucionária, onde se destacavam a polaca Rosa Luxemburgo, Karl Liebknecht, Clara Zetkin e Franz Mehring.
No limiar do século XX havia partidos socialistas com uma direção formada e com alguma expressão de massas na Bélgica, Holanda, Itália, Suíça, Áustria, Irlanda, Suécia, Dinamarca, Finlândia, Rússia, Polónia, Roménia, Espanha, Argentina e E.U.A.. A partir dos E.U.A., sobretudo por intermédio do notável editor de Chicago, Charles H. Kerr, o marxismo seria rapidamente introduzido no Canadá, Austrália/NZ, Japão e China. A formação da direção e quadros daqueles novos partidos no molde social-democrata era feita à base do que mais tarde viria a ser apodado de “marxismo da II Internacional”. Do marxismo retinha uma versão esquemática do materialismo histórico, a teoria do valor e a noção de luta de classes, acrescentando-lhes alguns tópicos do evolucionismo darwiniano e do positivismo cientificista que se bebiam no ar dos tempos. Este composto doutrinal teve a sua expressão mais acabada no Programa do SPD aprovado no seu congresso de Erfurt, em 1891, publicado depois em dezasseis línguas, acompanhado do comentário oficial de Karl Kautsky. Era também uma referência a revista teórica do SPD Neue Zeit, muito lida nos círculos onde se concentrava então (p. ex. em Zurique) a emigração política da Europa de Leste e Balcãs[xxx].
Pelos finais do século XIX, nuvens de guerra começaram a adensar-se no horizonte, entre outras razões por rivalidades latentes na distribuição e redistribuição de colónias ultramarinas entre as velhas e novas potências europeias. Repetiam-se os “incidentes” militares, perfilavam-se as alianças, escalava o rearmamento, tudo sob o esconjuro jurado e repetido da Internacional Socialista. A revolução russa de 1905, sobrevinda após uma breve guerra interimperialista no extremo-oriente, veio trazer um novo sopro de radicalidade à internacional operária. O seu congresso de 1907, realizado em Estugarda, contou com a presença dos independentistas indianos Virendranath Chattopadhyaya e Bhikhaiji Cama. Foi aí adotada por unanimidade uma vigorosa resolução anticolonialista. O congresso extraordinário de Basileia da Internacional Socialista, realizado a 24 e 25 de novembro de 1912, foi mais longe. Aprovou por unanimidade um Manifesto sobre a Guerra, denunciando os seus objetivos, exortando os operários de todos os países a travar uma luta decidida pela paz. Caso a guerra rebentasse ainda assim, o Manifesto recomendava que se aproveitasse a crise económica e política que dela inevitavelmente decorreria para realizar a revolução socialista.
Helas, quando a guerra rebentou efetivamente, no meio de um ensurdecedor clamor patrioteiro, todos os partidos socialistas dos países beligerantes (à exceção de uma parte dos russos e do Partido Socialista da Sérvia) capitularam imediatamente, sem qualquer hesitação, aprovando os créditos de guerra e alinhando incondicionalmente na “sagrada aliança” conduzida pelas suas classes dirigentes. A formidável voz antiguerra de Jean Jaurès foi silenciada a tiro, nas vésperas da declaração das hostilidades. A II Internacional experimentou um colapso total e ignominioso nesse preciso dia 4 de agosto de 1914.
A Grande Guerra de 1914-18 foi uma experiência abolutamente devastadora para quem a viveu. Nunca uma guerra europeia tinha atingido sequer algo que se aproximasse deste nível de morticínio industrializado, de horror continuado e inútil, de incrível e absurda brutalidade. Para os socialistas que se bateram consequentemente até ao fim contra a abertura das hostilidades e que tinham bebido algumas noções teóricas sobre a estrutura e dinâmica do imperialismo, tornou-se uma evidência dificilmente disputável que o capitalismo tinha os seus dias contados. Era um fardo monstruoso que arrastava a humanidade para a barbárie total e tinha de ser abatido decididamente e sem demora. A revolução socialista era uma questão da ordem do dia, uma urgência absoluta. Era esse o espírito reinante na ala esquerda da conferência de socialistas antiguerra realizada na cidade suíça de Zimmerwald, de 5 a 8 de setembro de 1915. O império russo enviou uma delegação de peso, multipartidária, em que se incluiam Vladimir Lenine, Grigory Zinoviev, Leon Trotsky, Karl Radek, Pavel Axelrod, Julius Martov, Viktor Chernov e Mark Natanson.
NOTAS
*Ângelo Novo (n. 1961) é um pesquisador e ensaísta independente português, editor da revista eletrónica ‘O Comuneiro’. Foi advogado, jornalista, cineclubista e tradutor. Foi ainda redator ou colaborador permanente em diversas revistas culturais, literárias e de intervenção política, designadamente ‘Vértice’, ‘Última Geração’ e ‘Política Operária’. É autor de O estranho caso da morte de Karl Marx, Edições Mortas, Porto, 2000, para além de outras obras publicadas em poesia e ficção. Os seus escritos principais podem ler-se em linha na sua página pessoal na rede.
[i] O site Cem Flores tem reproduzido uma séria de artigos publicados n`O Comuneiro. Recomendamos também o livro “O estranho caso da morte de Karl Marx”, de Ângelo Novo, cujo artigo que dá nome à obra pode ser acessado aqui: http://www.ocomuneiro.com/angelonovo/OEstranhocaso.html
[ii] V. Jean Chavaillon, A Idade de Ouro da Humanidade, Campo das Letras, Porto, 2003.
[iii] V. Friedrich Engels, “Quota-parte do trabalho na hominização do macaco”, in Marx e Engels, Obras Escolhidas em três Tomos, Tomo III, Edições Avante!, Lisboa, 1985 (tradução de José Barata-Moura). É absolutamente espantoso o triunfo que a abordagem materialista deste texto de 1876 obteve, face aos resultados das investigações arqueológicas mais recentes. Leia-se, Chris Harman, “Engels and the Origins of Human Society”.
[iv] André Leroi-Gourhan, Os caçadores da pré-história, Edições 70, Lisboa, 1995, p. 105.
[v] Marshall Sahlins, Stone Age Economics, Routledge, London-New York, 2017.
[vi] Esta aliciante teoria foi exposta em Christopher Boehm, “Egalitarian Behavior and Reverse Dominance Hierarchy [and Comments and Reply]”, Current Anthropology, Vol. 34, N.º 3 (Jun., 1993), pp. 227-254.
[vii] Gordon Childe, What happened in History, Penguin Books, Londres, 1982, p. 55 e ss..
[viii] V. Marcel Mauss, Ensaio sobre a Dádiva (introdução de Claude Lévi-Strauss), Edições 70, Lisboa, 2001 [1923]. As especulações de Mauss sobre o potlatch foram reconsideradas, com mais sólidas evidências, por Maurice Godelier em O Enigma da Dádiva, Edições 70, Lisboa, 2000.
[ix] Eleanor Leacock, “Introduction to Origin of the Family, Private Property and the State, by Frederick Engels” , p. 21 e ss.. A coincidência histórica entre a dissolução da comunidade gentílica do neolítico e a subjugação da mulher é outro triunfo de Friedrich Engels, vindicado pelas investigações antropológicas atuais.
[x] Citado por Gordon Childe, ob. cit., p. 107.
[xi] Gérard Walter, As origens do comunismo. Judaicas, cristã, gregas, latinas, Edições 70, Lisboa, 1976, p. 9.
[xii] Karl Kautsky, Foundations of Christianity, Socialist Resistance, London, 2007 [1908], p. 167 e ss..
[xiii] Gérard Walter, ob. cit., p. 93 e ss..
[xiv] Para a época medieval, leia-se Norman Cohn, Na senda do Milénio. Milenaristas revolucionários e anarquistas místicos da Idade Média, Presença, Lisboa, 1981. Esta obra, de leitura compulsiva, é toda ela animada por um propósito de tese antimarxista, que faz duvidar um tanto da sua honestidade inteletual. Para uma exposição mais benévola, v. Max Beer, História do socialismo e das lutas sociais, Centro do Livro Brasileiro, Lisboa, s/d, p. 131-290.
[xv] Vem aqui à memória o nosso Santo António (1191-1231), hoje bonacheirão casamenteiro das noivas de Lisboa, com a sua tonsura, halo e expressão seráfica, mas que foi um intrépido e inflexível desafiador das mais altas esferas da sociedade do seu tempo. Isso mesmo veio recordá-lo um recente filme de Antonello Belluco intitulado “António, o Guerreiro de Deus”, que infelizmente está longe de ser uma obra artisticamente conseguida.
[xvi] V. Jean Chesneaux, “As tradições igualitárias e utópicas no Oriente”, in Jacques Droz (direção), História Geral do Socialismo, Vol. 1, Livros Horizonte, Lisboa, 1976.
[xvii] Sobre o banditismo social, o tratamento mais cuidado e esclarecedor é o de Eric Hobsbawn, Bandits, Abacus, London, 2001. Ler também, do mesmo autor, Primitive Rebels, W.W. Norton & Co., New York-London, 1959.
[xviii] Bento de Jesus Caraça, “A cultura integral do indivíduo – problema central no nosso tempo”, conferência realizada a 25 de Maio de 1933 a convite da União Cultural «Mocidade Livre». A ler e reler sempre, como das páginas mais fecundas e originais do marxismo português.
[xix] Sobre esta matéria, leia-se Christopher Boehm, Hierarchy in the Forest: The Evolution of Egalitarian Behavior (aguardar alguns segundos pelo “descarregamento”), Harvard University Press, 1999, p. 197 e ss.. Deve aqui ser realçado que este autor, fervoroso democrata igualitário, não acredita que o projeto comunista seja realista, considerando-o contrário à natureza humana, que é, a seu ver, inapelavelmente hierárquica, embora possa ser trabalhada culturalmente no sentido de uma hierarquia de dominação invertida, por uma coligação vitoriosa dos inferiores. Embora cite o conceito, não se dá conta de que é precisamente isso a ditadura do proletariado. Não se percebe bem porque ele espera que a hierarquia de dominação invertida possa ser estabilizada para o duradouro exercício da democracia, mas não o possa ser para o comunismo.
[xx] Na verdade, um defendor do capitalismo sem freio tão estrénuo e qualificado como Friedrich Hayek manifestou esta mesma “preocupação”, numa das suas últimas obras, The Political Order of a Free People (1979). Nesse mesmo ano, também o “sociobiólogo” E. O. Wilson considerou o altruísmo puro entranhado na espécie humana um “inimigo da civilização”. V. Gerald Gaus, “The Egalitarian Species”, p. 5 e ss.. A abordagem evolucionista da cultura e das conceções de moralidade social é hoje em dia um discurso científico generalizadamente aceite como “mainstream”. V., p. ex., Peter J. Richerson and Robert Boyd, Not by Genes Alone: How Culture Transformed Human Evolution. Chicago: University of Chicago Press, 2005; Christopher Boehm, Moral Origins: Social Selection and the Evolution of Virtue, Altruism, and Shame. New York: Basic Books, 2012; Kevin N. Laland, Darwin‘s Unfinished Symphony: How Culture Made the Human Mind. Princeton: Princeton University Press, 2017.
[xxi] V. Marshall Sahlins, The western illusion of human nature, Prickly Paradigm Press, Chicago, 2008, p. 107.
[xxii] Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista, Edições Avante!, Lisboa, 1975, p. 57. Magnífica edição dirigida, prefaciada e anotada por Vasco de Magalhães-Vilhena, com traduções de Álvaro Pina.
[xxiii] Um retrato histórico vívido e esclarecedor deste processo de “acumulação originária”, com especial enfoque na subalternização da mulher e seu confinamento à tarefa de reprodução da força de trabalho, pode ser encontrado em Silvia Federici, Calibã e a Bruxa, Editora Elefante (tradução do Coletivo Sycorax), 2017.
[xxiv] Sobre esta matéria, a obra clássica é Karl Polanyi, A Grande Transformação, Edições 70, Lisboa, 2012 [1944], agora disponível numa excelente edição em língua portuguesa.
[xxv] Estas ideias viriam a ser expostas sistematicamente em Friedrich Engels, Do socialismo utópico ao socialismo científico, Edições Avante!, Lisboa, 1975 [1880].
[xxvi] Como é sabido, Karl Marx descendia, por via paterna e materna, de duas extensas linhagens de rabinos judaicos. Mas o mundo dá muitas voltas, não tendo sido seguramente por essa via que lhe chegou o testemunho do profetismo. Foi por via da absorção da filosofia idealista alemã, particularmente da grande teleologia hegeliana do espírito, “invertida” depois em sentido materialista. Max e Engels manter-se-iam toda a vida fiéis aos seus ideais de juventude, contra o assédio e o escárnio do filistinismo ambiente. Ora, esses ideais foram cunhados de forma indelével no molde ontológico dos “jovens hegelianos”. O melhor estudo que conheço sobre as raízes escatológicas da mundivisão marxista é Robert C. Tucker, Philosophy & Myth in Karl Marx, Transaction Publishers, New Brunswick, 3.ª edição, 2001 [1961]. Como concede o autor, na sua conclusão, “o pensamento mítico pode ser veículo da verdade moral”. Ou histórica, acrescentaríamos nós. Talvez um dia a moral seja história e a história moral. Só porque não se percebe muito bem porque seria ela infindamente imoral dando-nos simultaneamente sensibilidade para vê-lo e registá-lo, geração a geração, numa perpétua passagem em frente do longo testemunho da iniquidade. Quem viver verá.
[xxvii] Sobre a Comuna de Paris, suas realizações e vicissitudes, ainda hoje se lê com proveito o estudo elaborado por um participante, futuro apaixonado de Eleanor Marx, a filha mais nova do doutor vermelho do Soho: Prosper-Olivier Lissagaray, História da Comuna de 1871, Dinossauro, Lisboa, 1998 [1876]. Para um estudo contemporâneo exaustivo, leia-se William Serman, La Commune de Paris, Fayard, Paris, 1986.
[xxviii] V. George Lichtheim, Breve História do Socialismo, vol. II, Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1976, p. 182 e ss..
[xxix] V. Élie Halévy, História do Socialismo Europeu, Livraria Bertrand, Lisboa, 1975, p. 217 e ss..
[xxx] V. Franco Andreucci, “A difusão e a vulgarização do marxismo”, in Eric Hobsbawn (org.), História do Marxismo (Vol. 2), Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1989 (3.ª edição).