CEM FLORES

QUE CEM FLORES DESABROCHEM! QUE CEM ESCOLAS RIVALIZEM!

Cem Flores, Conjuntura, Cultura, Lutas, Nacional

A crônica deste novo governo foi feita há um século por Lima Barreto: é a crônica de todos os governos da classe dominante.

J. Levy em dois momentos: sorrisos para Dilma/Temer e afagos ao Posto Ipiranga de Bolsonaro.
O capital financeiro se impõe ao gestor de plantão para implementar seu programa.

Faz cinco anos que, para homenagear mais uma vez que o PT se ajoelhou para o capital financeiro, daquela vez a servidão de Dilma ao Bradesco com a nomeação de Joaquim Levy ao Ministério da Fazenda, publicamos o Sonetinho Bradesquiano. Por uma dessas farsas irônicas da história, não é que o eclético arroz de festa “Ex-Chicago Boy/Ex-FMI/Ex-Banco Mundial/Ex-Economista-Chefe do Planejamento de FHC/Ex-Secretário do Tesouro de Lula/Ex-Secretário da Fazenda de Sérgio Cabral/Ex-Ministro da Fazenda de Dilma”, agora é o Presidente do BNDES de Bolsonaro? E, dizem as más (ou boas?) línguas: ele é o Plano B caso o Ministro da Fazenda Paulo “Posto Ipiranga” Guedes volte para o buraco negro – educadamente chamado de “iniciativa privada” (mas claro que com dinheiro público)– de onde nunca deveria ter saído…

Naquele caso, a hipocrisia governamental pariu a paródia de um soneto. No atual, o vasto material acumulado em tão pouco tempo remete a uma crônica. O bom leitor dirá se a ironia continua sendo uma poderosa arma contra os governantes de plantão.

No texto abaixo, o leitor poderá confrontar feitos de governos já devidamente enterrados com os do atual ancião de pouco mais de quinze dias. Veja abaixo o elenco de atores da farsa (leiam os links!):

  • o Presidente Bolsonaro, seu amigão nomeado para uma sinecura na Petrobrás e seu blogueiro do coração, nomeado para um carguinho palaciano;
  • o Vice-Presidente Mourão e seu filho, Mourinho, agora nomeado para uma assessoria no Banco do Brasil, com o aval do Presidente do STF, Dias Toffoli;
  • o 01, Flávio Bolsonaro, e o seu próprio “faz-tudo”, seu “Posto Ipiranga”, o Queiróz;
  • o Ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, com seu caixa 2 da JBS (perdoado pelo Ministro da Justiça Sérgio Moro) e suas notas fiscais frias;
  • os deputados e senadores eleitos do PSL e seus mais do que merecidos xingamentos trocados uns com os outros;
  • o Ministro da Economia, Paulo Guedes (investigado pela Polícia Federal), suas privatizações e seu plano econômico de dez anos de crescimento sustentável (sic!);
  • o Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, com suas denúncias a um suposto “globalismo” e a defesa da soberania nacional, contra os imigrantes mas a favor da Boeing.

O elenco de apoio do pastelão, que supera a crônica política do grande Lima Barreto, é composto pelas seguintes nulidades, alçadas à luz do palco:

O texto a seguir reflete fielmente os originais, apenas com mudanças na sua organização e apresentação. As únicas intervenções feitas no texto original estão destacadas em itálico. Todo o restante do texto, portanto, foi integralmente escrito na aurora do século XX e já faz parte da crônica política do país faz mais de século.

 

Sátiras, Pistolões e Subversões[1]

Horácio Jonathan Hurê Acácio Costa Caminha de Lima Barreto[2]

(1915-1921, com uma pitada de 2019)

 

Como o país precisasse fazer economias, o novo titular da pasta dos Cultos resolveu fazer uma reforma completa em todos os ministérios. Possuía autorização do Presidente e pôs logo mãos à obra. Ele tinha que suprimir lugares.

Depois, com todo o método, começou a ver a economia que ia fazer. Somou bem e viu que a coisa ia poupar ao Tesouro cerca de mil contos. Ficou extremamente satisfeito e logo determinou que fosse publicado o seu espantoso plano de economias.

Estava salva a pátria; o país ia nadar em ouro, teríamos dez anos de crescimento sustentável, graças ao tino e à providência do dr. Guedes, ministro de Estado dos Negócios dos Cultos.

Os nossos financeiros e economistas são deveras interessantes, porque são médicos que não curam e vivem a discutir, enquanto o doente agoniza, sobre as virtudes do ópio. Eis porque me esfolam de impostos: para fazer mais ricos uns senhores já de si ricos.

Nesse meio-termo, chega a seu subordinado Castello Branco uma carta: “Caro. Peço-te com todo o empenho colocares aí o meu amigo Victor Nagem, portador deste. Sou sempre teu.”

Era do chefão. Que havia de fazer?

– Vossa excelência pode colocá-lo no seu gabinete e dar-lhe uma gratificação de cinquenta mil reais, mais do que o triplo do que ele recebe hoje.

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Exmo. sr. Presidente do Banco do Brasil.

Diz Mourinho que, a exemplo de muita gente e à vista da abundância de nomeações, deseja ser por vossa excelência provido no lugar de seu assessor no banco. Alega o requerente, em favor de sua pretensão, o seguinte:

  1. O peticionário é funcionário público … precisa de um reforço nos seus vencimentos, nada mais do que o triplo do que ele recebe hoje;
  2. Não conhece ele nada do mecanismo bancário;
  3. Ele faz parte do Centro do Ideal Nacionalista, do qual é 25º secretário;
  4. É republicano histórico.

Como pessoa de referência, pode ser uma boa ideia ir procurar o vice-presidente da República, que acaba de deixar a presidência do Clube Flor de Abacate ou, sobretudo, no que toca à competência do Supremo.

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O sr. Jair Bolsonaro, na Presidência da República, veio inaugurar costumes novos na nossa administração, desconhecidos até então e que só ele, anunciado pelos oráculos e inspirado pelos deuses, podia pôr em prática.

Seu filho Flávio – que promessa! Flávio ainda é muito moço e pode aprender, mesmo na Câmara dos Deputados, ops!, no Senado. Mas o deputado Pancrácio Lorenzoni– Deus dos Céus! –, o que pode aprender agora? Papagaio velho não aprende a falar.

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É bem possível que os nossos chefes políticos tenham razão, porquanto o que eles procuram é o bem e a felicidade de cada um… dos seus apaniguados.

Não há nenhum que não fique feliz com um gordo subsídio. E também não há bairro, não há esquina, não há rua, não há praça, em que não se topem às dezenas com mendigos.

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Quando Xandu foi ministro, era fazer-se uma revistinha, era publicar-se um jornaleco, estampando-lhe o retrato … e logo o dono do jornaleco ou da revista recebia das mãos dadivosas do grande ministro uma espécie de cheque, um “reservado”, um aviso, por intermédio do qual recebia o felizardo uma grossa maquia.

Uma instituição dessas não podia deixar de arraigar-se nos nossos costumes administrativos e manter-se neles como uma necessidade.

O governo passado, apesar de ser um governo de “viver às claras” em todas as irregularidades, continuou a cultivar a instituição. O governo atual, austero e econômico, parecia não estar disposto a continuar na sementeira dos “reservados”; entretanto, sabemos, e já foi publicado, não foi estranho à tentação de emiti-los já que trata-se de um ilustre publicista que lhe elogiou os méritos.

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No estado dos Caranguejos, com todo o cerimonial usado nessas ocasiões, se havia organizado o Partido Social Liberal, cujo programa consistia em obedecer ao poderoso chefe Ananias, ops!, Bolsonaro. O resto das ideias que o partido ia defender ninguém sabia.

O máximo serviço que ele está fazendo à República é mostrar que ela não precisa de senadores nem deputados com opinião. Não dizem que o nosso partido é composto de cafajestes e vagabundos?

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Eis aí o que se pode chamar alta política.

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De uns tempos a esta parte, vejo em todo o lugar falar-se em nacionalismo. Não abro um jornal que não venha um artigo, um tópico, uma alusão ao nacionalismo. A coisa me chamou a atenção quando se tratou do tal negócio dos aviões.

Vejo-me obrigado a ter uma opinião a respeito e, como os próceres da ideia não a definam por palavras ou por atos, vejo-me na contingência de fazer suposições.

Em certas ocasiões, penso que os nacionalistas desejem a proibição da entrada de estrangeiros no Brasil; mas, imediatamente, acho isto um absurdo. Não é possível tal coisa hoje, em que a concepção de humanidade vai cada vez mais dominando a de pátria. … o nosso nacionalismo de não querer entrada de estrangeiros era uma estreiteza e um regresso.

Esse nacionalismo está nos moldes das pequenas crenças do nosso tempo, em que se prega explícita ou implicitamente o amor do lucro, do ganho, da fortuna, devendo se alcançar esta seja como for.

Aí, não há brasileiro, nem chinês, há o espírito da nossa época, que é o de domínio da cobiça e da cupidez. É preciso extraí-lo da nossa inteligência como da dos demais povos e, então, a vida será outra.

É a gente da finançae todo o nosso nacionalismo contra ela é vão e ridículo. Para derrubá-la é preciso abalar e modificar ideais e sentimentos; e é coisa que nunca foi obtida por clubes de meninotes mais ou menos eloquentes e elegantes.

O mal-estar da nossa vida não vem da massa geral de estrangeiros, tão necessitada como a maioria dos nacionais; vem da injustiça das relações econômicas entre pobres e ricos.  

Cessem elas, que o mundo será um paraíso.

 

Sobre Lima Barreto

LIMA BARRETO, Afonso Henriques de – viveu de 1881 a 1922, na cidade do Rio de Janeiro.

Era filho de um tipógrafo e de uma professora primária, ambos descendentes diretos de escravos. Quando se casaram, o pai trabalhava como tipógrafo na Imprensa Nacional, emprego obtido graças a proteção de Afonso Celso, Visconde de Ouro Preto. O casal montou uma escola para meninas, chamada Santa Rosa, onde a mãe trabalhava como diretora. Tiveram quatro filhos, sendo Lima Barreto o primogênito.

A família começou a passar por dificuldades financeiras devido a problemas de saúde da mãe, que morreu em 1887, quando Lima Barreto tinha sete anos. O pai, viúvo com quatro filhos pequenos, teve que se dedicar a muitos empregos para poder sustentá-los. Nessa época, também publicou a tradução do Manual do Aprendiz Compositor, de Jules Claye. Com a proclamação da República, o pai, monarquista e correligionário do Visconde de Ouro Preto, perdeu o seu emprego na Imprensa Nacional. Foi nomeado, então, escriturário das Colônias de Alienados da Ilha do Governador, tendo permanecido nesse emprego até a sua aposentadoria por problemas mentais.

Sendo custeado pelo Visconde de Ouro Preto, padrinho seu, Lima Barreto passou a estudar, como interno, no Liceu Popular Niteroiense, até completar o ensino secundário. Aos quatorze anos, prestou os primeiros exames preparatórios no Ginásio Nacional, e no ano seguinte matriculou-se, como interno, no Colégio Paula Freitas, um curso anexo que preparava para a Escola Politécnica. Durante o tempo em que estudou nesse colégio, entrou em contato com o Apostolado Positivista, que frequentou por cerca de um ano.

Em 1897, após concluir os exames preparatórios no Ginásio Nacional, matriculou-se na Escola Politécnica. Lima Barreto, se até então não tinha tido problemas escolares, na Escola Politécnica não conseguiu sequer terminar o ciclo básico, reprovando muitas vezes em algumas disciplinas. Foi também durante esse período que participou, ainda que de forma tímida, do movimento estudantil, fazendo parte da Federação de Estudantes e colaborando com o jornal A Lanterna.

Em 1902, o pai começou a sofrer de problemas mentais, sendo afastado do emprego e posteriormente aposentado, mantendo-se no mesmo estado até a sua morte, em 1922. Lima Barreto teve que assumir a responsabilidade por sua família, composta de oito pessoas. As dificuldades financeiras agravaram-se, a família mudou-se para o subúrbio do Rio de Janeiro e ele deixou de frequentar a Escola Politécnica. Datam dessa época os primeiros indícios do alcoolismo que se manifestaria posteriormente.

Lima Barreto ingressou como amanuense na Secretaria da Guerra em 1903, com 22 anos. Trabalhava de 10 às 15 h, redigindo e copiando avisos e portarias ministeriais e permaneceu nesse emprego até 1919, sendo aposentado após inúmeros afastamentos do trabalho, resultados do alcoolismo e de duas internações psiquiátricas.

Durante sua vida como amanuense, entre a Secretaria e as rodas de amigos nos bares e cafés do centro da cidade, escreveu a maioria dos seus romances, passando, após a aposentadoria, a se dedicar mais intensamente à atividade jornalística.

Seu livro de estreia foi Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), consagrado pela crítica literária como um romance à-clef, em que retrata e satiriza a organização e o pessoal de um grande jornal da época. Triste fim de Policarpo Quaresma (1915), publicado inicialmente em folhetins, retrata a vida de um funcionário público nacionalista. Numa e a Ninfa (1915) é uma sátira política retratando tipos e costumes da época, de forma caricatural; Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919), uma crônica aos doutores e burocratas do início do século; e Clara dos Anjos (1923), publicado em folhetins da Revista Sousa Cruz, romance inacabado e publicado postumamente, que retrata o drama do preconceito racial.

Lima Barreto escreveu artigos para jornais menos prestigiados e para alguns de maior penetração. Tão mordaz nas suas críticas à grande imprensa, fazia sempre referências cordiais aos pequenos periódicos. Chegou a editar a Revista Floreal, nos fins de 1907. Após o fechamento dessa revista, foi colaborador, por três meses, da revista Fon-Fon. Em 1914, passou a colaborar no órgão da Confederação Operária Brasileira, A Voz do Trabalhador. 

A maior parte dos artigos e crônicas de jornal escrita por Lima Barreto foi publicada entre os anos 1918 e 1922. Nas Obras Completas do autor, essa produção está organizada nos livros BagatelasCoisas do Reino do Jambom, Feiras e MafuásMarginália e Vida Urbana.

No conjunto de suas obras, Lima Barreto tratou dos mais variados assuntos, desde os principais acontecimentos políticos e costumes do seu tempo até, por exemplo, do football, do qual era um crítico mordaz, chegando mesmo a criar uma Liga para combater esse esporte.

Fonte: http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/glossario/verb_b_lima_barreto.htm.

Ver também, para mais informações biográficas sobre Lima Barreto: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/06/23/cultura/1498244164_829345.html e  https://pt.wikipedia.org/wiki/Lima_Barreto_(escritor).

 

[1]O texto a seguir foi integralmente extraído da coletânea das crônicas inéditas de Lima Barreto, publicadas em livro pela primeira vez em 2016. Ver CORRÊA, Felipe B. (org.). Lima Barreto. Sátiras e Outras Subversões: textos inéditos. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2016.

[2]Junção de alguns dos pseudônimos com os quais Lima Barreto assinou as crônicas utilizadas neste texto e seu nome próprio: J. Caminha, Jonathan, Inácio Costa, J. Hurê, Horácio Acácio

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- 17/01/2019