Sobre a crise na Venezuela
A experiência histórica de luta proletária e comunista nos ensinou diversas vezes que a reação burguesa aumenta em ferocidade e violência a cada derrota que lhe é imposta pela luta do proletariado e das massas populares. A razão para isso está na redução (ou perda) de seus privilégios de classe, dos seus lucros, dos seus luxos, do seu mando sobre o aparelho do Estado burguês. Daí o ódio que a burguesia devota ao proletariado e ao povo pobre em geral. Ódio de mortos-vivos aos seus futuros coveiros… A recíproca do proletariado não é menos verdadeira. Ódio mortal ao regime de exploração burguês e aos seus patrões e luta por sua derrubada. Ódio que, se hoje ainda é difuso e instintivo, mais cedo ou mais tarde será coeso e organizado novamente.
Em suas clássicas análises sobre a luta de classes na França, por exemplo, Marx e Engels demonstram que tal luta tende a se tonar mais violenta ao passo que se torna mais decisiva. A insurreição de 1848, quando o proletariado, em armas, já possuía parte do poder de Estado, foi respondida pela burguesia com um banho de sangue “como não se tinha visto um igual desde os dias das guerras civis que iniciaram a decadência da República romana. Era a primeira vez que a burguesia mostrava até que louca crueldade de vingança é levada, logo que o proletariado ousa surgir face a ela como classe à parte, com interesses e reivindicações próprios. E, ainda assim, 1848 foi uma brincadeira de crianças perante a sua raiva de 1871 [Revolução e Comuna de Paris].”[i]
Além desses exemplos de Marx e Engels, já vimos essa ofensiva burguesa desesperada tomar todas as formas possíveis: guerra civil, golpes militares, intervenções militares imperialistas, massacres, terrorismo, ofensivas diplomáticas, locautes e boicotes, cercos econômicos, bloqueios financeiros, etc. As condições para isso são a manutenção do poderio econômico da burguesia – mesmo se despejada momentaneamente do poder político – e sua longa e complexa rede de relações internacionais com as burguesias dos demais países.
Esse processo se agrava e se torna mais complexo pelas contradições inter-imperialistas, quando estão em jogo importantes fontes de matérias-primas, de commodities, pelas quais distintos países/blocos imperialistas disputam controle ou acesso privilegiado.
Essa caracterização – ainda que em linhas demasiado gerais, exposta de maneira sumária – nos parece adequada como primeira aproximação para a crise atual da Venezuela, que oscila à beira de um confronto interno, de um golpe de Estado ou de uma intervenção militar, na qual as potências mundiais se posicionam em lados opostos: EUA e seus governos lacaios latino-americanos x China e Rússia, aos quais se alinharam México e Turquia.
A Venezuela vive, anos seguidos, uma crise econômica de proporções catastróficas: depressão econômica e hiperinflação; virtual falência do setor público, inclusive petroleiro; violência crescente; tudo isso causando desemprego, adoecimento, pobreza, miséria e fome para seus trabalhadores e a população pobre. Estima-se que mais de três milhões de venezuelanos tenham migrado para os países vizinhos nos últimos anos. A crise política também parece agravar-se continuamente nos últimos cinco ou seis anos, desde a morte de Chávez e a eleição de Maduro, assim como a ofensiva da burguesia.
Esse contexto é mais do que conhecido: crise/guerra econômica somada à (causando) crise/guerra política são ingredientes fatais para a popularidade de um governo. São também ingredientes indispensáveis para a preparação de sua derrubada.
Busquemos retomar os fatos dessa crise neste ano: em 10 de janeiro, Maduro toma posse para seu segundo mandato presidencial de seis anos. A Assembleia Nacional, eleita em 2016 e de maioria opositora, declara não reconhecer seu governo e, no dia seguinte, seu presidente, o deputado Juan Guaidó, se autodeclara (sic!) presidente interino. Esse movimento já havia sido anunciado pelo chamado Grupo de Lima – reunião dos presidentes de direita da América do Sul – e contava com o patrocínio do governo dos EUA.
No domingo, 13, Guaidó foi detido e, quase que imediatamente, solto. O governo afirmou que o procedimento foi irregular e prometeu a punição dos envolvidos. O campo se abria para a ofensiva da direita enquanto o governo parecia imóvel. Na luta de classes, assim como em certa interpretação da natureza, não há vácuo. Se um lado recua, o outro avança.
Com amplo e explícito apoio e orientação dos EUA, a oposição venezuelana marcou manifestação para o dia 23, na qual o seu pseudo-presidente interino seria auto empossado (sic!). A atitude do governo, reativa, foi estimular manifestações de apoio na mesma data.
Ato contínuo, os EUA reconheceram (sic!) o tal presidente interino, no que foram seguidos pelos seus serviçais governantes de Brasil, Colômbia, Peru (todos na Meca anual do capitalismo, em Davos, na Suíça), além de Chile, Argentina, Paraguai e outros. Os governos de Espanha, França, Alemanha e Reino Unido chantageiam exigindo a convocação de eleições em oito dias senão reconhecerão Juan Guaidó como presidente interino.
Mas seria Trump a dar a linha política para a ofensiva burguesa: “continuarei a usar todo o peso do poder econômico e diplomático dos Estados Unidos para pressionar pela restauração da democracia venezuelana”. Isso no documento oficial, escrito. Na entrevista que se seguiu, afirmou, em resposta a uma pergunta direta sobre a possibilidade de uso de força militar: “todas as opções estão na mesa”. Estimulado pelo americano, o vice-presidente do Brasil, defensor da ditadura, apressou-se para negar o que não havia sido afirmado. “O Brasil não participa de intervenção militar”, disse Mourão. A frase é daquelas que confirmam o que pretendem negar…
A reação não tardou – mas não estamos tratando da nova bravata de Maduro, de expulsar diplomatas americanos (isso após pedir diálogo “franco, direto e cara a cara” com Trump menos de uma semana atrás, propor no dia 24, um “acordo de paz nacional” e, no dia 25, dizer que está disposto a se encontrar com Guaidó, que recusou a proposta). A China foi quem marcou posição em defesa de seus investimentos na Venezuela, não reconhecendo o pseudo-presidente interino, ratificando a presidência de Maduro. A Rússia, na defesa de seus interesses militares, foi bem mais explícita: advertiu os americanos contra uma possível invasão, reafirmou seus interesses na Venezuela e alertou contra o “banho de sangue” que se aproxima.
No teatro de operações já estão relacionados, portanto, os atores: a crise econômica devastadora; o governo desafiado e enfraquecido; a velha e apodrecida burguesia venezuelana, do golpe de Estado de 2002; o imperialismo americano pronto para mais uma ação no “seu quintal”; os seus puxa-saco governantes da direita; e as potências mundiais que crescentemente desafiam os EUA e têm investido pesadamente na Venezuela, sob os aspectos comerciais, financeiros e militares, China e Rússia.
Mas em todas as análises – seja da imprensa burguesa ou “alternativa”, seja dos partidos “de esquerda” – têm faltado um ator. Justamente o mais importante. Os trabalhadores, os camponeses e a população pobre daquele país. Inclusive, é o que ressaltamos há quase cinco anos atrás, quando do acirramento da luta de classes no país após a morte de Hugo Chávez:
“Na luta de classes que se trava no país, nos parece essencial que o proletariado, a massa pobre, os comunistas, os sindicatos, as organizações populares tomem a liderança da mobilização popular e derrotem a ofensiva da burguesia e do imperialismo na luta, nas ruas. Somente dessa maneira conseguirão, além de derrotar o golpismo, empurrar o governo para frente, para aprofundar o processo bolivariano, ampliando as conquistas populares e o protagonismo dos trabalhadores do país.
…
Somente uma maior organização autônoma da classe operária, liderando as demais classes dominadas e a população pobre do país, forjada na luta de classes contra a reação, a burguesia e o imperialismo, poderá seguir adiante, rumo à construção do socialismo”[ii].
Os trabalhadores e as demais classes dominadas na Venezuela são as principais vítimasdos graves e generalizados problemas do país. De um lado o desemprego, de outro o achatamento dos salários pela hiperinflação. Enganados por um tal de “preços acordados” entre governo e empresários, no qual o governo finge que os controla e os empresários fingem que não os aumentam. Passando fome com o fim da rede pública de distribuição de alimentos, por um lado, e pelo locaute burguês, de outro. Vítimas da violência e da corrupção generalizada.
Nesse contexto é que se pode entender que uma parte dessa massa trabalhadora e de explorados tenha momentaneamente passado a reforçar as fileiras opositoras, enganadas com promessas vãs de fim da crise e recuperação do país. Sobre ela, no entanto, é que recairá o peso da exploração capitalista acentuada em uma eventual derrubada de Maduro, na busca implacável da velha burguesia venezuelana e seus aliados imperialistas por recuperar o tempo perdido e acelerar seus lucros.
Sem nenhuma pretensão de querer dar lições ao proletariado venezuelano, não será reforçando o governo reformista de Maduro que será possível fazer frente à ofensiva reacionária em curso, muito menos fazendo apelos dramáticos (como faz grande parte da “esquerda” brasileira) em defesa da democracia (burguesa), da manutenção do Estado Democrático de Direito (burguês) ou na esperança que as forças armadas (burguesas) garantam a manutenção de Maduro no poder.
Os governos reformistas (na Venezuela ou em qualquer canto do mundo) não são uma etapa intermediária para o socialismo, um caminho ou uma fase necessária para avançar rumo a revolução. São a forma concreta que as frações dominantes da burguesia encontram, principalmente nos períodos de ampliação da luta das classes exploradas, para manter sua dominação, confundindo e paralisando essas mesmas classes dominadas.
Como afirma o Partido Comunista da Venezuela (PCV) no trecho reproduzido abaixo, de outubro do ano passado:
“para conquistar e defender efetivamente a libertação nacional, essa ampla aliança deve ser encabeçada pela classe operária e o povo trabalhador da cidade e do campo, visando uma saída revolucionária da crisee a acumulação de forças para uma correlação operário-camponesa, comunera e popular favorável à superação histórica do sistema de exploração capitalista.
…
não há saída real das injustiças e das desigualdades próprias do capitalismo sem a implementação de um programa econômico, político, social e laboral que esteja concebido para o desenvolvimento das forças produtivas visando alcançar a libertação nacional, com o objetivo de tomada do poder político pelas classes exploradas e oprimidas da sociedade mediante uma genuína revolução proletária e popular”[iii].
Os trabalhadores, os camponeses e o povo venezuelano são os únicos que podem impedir, do ponto de vista dos interesses do proletariado, o golpe que se avizinha e, nesse processo, ocupando os espaços de poder que concretamente surgirem, avançar para assumir as rédeas do país das mãos de Maduro, seus aliados e seus militares, fazendo o país caminhar para um verdadeiro processo revolucionário, o único capaz de oferecer às massas democracia e soberania de fato.
[i]Introdução de Friedrich Engels à Edição de 1891 de A Guerra Civil em França, Karl Marx. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/marx/1891/03/18.htm.
[ii]https://cemflores.org/index.php/2014/03/26/sobre-a-situacao-atual-da-luta-de-classes-na-venezuela-2/.
[iii]https://prensapcv.wordpress.com/2018/10/06/por-desarrollo-soberano-y-la-derrota-del-imperialismo/.