Francisco Martins Rodrigues – Pode Haver um Sindicalismo Revolucionário?
Cem Flores
A crise do imperialismo, a ofensiva burguesa contra o proletariado e as demais classes dominadas (econômica, ideológica, legal e repressiva), as “reformas” trabalhistas e sindicais, os impactos das novas tecnologias no mercado de trabalho, o predomínio dos reformistas e oportunistas nas organizações sindicais, têm resultado em mais exploração dos trabalhadores, piora das suas condições de vida, precarização das suas relações de trabalho. E também numa redução da taxa de sindicalização no mundo.
Nessas condições atuais, para os trabalhadores e lutadores, algumas velhas perguntas dos primórdios do movimento operário retornam com imensa atualidade: o que é o sindicalismo? Ele de fato colabora com a luta dos trabalhadores pelo fim da exploração capitalista? Se sim, de que forma? Mais especificamente para os comunistas: como se deve atuar nesse movimento de massa?
Desde Marx e Engels, muitos marxistas se voltaram para essas questões, em diferentes épocas e contextos. Visando retomar esse debate, publicamos mais um texto do destacado dirigente comunista Francisco Martins Rodrigues (1927-2008)[1]. O texto é: Pode Haver um Sindicalismo Revolucionário?, de 1987, fruto de uma polêmica interna em sua organização, a Política Operária.
No ano passado, publicamos seu texto Notas sobre a linha sindical, de 1988, no qual, de forma breve, Francisco resgata os princípios e as análises leninistas e da Internacional Comunista, fundamentais para orientar a atuação comunista no movimento sindical.
Este também é o objetivo do texto abaixo reproduzido. Nele, Francisco realiza uma autocrítica e busca uma retificação da linha sindical de sua organização. Afastando-se da ilusão anarco-sindicalista e pequeno burguesa de um suposto “sindicalismo revolucionário”, busca demonstrar a forma específica que os comunistas podem e devem atuar nesse movimento e se relacionar com as massas trabalhadoras.
O risco maior a evitar, atesta Francisco, é o do isolamento dos comunistas, sua desvinculação das massas. Ora, isso exige uma linha política ajustada ao nível da luta em uma conjuntura concreta e um trabalho contínuo, firme e vigilante dos comunistas para “utilizar” e “fertilizar” as lutas econômicas com um viés revolucionário, para reforçar a independência de classe do proletariado e sua organização política, inclusive para além dos sindicatos. Isso, necessariamente, pressupõe uma batalha constante contra as direções e posições reformistas, oportunistas e pelegas, junto à massa de trabalhadores.
Ou, como orientam as Teses do VI Congresso da Internacional Comunista, de 1928, não citadas por Francisco, mas que coadunam com as teses do autor:
“A palavra de ordem ‘ir às massas’ (mesmo aquelas que seguem os partidos burgueses e as que seguem a socialdemocracia) não está de forma alguma retirada da ordem do dia, mas, pelo contrário, se coloca ainda mais no centro de todo o trabalho da Internacional Comunista.”
Nesse e em outros trechos desses documentos, destaca-se a tarefa de construir a unidade política e de ação do proletariado pela base, com profunda inserção dos comunistas na vida das massas, e em quaisquer de suas reivindicações. Evitando, ao mesmo tempo, a “subordinação absoluta ao aparelho sindical burocrático” e a “atenuação da crítica à direção reformista”, visando assim persuadir e convencer os trabalhadores dos limites do reformismo e do oportunismo, além do próprio sindicalismo[2].
Construir cotidianamente, também nos sindicatos, com e através das massas, a alternativa revolucionária. Essa é uma das principais tarefas dos comunistas, lembra-nos Francisco. Mesmo em conjunturas nas quais “não há nenhum poder revolucionário que sirva de modelo avançado ao movimento sindical”. Aliás, não é esta nossa situação no Brasil, com anos de hegemonia petista a deteriorar e enfraquecer o movimento sindical?
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Francisco Martins Rodrigues
Pode Haver um Sindicalismo Revolucionário?[3]
Texto publicado no Tribuna Comunista, boletim interno da Organização Comunista Política Operária, nº 11, de fevereiro de 1987, dedicado ao debate sindical.
A pergunta [Pode Haver um Sindicalismo Revolucionário?] poderá parecer estranha, uma vez que é isso que temos andado a defender todos estes anos. Mesmo assim, penso hoje que a palavra de ordem de um sindicalismo revolucionário e da criação de uma sindical revolucionária é esquerdista, não nos permitirá criar corrente e, pelo contrário, acentuará o isolamento e inatividade em que nos encontramos.
Julgo que o objetivo dos comunistas não é criar um movimento sindical revolucionário mas utilizar num sentido revolucionário a ação sindical, do mesmo modo que se utiliza a intervenção nas eleições, a luta contra a repressão, etc. Trata-se de enquadrar na política revolucionária do partido ações e organizações de massas que têm, pela sua própria natureza, objetivos limitados e uma carga inevitável de reformismo. Foi Lenine quem falou nos “traços reacionários” e na “estreiteza corporativa inevitável” dos sindicatos, “forma de organização elementar, inferior” das massas.
A noção de sindicalismo revolucionário, que se popularizou na nossa esquerda desde 1974/75, tem uma origem anarco-sindicalista, não comunista. Justamente porque os anarco-sindicalistas recusavam o papel de vanguarda do partido político da classe operária, eles tinham que atribuir aos sindicatos um carácter revolucionário, de instrumento central da revolução e da ditadura do proletariado.
É certo que nós nunca pretendemos que os sindicatos possam ter esse papel. Mas fomos atrás das teses do sindicalismo revolucionário, lançadas na crise de 75 pela pequena burguesia de esquerda — PRP [Partido Revolucionário do Proletariado], trotskistas, MES [Movimento de Esquerda Socialista], etc. — e nunca nos atrevemos no PC(R) [Partido Comunista (Revolucionário)] a analisar seriamente o problema. Seguimos o slogan que parecia mais radical.
Poderá dizer-se: mas não é obrigatório fazer uma ruptura com o sindicalismo reformista e colaboracionista da CGTP [Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses] e da UGT [União Geral de Trabalhadores]? Sem dúvida. Só que o aparecimento de uma corrente sindical que defenda os interesses económicos do proletariado, em demarcação dos da pequena burguesia, que desenvolva ações combativas contra a exploração patronal e a política antilaboral dos governos, que imponha a democracia operária contra os compromissos e a chulice dos quadros e dos aparelhos sindicais burocráticos — não passa por isso a ser revolucionária.
Se quiser ser uma verdadeira corrente de massas, capaz de pesar na luta de classes, terá que se manter nos limites do sindicalismo, ou seja, da luta para vender a força de trabalho em melhores condições. E isto é uma luta por reformas no sistema, não é uma luta pela revolução.
Caberá aos comunistas “fertilizar” esta luta limitada com os métodos revolucionários de ação de massas — plenários, greves, manifestações, choques, ocupações; mas se pretenderem fabricar novos sindicatos revolucionários, só conseguirão estreitar o seu campo de influência e deixar as massas operárias entregues aos caciques reformistas. Também a este respeito, Lenine foi taxativo, ao condenar a ideia de novos sindicatos, “bem limpinhos, inocentes de preconceitos democrático-burgueses” como “um imenso serviço prestado pelos comunistas à burguesia”.
Um dos argumentos a favor da criação de uma corrente sindical revolucionária é de que ela começará por agrupar a vanguarda e, em período de ascenso revolucionário, esta chamará as grandes massas para seu lado. Mas este argumento não me parece comprovado pelos factos. Quando a classe entra em ascenso revolucionário, os sindicatos, precisamente porque só são órgãos de luta econômica, adaptados à grande massa, tendem a ficar para trás. Foi o que se viu em 75. Quando entra na ordem do dia a luta pelo controle operário, pelas ocupações, pelo poder político, mesmo que seja uma fase ainda embrionária, a vanguarda cria órgãos novos com um cunho político, órgãos de tipo soviético.
Criarmos agora uma corrente sindical “revolucionária” pensando vir a colher os frutos num futuro ascenso seria um duplo engano: essa corrente estaria condenada a ficar à margem do movimento, tanto agora como mais tarde.
Pode também dizer-se que a linha sindical revolucionária foi adotada pela IC [Internacional Comunista] nos anos 20-30, com a ISV [Internacional Sindical Vermelha] e os sindicatos vermelhos. Estaríamos apenas a retomar uma tradição comunista abandonada pelo oportunismo do 7º congresso. Também não me parece este argumento válido.
Primeiro, porque a linha sindical vermelha surgiu sob o impacto da revolução soviética e quando era geral a expectativa de que se iriam suceder novas revoluções operárias na Europa. A situação atual é, como sabemos, o oposto da desse tempo. Não há nenhum poder revolucionário que sirva de modelo avançado ao movimento sindical.
Em segundo lugar, devemos perguntar-nos se a linha sindical vermelha, mesmo nas condições da época, deu os melhores frutos no combate ao sindicalismo amarelo social-democrata. Penso que há indicações de que essa linha era realmente esquerdista e que por isso mesmo alimentou a ressaca oportunista do 7º Congresso, para a fusão-capitulação com as centrais social-democratas.
Em resumo: acho que, para colher frutos revolucionários do trabalho sindical, os comunistas devem tomá-lo exatamente por aquilo que ele é — uma luta por melhorias, por reformas — e não pretender embelezá-lo com slogans revolucionários. Revolucionário é o partido comunista e por isso mesmo, como partido revolucionário, trata de imprimir às lutas parciais (sindical ou outras) métodos revolucionários de ação de massas. É assim que se põe o trabalho sindical ao serviço da revolução proletária e não traçarmos uma linha sindical “revolucionária”.
Será isto apenas uma questão de denominações? Penso que não! Porque se reconhecermos que o sindicalismo tem inevitavelmente um âmbito limitado e desistirmos de o “revolucionarizar”, resultam daí algumas consequências para o nosso trabalho prático. Para já vejo as seguintes:
— A nossa demarcação face ao sindicalismo da CGTP e da UC deve ser feita exclusivamente na base do prejuízo que as centrais acarretam aos interesses económicos imediatos da classe operária. A nossa plataforma (as teses) deve ter um carácter mais ‘‘rasteiro” que aquele que lhe está a ser dado. Defendemos aumentos iguais, opomo-nos à participação nas viabilizações, criticamos as negociações à porta fechada, denunciamos o burguesismo dos aparelhos burocráticos, propomos ações de luta, etc., com base num único argumento: travar o roubo que está a ser feito à classe.
— Toda a prioridade à nossa intervenção na prática; vale mais desenvolver uma ação, mesmo pequena, numa empresa, do que fazer discussões sobre a linha sindical.
— A Tribuna Operária deve tomar um carácter mais vincado de denúncia, informação, agitação, do que de formação. Notícias, artigos mais curtos, comentários a cada reunião ou documento das estruturas sindicais, mais cartas-denúncia, caricaturas, e visando captar o descontentamento operário confuso, dar-lhe corpo, mesmo sem grande insistência em linhas demarcatórias.
— Mantendo o coletivo da “TO” [Tribuna Operária] independente de quaisquer alianças ou compromissos, devemos contudo explorar todas possibilidades de intervenções comuns com os grupos da Coordenadora em empresas ou sindicatos onde isso seja possível. A defesa do nosso jornal não deve ser confundida com a ideia de criar uma corrente só nossa, o que nos levará à seita “sindical”.
— Perspectiva da cisão: a denúncia sem tréguas dos aparelhos sindicais amarelos terá que percorrer um longo caminho, na experiência prática das lutas animadas por nós, antes que a inevitabilidade da cisão se imponha, mesmo a um setor minoritário da classe. Dou razão neste ponto ao camarada JB. Devemos dizer que a unidade da classe na luta contra o capital não é servida pelos aparelhos das centrais e demonstrar isso com dúzias de exemplos na “TO”. Toda a tónica na defesa da unidade na luta. A este respeito, acho que devemos refletir sobre as posições da IC que transcrevemos a seguir.
— A nossa perspectiva seria pois, em torno da “TO” e de ações pontuais conjuntas ao nível da Coordenadora, começar a dar os primeiros passos para uma tendência no seio da CGTP, baseada em núcleos de empresa. Acredito que tudo o resto dependerá do trabalho sindical prático que formos capazes de desenvolver.
Lenine sobre os sindicatos
Quando se começou a desenvolver a forma suprema de união de classe dos proletários, o partido revolucionário do proletariado, os sindicatos revelaram inevitavelmente certos traços reacionários, uma certa estreiteza corporativa, uma certa tendência para o apoliticismo, um certo espírito de rotina, etc.
Os comunistas “de esquerda” alemães tiram como conclusão o espírito reacionário e contra-revolucionário de certos meios dirigentes sindicais… o abandono dos sindicatos pelos comunistas, a recusa a trabalhar neles, e pretendem criar novas formas de organização operária por eles inventadas! Isto é um disparate imperdoável, que equivale a um imenso serviço prestado pelos comunistas à burguesia.
Para ser capaz de ajudar a massa e ganhar a sua simpatia, adesão e apoio, é preciso não temer as dificuldades, as chicanas, as armadilhas, os ultrajes, as perseguições por parte dos chefes e trabalhar absolutamente lá onde está a massa.
O sindicato — forma de organização elementar, inferior, a mais simples e mais acessível para aqueles que estão ainda profundamente imbuídos de preconceitos democrático-burgueses. Mas os comunistas de esquerda inventam uma “União Operária” nova em folha, bem limpinha, inocente dos preconceitos democrático-burgueses, dos pecados corporativos e estreitamente profissionais.
Toda a tarefa dos comunistas está em saber convencer os retardatários, saber trabalhar no meio deles e não separar-se deles com palavras de ordem de “esquerda” de uma invenção infantil.
(“Esquerdismo…”)
A IC sobre os sindicatos
Toda a deserção voluntária do movimento profissional, toda a tentativa de criação artificial de sindicatos que não seja determinada pelas violências excessivas da burocracia profissional (dissolução das filiais revolucionárias sindicais pelos centros oportunistas) ou pela sua estreita política aristocrática, impedindo a entrada nos órgãos sindicais às grandes massas de trabalhadores pouco qualificados, apresenta um perigo enorme para o movimento comunista. Afasta os operários mais conscientes e mais avançados da massa e empurra esta para os chefes oportunistas que trabalham no interesse da burguesia.
Como os comunistas dão maior valor ao objetivo e à substância dos sindicatos do que à sua forma, não devem hesitar perante as cisões que poderão vir a dar-se no seio das organizações sindicais se, para as evitar, fosse necessário abandonar o trabalho revolucionário, recusar-se a organizar a parte mais explorada do proletariado. Contudo, se acontecer que uma cisão se imponha como uma necessidade absoluta, só deverá ser feita quando houver a certeza de que os comunistas conseguirão pela sua participação convencer as largas massas operárias de que a cisão se justifica, não por considerações ditadas por um objetivo revolucionário afastado e ainda vago, mas pelos interesses concretos imediatos da classe operária, correspondendo a necessidades da ação económica. No caso de uma cisão inevitável, os comunistas deverão dar a maior atenção a não ficar isolados da classe operária.
(II Congresso)
A palavra de ordem da IC contra a cisão sindical deve ser aplicada com a mesma energia do passado, apesar das perseguições furiosas a que os reformistas de todos os países submetem os comunistas. Os reformistas querem prolongar a cisão através das exclusões. Expulsando sistematicamente os melhores elementos dos sindicatos, esperam fazer perder o sangue frio dos comunistas, levá-los a sair dos sindicatos, levá-los a abandonar o plano profundamente refletido da conquista dos sindicatos a partir de dentro e a pronunciarem-se pela cisão. Mas os reformistas não conseguirão esse resultado.
A cisão do movimento sindical, sobretudo nas condições atuais, representa o perigo principal para o movimento operário no seu conjunto.
(IV Congresso)
A luta pela unidade do movimento sindical mundial desenrola-se como um fio vermelho ao longo de toda a atividade da IC. Este facto não é consequência de uma atitude fetichista em matéria de organização, mas resulta do conceito segundo o qual os comunistas, lutando pela unidade no interior dos sindicatos, alargam a esfera de influência dos partidos comunistas e da IC, sem se separarem nunca das massas. A luta pela unidade do movimento sindical é o melhor meio, o melhor método para conquistar as massas. As velhas palavras de ordem da IC — conquista e não destruição dos sindicatos, luta contra a fuga dos sindicatos, luta pela readmissão dos expulsos, luta pela unidade — continuam válidas e devem ser efetivadas com a máxima decisão e energia.
(V Congresso)
[1] Esse resgate de Francisco tem sido também realizado pelo site em sua memória Escritos de uma vida, pelo Marxismo 21 e pelo MIA (Marxists Internet Archive). Assim como através da publicação de seu livro Anti-Dimitrov em nosso país.
[2] Sobre os profundos limites do sindicalismo e do direito trabalhista, recomendamos também as análises de Bernard Edelman: https://cemflores.org/index.php/2016/06/05/a-legalizacao-da-classe-operaria-de-bernard-edelman/
[3] Fonte: https://www.marxists.org/portugues/rodrigues/1987/02/sindicalismo.htm. Acrescentamos à versão original apenas definições de siglas em colchetes para melhor leitura dos companheiros.