Além da pandemia e do desemprego, as classes trabalhadoras enfrentam ainda mais violência e repressão
Cem Flores
23.10.2020
O Brasil já registra, oficialmente, mais de 155 mil mortos pela Covid-19. Somos o segundo país com maior número de mortos pela doença, atrás apenas dos EUA. A taxa de mortalidade da doença é muito maior entre as populações e os bairros pobres, de trabalhadores/as, com menor ou nenhum acesso a serviços básicos de saúde e saneamento e sem condições materiais de realizar isolamento social.
Junto à pandemia, as classes trabalhadoras têm enfrentado outra enorme ameaça às suas vidas: o desemprego, e com ele a miséria e a fome. Como resultado da última crise do capital no país, a fome já voltara a crescer, com cerca de metade das famílias brasileiras vivendo em insegurança alimentar, de acordo com pesquisa do IBGE de 2018. A crise atual agrava ainda mais essa situação precária.
A taxa de desemprego já alcança 14,4%. Se levarmos em conta os milhões de trabalhadores subocupados e desalentados, a porcentagem chega a dobrar. Não à toa, quase 70 milhões de trabalhadores buscaram o auxílio emergencial para pagar suas contas e comprar comida, cada vez mais cara, para sua família. Em plena crise, esse auxílio não só já foi cortado pela metade, como Bolsonaro repete, a cada oportunidade, sua decisão de acabar com ele.
Essa situação de aumento da exploração capitalista com a crise, que também provoca crescimento da miséria e da fome, torna necessário, para a burguesia e seu estado, o aumento da repressão e da violência sobre o proletariado, os/as demais trabalhadores/as e as massas, como forma de buscar conter sua organização, suas manifestações, seus protestos e suas revoltas.
Como afirmamos em nosso livro O Governo Bolsonaro: Ofensiva Burguesa e Resistência Proletária:
“a violência é causada, de um lado, pelas condições bárbaras de vida impostas às classes exploradas (desemprego, miséria, fome); de outro, tem um caráter de repressão de classe, pela resposta repressiva da classe dominante por meio de seu Estado, e de contínuo controle social. Essa repressão, portanto, é apoiada e estimulada pelas classes dominantes e por uma crescente maioria das camadas médias, e dirigida contra as classes dominadas” (pg. 84).
Como era de se esperar, a extrema violência decorrente desse cenário de exploração e de miséria e a repressão dos patrões e seu Estado para manter tamanha injustiça e desigualdade não tiraram férias na pandemia. Elas continuaram e se agravaram em vários aspectos.
O aumento da violência e da repressão no Brasil: dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020
Lançado no dia 19 de outubro, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, contém novos dados sobre essa dura realidade vivida na pele nas periferias do país.
Segundo o Anuário, os assassinatos no primeiro semestre de 2020 aumentaram 7% em comparação com o mesmo semestre do ano anterior, chegando ao número de 25.712. Ou seja: 1 assassinato a cada 10 minutos no país!
A polícia aumenta cada vez mais sua participação nessa chacina. No ano passado, a polícia matou quase três vezes mais do que em 2013. No primeiro semestre de 2020, chegou a 3.181 as mortes decorrentes de intervenções policiais.
Sabemos quem são as maiores vítimas letais dessa guerra no Brasil: as periferias, a população trabalhadora, pobre e negra. Dos assassinados pela polícia em 2020, cerca de 80% foram negros.
Além da violência das ruas, há também a violência doméstica, que igualmente tem crescido em tamanho e brutalidade, sobretudo contra mulheres e crianças. Em 2019, alcançamos o patamar de 1 agressão física doméstica a cada 2 minutos! E 1 estupro (maioria de crianças e adolescentes) a cada 8 minutos! Sem falar no feminicídio, que só cresce:
A pandemia causou piora generalizada na condição das mulheres, especialmente a das mulheres das classes trabalhadoras, como já afirmamos em outro texto, incluindo aí o aumento da violência doméstica. Segundo o Anuário:
“O maior tempo vivido em casa aumentou também a carga do trabalho doméstico, o convívio com crianças, idosos e familiares e a ampliação da manipulação física e psicológica do agressor sobre a vítima, o que contribuiu para a eclosão de conflitos e para o acirramento de violências já existentes.”
No primeiro semestre de 2020, foram quase 150 mil denúncias de violência doméstica no 190, mesmo com maior subnotificação no período. 648 foram vítimas de feminicídios, sobretudo cometidos por “companheiros” ou ex e em casa.
A violência contra a população LGBT, cujos segmentos mais oprimidos possuem uma expectativa de vida muito abaixo da média nacional, também continua a aumentar, mesmo com imensa subnotificação.
Diante das crises, a burguesia reforça seu aparelho repressivo – inclusive as suas alas clandestinas
Eis o que o capitalismo, a burguesia e seu Estado têm a oferecer às massas exploradas e oprimidas no Brasil: exploração e morte por doença, fome ou fuzil!
No texto “Aumento da repressão à população pobre e trabalhadora como necessidade do capital em crise: programa do governo Bolsonaro”, de 2019, portanto antes da pandemia e da atual crise, dissemos:
“Essa extrema violência do capitalismo brasileiro tem profundas raízes históricas, especialmente na herança de três séculos e meio de escravidão e dos mais de cinco séculos de radical exclusão da população trabalhadora, negra, pobre.
A aceleração do número de homicídios, assim como da violência, e o reforço do Aparelho Repressivo de Estado Capitalista são a consequência tanto da realidade assustadora da crise do capital no país e todos os seus aspectos de deterioração das condições de vida das classes dominadas, quanto do avanço do crime organizado e do tráfico de drogas, além do reforço da atuação da repressão “legal” (polícias) e “semiclandestina” (polícias + milícias).”
Como os dados do Anuário comprovam, a violência e a repressão têm se reforçado na atual conjuntura, diante de mais uma crise, e da conseguinte necessidade da burguesia de explorar ainda mais, controlar ainda mais as massas, de forma mais aberta e violenta. Para isso, ela se utiliza de e fomenta cada vez mais violência, reformula seu Aparelho Repressivo de Estado, sobretudo a partir de seus governos e aliados cada vez mais reacionários, militarizados (legal e clandestinamente) e genocidas.
Sobre o reforço do crime organizado e da repressão semiclandestina, é importante também ressaltar a tendência de avanço das milícias no último período. Sobre esse tema, pesquisadores do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da UFF (Universidade Federal Fluminense), do datalab Fogo Cruzado, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, da plataforma digital Pista News e do Disque-Denúncia produziram um relevante estudo, recém-divulgado.
Segundo eles, em 2019, as milícias (formadas geralmente por ex-policiais) controlavam quase 60% do território da cidade de Rio de Janeiro, mais do que o tráfico de drogas (apesar de haver várias alianças entre os dois grupos). Em toda região metropolitana são mais de 6 milhões de moradores sob o controle de milicianos ou traficantes.
Reproduzimos trechos da matéria da Folha de São Paulo, com a opinião de um estudioso do tema:
“Para o sociólogo José Cláudio Alves, que estuda as milícias há mais de 20 anos, houve um “boom” desses grupos nos últimos quatro anos, a partir do desenvolvimento no país de um discurso de extrema-direita, voltado para políticas de proteção à população e mais duro no campo da segurança pública. […]
“As operações [das forças de segurança] sempre visando o tráfico, e nunca voltadas para a estrutura miliciana. [Os milicianos pensam] ‘aqui é o lugar para a gente crescer, vamos ganhar dinheiro e ter poder político’. São condições favoráveis politicamente, discursivamente, economicamente”, diz.”
O estímulo também vem do governo federal. Como dissemos em outra oportunidade:
“Jair Bolsonaro e seus familiares nunca esconderam suas ligações íntimas com milicianos. Pelo contrário, sempre fizeram questão de explicitá-las. Foram homenagens a milicianos feitas pelo então deputado estadual Flávio Bolsonaro, emprego de parentes de milicianos, e mesmo propostas de legalizar sua atuação(!). Ou como no discurso de Bolsonaro pai: ‘Enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo. Se não houver espaço para ele na Bahia, pode ir para o Rio de Janeiro. Se depender de mim, terão todo o meu apoio’.”
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Mesmo nesse cenário de barbárie, as classes trabalhadoras, que sofrem em todos os aspectos essa dura conjuntura, resistem e lutam, buscando manter como conseguem uma vida digna para si e para os seus.
Nesses últimos meses, as periferias de todo país, em meio à bala cruzada, sob a mira da polícia, do tráfico e da milícia, reforçaram suas redes de solidariedade, aumentando assim sua força e organização. Diante de várias mortes, as comunidades também se levantaram; ruas em todo o país gritaram contra o racismo e a violência policial, tal qual no recente levante popular nos EUA.
E esse é precisamente o único caminho que elas têm para sair dessa chacina oficializada: ampliar, cada vez mais, sua força e organização independente, cuidar de sua própria comunidade, tomar as ruas. O Estado (e seus governos!) não é a solução e sim um dos problemas, uma das mãos que silenciam e matam, e de nós só merece o ódio de classe.
Assim, no avanço da luta, que é e será dura, construiremos as bases para derrubar nossos inimigos de classe que se alimentam do nosso suor e trabalho, de nossas tragédias, e de nosso sangue.