Trabalho ou labuta na pandemia, um artigo de Michael Roberts sobre automação do trabalho
06.11.2020
Nos últimos anos, importantes alterações tecnológicas têm possibilitado aprofundar a automação do trabalho em diversos ramos da economia. Tais mudanças têm sido consideradas por alguns analistas como uma nova revolução industrial, uma nova fase da indústria, a 4.0.
Segundo análise do IEDI de 2018, “mais do que um ou outro desenvolvimento tecnológico, porém, o caráter disruptivo que a Indústria 4.0 traz é, sobretudo, fruto da articulação e convergência dessas tecnologias, tais como Sistemas Ciber-Físicos (CPS), Internet das Coisas (IoT), Manufatura Aditiva (impressão 3D), Big Data, Computação em nuvem, Robótica avançada, Inteligência Artificial (AI), realidade virtual e aumentada, novos materiais etc.”.
Sobre esse assunto fundamental para a análise do capitalismo hoje, traduzimos[i] mais um texto do economista marxista Michael Roberts: Trabalho ou labuta na pandemia, publicado no seu blog no dia 04.10.2020.
Segundo o autor, a automação do trabalho foi acelerada com a atual crise do capital. A pandemia e a concentração e a centralização de capital causadas pela crise impulsionaram a substituição da força de trabalho por maquinaria em muitos setores e indicam mudanças substanciais no mercado de trabalho em diversos países para os próximos anos.
E como aconteceu em outras revoluções tecnológicas no capitalismo, esse mais recente “progresso” técnico não significa melhoria de vida para as massas. Pelo contrário: significa sim um capital mais concentrado e centralizado, mais desemprego, maior desigualdade, menores salários para a maioria, aumento da intensidade do trabalho… Mais labuta, mais exploração! Eis o que futuro capitalista reserva.
Dias depois da publicação de Roberts, o Fórum Econômico Mundial lançou um relatório sobre o futuro do emprego que reforça a tendência apontada pelo economista. Segundo o Fórum: “a automação, em conjunto com a recessão COVID-19, está criando um cenário de ‘dupla ruptura’ para os trabalhadores. Além da atual ruptura dos bloqueios induzidos pela pandemia e da contração econômica, a adoção de tecnologia pelas empresas transformará tarefas, empregos e habilidades em 2025. Quarenta e três por cento das empresas pesquisadas indicam que estão determinadas em reduzir sua força de trabalho devido à integração de tecnologia (…). Em 2025, o tempo gasto em tarefas atuais no trabalho por humanos e máquinas será igual.”
Uma diretora do Fórum completa: “a COVID-19 acelerou a chegada do futuro do trabalho (sic). A aceleração da automação e as consequências da recessão causada pela COVID-19 têm acentuado as desigualdades existentes no mercado de trabalho e revertido os ganhos de emprego que se materializaram desde a crise financeira global de 2007-2008. É um duplo cenário de dificuldades que representa mais um obstáculo para os trabalhadores em um momento tão difícil.“
Antes de passarmos ao texto de Roberts, algumas considerações finais. Apesar do autor trazer muitos dados importantes, e assim contribuir para o debate marxista sobre o tema, achamos que algumas de suas afirmações não estão bem fundamentadas. Um exemplo: “a crise da pandemia está criando as condições para a eliminação generalizada de empregos, como aconteceu (…) após a crise da terceira década de 1800”. Roberts também acaba sendo unilateral ao não dar destaque aos impactos negativos do aumento da composição orgânica do capital na taxa de lucro geral, ou seja, um dos principais fatores desencadeadores de crises capitalistas. Dentre outras limitações.
Importante destacar, por fim, as várias citações, extremamente atuais, de Engels ao longo do texto. O ano de 2020, lembremos, comemora-se 200 anos de nascimento desse grande líder revolucionário e teórico do proletariado, cuja obra demonstrou de forma decisiva que toda a imponência da sociedade burguesa jaz na miséria e opressão da imensa maioria trabalhadora.
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Trabalho ou labuta na pandemia
Michael Roberts
A pandemia abriu uma caixa de Pandora sobre o futuro do trabalho. A crise causou uma enorme perda de empregos, horas trabalhadas e salários, especialmente para aqueles que estão nos setores de serviços, como varejo, entretenimento, lazer, eventos, preparação de alimentos etc. e está levando ao limite milhares de pequenas empresas que sobrevivem com pequenas margens de lucro e com pesadas dívidas.
Mais do que isso. A recessão oferecerá e está oferecendo uma oportunidade para as empresas, especialmente as grandes, de se desfazerem de partes substanciais de sua força de trabalho e substituí-los por máquinas, robôs, trabalho doméstico conectado e algoritmos. O resultado é que haverá maior concentração de empresas nos setores da economia, à medida que empresas maiores devoram os mercados das menores. É claro que este não é um fenômeno novo, mas sim parte integrante das crises sob o capitalismo. Friedrich Engels detectou esse processo já na década de 1840 na Inglaterra industrial: “Os antigos estratos inferiores da classe média – os pequenos comerciantes, lojistas, os aposentados, os artesãos e os camponeses – afundam gradualmente no proletariado, em parte porque seu capital diminuto não é suficiente para a escala em que a indústria moderna é desenvolvida, e está atolado na competição com os grandes capitalistas, em parte porque sua habilidade especializada se torna inútil diante dos novos métodos de produção”.
A tão falada revolução da automação tende a decolar, pelo menos em alguns setores de crescimento relevante. Sob o capitalismo, sistema de produção que visa o lucro, isso não significará menos horas de trabalho para os empregados; mais trabalho agradável e menos trabalho árduo; ou aumento das rendas. Pelo contrário, a revolução da automação sob o capitalismo terá por objetivo reduzir a força de trabalho, aumentar as horas para os que ainda estão empregados e evitar que os salários aumentem – tudo para aumentar a lucratividade dos mais eficientes à custa dos menos eficientes.
Existem muitas previsões de perda de empregos à medida que robôs substituem trabalhadores. Os consultores de gestão da McKinsey preveem que a automação pode deslocar 53 milhões de empregos no continente europeu somente até 2030, o equivalente a cerca de 20% da força de trabalho atual. As maiores reduções de empregos serão no varejo, na manufatura e nos serviços de alimentação e hotelaria. E os mais atingidos serão aqueles que têm menos “especializações” e recebem menos.
Novamente, não há nada de novo na história no fato de o trabalho ser substituído por máquinas. É a essência do capitalismo industrial. Na chamada ‘revolução industrial’ do início do século XIX, milhões de artesãos e trabalhadores foram substituídos por máquinas. Os salários reais estagnaram ou até caíram à medida que as rendas dos artesãos desapareciam e os ganhos das novas indústrias iam para seus proprietários. Engels observou esse resultado em seu livro brilhante, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (1844). Os industriais proprietários de máquinas ficaram “ricos com a miséria da massa de assalariados”. Agora, a crise da pandemia está criando as condições para a eliminação generalizada de empregos, como aconteceu naquele período após a crise da terceira década de 1800. Na terceira década deste século poderá ocorrer o mesmo.
Em seu livro, Engels observou que a mecanização levou a uma queda na participação do trabalho na renda nacional, mesmo que alguns trabalhadores ganhassem empregos em novas indústrias à medida que as antigas morriam. Esse processo se repetirá nesta década pós-pandêmica. Nos Estados Unidos, os salários dos homens de 25 a 55 anos com até o ensino médio diminuíram desde 1980 e sua taxa de participação na força de trabalho caiu paralelamente. Em parte por conta da mudança para a mão de obra feminina mais barata e da mudança da indústria manufatureira das economias capitalistas avançadas para o “sul global” para usar mão de obra ainda mais barata em fábricas modernas. Novamente, Engels observou essa tendência na industrialização da Inglaterra na década de 1840: “quanto mais a indústria moderna se desenvolve, mais o trabalho dos homens é suplantado pelo das mulheres e das crianças… As diferenças de idade e sexo não têm mais nenhuma distinção social relevante para a classe trabalhadora. Todos são instrumentos de trabalho, mais ou menos caros de usar, de acordo com a idade e o sexo”.
Mas a substituição da mão de obra por mudança tecnológica também foi um dos principais motivos. As estimativas mostram que cada robô polivalente substituiu cerca de 3,3 empregos na economia dos EUA e reduziu os salários reais. E as previsões para a expansão da robotização na década de 2020 apontam para um crescimento exponencial. O número de robôs industriais já aumentou três vezes ao longo da última década, passando de pouco mais de um milhão de unidades operacionais em 2010 para 3,15 milhões de unidades projetadas em 2020. Ao mesmo tempo, os robôs supostamente tornaram-se capazes de substituir, ou mesmo superar, humanos em muitas tarefas, como na produção de peças personalizadas e implantes médicos usando tecnologias de impressão 3D, no diagnóstico de doenças e no auxílio à tomada de decisões, por exemplo, por ‘juízes robôs’.
A ascensão dos robôs: robôs em milhões de unidades
Tarefas rotineiras e que requerem baixa qualificação continuam a ser mais fáceis para os robôs realizarem do que tarefas não rotineiras e especializadas. Isso implica que aumentos no número de robôs ou melhorias em sua produtividade tendem a afetar de forma adversa muito mais os trabalhadores menos qualificados do que os trabalhadores altamente qualificados. Além disso, estes tendem a se especializar em tarefas às quais a automação é complementar, como design, manutenção, supervisão e gerenciamento de robôs. O impacto diferencial da automação implica que os salários dos trabalhadores pouco qualificados podem estagnar e até diminuir na presença da automação; exatamente como Engels descobriu na década de 1840.
Quando os robôs constituem um substituto perfeito para o trabalho, os trabalhadores e os robôs competem diretamente no mercado de trabalho, mantendo os salários baixos. Como consequência, a automação leva a um declínio da participação do trabalho na renda. Nos Estados Unidos, a participação da renda do trabalho nos setores produtivos caiu durante os anos 1970, à medida que as empresas tentavam compensar a queda da lucratividade reduzindo sua força de trabalho, possibilitada por duas grandes crises em 1974-5 e 1980-2. A participação do trabalho se estabilizou durante os anos 1980 e 1990 em um nível mais baixo, à medida que a lucratividade das empresas melhorou um pouco no período neoliberal. Claramente, houve outros fatores além da mecanização que levaram a uma queda na participação do trabalho (destruição dos sindicatos, congelamento de salários etc.), mas estima-se que da queda de 3% na participação do trabalho entre os anos 1990 e 2010, cerca de 1% pode ser colocado na conta da automação.
Participação do trabalho no PIB dos EUA (%)
Mas, como Engels também observou, a mecanização funciona nos dois sentidos. Por um lado, a introdução de novas máquinas ou tecnologias levará à perda de empregos para os trabalhadores que usam tecnologia ultrapassada. Por outro lado, as novas indústrias e técnicas podem criar novos empregos. Mas é apenas em setores da indústria que exigem alta qualificação e/ou estão sujeitos à proteção sindical que os salários e empregos são mantidos: “As chamadas fiandeiras finas… recebem salários altos, de trinta a quarenta xelins por semana, porque elas têm uma associação poderosa para manter os salários altos, e seu ofício requer um longo treinamento; mas os fiandeiros grosseiros que têm de competir com máquinas (que ainda não estão adaptados para fiação fina), e cuja associação foi destruída com a introdução dessas máquinas, recebem salários muito baixos ”(Engels). No entanto, “que os salários em geral foram reduzidos pela melhoria das máquinas, é visto de forma unânime pelos operários. A afirmação da burguesia de que a condição da classe trabalhadora foi melhorada pela maquinaria é vigorosamente proclamada como uma falsidade em todas as reuniões de operários nos distritos fabris”.
Mecanização, robôs e automação reduzirão o tempo de trabalho. Isso deveria significar menos horas de trabalho, pois mais valores de uso são criados pelo trabalho em menos tempo. Mas sob o capitalismo, os valores de uso extras apenas se transformam em mais valor através da venda desses valores de uso e esse valor só é pago aos trabalhadores em menos horas, salários mais altos ou ambos através de uma luta de classes entre os proprietários do capital e a força de trabalho. Portanto, sob o capitalismo, a mecanização não leva “automaticamente” a menos horas e menos trabalho.
Em um novo livro, Trabalho: uma história de como gastamos nosso tempo, James Suzman explica que, ao contrário das esperanças e previsões de como Adam Smith ou John Maynard Keynes, a tecnologia não oferece uma “vida feliz” (Smith) ou “lazer abundante ”(Keynes). Como o recentemente falecido (e não esquecido) David Graeber mostrou, a mecanização sob o capitalismo realmente levou a mais ‘empregos de merda’ que destroem a criatividade e o trabalho significativo, enquanto aumentam o trabalho árduo.
Como mostrou uma pesquisa da empresa Gallup publicada em 2017 sobre a vida profissional em 155 países, apenas um em cada 10 europeus ocidentais se descreveu como “comprometido” em seus empregos. Em outra pesquisa conduzida pela YouGov em 2015, 37% dos trabalhadores adultos britânicos disseram que seus empregos não estavam fazendo nenhuma contribuição significativa para o mundo.
É verdade que a jornada média de trabalho na maioria das economias capitalistas avançadas caiu desde a época de Engels, mas não por causa da mecanização, e sim pelas lutas sindicais para melhorar as condições dos trabalhadores e das lutas políticas pela legislação fabril e pela redução da jornada de trabalho etc. De fato, desde que os sindicatos foram dizimados no final do século XX na maioria dos países, houve pouca redução da semana de trabalho média (ainda pairando em cerca de 40 horas), apesar do crescimento dos robôs e automação.
Quando os sindicatos da Finlândia propuseram recentemente uma jornada de trabalho de 6 horas, verbalmente apoiados pelo primeiro-ministro finlandês, a ideia foi rejeitada por causa da “resistência dos empregadores, que têm interesse em pagar (o mínimo possível) para horas trabalhadas, e não de acordo com a produtividade. Um dia de seis horas com pagamento por oito horas de trabalho significa um salário por hora mais alto. Isso também significa uma perda de controle sobre os trabalhadores – não apenas em termos de uma parte menor de cada dia em que os empregadores controlam as atividades dos funcionários, mas também através do reconhecimento implícito de que os trabalhadores devem ter mais voz na organização da vida profissional. ” O sonho de Keynes de quase 100 anos atrás de uma semana de 15 horas ainda é apenas isso – um sonho.
A crise da pandemia parece ser um novo catalisador para uma mudança nas condições de trabalho. ‘Trabalhar em casa’ é o novo clamor. Mas isso só se aplica a uma minoria, principalmente àqueles que trabalham em escritórios mais bem pagos.
E não há garantia de que ‘trabalhar em casa’ aumentará a satisfação no trabalho ou tornará as pessoas ‘mais felizes’, como Adam Smith esperava. Os empregadores já estão desenvolvendo novos métodos de monitoramento de funcionários em suas casas e, de fato, garantindo que eles trabalhem ainda mais horas, uma vez que não se deslocam mais. E, para a grande maioria, trabalhar em empregos que não oferecem criatividade, pagam mal e são cada vez mais inseguros continuará sendo a norma. Mais labuta, não menos trabalho.
[i] Cotejamos nossa tradução com a do site português O Diário.