Classes há muitas, só uma é revolucionária, por Ana Barradas
Fábrica têxtil em Bangladesh. Esse país é hoje um dos principais centros da produção de roupas e tecidos do mundo. Milhões de operários, em sua maioria mulheres, trabalham dia e noite nessas fábricas recebendo salários de fome e sofrendo todo tipo opressão. O lucro capitalista tem como base tal exploração.
Cem Flores
04.06.2021
Nas últimas décadas, a centralidade política da classe operária é um dos princípios do marxismo-leninismo mais atacados por seus detratores e revisionistas. Segundo eles, as alterações econômicas, tecnológicas, políticas e sociais no capitalismo contemporâneo colocaram em cheque a força dirigente dessa classe na política revolucionária. Sendo assim, ou se deveria aceitar o capitalismo como invencível, ou então pensar em novas classes ou grupos sociais que substituíssem politicamente a classe operária.
Buscando intervir nesse debate, trazemos o recente artigo da comunista Ana Barradas no blog Bandeira Vermelha. De forma sintética e didática, a camarada demonstra a relevância e a atualidade da posição marxista. A classe operária ainda encontra-se, em todo o mundo, a produzir tudo que nos rodea e a ser explorada pela burguesia. Usando os termos de Lênin, ela ainda domina “o centro e o nervo de todo o sistema econômico do capitalismo”; permanece sendo uma das classes fundamentais. Isso mesmo considerando as inúmeras alterações que o capitalismo tem passado e seus respectivos efeitos na estrutura de classes, inclusive na própria composição e situação política do proletariado.
Como vemos no texto, uma política revolucionária precisa ser dirigida pela posição proletária, a única antagônica por completo ao sistema capitalista e capaz de conduzir, através da luta de classes, o restante das massas exploradas e oprimidas a superar essa sociedade que impõe miséria à maioria em prol da riqueza de alguns poucos. São sob os interesses antagônicos da classe operária, em relação à burguesia, que tal política deve se firmar em direção a uma nova sociedade, a comunista.
Caso contrário, fica-se a mercê de interesses que não se chocam com as relações de produção capitalista e com a ditadura da classe burguesa e seus aparelhos. Como são os casos das diversas “frentes” contra algum aspecto do capitalismo, puxadas pelo oportunismo e reformismo de esquerda, dominadas pelas camadas médias, mundo a fora, cujo resultado é sempre o de reafirmar a sociedade capitalista em seu fundamental, a democracia burguesa em suas ilusões, e nunca um maior grau de organização e poder das classes trabalhadoras em direção à revolução.
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Classes há muitas, só uma é revolucionária
Ana Barradas
O processo produtivo evoluiu muito desde o tempo de Marx. De facto, à medida que se altera o modo de produção capitalista, também se alteram as formas sociológicas de classe, como o próprio “Mouro” assinalou. As classes sociais e a estrutura económica da nossa época não são iguais ao passado, muita coisa mudou. Mas não mudou a contradição principal entre o capitalismo e os produtores, entre os exploradores e os explorados, entre os que se apropriam da riqueza e aqueles que a criam produzindo-a. Negar isto é que é negar os princípios fundamentais do marxismo, é passar de contrabando outra lógica, a da conciliação entre as classes.
De facto, o que não se alterou foi o facto de a força de trabalho ser uma mercadoria e a classe operária depender da venda dessa mercadoria para manter a existência diária. Assim, só uma revolução proletária poderá produzir a emancipação económica do trabalho, recorrendo, entre outras coisas, à destruição da máquina do Estado burguês. A classe operária tem mais razões para o combate do que qualquer outra: não tem meios de produção, só tem a força de trabalho para pôr ao serviço do capitalista em troca do mínimo indispensável para sobreviver. ”O proletariado, a camada mais baixa da sociedade actual, não pode elevar-se, não pode endireitar-se, sem fazer ir pelos ares toda a superstrutura das camadas que formam a sociedade oficial.” (Manifesto Comunista)
Não há outra maneira de resolver esta contradição, porque, tal como no tempo de Marx, uma classe explora a outra e esta tem de se libertar derrubando o seu explorador. A exploração continua a ser a essência do capitalismo: não há produção de valor sem extracção de mais-valia a partir da exploração directa do trabalho, fonte originária de qualquer remuneração do capital (incluindo os juros ou as rendas especulativas, não obstante a grande autonomia relativa que esta dimensão ganhou nas últimas décadas). Isto é, só existe uma forma de criar valor: na produção e por meio do trabalho produtivo.
Embora muitas outras subcategorias de classe possam ser úteis ao sistema capitalista e exercer funções que contribuem para o valor de troca, a única classe que gera mais-valia é constituída por operários da indústria e da agricultura, construção civil, armazenagem e transportes industriais.
Por essa razão material, só ela tem interesse e capacidade para se apropriar dos meios de que foi espoliada – no sentido literal, e também em todos os outros sentidos: político, social, económico, filosófico, moral e histórico.
Podem enumerar-se vários critérios de classe: a posição do indivíduo no sistema de produção social, a relação com os meios de produção, o papel na organização social do trabalho, a forma como recebe a sua quota-parte da riqueza social e as dimensões dessa quota-parte. Por exemplo: um polícia não é um trabalhador fardado, porque é parte integrante do aparelho repressivo do Estado burguês. E nem todos os assalariados são proletários pelo simples facto de não possuírem propriedade. Trabalhadores de serviços descritos como “a periferia da classe operária” nem por isso passam a ser operários. Trabalhadores que apenas fazem biscates na ausência de emprego fazem parte do exército industrial de reserva, mas nem por isso passam a ser operários. Nem uns nem outros geram mais-valia.
A globalização dominante, pela mão dos seus teóricos, remodelou a análise das relações de classe: na sociologia, nas academias, nas estatísticas oficiais, em toda a parte deixou de aplicar a clássica classificação inspirada em conceitos marxistas: grande, média e pequena burguesia (englobando esta pequenos proprietários, assalariados de serviços, produtores isolados, semiproletários) e proletariado (industrial e agrícola, construção civil, etc.). O posicionamento teórico da actual sociologia das classes e a respectiva estratificação social deliberou afastar-se desses conceitos que classificou de obsoletos e para isso procede à introdução de indicadores de recomposição social mais ajustados às necessidades e às possibilidades operacionais do sistema capitalista.
Para os marxistas, a distinção entre quem gera e quem não gera mais-valia tem toda a razão de ser porque dela dependem as opções tácticas e estratégicas que assumem. Porém, esta distinção, sendo fundamental, é insuficiente. Os marxistas também reconhecem que as características sociológicas de certos estratos, tanto ou mais do que a sua relação com os meios de produção, as definem como aliados ou inimigos do proletariado. Assim, na classe média há profissões que, tendo-se degradado e aproximado os seus membros das condições de vida dos operários, constituem aquilo a que se chamou impropriamente “a nova classe operária”, os “proletarizados”. Do mesmo modo que há sectores sociais (mulheres, imigrantes, negros) que são especialmente oprimidos e rebaixados na sua condição social e por isso potenciais aliados. Essa opressão que sofrem torna-se com frequência factor importante na “proletarização” desses sectores. O capital tende a aproveitar-se dessas opressões diante do barateamento dessas forças de trabalho, imposição de funções mais degradantes etc. O que não se compreende é o que alguns agora deram em chamar “aristocracia laboral”, deturpação grosseira do conceito de aristocracia operária enunciado por Lenine.
O ANTIMARXISMO DISFARÇADO DE MARXISMO
Muitas das teses que por aí circulam e se fazem passar por marxistas são concepções pouco científicas, construções pragmáticas que acabam por conferir a certos sectores uma qualidade revolucionária que não têm. Se quisermos ser rigorosos, certas categorias sociais mais próximas da classe operária são semiproletárias, e aliados prováveis dos proletários, sobretudo em tempos de crise. Da mesma maneira, deve também reconhecer-se que, dentro do proletariado, a aristocracia operária exerce um poder corruptor sobre os operários e vira-se contra eles, associando-se aos interesses de outras classes.
Concluamos pois que a consciência de classe do operariado industrial não é o mesmo fenómeno que o sentimento de revolta e militância que se apodera dos restantes assalariados descontentes e os empurra para a acção. Em vez disso, essa consciência da “classe para si” está directamente relacionada com a própria base da luta de classes, a partir da relação de cada um com a criação do valor de troca. O proletariado, e só ele, apesar de ser uma minoria nas sociedades industrializadas actuais – como de resto foi no passado, em todas as revoluções dos de baixo –, continua a ser a força motivadora que poderá desencadear a destruição do Estado burguês.
Se insistimos nestes postulados é porque a dominância das classes médias na política da esquerda desde 1935 tem constituído a base social para uma prática que revê estas concepções marxistas. Assim, os comunistas educados na escola de conciliação de classes saída do VII Congresso da Internacional Comunista, em vez de se posicionaram como o sector mais firme, constante e revolucionário das classes trabalhadoras e contribuírem com a sua acção para o proletariado se tornar uma “classe para si” e proceder à negação do capitalismo moderno, globalizado, à abolição da propriedade privada dos principais meios de produção, afastaram-no da sua consciência de classe, apontaram-lhe caminhos de conciliação, sufocaram as suas manifestações mais radicais e avançadas. Por isso o proletariado está amarrado a compromissos interclassistas e dominado pela classe capitalista não só do ponto de vista económico, mas também ideológico.
Por seu lado, quase toda a “esquerda” ampla abandonou o marxismo e está ganha pelos conceitos políticos e ideológicos da classe dominante, actua de acordo com eles. A frente de todo o povo contra o capital monopolista e financeiro, ou contra o neoliberalismo, ou contra o fascismo, que muitos advogam, e que os comunistas em geral também adoptaram como modelo táctico, é uma ficção idealista e oportunista que não tem transposição para a prática da luta de classes se quisermos conceber esta como resultante da exploração, no sentido económico marxista. Conceitos como “sociedade pós-industrial”, “maioria social”, “sociedade do conhecimento”, etc. procuram reforçar a ideia de uma deslocação do proletariado para fora do centro da luta de classes, posta ao serviço de outros sectores de classe, mas na realidade não são os estratos médios quem poderá ser parteiro de um novo mundo livre de exploração, como se pretende fazer crer. A aliança que faz sentido hoje, em contraposição a essas que são postas em prática pela grande esquerda, é a de todos aqueles que aceitem a ideia de que é preciso organizar uma sociedade sem exploradores nem explorados, implantar um novo sistema não capitalista e entregar o poder aos produtores. Esta linha demarcatória afasta tal programa de qualquer tutela reformista, reafirma a hegemonia do proletariado e faz toda a diferença em termos de aliados.
A desindustrialização a que se assiste nos países capitalistas do centro, que deslocalizam para os países periféricos ou semicoloniais a sua produção de vasta escala, fez crescer os sectores improdutivos e assalariados dos serviços, a chamada nova pequena burguesia, e produziu uma complexa estratificação social com grande peso ideológico, como por exemplo os “novos pobres”, os assalariados cujo salário não é suficiente para saírem do limiar da pobreza. Essas camadas intermédias, tomadas como subclasses, têm a particularidade de tenderem a reproduzir o sistema de relações vigente, sem procurar mudá-lo.
Isto não quer dizer que todos os trabalhadores assalariados constituam uma única massa reaccionária. Mas a verdade é que o proletariado se diferencia do resto do povo, porque, mercê da sua posição no aparelho produtivo, olha o mundo com os seus próprios olhos quando se liberta da tutela pequeno-burguesa a que está amarrado. Nos tempos que correm, o seu antagonismo à burguesia no poder precisa de completar-se com a oposição à burguesia reformista e também com uma demarcação face aos operários e outros trabalhadores que tentam salvar-se dentro do sistema.
A ESCALA DA REVOLUÇÃO
As cadeias globais de valor que estão criadas respondem às necessidades desta fase actual do capitalismo, mas também constituem uma resposta da burguesia na luta de classes, visando desarticular e dividir o proletariado. Ganham cada vez mais relevância as revoluções tecnológicas nos transportes, na comunicação, a automação e os modernos modelos de exploração do trabalho – teletrabalho, bancos de horas, flexibilização, cultura de empresa, just in time, etc. – aliados à sobreexploração de imigrantes, mulheres, crianças, minorias étnicas e à progressiva erosão de muitas das conquistas laborais dos últimos 150 anos.
A globalização tem produzido um proletariado mundial mais disseminado e menos homogéneo, mas também mais brutalmente explorado e mais móvel e internacionalizado. À escala mundial, que é a verdadeira escala da revolução, a classe operária continua a crescer em termos absolutos. Ainda é cedo para saber do que este novo contingente mundial será capaz, mas as “alternativas” centristas à ditadura do proletariado já provaram a sua falência. A longo prazo, o proletariado, mesmo nos países em que é minoritário, pode, em momentos de crise, arrastar consigo o semiproletariado, neutralizar a pequena burguesia e outros sectores explorados ou marginalizados e inverter a correlação de forças, possibilitando a revolução. Já aconteceu antes, e voltará a acontecer. Por conseguinte, quem quer trabalhar pela revolução socialista tem de voltar-se em primeiro lugar para a classe operária, bater-se pela sua hegemonia e pela sua independência ideológica e política.
A nova ordem económica pós-pandémica que se anuncia – seja ela capitalista ou outra qualquer, intermédia, de transição ou definitivamente socialista – dará origem a uma superestrutura legal e política à qual corresponderão determinadas formas de consciência social. Ainda é cedo para vaticinarmos acerca da forma que tomarão as novas evoluções, mas todos sabemos que estão historicamente próximas. E, a prazo, podem ser boas ou más para o proletariado, tudo dependendo da correlação de forças. Mas com a actual crise de sobreprodução, os despedimentos em massa, o agravamento das condições de vida, a contracção do consumo, a recessão e estagnação da economia global, a escassez alimentar, as ameaças de guerra, os conflitos interimperialistas, etc., podemos ter a certeza de que os explorados se verão obrigados a lutar pelos seus direitos e a procurar saídas para a sua própria crise. A cada momento surgem um pouco por todo o mundo pequenas e grandes explosões de protesto, descontentamento e reivindicação, algumas delas espontâneas e da livre iniciativa das massas, fartas de baixar a cabeça e impelidas pelo desespero da sua situação. Infelizmente, por tudo quanto sabemos e verificamos, a fraca presença de comunistas nestas lutas não tem sido suficientemente enérgica para incentivar e dar continuidade a movimentos de carácter potencialmente revolucionário. Numa nova conjuntura social, na prática das massas poderão surgir novas formas de intervenção ainda desconhecidas, com as quais os marxistas muito poderão aprender.
O comunismo, disse Marx, “rompe da forma mais radical com as ideias tradicionais” e faz surgir “uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”. É por causa disso mesmo que a burguesia vem anunciando constantemente a enésima morte do marxismo. Não nos deixamos enganar, porque sabemos que renovar o marxismo nos combates que se avizinham é retomar a possibilidade de a revolução triunfar.