Tese Sobre a Questão Negra do IV Congresso da Internacional Comunista
O comunista Claude McKay discursando no IV Congresso da Internacional Comunista (1922). Mckay, jamaicano naturalizado americano, foi um dos principais formuladores sobre a “questão negra” no movimento comunista internacional da época.
Cem Flores
20.11.2021
Dando continuidade às publicações sobre a luta comunista contra a opressão racial e em celebração ao dia da consciência negra no Brasil, o Cem Flores publica uma tese histórica do movimento comunista sobre a “questão negra”, apresentada no IV Congresso da Internacional Comunista (1922). Esta tese se encontra em inglês no Arquivo Marxista na Internet, cuja tradução para o português apresentamos abaixo.
A Tese Sobre a Questão Negra é dividida em seis partes. A primeira identifica o avanço do imperialismo na África no início do século XX, concomitante a um crescimento da consciência e luta dos povos africanos. A segunda destaca o papel fundamental dos negros dos EUA “na luta de libertação de toda a raça africana”, tendo em vista seu longo e intenso combate contra a exploração e a opressão racista, primeiro contra a escravidão, depois na sociedade burguesa. A terceira e quarta defendem a conexão, a ser fomentada pela Internacional Comunista, entre as lutas dos povos negros, de outros povos oprimidos e dos trabalhadores em geral, pois todos lutam “por libertação e igualdade política, econômica e social”. A quinta afirma que “a questão negra se tornou uma parte essencial da revolução mundial” e a ajuda “de nossos companheiros negros oprimidos como absolutamente necessária para a revolução proletária e a destruição do poder capitalista”. A última lista um conjunto de objetivos e encaminhamentos para a Internacional naquele momento, inclusive a convocação de uma “conferência geral ou congresso de negros”, que seria realizada de fato em 1930, em Hamburgo.
Delegados da Conferência Internacional dos Trabalhadores Negros (1930).
Essa tese de quase um século atrás é uma comprovação do esforço, mesmo que limitado, do movimento comunista internacional da época em apoiar e organizar as lutas dos povos negros que se rebelavam em todo mundo contra a exploração e a opressão. Tal esforço contou com a dedicação de muitos militantes negros que compreenderam que o racismo é sustentado e se renova pela escravidão assalariada imposta pelo capitalismo às amplas massas de todo o mundo. Como se afirma na tese:
“A Internacional Comunista vê com satisfação a resistência dos negros explorados aos ataques de seus exploradores, já que o inimigo de sua raça e do trabalhador branco é idêntico: o capitalismo e o imperialismo. […] A Internacional Comunista representa a luta mundial dos trabalhadores e camponeses revolucionários contra o poder do imperialismo. Não é apenas a organização dos trabalhadores brancos subjugados na Europa e na América, mas também é a organização dos povos de cor oprimidos do mundo. Ela se sente obrigada a apoiar e promover a organização internacional dos negros em sua luta contra o inimigo comum”.
Esta não foi a única formulação sobre a questão negra no período de existência da Internacional Comunista. Também traduzimos para o site as teses do VI Congresso (1928), nas quais se reforça “a necessidade de organizar por todos os meios o movimento dos negros nos Estados Unidos da América e nos demais países (em particular na África do Sul)”. Além de exigir “uma luta decisiva e implacável seja travada contra todas as manifestações do “chauvinismo branco”, afinal, o racismo também se manifesta dentro do proletariado, como também demonstra a tese de 1922.
Em nossos dias, o inimigo em comum dos trabalhadores brancos e negros, o capitalismo, continua de pé. A opressão contra as massas negras também, em que pese algumas conquistas. Por isso mesmo, suas rebeliões continuam, como as que vimos ano passado nos EUA. Falta, no entanto, uma perspectiva revolucionária aos movimentos negro e dos trabalhadores no geral, hoje hegemonizados pelo liberalismo, pela crença em soluções dentro do capitalismo, alimentada pelo Estado e por inúmeras empresas. Como há um século, os comunistas devem cerrar fileiras contra a opressão racial, ser vanguarda nesta luta, e construir a unidade necessária ao combate do capital e seus lacaios.
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IV Congresso da Internacional Comunista
30 de Novembro de 1922
1. Durante e depois da guerra, um movimento de revolta se desenvolveu entre os povos coloniais e semicoloniais contra o poder do capitalismo mundial, e esse movimento está progredindo com sucesso. Enquanto isso, o desenvolvimento do capitalismo depende da resolução de seu último grande desafio, a penetração e colonização intensiva dos territórios habitados por raças negras. O capitalismo francês reconheceu claramente que o imperialismo francês do pós-guerra só pode ser mantido com a criação de um império francês na África, ligado à metrópole por uma ferrovia Trans-Saara.
Os magnatas financeiros dos Estados Unidos, que já exploram doze milhões de negros naquele país, começaram a penetração pacífica na África. O medo da Grã-Bretanha de que sua posição na África possa ser ameaçada é claramente demonstrado pelas medidas extremas que tomou para suprimir as greves na África do Sul. [1]
Assim como a competição entre as potências imperialistas na região do Pacífico produziu um acentuado perigo de uma nova guerra mundial, também há indicações sinistras de que a África se tornou o objeto de seus esforços competitivos. Além disso, a guerra, a revolução russa e os poderosos movimentos rebeldes dos povos asiáticos e muçulmanos contra o imperialismo despertaram a consciência racial entre milhões de negros, que foram oprimidos e humilhados por séculos não apenas na África, mas também, e talvez até mais, nos Estados Unidos.
2. A história dos negros nos Estados Unidos os preparou para desempenhar um papel importante na luta de libertação de toda a raça africana. Trezentos anos atrás, os negros americanos foram arrancados de seu solo nativo, transportados em navios negreiros nas condições indescritivelmente cruéis e vendidos como escravos. Por 250 anos eles trabalharam como escravos sob o açoite do feitor americano. Seu trabalho limpou as florestas, construiu estradas, plantou o algodão, colocou os trilhos da ferrovia e sustentou a aristocracia sulista. A recompensa por seu trabalho foi pobreza, ignorância, degradação e miséria.
Os negros não eram escravos dóceis. Sua história fala de rebeliões, revoltas e métodos clandestinos para a conquista da liberdade. Mas todas as suas lutas foram reprimidas de forma selvagem. Eles foram torturados até a submissão, enquanto a imprensa e a religião burguesas declararam que sua escravidão era legítima.
A escravidão tornou-se uma barreira no caminho para o desenvolvimento da América em uma base capitalista. Na disputa entre a escravidão e a escravidão assalariada, a escravidão estava destinada à derrota. A Guerra Civil foi uma guerra não para libertar os escravos, mas para manter a supremacia industrial do capitalismo nos estados do Norte. Apresentou aos negros a escolha entre a escravidão no Sul e a escravidão assalariada no Norte.
Os anseios, o sangue e as lágrimas dos negros “emancipados” formaram o material com o qual o capitalismo americano foi construído. Quando os Estados Unidos, que agora emergiram como uma potência mundial, foram inevitavelmente puxados para o redemoinho da Guerra Mundial, os negros foram declarados iguais aos brancos. Eles foram autorizados a matar pela “democracia” e se sacrificarem. Quatrocentos mil trabalhadores de cor foram recrutados para o exército americano e organizados em regimentos negros. Imediatamente após os terríveis sacrifícios da guerra mundial, o soldado negro, voltando para casa, enfrentou perseguição racial, linchamento, assassinato, privação do direito de voto e desigualdade entre ele e os brancos.
Os negros revidaram, e por isso tiveram que pagar caro. A perseguição aos negros tornou-se mais intensa e generalizada do que antes da guerra, até que eles aprenderam a esquecer sua “presunção”. O espírito de rebelião despertado pela perseguição e brutalidade do pós-guerra, embora reprimido, reaviva-se, como vimos nos protestos contra atrocidades como as que ocorreram em Tulsa. [2] Combinado com o impacto da integração dos negros na indústria no norte, isso atribui aos negros americanos, especialmente no Norte, um lugar na vanguarda da luta contra a opressão na África.
3. A Internacional Comunista vê com satisfação a resistência dos negros explorados aos ataques de seus exploradores, já que o inimigo de sua raça e do trabalhador branco é idêntico: o capitalismo e o imperialismo. A luta internacional da raça negra é uma luta contra o capitalismo e o imperialismo. O movimento negro internacional deve ser organizado nesta base – nos Estados Unidos, o centro da cultura negra e o foco dos protestos negros; na África, o reservatório de trabalho humano para o desenvolvimento do capitalismo; na América Central (Costa Rica, Guatemala, Colômbia, Nicarágua e outras repúblicas ‘independentes’), que é dominada pelo imperialismo americano; em Porto Rico, Haiti, Santo Domingo [República Dominicana] e outras ilhas do Caribe, onde o tratamento brutal de nossos semelhantes negros pelas tropas de ocupação americanas despertou um protesto de negros conscientes e trabalhadores brancos revolucionários em todo o mundo; na África do Sul e no Congo, onde a crescente industrialização da população negra levou a levantes de diferentes tipos; na África Oriental, onde a atual penetração do capitalismo internacional está levando a população nativa a uma resistência ativa contra o imperialismo.
4. É tarefa da Internacional Comunista mostrar aos negros que eles não são os únicos que sofrem a opressão do imperialismo e do capitalismo. Os operários e camponeses da Europa, Ásia e América também são vítimas dos exploradores imperialistas. Na Índia e na China, no Irã e na Turquia, no Egito e no Marrocos, os povos de cor oprimidos estão construindo uma defesa heroica contra os exploradores imperialistas. Esses povos estão se levantando contra os mesmos ultrajes que levam os negros à fúria: opressão racial, desigualdade social e econômica e exploração intensiva na indústria. Esses povos estão lutando pelos mesmos objetivos que os negros – por libertação e igualdade política, econômica e social.
A Internacional Comunista representa a luta mundial dos trabalhadores e camponeses revolucionários contra o poder do imperialismo. Não é apenas a organização dos trabalhadores brancos subjugados na Europa e na América, mas também é a organização dos povos de cor oprimidos do mundo. Ela se sente obrigada a apoiar e promover a organização internacional dos negros em sua luta contra o inimigo comum.
5. A questão negra se tornou uma parte essencial da revolução mundial. A Internacional Comunista já reconheceu a ajuda valiosa que os povos de cor da Ásia podem fornecer aos países semicoloniais. Ela vê a ajuda de nossos companheiros negros oprimidos como absolutamente necessária para a revolução proletária e a destruição do poder capitalista. Por essas razões, o Quarto Congresso atribui aos comunistas a responsabilidade especial de aplicar as ‘Teses sobre a Questão Colonial’ à situação dos negros. [3]
6. a. O Quarto Congresso considera essencial apoiar todas as formas de movimento negro que minam ou enfraquecem o capitalismo ou colocam barreiras no caminho de sua expansão.
b. A Internacional Comunista lutará pela igualdade das raças branca e negra, e por salários iguais e direitos políticos e sociais iguais.
c. A Internacional Comunista utilizará todos os meios à sua disposição para obrigar os sindicatos a aceitar os direitos dos trabalhadores negros ou, onde esse direito já existe na forma, a fazer esforços especiais para recrutar negros nos sindicatos. Se isso se revelar impossível, a Internacional Comunista organizará os negros em seus próprios sindicatos e fará uso especial da tática da frente única para forçar os sindicatos gerais a admiti-los.
d. A Internacional Comunista tomará medidas imediatas para convocar uma conferência geral ou congresso de negros em Moscou.
Notas
- Os mineiros e outros trabalhadores do Transvaal declararam uma greve geral em março de 1922 contra as reduções nos salários e nas condições de vida, em particular por meio da substituição dos trabalhadores brancos por negros com salários muito mais baixos. O movimento de greve evoluiu para uma revolta geral, que custou 154 vidas. Quatro trabalhadores foram executados. Apesar dos esforços do Partido Comunista para promover a unidade racial e a igualdade, o movimento dos trabalhadores brancos defendeu a barreira da cor e uma ‘África do Sul branca’, enquanto alguns trabalhadores se engajaram em ataques esporádicos aos trabalhadores negros.
- Por dezoito horas durante 31 de maio – 1º de junho de 1921, uma turba branca travou guerra contra a comunidade negra de Tulsa, Oklahoma. Os agressores destruíram todo o distrito negro, deixando 300 ou mais mortos e 10.000 negros desabrigados. Hospitais apenas para brancos admitiram 800 feridos; hospitais negros foram incendiados.
- A referência aqui é provavelmente às Teses sobre a Questão Nacional e Colonial aprovadas pelo Segundo Congresso. Ver Riddell, ed., Workers of the World and Oppressed Peoples, Unite! (Nova York: Pathfinder Press 1991), vol. 1, pp. 283-90. Teses sobre este tema também foram aprovadas pelo Quarto Congresso, embora não antes de sua sessão final.