O que se necessita para ser um médico revolucionário?
Cem Flores
18.03.2022
Che Guevara entrou para a história como grande líder revolucionário, colocando todos os aspectos de sua vida a serviço das massas oprimidas pelo imperialismo. Com seu exemplo, Che deixou várias lições de combate às posturas individualistas e em prol da solidariedade e da ação para organização das lutas coletiva, revolucionária.
Formado médico pela Universidade de Buenos Aires, saiu em busca de realização profissional e pessoal pela América Latina, como o fazem todos aqueles que são “frutos do meio” como ele próprio disse. Sua prática fez crescer sua empatia diante da miséria, que ainda engole o povo. Che exerceu a medicina em leprosários, minas de cobre e povoações tradicionais, entregando o conhecimento científico e suas ferramentas para as necessidades daquelas pessoas.
No entanto, mais que entregar seu conhecimento, Che aprendeu com as massas! Dessas experiências, extraiu lições que transformou em inúmeras anotações para nortear a conduta de um médico revolucionário, importante questão que é respondida por ele mesmo, anos mais tarde, em seu Discurso aos estudantes de medicina e trabalhadores da saúde, em 20 e agosto de 1960:
“(…) para ser médico revolucionário ou para ser revolucionário, a primeira coisa é ter revolução. De nada serve o esforço isolado, o esforço individual, a pureza de ideais, o afã de sacrificar toda uma vida ao mais nobre dos ideais, se esse esforço se faz só, solitário em algum canto da América Latina, lutando contra os governos adversos e as condições sociais que não permitem avançar.”
Che chegou a essa conclusão graças a sua atuação junto ao povo, como militante e guerrilheiro, principalmente na revolução cubana. Esse aprendizado é absolutamente necessário para que entendamos que nosso papel como trabalhadores da saúde só é revolucionário se também temos como objetivo a revolução. E, objetivamente, isso significa ser alguém “que utiliza os conhecimentos técnicos de sua profissão a serviço da Revolução e do povo.”
Para tanto, é necessário vencer uma construção ideológica forte, intransponível para quem não entende o verdadeiro sentido do poder proletário, a absoluta necessidade de se tornar parte do povo, enquanto trabalhador da saúde.
“Devemos, então, começar a apagar nossos velhos conceitos e começar a nos aproximarmos cada vez mais, e cada vez mais criticamente, do povo. Não como nos aproximávamos antes, porque todos vocês dirão: “Não. Eu sou amigo do povo. Gosto muito de conversar com os operários e os camponeses e vou aos domingos para tal lugar ver tal coisa”. Todo o mundo já fez isso. Mas o fez praticando a caridade e o que nós temos que praticar hoje é a solidariedade. Não devemos nos aproximar do povo dizendo: ‘Aqui estamos. Vimos para dar a vocês a caridade da nossa presença, a ensiná-los com nossa ciência, a demonstrar seus erros, sua falta de cultura, sua falta de conhecimentos elementares’. Devemos ir com afã investigativo, e com espírito humilde, para aprender com a grande fonte de sabedoria que é o povo.”
As palavras do Camarada Che reforçam nossa tarefa em todas as frentes, em todos os lugares: A melhor maneira de dizer é fazer!
* * *
Discurso aos estudantes de medicina e trabalhadores da saúde
Ernesto “Che” Guevara
20 de agosto de 1960
Este simples ato, mais um entre as centenas de atos com os quais o povo cubano festeja dia a dia sua liberdade e o avanço de todas suas leis revolucionárias, o avanço pelo caminho da independência total, é, porém, interessante para mim.
Companheiros:
Quase todo mundo sabe que iniciei minha carreira como médico, já faz alguns anos. E quando me iniciei como médico, quando comecei a estudar medicina, a maioria dos conceitos que hoje tenho como revolucionário estavam ausentes no armazém de meus ideais.
Queria triunfar, como quer triunfar todo mundo; sonhava ser um pesquisador famoso, sonhava trabalhar infatigavelmente para conseguir algo que podia ser, em definitivo, colocado à disposição da humanidade, mas naquele momento era um triunfo pessoal. Era, como todos somos, um filho do meio.
Depois de ter me formado, por circunstâncias especiais e talvez também por meu caráter, comecei a viajar pela América Latina e a conheci inteira. Salvo o Haiti e a República Dominicana, todos os demais países da América Latina foram, de alguma maneira, visitados por mim. E pelas condições em que viajei, primeiro como estudante e depois como médico, comecei a entrar em contato estreito com a miséria, com a fome, com as doenças, com a incapacidade de curar a um filho por falta de meios, com o embrutecimento que provocam a fome e o castigo contínuos, até fazer que para um pai perder um filho seja um acidente sem importância, como acontece muitas vezes nas classes golpeadas de nossa Pátria Latino-americana. E comecei a ver que havia coisas que, naquele momento, me pareceram quase tão importantes como ser um pesquisador famoso ou como fazer algum aporte substancial à ciência médica: e era ajudar essa gente.
Mas eu seguia sendo, como sempre seguimos sendo todos, filho do meio e queria ajudar essa gente com meu esforço pessoal. Já havia viajado muito – estava, naqueles momentos, na Guatemala, a Guatemala de Árbenz – e havia começado a fazer algumas anotações para estabelecer a conduta do médico revolucionário. Começava a investigar o que se necessitava para ser um médico revolucionário.
No entanto, veio a agressão, a agressão desencadeada pela United Fruit Company, pelo Departamento de Estado, Foster Dulles – na realidade são o mesmo –, e o títere que haviam posto, que se chamava Castillo Armas – assim se chamava! –. A agressão teve êxito, dado que aquele povo não havia, todavia, alcançado o grau de maturidade que tem hoje o povo cubano, e um belo dia, como tantos, tomei o caminho do exílio, ou pelo menos tomei o caminho da fuga de Guatemala, já que não era essa minha pátria.
Então, me dei conta de uma coisa fundamental: para ser médico revolucionário ou para ser revolucionário, a primeira coisa é ter revolução. De nada serve o esforço isolado, o esforço individual, a pureza de ideais, o afã de sacrificar toda uma vida ao mais nobre dos ideais, se esse esforço se faz só, solitário em algum canto da América Latina, lutando contra os governos adversos e as condições sociais que não permitem avançar. Para fazer revolução necessita-se disto que há em Cuba: que todo um povo se mobilize e que aprenda, com o uso das armas e o exercício da unidade combatente, o que vale uma arma e o que vale a unidade do povo.
E então já estamos situados, sim, no núcleo do problema que hoje temos por diante. E então temos o direito e até o dever de ser, acima de todas as coisas, um médico revolucionário, quer dizer, um homem que utiliza os conhecimentos técnicos de sua profissão a serviço da Revolução e do povo. E então volta-se a colocar as interrogações anteriores. Como fazer, efetivamente, um trabalho de bem-estar social, como fazer para relacionar o esforço individual com as necessidades da sociedade?
E há que fazer, novamente, um balanço da vida de cada um de nós, do que se fez e se pensou como médico ou em qualquer outra função da saúde pública, antes da Revolução. E fazê-lo com profundo afã crítico, para chegar então à conclusão de que quase tudo o que pensávamos e sentíamos, naquela época já passada, deve ser arquivado e deve ser criado um novo tipo humano. E se cada um é o próprio arquiteto desse novo tipo humano, muito mais fácil será para todos criá-lo e que ele seja o expoente da nova Cuba.
É bom que para vocês, os presentes, os habitantes de Havana, se enfatize esta ideia: a de que em Cuba se está criando um novo tipo humano, que não pode ser apreciado exatamente na capital, mas que se vê em cada canto do país. Aqueles de vocês que tenham ido no 26 de julho para a Sierra Maestra terão visto duas coisas absolutamente desconhecidas: um exército com picaretas e pás, um exército que tem por orgulho máximo desfilar nas festas patrióticas na província do Oriente, com suas picaretas e suas pás em riste, enquanto os companheiros milicianos desfilam com seus fuzis. Mas terão visto também algo ainda mais importante, terão visto umas crianças cuja constituição física fará pensar que têm 8 ou 9 anos, e que, no entanto, quase todos eles têm 13 ou 14 anos. São os mais autênticos filhos da Sierra Maestra, os mais autênticos filhos da fome e da miséria em todas as suas formas; são as criaturas da desnutrição.
Nesta pequena Cuba, de quatro ou cinco canais de televisão e de centenas de canais de rádio, com todos os avanços da ciência moderna, quando essas crianças chegaram de noite pela primeira vez à escola e viram os focos de luz elétrica, exclamaram que as estrelas estavam muito baixas essa noite. E essas crianças, que alguns de vocês terão visto, estão aprendendo nas escolas coletivas, desde as primeiras letras até um ofício, até a dificílima ciência de ser revolucionários.
Esses são os novos tipos humanos que estão nascendo em Cuba. Estão nascendo em um lugar isolado, em pontos distantes da Sierra Maestra, e também nas cooperativas e nos centros de trabalho. E tudo isso tem muito a ver com o tema de nossa palestra de hoje, com a integração do médico ou de qualquer outro trabalhador da medicina, dentro do movimento revolucionário, porque essa tarefa, a tarefa de educar e alimentar as crianças, a tarefa de educar o exército, a tarefa de dividir as terras de seus antigos donos ausentes para quem suava todos os dias sobre essa mesma terra sem recolher seu fruto, é a maior obra de medicina social que se fez em Cuba.
O princípio no qual deve se basear o ataque às doenças é criar um corpo robusto; mas não criar um corpo robusto com o trabalho artístico de um médico sobre um organismo fraco, mas criar um corpo robusto com o trabalho de toda a coletividade, sobre toda essa coletividade social.
E a medicina terá que converter-se um dia, então, em uma ciência que sirva para prevenir as doenças, que sirva para orientar todo o público para seus deveres médicos, e que somente deva intervir em casos de extrema urgência, para realizar alguma intervenção cirúrgica, ou algo que escape às características dessa nova sociedade que estamos criando.
O trabalho que está encomendado hoje ao Ministério da Saúde, a todos os organismos desse tipo, é o de organizar a saúde pública de tal maneira que sirva para dar assistência ao maior número possível de pessoas, e sirva para prevenir todo o previsível em relação a doenças, e para orientar o povo.
Mas para essa tarefa de organização, como para todas as tarefas revolucionárias, necessita-se, fundamentalmente, do indivíduo. A Revolução não é, como pretendem alguns, uma padronizadora da vontade coletiva, da iniciativa coletiva, mas todo o contrário, é uma liberadora da capacidade individual do homem.
O que sim é a Revolução é, ao mesmo tempo, orientadora dessa capacidade. E nossa tarefa de hoje é orientar a capacidade criadora de todos os profissionais da medicina em direção às tarefas da medicina social.
Estamos no final de uma era, e não aqui em Cuba. Por mais que se diga o contrário, e que alguns esperançosos pensem assim, a forma de capitalismo que conhecemos e nas quais nos criamos, e sob as quais temos sofrido, estão sendo derrotadas em todo o mundo.
Os monopólios estão sendo derrotados; a ciência coletiva assinala, dia a dia, novos e mais importantes triunfos. E nós temos tido, na América Latina, o orgulho e o sacrificado dever de ser vanguarda de um movimento de libertação que se iniciou há tempos em outros continentes submetidos, África e Ásia. E essa mudança social tão profunda demanda, também, mudanças muito profundas no contexto mental das pessoas.
O individualismo como tal, como ação única de uma pessoa colocada só em um meio social, deve desaparecer em Cuba. O individualismo deve ser, no dia de amanhã, o aproveitamento cabal de todo o indivíduo em benefício absoluto da coletividade. Mas, ainda quando já se entenda isso hoje, ainda quando se compreendam estas coisas que estou dizendo, e ainda quando todo o mundo esteja disposto a pensar um pouco no presente, no passado e no que deve ser o futuro, para mudar de maneira de pensar há que sofrer profundas mudanças interiores, e assistir a profundas mudanças exteriores, sobretudo sociais.
E essas mudanças exteriores estão se dando em Cuba todos os dias. Uma forma de aprender a conhecer esta Revolução, de aprender a conhecer as forças que o povo tem guardadas em si, que ficaram tanto tempo adormecidas, é visitar toda Cuba; visitar as cooperativas e todos os centros de trabalho que estão sendo criados.
E uma forma de chegar até a medula da questão médica é não somente conhecer, não somente visitar, as pessoas que formas essas cooperativas e esses centros de trabalho, mas também averiguar ali quais são as doenças que têm, quais são todos os seus sofrimentos, quais foram suas misérias durante anos e, hereditariamente, durante séculos de repressão e de submissão total.
O médico, o trabalhador médico, deve ir então ao centro do seu novo trabalho, que é o homem dentro da massa, o homem dentro da coletividade.
Sempre, aconteça o que acontecer no mundo, o médico, por estar tão perto do paciente, por conhecer tanto o mais profundo da sua psique, por ser a representação de quem se aproxima da dor e a mitiga, tem um trabalho muito importante, de muita responsabilidade no trato social.
Faz um tempo, poucos meses, aconteceu aqui em Havana que um grupo de estudantes e de médicos recém-formados não queria ir ao campo e exigiam certas compensações para ir. E desde o ponto de vista do passado é o mais lógico que assim ocorra; pelo menos parece assim para mim, que o entendo perfeitamente.
Simplesmente pareço estar frente à lembrança do que era e do que pensava, há uns quantos anos. É outra vez o gladiador que se revela, o lutador solitário que quer garantir um futuro, melhores condições, e faz valer então a necessidade que se tem dele.
Mas o que aconteceria se em vez desses novos rapazes, cujas famílias puderam, na sua maioria, pagar alguns anos de estudo, os que acabaram suas carreiras [universitárias], começando agora o exercício da sua profissão? O que aconteceria se em vez deles fossem duzentos ou trezentos camponeses os que tivessem surgido, digamos que por mágica, das aulas universitárias?
Teria acontecido, simplesmente, que esses camponeses teriam corrido, imediatamente, e com todo o entusiasmo, para socorrer os seus irmãos; que teriam pedido os postos de mais responsabilidade e de mais trabalho, para demonstrar assim que os anos de estudo que lhes foram dados não foram dados em vão. Teria acontecido o que acontecerá dentro de seis ou sete anos, quando os novos estudantes, filhos da classe operária e da classe camponesa, recebam seus títulos profissionais, de qualquer tipo.
Mas não devemos olhar com fatalismo o futuro e dividir os homens em filhos da classe operária ou camponesa e contrarrevolucionários, porque é simplista e porque não é certo, e porque não há nada que eduque mais um homem honrado do que viver dentro de uma Revolução. Porque nenhum de nós. Nenhum do primeiro grupo que chegou no Granma, que se estabeleceu na Sierra Maestra e que aprendeu a respeitar o camponês e o operário convivendo com eles, teve um passado de operário ou de camponês. Naturalmente que houve quem tinha que trabalhar, que tinha conhecido certas necessidades na sua infância; mas a fome, isso que se chama fome de verdade, isso nenhum de nós conhecia e começamos a conhecê-la, transitoriamente, durante os dois longos anos da Sierra Maestra. E então muitas coisas se tornaram muito claras.
Nós, que no começo castigávamos duramente quem tocava ainda que fosse em um ovo de algum camponês rico, ou mesmo de algum latifundiário, levamos um dia dez mil cabeças de gado para a Sierra e dissemos aos camponeses, simplesmente: “Comam”. E os camponeses, pela primeira vez em muitos anos, e alguns pela primeira vez na vida, comeram carne de gado.
E o respeito que tínhamos pela sacrossanta propriedade dessas dez mil cabeças de gado se perdeu no curso da luta armada, e compreendemos perfeitamente que vale mais, mas milhões de vezes mais, a vida de um único ser humano do que todas as propriedades do homem mais rico da terra. E nós o aprendemos, nós o aprendemos ali, nós, que não éramos filhos da classe operária nem da classe camponesa. E por que nós vamos dizer agora aos quatro ventos que éramos os privilegiados e que as demais pessoas em Cuba não podem aprender isso também? Sim, podem aprender, mas, além disso, a Revolução hoje exige que o aprendam, exige que se compreenda bem que muito mais importante que um bom salário é o orgulho de servir ao próximo, que muito mais definitivo, muito mais perene que todo o ouro que se possa acumular é a gratidão de um povo. E cada médico, no círculo de sua ação, pode e deve acumular esse precioso tesouro, que é a gratidão do povo.
Devemos, então, começar a apagar nossos velhos conceitos e começar a nos aproximarmos cada vez mais, e cada vez mais criticamente, do povo. Não como nos aproximávamos antes, porque todos vocês dirão: “Não. Eu sou amigo do povo. Gosto muito de conversar com os operários e os camponeses e vou aos domingos para tal lugar ver tal coisa”. Todo o mundo já fez isso. Mas o fez praticando a caridade e o que nós temos que praticar hoje é a solidariedade. Não devemos nos aproximar do povo dizendo: “Aqui estamos. Vimos para dar a vocês a caridade da nossa presença, a ensiná-los com nossa ciência, a demonstrar seus erros, sua falta de cultura, sua falta de conhecimentos elementares”. Devemos ir com afã investigativo, e com espírito humilde, para aprender com a grande fonte de sabedoria que é o povo.
Muitas vezes nos daremos conta de como estávamos equivocados em conceitos que, de tão sabidos, faziam parte de nós e automaticamente de nossos conhecimentos. Muitas vezes devemos mudar todos nossos conceitos, não somente os conceitos sociais ou filosóficos, mas também às vezes os conceitos médicos. E veremos que nem sempre as doenças se tratam como se tratam doenças em um hospital, em uma grande cidade; veremos, então, como o médico tem que ser também agricultor, e como aprender a semear novos alimentos, e semear com seu exemplo, o afã de consumir novos alimentos, de diversificar esta agricultura alimentícia cubana, tão pequena, tão pobre, em um dos países, potencialmente, mais rico da terra em termos agrícolas. Veremos, então, como teremos que ser, nessas circunstâncias, um pouco professores, às vezes muito professores; como teremos que ser políticos também; como o primeiro que teremos que fazer não é brindar nossa sabedoria, mas demonstrar que vamos para aprender com o povo, que vamos realizar essa grande e bela experiência comum, que é construir uma nova Cuba.
E já foram dados muitos passos, e há uma distância que não se pode medir de forma convencional, entre aquele primeiro de janeiro de 1959 e hoje. Há muito que a maioria do povo entendeu que aqui não apenas havia caído um ditador, mas entendeu, também, que havia caído um sistema. Vem, então, agora, a parte em que o povo deve aprender que, sobre as ruínas de um sistema desmoronado, há que construir o novo sistema que traga a felicidade absoluta do povo.
Eu recordo que nos primeiros meses do ano passado o companheiro [Nicolás] Guillén chegou da Argentina. Era o mesmo grande poeta que é hoje; talvez seus livros tenham sido traduzidos a algum outro idioma, porque todos os dias ganha novos leitores em todas as línguas do mundo, mas era o mesmo de hoje. Não obstante, era difícil para Guillén ler suas poesias, que eram a poesia do povo, porque aquela era a primeira época, a época dos preconceitos. E ninguém nunca parava para pensar que durante anos e anos, com uma dedicação insubordinada, o poeta Guillén havia colocado a serviço do povo e ao serviço da causa em que acreditava, todo seu extraordinário dom artístico. As pessoas viam nele, não a glória de Cuba, mas o representante de um partido político que era tabu. Mas tudo aquilo caiu no esquecimento; já aprendemos que não pode haver divisões pela forma de pensar em relação a certas estruturas internas do nosso país, se nosso inimigo é comum, se nossa meta é comum. E no que é preciso colocar-se de acordo é se temos ou não um inimigo comum e se tratamos de alcançar ou não uma meta comum.
Se não, todos o sabemos, chegamos definitivamente ao convencimento de que há um inimigo comum. Ninguém olha para trás, para ver se há alguém que o possa escutar, algum outro, alguma escuta da Embaixada que possa transmitir sua opinião, antes de emitir claramente uma opinião contra os monopólios, antes de dizer claramente: “Nosso inimigo, e o inimigo da América Latina inteira, é o governo monopolista dos Estados Unidos da América”. Se todo o mundo já sabe que esse é o inimigo e já se começa a saber que quem luta contra esse inimigo tem algo de comum conosco, vem então a segunda parte. Para cá, para Cuba, quais são nossas metas? O que queremos? Queremos ou não queremos a felicidade do povo? Lutamos ou não pela libertação econômica absoluta de Cuba? Lutamos ou não por ser um país livre entre os livres, sem pertencer a nenhum bloco guerreiro, sem ter que consultar nenhuma Embaixada de nenhum grande da terra para qualquer medida interna ou externa que se vá tomar aqui? Se pensamos redistribuir a riqueza do que tem demasiado para dar-lhe ao que não tem nada; se pensamos aqui fazer do trabalho criador uma fonte dinâmica, cotidiana, de todas nossas alegrias, então já temos metas a que buscar. E todo aquele que tenha essas mesmas metas é nosso amigo. Se no meio tem outros conceitos, se pertence a uma ou outra organização essas são discussões menores.
Nos momentos de grandes perigos, nos momentos de grandes tensões e de grandes criações, o que conta são os grandes inimigos e as grandes metas. Se já estamos de acordo, se todos já sabemos para onde vamos, e apesar daquele a quem vai pesar, então temos que iniciar nosso trabalho.
E eu lhes dizia que temos que começar, para ser revolucionário, por ter a revolução. Já a temos. E é preciso também conhecer o povo sobre o qual se vai trabalhar. Creio, no entanto, que não nos conhecemos bem, creio que nesse caminho nos falta ainda andar um pouco. E se me perguntassem quais são os meios para conhecer o povo, além de ir ao interior, de conhecer as cooperativas, de viver nas cooperativas, de trabalhar nelas – e nem todo o mundo pode fazê-lo, e há muitos lugares nos quais a presença de um trabalhador da medicina é importantíssima – nesses casos eu lhes diria que uma das grandes manifestações da solidariedade do povo de Cuba são as Milícias Revolucionárias. Milícias que dão agora ao médico uma nova função e o preparam para o que de todas as maneiras até poucos dias atrás foi uma triste e quase fatal realidade de Cuba, quer dizer, que íamos a ser presa – ou, ao menos, se não presa, vítimas – de um ataque armado de grande envergadura.
E devo advertir, então, que o médico, nessa função de miliciano e revolucionário, deve ser sempre um médico. Não se deve cometer o erro que nós cometemos na Sierra. Ou talvez não tenha sido um erro, mas o sabem todos os companheiros médicos daquela época: nos parecia uma desonra estar ao pé de um ferido ou de um doente, e buscávamos qualquer maneira possível de agarrar um fuzil e ir demonstrar, na frente de luta, o que sabíamos fazer.
Agora as condições são diferentes, e os novos exércitos que se formam para defender o país devem ser exércitos com uma técnica distinta, e o médico terá sua importância enorme dentro dessa técnica do novo exército; deve seguir sendo médico, que é uma das mais belas tarefas que existe e mais importantes na guerra. E não somente o médico, mas também os enfermeiros, os laboratoristas, todos os que se dediquem a essa profissão tão humana.
Mas devemos todos, ainda que sabendo que o perigo está latente, e mesmo nos preparando para repelir a agressão, que ainda existe no ambiente, devemos deixar de pensar nela, porque se fazemos o centro de nossas ações a preparação para a guerra, não podemos construir o que queremos, não poderemos nos dedicar ao trabalho criador.
Todo trabalho, todo capital que se invista em se preparar para uma ação guerreira, é trabalho perdido, é dinheiro perdido. Desgraçadamente temos que fazê-lo, porque há outros que se preparam, mas é – e digo com toda minha honestidade e meu orgulho de soldado –, que o dinheiro que vejo ir embora das arcas do Banco Nacional com mais tristeza é o que vai pagar alguma arma de destruição.
Contudo, as Milícias têm uma função na paz, as Milícias deverão ser, nos centros povoados, a arma que unifique e faça conhecer o povo. Deve praticar-se, como já me contavam os companheiros que praticavam nas Milícias dos médicos, uma solidariedade extrema. Se deve buscar imediatamente solucionar os problemas dos necessitados de toda Cuba em todos os momentos de perigo; mas também é uma oportunidade de se conhecer, é uma oportunidade de conviver, irmanados e igualados por um uniforme, com os homens de todas as classes sociais de Cuba.
Se nós, trabalhadores da medicina – e me permitam que use de novo um título que faz tempo tinha esquecido –, conseguimos, se usamos todos esta nova arma da solidariedade, se conhecemos as metas, conhecemos o inimigo, e conhecemos o rumo por onde temos que caminhar, nos falta somente conhecer a parte diária do caminho a realizar. E essa parte ninguém a pode ensinar, essa parte é o caminho próprio de cada indivíduo, é o que fará todos os dias, o que recolherá em sua experiência individual e o que dará de si no exercício da sua profissão, dedicado ao bem-estar do povo.
Se já temos todos os elementos para marchar em direção ao futuro, recordemos aquela frase de Martí, que neste momento eu não estou praticando, mas que é preciso praticar constantemente: “A melhor maneira de dizer é fazer”, e marchemos então em direção ao futuro de Cuba.
* * *
Discurso pronunciado na inauguração de uma série de palestras e discussões políticas organizadas pelo Ministério da Saúde Pública.
Traduzido de Che Guevara Presente. Una antología mínima. Editado por María del Carmen Ariet García e David Deutschmann. Editora Ocean Sur, 2006, 118-127.
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