Ana Barradas. Os comunistas e a homossexualidade.
16.12.2022
Cem Flores
Divulgamos o texto de Ana Barradas, publicado na revista Política Operária em 2006, sobre a relação histórica dos/as comunistas com a luta LGBT. Para construir hoje uma posição revolucionária na luta contra as opressões, achamos de fundamental importância conhecer tal história, em seus avanços e contradições.
Já publicamos outros textos sobre o assunto, como o Discurso Sobre a Libertação Gay e Feminina, de Huey Newton, do Partido dos Panteras Negras. O texto “A família na União Soviética. Crise e reconstituição 1917/1944”, também de Ana Barradas, é igualmente de interesse para a questão.
Ana Barradas expõe como a família patriarcal, a velha célula familiar, é a chave para entendermos por que a repressão com base na sexualidade é útil para a burguesia. Também ajuda a compreender as razões para a distância que se construiu entre a luta LGBT e o movimento comunista, apesar de originalmente este ter sido pioneiro nesta questão, como no caso do Partido Comunista Alemão e suas relações com o Comitê Científico-Humanitário, e da descriminalização da homossexualidade pela Revolução Bolchevique.
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Os comunistas e a homossexualidade
Política Operária, 2006
Ana Barradas
A perseguição aos homossexuais nos anos 30 e 40, na URSS e nos países ocidentais, foi uma das formas de restauração da família patriarcal.
Na actualidade e numa altura em que cada vez mais países consagram na lei os casamentos entre pessoas do mesmo sexo, alguns agrupamentos políticos adoptam como uma das suas bandeiras principais a luta por uma homossexualidade livre. Longe de vermos esta reivindicação como ponto essencial de um programa revolucionário, criticamos esta e outras intervenções que, abandonando como centro da luta a contradição principal proletariado/burguesia, procuram o caminho mais fácil de colocar todas as lutas secundárias e sectoriais ao mesmo nível. A receita deturpada de uma certa esquerda – isto é, o direito a uma sexualidade saudável transformado em direitos para os homossexuais, a luta pela emancipação feminina reduzida à luta pola despenalização do aborto e a luta contra o capitalismo subsumida na luta geral por direitos cívicos – são vias reduzidas que não contestam o sistema na sua globalidade.
No entanto, também não podemos subscrever opiniões intolerantes e mal informadas que nas décadas passadas fizeram curso nos meios de esquerda, segundo as quais a homossexualidade era uma prática dos membros decadentes da burguesia e que todo o tempo que se perdesse com esse problema distraía a atenção dos revolucionários dos problemas essenciais da luta de classes.
Contudo, a questão da homossexualidade interessa-nos, embora por uma razão diferente. É que vemos, em todas as resistências a reconhecê-la como um direito fundamental a inscrever em qualquer programa comunista, mais uma manifestação persistente da vontade, consciente ou não, de perpetuar a família tradicional como base de reprodução ideológica de um sistema baseado na opressão da mulher, o patriarcalismo.
Este fenómeno também pode ser detectado no campo comunista, quando, após os primeiros anos da revolução de Outubro, o regime estalinista, ao mesmo tempo que abandonava a ideia de abolição da família e da instauração de uma nova ordem social, repôs na União Soviética, entre outras medidas que iam no mesmo sentido, a penalização da homossexualidade. Dentro da linha geral de crítica à degeneração iniciada nos anos 30, faz todo o sentido chamar a atenção para este facto e exprimir sem ambigüidades o repúdio das gerações actuais de comunistas por essa política revisionista neste campo específico.
Mas, antes de passarmos à União Soviética, não é de mais recordar que a homossexualidade no Ocidente foi perseguida desde a Idade Média e que todos os países ocidentais acolheram nas suas normas jurídicas formas de criminalização mais ou menos severas, numa propensão geral da sociedade de rejeitar qualquer forma de sexualidade desviante.
O único país ocidental excepção a esta regra foi, durante um curto espaço de tempo antes da II Guerra Mundial, a Alemanha. Há que destacar este caso específico por duas razões: 1º por ser único na Europa Ocidental; 2º por a luta dos activistas homossexuais de esquerda ter sido apoiada pela esquerda e em especial polo Partido Comunista Alemão, contrapondo-se ao anticomunismo radical dos grupos homossexuais de direita e centro.
Sendo o partido que mais longe levou a sua compreensão do fenômeno da homossexualidade, o PCA considerava-a mesmo assim uma doença, ao defender, numa resolução do seu congresso de 1927, “a revogação da penalização legal de relações sexuais antinaturais” por ser uma obstinação inútil “combater enfermidades com a lei penal”. Antes das eleições parlamentares de 1930, a organização de direitos dos homossexuais, o Comitê Científico Humanitário, afirmava: “O único partido que representou o ponto de vista científico humanitário sem reservas e, tanto quanto for humanamente possível, o representará mais uma vez no novo congresso, foi o Partido Comunista Alemão.” Em 1931, confirmando essa tolerância algo reticente, um dos seus membros mais autorizados exprimiu o ponto de vista do partido ao escrever, contrapondo às desculpáveis “fraquezas” homossexuais a saudável “fecundidade” proletária: “A classe operária, embora muito longe de cultivar inclinações e actividades sexuais entre pessoas do mesmo sexo, tanto entre homens como entre mulheres, adopta uma atitude tolerante perante tais manifestações da vida sexual— desde que esta actividade não transgrida as fronteiras igualmente impostas por razões sociais sobre as relações entre o homem e a mulher — porque o proletário se sente fértil e tem confiança no futuro como colectivo, como classe”.
A partir de 1935, o regime hitleriano passou a defender a prisão perpétua para os homossexuais e em 1937 organizou uma grande campanha contra eles, em que foram presos milhares de homens e mantidos sob prisão todos os que recusassem a castração “voluntária”. Diga-se, de passagem, que foi nesse período que, para ajudar jovens de boas famílias a escapar a tal castigo, Freud passou certificados médicos em que garantia que a psicanálise podia “curar” a homossexualidade, apesar de estar convencido de que não se tratava de uma doença e de ter afirmado isso mesmo em público.
Revolução Bolchevique descriminalizou
No país dos bolcheviques, a situação política imediatamente após a revolução de Outubro baniu a repressão contra os homossexuais. Numa sociedade em que as mulheres e as crianças estavam totalmente subordinadas aos maridos, pais, e irmãos e em que, por exemplo, Máximo Gorki tinha sido brutalmente espancado por homens de uma aldeia cossaca ao tentar socorrer uma mulher arrastada nua por um cavalo por ter sido acusada do “crime” de adultério, a nova Rússia de Lenine tinha abolido a lei anti-sodomia de 1918, que punia os homossexuais, entre outras medidas revolucionárias respeitantes ao divórcio, à família, aos direitos das mulheres, etc.
Ao aprovarem o código criminal de 1922, os bolcheviques tinham reconhecido os pareceres médicos e jurídicos que recomendavam a descriminalização das relações entre adultos do mesmo sexo e tinham incluído nos objectivos da revolução nascente a batalha pela libertação da sexualidade, a abolição das discriminações e limitações com base no sexo e no gênero e a emancipação das mulheres.
Nessa altura, surgiram muitas mulheres que se vestiam sempre como homens e procuravam viver como eles, como era o caso de várias comandantes do exército e membros de instituições acadêmicas e culturais. Algumas delas, declarando-se abertamente lésbicas, chegaram a exigir o direito à união com pessoas do mesmo sexo. Outras desejavam mudar de identidade e passar a ser homens, ou adoptavam variantes masculinas do seu nome de baptismo, havendo mesmo quem pedisse intervenções cirúrgicas para mudança de sexo. Todas elas tinham ganho visibilidade na sociedade daquele tempo, porque a revolução de Outubro lhes permitira exprimir-se de forma não convencional e elas eram aceites sem objecções nos meios mais esclarecidos. De resto, o novo tipo de mulheres, participantes enérgicas e confiantes da nova sociedade, deu origem a comentários de visitantes ocidentais sobre a suposta “masculinidade” das russas.
Mas a verdade é que o próprio conceito de feminilidade era posto em causa pelos bolcheviques, que rejeitavam a imagem tradicional da mulher ideal, figura delicada, infantilizada e quase mística, incapaz de enfrentar os desafios da construção de uma nova vida. De uma maneira geral, fossem homossexuais ou não, as mulheres rejeitaram também o modelo frágil e impotente e procuravam mostrar-se à altura das tarefas que se lhes colocavam, aceitando profissões e empregos antes reservados exclusivamente aos homens que exigiam força e resistência físicas: tractoristas, condutoras de veículos pesados, aviadoras, etc.
Um debate travado em 1929 no conselho médico do Ministério da Saúde sobre “travestis” e o “sexo intermediário” considerara com algum fascínio e indulgência a existência de “mulheres do tipo masculinizado”. Os psiquiatras interessavam-se por essa nova identidade de gênero, caracterizando-as segundo uma nova categoria sexológica.
Um dos casos mais famosos foi o do soldado Evgenii Federovich, antes chamado Evgeniia, que em 1922 casou com uma empregada dos correios da cidade onde estava localizado o seu regimento. Quando se descobriu que era mulher, foi acusada pelo tribunal local de cometer um “crime contra natura”, mas o Ministério da Justiça declarou o casamento “legal, porque consumado por mútuo consentimento.”
O próprio Evgenii Federovich defendeu a perspectiva do “amor polo mesmo sexo” como “uma variante particular da sexualidade humana” e declarou-se convicto de que, se os indivíduos do “sexo intermédio” “deixassem de ser oprimidos e amesquinhados pela sua própria falta de consciência e polo desrespeito pequeno-burguês”, as suas vidas tornar-se-iam “socialmente valiosas.” Uma jovem de 23 anos, respondendo a um inquérito aos estudantes da Universidade Sverdlov de Moscovo, escreveu: “Quero ser homem e aguardo com impaciência as descobertas científicas que permitirão a castração e a implantação de órgãos.”
Ainda nos anos 20, alguns indivíduos começaram a procurar psiquiatras e clínicos empenhados no estudo dos mecanismos da diferenciação sexual para lhes pedir o reconhecimento de elementos que fundamentassem a sua mudança de sexo.
No entanto, as opiniões dos especialistas não eram unânimes e, à medida que os problemas econômicos e as dificuldades políticas se agravaram, aumentaram as pressões para um maior conformismo social e sexual.
Em relação aos homens “femininos”, aliás, a tolerância era muito menor. Ficou célebre o caso de um oficial do exército que mudou oficialmente de identidade, passou a comportar-se em tudo como mulher e exerceu a profissão de enfermeira, mas, de uma maneira geral, havia menos simpatia para os travestis e os homossexuais do sexo masculino.
Wilhelm Reich
Na Alemanha, como já vimos, foi a esquerda, e em particular o Partido Comunista, quem subscreveu as reivindicações dos movimentos homossexuais. Note-se contudo que, apesar desta atitude do PCA, entre os homossexuais em geral grassava um sentimento anticomunista agressivo e muitos apoiaram mesmo activamente o movimento nazi, como de resto a maioria da população, o que permitiu que os nazis tomassem o poder por meios pacíficos.
Quando os partidos de esquerda foram ilegalizados, a repressão abateu-se sem peias sobre os homossexuais na Alemanha. Quase 50 mil homens foram presos nesse período, 5 mil dos quais foram enviados para campos de concentração. Embora não fossem alvo da chamada “solução final”, muitos homossexuais morreram no cativeiro. No resto da Europa também foram reprimidas todas as organizações de homossexuais. Só houve alguma resistência na Suíça, quando um grupo deles constituiu a revista Schweizerisches Freundschafts-Banner (A bandeira suíça da amizade), na Holanda, onde se formou o Nederlandsch Wetenschappelijk Humanitair Komitee (Comité Humanitário e Científico Holandês), extinto quando se deu a invasão nazi, e na Grã-Bretanha, onde funcionou durante algum tempo a discreta Associação Sexológica Británica.
Há contudo neste período uma figura extraordinária no combate à repressão sexual, o psicanalista Wilhelm Reich, que, apoiado na sua admiração pela revolução de Outubro, nas suas convicções de comunista e na sua formação freudiana, resolveu abrir uma clínica de higiene sexual num bairro operário de Viena. A partir dessa experiência, criou, com o apoio do PC Austríaco, o movimento “Sex-Pol” (Associação por uma Política Sexual Proletária), que distribuía contraceptivos gratuitos, fazia abortos e oferecia aconselhamento sexual a milhares de jovens trabalhadores, chegando a ter 40.000 membros. Ao mesmo tempo, defendia que a terapia individual era inútil se não tivesse por base amplas mudanças sociais, já que muitos dos problemas sexuais eram resultado directo das condições econômicas, da habitação miserável e da rigidez da família patriarcal. Era preciso instaurar uma “economia sexual” em que a uma sexualidade saudável correspondesse uma economia saudável. Estas ideias, que procuravam harmonizar a psicanálise com o materialismo dialéctico, tiveram enorme repercussão nos partidos de esquerda e em particular no Partido Comunista Austríaco e valeram a este último a adesão de muitos jovens operários. Foi nessa altura que Reich escreveu O Combate Sexual da Juventude, mais tarde recuperado pelo Maio de 68, e na altura recebido com grandes reservas pelos comunistas mais ortodoxos daquele partido.
Aprofundando a sua teoria, e vivendo agora em Berlim, em 1933 Reich publicou A Psicologia de Massas do Fascismo, em que demonstra que, no plano psicológico, o fascismo apoia-se na estrutura neurótica da família patriarcal, autoritária e repressora, reprodutora de adultos insensíveis, petrificados e indiferentes, necessários para o capitalismo industrial instaurar um tipo de trabalho rotineiro, repetitivo e inimaginativo. Essa “praga emocional” ou “a supressão organizada da vida”, como lhe chamou, era a matéria que compunha a psicologia de massas do fascismo. Esta teoria foi combatida pelos comunistas alemães, que afirmavam que Hitler significava apenas um “contratempo temporário”.
Quando em 1934 os nazis queimaram os livros de Reich num acto público, a Associação Psicanalítica Internacional expulsou-no com o pretexto das suas convicções comunistas. Reich fugiu para a Noruega, onde se encontrou com Trotsky, que também aí estava exilado naquela altura, provavelmente em busca de um apoio que não recebeu. Expulso do PC Alemão polas suas críticas à actuação do partido face ao nazismo e às medidas estalinistas sobre a família e a sexualidade, que anulavam o modelo bolchevique, em 1939 Reich viajou para os Estados Unidos, onde se foi afastando das suas ideias originais, morrendo na cadeia, doente e completamente desacreditado, nos anos 50.
Mas a sua obra que mais interessa para este artigo é A Revolução Sexual, em que, na seqüência de uma viagem à Rússia, critica desiludido as reformas de 1934 e, embora acentuando as dificuldades materiais da sua execução, exalta os aspectos mais revolucionários da experiência social de Outubro no sentido de acabar com a família patriarcal: “… o início de uma revolução sexual com a actual dissolução da família; a substituição da estrutura familiar patriarcal polo colectivo socialista; o envolvimento cada vez maior do marido e da mulher nas funções públicas; o acesso de filhos e filhas aos colectivo e a subsequente concorrência entre as relações sociais e familiares; a transferência da responsabilidade sobre os filhos dos pais para a sociedade e a colectivização da educação infantil.”
Regime estalinista recriminalizou
Na recém-formada União Soviética dos anos 30, o discurso médico passou a ser mais um meio de controle social e de definição de “identidades sexuais perigosas”, catalogando como desvios ou doenças tudo quanto não fosse conforme à prática considerada normal. Surgiram argumentos clínicos que estabeleciam a heterossexualidade como única norma aceitável, considerando como taras doentias todos os desvios à norma e dando assim fundamento “científico” à criminalização dos que não a seguiam.
A partir daí, depressa se passou do campo médico para o político. Em 1932 foram suspensas as comunas juvenis, que antes defendiam o amor livre – a livre união de duas pessoas livres e independentes que se amam –, ao mesmo tempo que o comissário da Saúde Pública recomendava aos jovens a abstinência sexual. Estava já criado um clima em que os funcionários do Estado e do partido, temerosos dos efeitos sociais das medidas revolucionárias anteriores, trabalhavam activamente para lhes inverter o curso, coisa que fizeram com facilidade: o argumento decisivo da prioridade das questões económicas, da luta contra o cerco imperialista e da batalha da produção para superar o subdesenvolvimento era suficiente para convencer as massas de que tais experiências, por mais avançadas que fossem, tinham de ser abandonadas.
A partir de 1934, a consolidação do casamento tradicional enquanto instituição – quando o código de 1927 declarava legais todas as uniões em regime matrimonial, registadas ou não – e as leis anti-aborto – quando antes o aborto fora proclamado livre e gratuito –, os prêmios às famílias numerosas – apesar de o índice de natalidade ter aumentado drasticamente após a revolução –, o encerramento de jardins de infáncia que se dedicavam à educação infantil sexualmente afirmativa – onde a prática de jogos sexuais entre crianças não era reprimida – configuraram, no plano da ordem sexual e familiar patriarcais, a contra-revolução interna do PCUS, sempre apoiada em sólidos argumentos objectivos e ignorando por inteiro a concretização da utopia comunista.
A criminalização da homossexualidade – 15 anos depois da despenalização da homossexualidade por decreto de Lenine, com a instituição de penas que iam de três a oito anos de prisão, campanhas de propaganda na imprensa e repressão em massa em Moscovo, Leninegrado, Cracóvia e Odessa – foi acompanhada por declarações de figuras influentes do regime que associaram a homossexualidade com o fascismo e começaram a denunciar os homossexuais como “agentes de corrupção e subversão”. A 7 de Março de 1934 foi promulgada uma nova lei que fixava uma pena mínima de três anos por “relações sexuais entre homens”. A justificação era que assim o governo soviético combateria um “foco de propaganda da oposição” no seio do Exército Vermelho. Daí à deportação de homossexuais para a Sibéria foi um passo.
No fim de contas, todas estas tendências conservadoras visavam restabelecer a velha célula familiar, produtora de uma hierarquia bem definida, reprodutora de valores arcaicos e da prática da autoridade do chefe, da submissão dos filhos aos pais, da mulher ao homem, da repartição desigual do trabalho, dos rendimentos e das responsabilidades, em suma, uma célula capaz de dar base de apoio à nova classe burguesa em ascensão. Deturpando grosseiramente o pensamento marxista, punha-se completamente de parte o programa original dos bolcheviques.
Sem perder de vista que foram a maioria das mulheres as grandes prejudicadas com esta contra-revolução sexual – feita em nome da edificação do socialismo mas na realidade actuando para a sua destruição – é da mais elementar justiça reconhecer que a minoria homossexual não só viu anulada a sua liberdade anterior, como foi alvo de medidas repressivas nunca antes imaginadas polos revolucionários de Outubro.
O império da homofobia
Durante a Segunda Guerra Mundial, a homofobia soviética influenciou a opinião dos comunistas dos países ocidentais. Curiosamente, à excepção dos trotskistas e de Wilhelm Reich, poucos se interrogaram sobre a proximidade de pontos de vista com o regime hitleriano. Embora de natureza e origem diferentes e combatendo-se entre si, os dois regimes, autoritários como eram, precisavam ambos, embora para fins distintos, da função repressiva da família patriarcal, e portanto adoptavam a mesma intolerância contra os desvios à sexualidade normalizada.
Nos anos do pós-guerra, a homofobia passou a fazer lei nos partidos comunistas, esquecida ou rejeitada que estava a tradição leninista de libertação sexual. A adesão a um heterossexismo intolerante passou a fazer parte da cultura comunista, exactamente como acontecia nos meios burgueses, apenas mitigada por uma crueldade e ironia um pouco menos corrosivas. Neste terreno como em tantos outros, a mentalidade dos operários e trabalhadores revolucionários deixava-se dominar pela cultura hegemônica da classe dominante.
No plano ideológico, a repressão da homossexualidade, na Rússia como no resto da Europa e independentemente do tipo de regime, teve uma coisa em comum: visou a preservação da família patriarcal, com toda a sua carga de hierarquias, desigualdades e relações doentias. No caso da União Soviética, nada teve a ver com qualquer conceito revolucionário e muito menos com o processo de dissolução da família patriarcal iniciado em 1917 que identificara, com toda a justeza, a necessidade de acolher na lei e na prática social o direito a uma sexualidade livre desses constrangimentos. Os dois decretos assinados por Lenine em Dezembro de 1917 – “Da dissolução do matrimônio” e “Do casamento civil, dos filhos e do registo do estado civil” – tinham sido concebidos para conformar a prática com o programa que o novo poder se propunha aplicar. Mas a crueza implacável das relações sociais e políticas em retrocesso nos anos 30 lançou-nos para o caixote do lixo. O novo Estado autoritário necessitava da velha família, da velha moral sexual conservadora, da velha ideologia baseada numa estrutura hierárquica para dar suporte à nova classe capitalista de Estado que se ia formando.
Na União Soviética, a lei de 1934 penalizadora da homossexualidade só foi revogada em 1993, não por pressão de activistas gays e lésbicas, mas porque Boris Yeltsin, nesta como noutras áreas, quis dar uma imagem de reformador moderno e distanciar-se dos antigos dirigentes. Na Alemanha foi revogada em Março de 1994. A 18 de Setembro de 2001, o governo alemão e os bancos suíços resolveram “rectificar a exclusão dos homossexuais entre as vítimas do holocausto”. Vários países consagraram na lei os casamentos homossexuais.
Mas a família patriarcal ainda reina: ainda que liberalizado e quase incontestado, o capitalismo global não pode passar sem ela. E assim será até que os comunistas tenham a clarividência de compreender que o grande combate pelo derrube da burguesia passa também pela abolição da família e por uma sexualidade não reprimida, como defendiam os bolcheviques.