Étienne Balibar: A Retificação do “Manifesto Comunista” (1974) – 1ª parte
Cem Flores
08.05.2023
Em 2023, o Manifesto Comunista completa 175 anos. Com sua primeira edição publicada em fevereiro de 1848, o documento foi escrito por Karl Marx e Friedrich Engels para a Liga dos Comunistas, organização revolucionária da qual faziam parte à época. Traduzido, lido e comentado em todo o mundo desde então, tornou-se uma obra fundamental do movimento comunista internacional.
O Manifesto lançou as bases da teoria científica do proletariado, o materialismo histórico, e dos princípios políticos da posição comunista, em clara demarcação de campo diante de outras correntes políticas. Por isso, não se trata de um texto de importância meramente histórica. Ou mesmo de um texto já datado e circunscrito à realidade do nascente movimento operário europeu. Em suas páginas, estão marcadas teses fundamentais para a ainda atual luta contra a dominação da burguesia e a escravidão assalariada, tais como “a história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes”, “a burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros” e “proletários de todos os países, uni-vos!”. 175 anos depois, o Manifesto continua uma arma teórica da causa proletária em todo o mundo!
Para comemorar o aniversário desse documento tão importante para o movimento operário e a luta comunista, o Cem Flores resgata um texto do filósofo francês Étienne Balibar chamado A Retificação do “Manifesto Comunista”. Trata-se, segundo o próprio autor, de uma exposição para professores de diferentes níveis do ensino realizada no Centro Pedagógico Regional de Marselha. Em seguida, foi publicado na revista La Pensée, em 1972, e finalmente tornado um capítulo de seu livro Cinco Estudos do Materialismo Histórico, de 1974. Utilizamos a edição em português de 1975, traduzida por Elisa Amaro Bacelar e publicada pela Editorial Presença (Portugal) e pela Livraria Martins Fontes (Brasil), com adaptações para o português do Brasil. O texto será publicado em duas partes.
Na advertência do livro, Balibar comenta que os estudos presentes nessa obra “são estudos do materialismo histórico. Não são comentários, interpretações filosóficas do marxismo, em que se expressassem os “pontos de vista” de uma escola, mas tentativas de estudar e assimilar algumas das suas lições principais, com vista à prática. Não são “investigações” na base do materialismo histórico, para aplicar os conceitos a novos problemas que tivesse ignorado, mas antes de tudo elementos do trabalho de aprendizagem permanente que a teoria marxista requer”. E continua o autor: “O estudo do materialismo histórico é logo de início uma luta contra a sua revisão, contra os seus desvios, pela sua retificação e desenvolvimento, uma luta entre várias vias, com todos os riscos que isso comporta” (grifos nossos).
Sob essas diretrizes, A Retificação do “Manifesto Comunista” se debruça sobre as lições e os problemas teóricos e políticos postos naquele documento de 1848. Mais precisamente, analisa as retificações do Manifesto, realizadas pelos seus próprios autores, no decorrer da luta de classes do proletariado na segunda metade do século XIX. Dentre essas retificações, uma de suma importância ocorreu após a experiência da Comuna de Paris (1871) e diz respeito à relação entre a revolução proletária e o Estado. Como Marx escreveu em A Guerra Civil na França, a Comuna mostrou que “a classe operária não pode contentar-se com tomar a máquina do Estado já pronta e fazê-la funcionar por sua própria conta”. Retificação já destacada por Lênin em O Estado e a Revolução e em torno da qual se explicita o combate entre oportunistas e revolucionários e se coloca a questão decisiva da transição para o socialismo.
Nesta primeira publicação, trazemos a abertura do capítulo e sua primeira e mais longa parte: As teses do “Manifesto” sobre o estado do proletariado. De forma detalhada, Balibar demonstra as definições de Estado e revolução originais do Manifesto. Esse é um passo prévio para compreender a retificação essencial que virá da luta dos comunardos em Paris, a ser analisada posteriormente, na 2ª parte.
* * *
A RETIFICAÇÃO DO “MANIFESTO COMUNISTA”
Cidadãos, queríeis uma revolução sem revolução?
ROBESPIERRE, Discurso de 4 de Novembro de 1792.
A ditadura, é uma grande e rude palavra, sangrenta, uma palavra que exprime a luta sem quartel, a luta de morte de duas classes, de dois mundos, de duas épocas da história universal.
Não se dizem no ar tais palavras.
LÊNIN, Notas dum publicista, 1920.
O Manifesto Comunista, que os seus primeiros camaradas de luta “encomendaram” a Marx e Engels em circunstâncias hoje longínquas, continua a ser um dos textos fundamentais da nossa formação teórica revolucionária. Não o único, mas quase sempre, para centenas de milhares de militantes comunistas através do mundo, o primeiro, aquele que lança as bases e traça as grandes perspectivas dum conhecimento científico da sociedade e da sua história, estreitamente ligada à luta do proletariado. É a este título que o estudamos.
No prefácio à edição de 1890, Engels traçou a história do Manifesto Comunista: a história da sua redação, e das condições em que ele foi lido, e dos efeitos que produziu. “A história do Manifesto, escreve ele, reflete até certo ponto a história do movimento operário moderno”.
De fato, às três etapas nesta história duma brochura correspondem exatamente três grandes etapas na história do movimento operário internacional. Procuremos lembrá-las:
– Antes das revoluções de 1848, a época do socialismo e do comunismo “utópicos”, das seitas revolucionárias (mas também, na Inglaterra, a do primeiro surto e das primeiras batalhas pelo movimento sindical e político de massa);
– De 1850 a 1872, a época da Associação Internacional dos Trabalhadores (I Internacional, fundada em 1864), que vai até à Comuna de Paris e suas consequências;
– Enfim, após 1872, a época dos primeiros partidos operários de massa (sobretudo na Alemanha), partidos nacionais com a doutrina do “socialismo científico” (marxismo) e que constituirão a II Internacional.
O Manifesto, redigido na véspera das revoluções de 1848, só foi reeditado e largamente difundido em toda a Europa depois de 1870, quando o marxismo apareceu como a expressão teórica necessária do movimento político do proletariado. Está aparentemente ausente da segunda etapa, ou antes, está oculto. Mas na realidade a situação é mais complexa, pois as suas teses fundamentais sobre a autonomia histórica da luta de classes proletária, sobre o seu caráter necessariamente internacionalista, aí recebem outras formulações. Não se trata portanto dum simples desajustamento no tempo entre a teoria e a prática. Mais profundamente, à transformação do movimento operário e do seu lugar no processo histórico das lutas de classes corresponde uma transformação na relação da teoria do Manifesto com o movimento operário.
Poderemos dar mais um passo, e falar de transformações necessárias na própria teoria?
Tomada no seu sentido reforçado, a fórmula de Engels comportaria então outra aplicação: pôr-nos-ia na via de descobertas dizendo respeito ao elo necessário, não externo, circunstancial, mas interno e recíproco entre a teoria marxista e o movimento operário. Permitir-nos-ia compreender porque, única no seu gênero e rompendo com todas as outras, a teoria marxista não foi mumificada ou progressivamente rejeitada pelo movimento operário, mas transformada por este ao mesmo tempo que o transformava. Far-nos-ia avançar no conhecimento do processo dialético de “fusão” da teoria e da prática.
Com efeito, o Manifesto foi objeto, no próprio texto, de transformações: correções, precisões, até de verdadeiras retificações, ligadas a determinadas etapas deste processo.
Assim, no seu prefácio à edição russa de 1882 (que é o último texto publicado por Marx), Marx e Engels tiveram em conta a transformação da conjuntura e das relações sociais à escala mundial, depois de 1847-1848: este prefácio termina pela previsão dos efeitos que poderia ter uma revolução russa.
Assim, no prefácio de 1883 (e na nota na primeira página do Capítulo I), Engels, que estava nessa altura a redigir A Origem da família, da propriedade privada e do Estado, segundo as notas de Marx sobre Morgan e os seus próprios trabalhos, “corrige” a tese inicial do Manifesto (“a história de toda sociedade até aos nossos dias não foi mais do que a história das lutas de classes”), referindo-se à pré-história “não escrita” das sociedades. Este ponto, só ele, mereceria naturalmente todo um estudo.
Mas a mais importante de todas as correções é também a primeira em data, e aparece abertamente como tal. Está enunciada no prefácio de 1872, como o resultado imediato da Comuna de Paris: pois a Comuna de Paris tem em si uma lição teórica que acaba a das revoluções de 1848, e domina com a sua significação os seus efeitos o novo período que se abre, a conjuntura na qual a teoria do Manifesto é de algum modo “reativada” e reatualizada.
Eis o texto de Marx e Engels:
“Se bem que as circunstâncias tenham mudado muito durante os últimos vinte e cinco anos, os princípios gerais expostos neste Manifesto conservam nas suas linhas fundamentais, ainda hoje, toda a sua exatidão. Era preciso rever, aqui e ali, alguns pormenores. O próprio Manifesto explica que a aplicação dos princípios dependerá por todo o lado e sempre de circunstâncias históricas dadas, e que, por consequência, não se deve atribuir demasiada importância às medidas revolucionárias enumeradas no fim do capítulo II. Esta passagem seria, a muitos títulos, redigida de maneira muito diferente atualmente. Dados os imensos progressos da grande indústria nos últimos vinte e cinco anos e os progressos paralelos que realizou, na sua organização em partido, a classe operária, dadas as experiências, primeiro da revolução de Fevereiro, em seguida e sobretudo da Comuna de Paris, que, durante dois meses, pôs pela primeira vez nas mãos do proletariado o poder político, este programa está hoje envelhecido em certos pontos. A Comuna, sobretudo, demonstrou que ‘a classe operária não pode contentar-se com tomar a máquina do Estado já pronta e fazê-la funcionar por sua própria conta.’ (Ver A Guerra Civil em França, Mensagem do Conselho geral da Associação internacional dos trabalhadores, onde esta ideia foi mais extensamente desenvolvida.)”.
Sabemos pois sobre que preciso ponto do texto incide a retificação necessária: o fim do capítulo II do Manifesto, constituindo um “programa de medidas revolucionárias”. E sabemos o que, em primeira instância, constitui esta retificação: o texto de A Guerra civil em França, de que uma passagem decisiva é diretamente citada.
Mas que me seja permitida uma nova citação. Com efeito, é evidente que, se Marx e Engels viram perfeitamente e indicaram (quem mais o faria por eles?) em que consistia a correção que eles próprios operaram, e sobre que ponto ela incidia, só a história ulterior do movimento operário lhe revelaria toda a importância. Até o momento em que Lênin pôde ser capaz, porque a isso foi obrigado, de a explicar. Foi o que fez em “O Estado e a Revolução”, onde escreve nomeadamente isto:
“A única ‘correção’ que Marx julgou necessário acrescentar ao Manifesto Comunista, fê-la inspirando-se na experiência revolucionária dos comunardos parisienses.
“O último prefácio a uma nova edição alemã do Manifesto Comunista, assinado pelos dois autores, é datado de 24 de julho de 1872. Karl Marx e Friedrich Engels declaram aí que o programa do Manifesto Comunista ‘está envelhecido em certos pontos’.
“‘A Comuna, sobretudo, demonstrou – prosseguem eles – que ‘a classe operária não pode contentar-se com tomar a máquina do Estado, já pronta, e fazê-la funcionar por sua própria conta’ […]’.
“As últimas palavras desta citação, postas entre aspas, são extraídas pelos autores da obra de Marx, A Guerra Civil em França.
“Assim, Marx e Engels atribuíram a uma das principais lições, fundamentais, da Comuna de Paris um alcance tão grande que a introduziram, como correção essencial, no Manifesto Comunista.
“Coisa extremamente característica: é precisamente esta correção essencial, que foi desvirtuada pelos oportunistas, e nove décimos, senão noventa e nove por cento dos leitores do Manifesto Comunista, ignoram-lhe certamente o sentido. Falaremos em pormenor desta deformação mais adiante, num capítulo especialmente consagrado às deformações. Basta-nos, por ora, acentuar que a “interpretação” corrente, vulgar, da famosa fórmula de Marx por nós citada, é que este teria sublinhado a ideia duma evolução lenta, em oposição à tomada do poder, etc.
“Na realidade, é exatamente o contrário. A ideia de Marx é que a classe operária deve quebrar, demolir “a máquina de Estado já pronta”, e não limitar-se a dela tomar posse”[i].
Acrescentemos que a “correção” do Manifesto é mencionada por Lênin, não apenas numa única passagem, mas, umas vezes demoradamente outras alusivamente, em todos os capítulos de O Estado e a Revolução a partir do segundo. Ela constitui assim verdadeiramente uma chave de todo o livro, que Lênin teve de escrever a fim de reparar o que era então, “a ignorância” não de todo inocente dos “noventa e nove por cento” dos leitores do Manifesto Comunista.
Sim, trata-se bem duma correção essencial: essencial porque não deixou de ser o ponto sensível da leitura de Marx, e mais ainda a pedra de toque da prática dos “marxistas”. Essencial porque diz respeito a um ponto sensível e decisivo da própria teoria de Marx, que nela jogou várias vezes a sua sorte, e ainda hoje sem dúvida nenhuma a joga.
Essencial porque, no movimento duma retificação necessária, denuncia com avanço uma deformação que nós sabemos agora tão necessária historicamente. Assim, esta correção, consoante seja operada ou não, admitida ou recuperada, praticada efetivamente ou rechaçada, traçaria uma linha de demarcação incontornável. Eis porque proponho estudá-la mais de perto.
I – AS TESES DO “MANIFESTO” SOBRE O ESTADO DO PROLETARIADO
Para poder operar corretamente a retificação enunciada por Marx, é necessário antes de mais analisar o texto do Manifesto. Ei-lo, tal como foi designado sem ambiguidade:
“Já vimos mais acima que a primeira etapa na revolução operária é a constituição do proletariado em classe dominante, a conquista da democracia. O proletariado servir-se-á do seu domínio político para arrancar pouco a pouco todo capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado, quer dizer do proletariado organizado em classe dominante, e para aumentar o mais depressa possível a quantidade de forças produtivas.
“Isto não poderá, naturalmente, ser feito no começo senão por uma violação despótica do direito de propriedade e das relações de produção burguesas, isto é, por medidas que, economicamente, parecem insuficientes e insustentáveis mas que, no decurso do movimento, se ultrapassam a si próprias e são indispensáveis como meio de revolucionar todo o modo de produção.
“Estas medidas, bem entendido, serão muito diferentes nos diversos países.
“No entanto, para os países mais avançados, as seguintes medidas poderão geralmente ser postas em prática:
- Expropriação da propriedade fundiária e afetação da renda fundiária às despesas do Estado.
- Imposto fortemente progressivo.
- Abolição da herança
- Confiscação dos bens de todos os emigrados e rebeldes.
- Centralização do crédito nas mãos do Estado, por meio duma banca nacional, cujo capital pertencerá ao Estado e que beneficiará dum monopólio exclusivo.
- Centralização, nas mãos do Estado, de todos os meios de transporte.
- Multiplicação das manufaturas nacionais e dos instrumentos de produção; desbravamento dos terrenos incultos e melhoramento das terras cultiváveis, segundo um plano de conjunto.
- Trabalho obrigatório para todos; organização de exércitos industriais, particularmente para a agricultura.
- Combinação do trabalho agrícola e do trabalho industrial; medidas tendentes a fazer desaparecer gradualmente a distinção entre a cidade e o campo.
- Educação pública e gratuita de todas as crianças; abolição do trabalho das crianças nas fábricas tal como é praticado hoje. Combinação da educação com a produção material, etc.
“Uma vez desaparecidas as diferenças de classe no decurso do desenvolvimento, concentrada toda a produção nas mãos dos indivíduos associados, o poder público perderá o seu caráter político. O poder político, propriamente falando, é o poder organizado duma classe para oprimir outra. Se o proletariado, na sua luta contra a burguesia, se constituir forçosamente em classe unificada, se se erigir por uma revolução em classe dominante, e, como classe dominante, destruir pela violência as antigas relações de produção, destrói, ao mesmo tempo que estas relações de produção, as condições do antagonismo das classes, destrói as classes em geral e, por isso mesmo, a sua própria dominação como classe.
“No lugar da antiga sociedade burguesa, com as suas classes e os seus antagonismos de classes, surge uma associação onde o livre desenvolvimento de cada um é a condição livre do desenvolvimento de todos.”
Desculpar-se-á uma tão longa citação, de novo, mas a verdade é que a leitura completa do texto de Marx nos mostra nitidamente isto: nesta passagem do Manifesto figura perfeitamente a enumeração duma séria de “medidas” políticas e econômicas, mais ou menos adaptáveis às circunstâncias. Mas estas medidas não podem de maneira nenhuma ser tomadas como simples processos particulares, dum caráter técnico e puramente conjuntural, insuficientes para nos revelar o essencial da política do proletariado. Pelo contrário, estas “medidas” (desde a expropriação e o trabalho obrigatório até à supressão da divisão do trabalho sob a sua forma atual, passando pela centralização de toda a economia nas mãos do Estado, que assim é o fecho da abóbada), estas “medidas” fazem corpo com a política revolucionária do proletariado, e é propriamente a esta política, nos seus princípios, que somos remetidos logo que se trata de as apreciar ou corrigir.
De fato, o texto mostra ainda mais: inscreve logicamente estas medidas e esta política no seu lugar necessário dentro da sucessão das etapas do processo histórico que, partindo do capitalismo (e através dele, de todas as formas anteriores da exploração e da luta de classes), está já em vias de nos conduzir para a sociedade sem classes, para o comunismo. Com isso, mostra que esta política, com as medidas que implica, é historicamente necessária: é o único processo de realização efetiva dos objetivos históricos do proletariado. Ou ainda: se a tendência para o desaparecimento de todos os antagonismos de classes será objetivamente inscrita na situação de classes do proletariado, na natureza específica do antagonismo que o opõe ao capital, esta política não é nada mais, nada menos do que a realização da tendência.
Detenhamo-nos neste ponto, que põe em evidência todo o lance do problema.
Se a nossa leitura é correta, trata-se neste texto do que Marx e Engels expõem ao longo do Manifesto, como sendo a essência da posição dos “comunistas”: a posição que simultaneamente unifica o movimento, na base material de classe autônoma[ii], e o impulsiona para o seu próprio futuro[iii].
Mas por que teve o movimento operário, paradoxalmente, necessidade de ser empurrado (ou atirado) para o seu próprio futuro – precisamente pela política que acabamos de ver definida -, da mesma forma que tem necessidade de ser unificado na sua própria base de unidade de classe? Para o compreender é preciso ligar tudo o que acaba de ser dito a uma ideia fundamental de Marx, que ele exprime em particular no começo do Manifesto, ao escrever: “A história de toda a sociedade até aos nossos dias não foi mais do que a história de lutas de classes. […] Numa palavra, opressores e oprimidos, em oposição constante, mantiveram uma guerra ininterrupta, umas vezes aberta outras dissimulada, uma guerra que acabava sempre quer por uma transformação revolucionária da sociedade no seu todo, quer pela destruição das duas classes em luta.” Ora, não há uma necessidade diferente no comunismo de todas as lutas de classes da história anterior: é a lição de todo o Manifesto que, pela primeira vez, demonstra que o comunismo não é uma ideia moral, mas o resultado da história real. E esta história é sempre, na sua estrutura de lutas e de transformações, “aberta”: assim como não se dirige para um fim ideal, também não é a realização dum programa anteriormente fixado. Esta ideia fundamental, que distingue o materialismo histórico de toda a filosofia ou teologia da história, e de que poderíamos encontrar noutro sítio outras formulações, significa que o futuro é necessário, materialmente determinado, mas não pré-determinado, necessário justamente enquanto não é pré-determinado. Isto significa que a “tendência” histórica não se realiza nunca automaticamente, nem sob o efeito do acaso e da acumulação dos acasos, nem sob o efeito de qualquer destino ou providência.
Compreendemos agora, neste sistema de “medidas”, tratar-se finalmente da política do proletariado enquanto prática necessariamente inscrita na sua própria tendência histórica, e necessária à sua realização.
Mas o que é que determina a natureza, as condições e os objetivos desta prática?
O texto de Marx e Engels está organizado em função de três termos ou noções, que estão presentes do começo ao fim. São eles:
- O Estado.
- “A organização do proletariado em classe dominante.”
- A transformação das relações de produção.
É pensando estes três termos corretamente, no seio duma mesma análise, que se poderá considerar, mesmo muito abstratamente, a destruição das relações de exploração atuais, consequentemente o fim da existência do proletariado como classe particular, explorada e dominada, portanto o fim da existência das classes e da sua luta, seja sob que forma for. Fora destas condições materiais que definem estes termos, as perspectivas de abolição da exploração não são mais do que um sonho oco.
Estamos portanto mesmo no centro da teoria de Marx e da sua política. E estamos também, não por acaso, no ponto em que sempre se concentraram, com as dificuldades práticas, as críticas ou “refutações” de Marx, de “esquerda” ou de “direita”, incluindo as que pretendem distinguir e visar nele o promotor dum “socialismo de Estado” tão constrangedor como o próprio capitalismo.
Para Marx, que escreve neste sentido, um pouco mais acima, que “toda a luta de classes é uma luta política”, o problema da política coincide, não em si (formalmente), mas materialmente, nas únicas condições reais determinadas pela história, com a questão do Estado. Tendendo, para abolir a exploração, à transformação das próprias relações de produção (e não apenas das relações jurídicas, políticas ou das relações de repartição da riqueza), a política do proletariado é comandada pela sua própria relação com o Estado. E a questão da revolução proletária é politicamente, na prática, comandada pela questão da natureza do Estado, da sua conquista e do seu desaparecimento.
Pode-se, parece-me, resumir em quatro pontos os aspectos principais da argumentação de Marx, do ponto de vista teórico.
1- Uma definição do Estado
Esta definição tem uma forma muito notável. É explícita na formulação: “[…] nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado em classe dominante”.
Aí está, segundo Lênin, uma definição “interessante no mais alto grau”, e “que se encontra igualmente no número das ‘palavras esquecidas’ do marxismo […] muito precisamente esquecida porque é absolutamente inconciliável com o reformismo; ataca frontalmente os preconceitos oportunistas habituais e as ilusões pequeno-burguesas quanto à evolução pacífica da democracia […][iv]”. Remeto para a continuação do comentário de Lênin, que é absolutamente necessário reler.
Tomemos bem nota das explicações de Lênin, pois nenhuma retificação eventual desta definição pode voltar aquém do que ela nos ensina. Esta definição do Manifesto é já inconciliável com o reformismo da mesma forma que com o anarquismo, ela situa Marx, no Manifesto, para lá da linha de demarcação de classe que ele próprio traça na teoria, e torna irrisórias as especulações daqueles que, ainda hoje, se interrogam sobre as “tendências” estatistas ou, pelo contrário, anarquistas (libertários, etc.).
O que interessa antes de tudo em Lênin, nesta definição, é que ela afirma a necessidade para o proletariado de organizar a sua dominação política para “abater”, “reprimir” a resistência da classe dos exploradores, isto é, da burguesia. Quem diz classe dominante diz classe dominada, e dominada pela força organizada concentrada, do Estado.
Mas esta definição é interessante ainda a outro título, devido à sua forma conceitual. Remete-nos manifestamente para a análise do 1º capítulo do Manifesto, consagrado à história econômica e política da burguesia. Aí encontramos a ideia da burguesia organizada em classe dominante, organizada para isso “no Estado representativo moderno” (no seio do qual “o governo moderno não é mais do que um comitê que gere os negócios comuns de toda a classe burguesa”). É o resultado das lutas históricas que levaram primeiro à existência, depois à organização (portanto à autonomia política), enfim à dominação da burguesia na sociedade.
A formulação de Marx no Manifesto procede, pois, duma definição “geral” (ou pelo menos comum às duas situações históricas), que engloba:
- O Estado = a burguesia organizada como classe dominante;
- O Estado = o proletariado organizado como classe dominante; ou seja:
O estado é a própria classe dominante, enquanto organizadora da sua dominação, ou, o que vem a dar no mesmo, organizando-se para exercer a sua dominação.
Terei ocasião de mostrar os problemas que a forma particular desta definição coloca.
2- Uma definição da revolução
Ela constitui-se na sequência das fórmulas: “conquista do poder político”, “conquista da democracia”, “violação despótica do direito de propriedade e do regime burguês de produção”, “destruição pela violência do antigo regime de produção”. Estas fórmulas fazem do Estado o meio, e por isso mesmo, o primeiro objetivo da revolução.
Vemos que elas associam já os dois polos entre os quais se estabelece a tensão característica do conceito marxista de “revolução” (proletária): esta revolução implica ao mesmo tempo “democracia” e “despotismo” (ou violência, religados por um signo de igualdade-identidade; é a unidade, até mesmo a identidade da “democracia” e o “despotismo”). Como pensar esta unidade contraditória? É claro que, no Manifesto, Marx se contenta com colocá-la, afirmá-la sem demonstração nem ilustração concreta possível (somente um programa, o que é bem diferente). Mas por que esta afirmação? Será para satisfazer, como outros, uma dupla exigência moral de justiça, de direito, de progresso… e ao mesmo tempo, de eficácia política? Certamente que não. Mas, pelo contrário: Marx “pratica” aqui de maneira intencional a negação da oposição metafísica tradicional estabelecida pela filosofia política burguesa e pequeno-burguesa entre o direito e o fato, a justiça e a violência, a força e o direito, a democracia e o despotismo, etc. Esta nova afirmação, que é ao mesmo tempo a negação e a crítica duma problemática ideológica inveterada, coloca um problema mais do que o resolve.
Repare-se no entanto nisto: esta definição da revolução não é unicamente um momento da definição da política do proletariado (com a sua “estratégia”, que faz da conquista do poder o ponto decisivo, e a sua “tática”, em parte deixada às “circunstâncias”), é também uma definição política da revolução. Mais precisamente, é, no princípio pelo menos, a definição duma forma política; se “democracia” e “despotismo” são formas, e até “sistemas” políticos, definidos ao nível do que Marx chama aliás, as “superestruturas” sociais, o mesmo se passa, necessariamente, com todas as combinações, mesmo contraditórias, de tais formas. Não tem, pois, razão em si mesma, ao seu próprio nível, mas apenas na sua relação com uma “base” material ou, melhor: com o processo de conjunto no qual ela se constitui sobre uma base material.
Finalmente, dois problemas colocam-se assim simultaneamente: o das formas políticas concretas necessárias à revolução e o das relações que elas têm na base material de todo o processo revolucionário.
3- O processo revolucionário
Os problemas colocados por esta primeira definição da revolução são desenvolvidos por Marx e Engels em termos que nos fazem dar mais um passo.
A revolução proletária não é concebida como um ato, o ato do proletariado realizando o seu próprio programa ou projeto, mesmo que seja de fato a prática política do proletariado que realiza a revolução (Marx dirá mais tarde que ela deve “parir” a sua história na violência).
A revolução não é concebida simplesmente como um ato, mas como um processo objetivo.
Num tal processo, as “medidas” que constituem um programa revolucionário não são mais do que uma “primeira etapa”, a que outras necessariamente se seguirão e que elas não contêm ainda. Elas determinam o processo, mas não abolem os antagonismos de classes, como se esta abolição pudesse ser objeto dum decreto ou até dum derrubamento (“violento”): produzem apenas as condições materiais nas quais, “no decurso do desenvolvimento”, os antagonismos de classes podem desaparecer.
A “revolução” proletária é todo o conjunto deste processo. E, por conseguinte, a própria essência desta revolução reside na força ou no jogo de forças que lhe comunica o seu movimento.
As “medidas” iniciais, escreve Marx, “economicamente parecem insuficientes e insustentáveis, mas […] no decurso do movimento ultrapassam-se a si próprias”. Insuficientes e insustentáveis porque, já o aprendemos nas próprias palavras do Manifesto, o objetivo último da revolução é, à primeira vista, inteiramente outra: é a abolição da “condição de existência do capital”: o salariato.
Será de dizer que elas próprias se ultrapassam segundo um movimento “espontâneo”, um “auto-movimento”, porque insuficientes e insustentáveis? A razão de serem necessariamente ultrapassadas estará na sua própria insuficiência? Será a força “negativa” duma falta, o que podemos chamar uma negatividade?
Ou então, poderemos dizer que elas se ultrapassam nos resultados materiais que produzem, e que Marx indica: a centralização da produção (nas mãos do Estado) e o desenvolvimento das forças produtivas? Mas nenhum destes resultados contém apenas em si com que explicar a passagem necessária à abolição das classes, se não se explicar primeiro em que condições, sob que relações sociais (políticas e econômicas) se obtém o resultado. Somos pois levados de novo ao nosso problema.
De fato, a força que leva a ultrapassar todas as etapas não provém, nem da falta do que está para ser realizado no futuro e da sua exigência (explicação puramente idealista), nem da primeira etapa (explicação mecanicista e evolucionista): ela não pode ser senão homogênea relativamente à que foi descrita em toda a primeira parte do Manifesto: força material resultante a cada instante do próprio antagonismo das classes. Se há força, tendência, e portanto processo, é apenas porque existe antagonismo.
Assim se introduz o aspecto principal deste processo, ao mesmo tempo que o problema que ele põe: o processo revolucionário é ele próprio inteiramente um processo de lutas de classes. Por outras palavras, trata-se dum processo de lutas de classes conduzindo à abolição da luta de classes, por uma necessidade interna, inscrita na estrutura específica desta luta, que resulta de todas as outras e não se parece com nenhuma outra. Assim se apresenta para a luta de classes uma terceira saída possível, radicalmente nova, distinta ao mesmo tempo da “destruição das duas classes em luta” e da constituição duma outra forma de dominação de classe. “A organização do proletariado em classe dominante”, a conquista do poder de Estado, constitui apenas o primeiro momento desta luta. Mas este momento é decisivo, visto que é ele, precisamente, que cria as condições desta nova forma, desconhecida até então, da luta de classes, sem por isso representar o resultado final, antes pelo contrário. Portanto sem o predeterminar, sem lhe garantir de qualquer forma o resultado final.
Detenhamo-nos aqui por um instante.
Estas formulações, que permitem compreender em que consiste o problema teórico posto a Marx pela necessidade da revolução proletária, são, por assim dizer, puramente verbais. Contêm, no entanto, senão um verdadeiro saber científico (de que objeto? nada se imagina de mais absurdo do que uma “prospectiva marxista”), pelo menos uma orientação teórica e política, e é a este título que representaram um papel prático imenso na história do movimento operário, em que elas próprias constituíram verdadeiras forças materiais. Porque, longe de acrescentar uma solução “marxista” a todas aquelas que o socialismo e o comunismo ideológicos propõem para “sair” das contradições da sociedade atual, as formulações de Marx colocam um problema totalmente diferente, elas têm efetivamente aberto a via à luta revolucionária das organizações proletárias, cuja progressão continuou de cada vez que pôde manter-se a abertura do problema posto por Marx. Por este fato, as formulações de Marx dizem respeito ao processo revolucionário são uma das chaves da problemática do materialismo histórico.
Elas reforçam e confirmam a tese fundamental do Manifesto, de que permitem compreender o caráter estritamente dialético: “A história de toda a sociedade até aos nossos dias não foi mais do que a história de lutas de classes”. Não há exceções a esta regra, nem aquela que constituiria a passagem ao comunismo, à “sociedade sem classes”. A história não avança pelo “lado bom”, mas pelo “lado mau”, não avança pela antecipação do seu futuro pacífico e “radioso”, mas apenas pelas lutas do seu presente, e é a contradição dessas lutas que permite pensar qualquer coisa como o seu futuro ou o seu resultado.
Vamos mais longe. O texto de Marx é notável por excluir totalmente a “solução” de bom senso que consistiria em dizer: a luta de classes cessa “muito simplesmente” porque uma das classes (o proletariado) vence, e, na vitória, elimina o seu adversário. Isto não é solução (o combate cessando “por falta de combatentes”), pois não se refere senão a um conceito formal da “luta”, como confronto de adversários simétricos, e aplicável a qualquer luta. Mas a dialética histórica de Marx não é uma “teoria da luta” (ou da contradição) em geral. É a teoria duma luta particular, materialmente determinada. E o Manifesto mostra já (o que se tornará um conceito claro e desenvolvido com a teoria da mais-valia, em O Capital) que os termos desta luta (as classes) não são personagens ou protagonistas existindo fora dela, aparecendo ou desaparecendo de forma independente uma da outra, mas são eles próprios, materialmente, efeitos da luta, isto é, efeitos das condições antagonistas da produção social. São estas condições antagonistas, são as relações de exploração que é necessário transformar.
Compreende-se então que seja necessário, para pensar o fim da exploração, pensar a constituição dum Estado do proletariado, que se oponha a todas as formas da propriedade capitalista, e as destrua violentamente de maneira a substituir uma forma de apropriação da produção por outra. Compreende-se que sejam assim criadas as condições duma organização da produção social oposta à que, historicamente, produziu o Estado como meio de dominação, e que deve por conseguinte levar ao seu desaparecimento. Mas o que não se compreende inteiramente, é a modalidade desta transformação o que faz passar a associação dos indivíduos (produtores) do estatuto dum Estado para o duma associação ”livre”, que já não é um Estado. E esta dificuldade repercute-se em todo o processo, visto que ela diz respeito ao ponto decisivo da revolução, a forma na qual se concentra e se joga a luta.
A formulação de Marx é aqui, como repete várias vezes Lênin, visando precisamente esta passagem do Manifesto, uma formulação abstrata. É necessário lembrar-se, segundo os termos do próprio Lênin, que a verdade, portanto o conhecimento, é sempre “concreto”. Eis porque a formulação de Marx nos reconduz às mesmas dificuldades que a definição das formas políticas da revolução já apresentava e que dizem respeito desta vez à própria base da sua concepção.
Enunciemo-las de novo: no célebre texto de Marx, tratar-se-á de outra coisa que duma simples afirmação, sobre o modo da descrição, das características contraditórias do processo? Por outras palavras: sabemos que as relações sociais existentes na sociedade burguesa são relações realmente contraditórias, que repousam no antagonismo inconciliável do capital e do proletariado; é a própria natureza deste antagonismo que explica a necessidade do seu ultrapassar, portanto a transformação real das contradições que daí derivam; e é precisamente para pensar esta transformação que é necessário introduzir o conceito, ele próprio contraditório, da revolução proletária, transformação da luta em não-luta pelo desenvolvimento duma nova luta, abolição dos próprios termos entre os quais há luta (as classes sociais) pelo acréscimo e desencadear da sua luta. Finalmente, para pensar a solução duma contradição real, teremos feito outra coisa, senão introduzir uma contradição lógica?
Certamente, bem sabemos que esta dificuldade é a de toda a “dialética”. Dum ponto de vista materialista, a solução duma tal dificuldade não tem de ser inventada teoricamente, por um puro esforço de argumentação: deve ser produzida praticamente. Nós próprios, que relemos o texto de Marx depois dum século e mais, podemos designar as “soluções” que começaram a realizar-se na prática: são as revoluções socialistas sucessivas, a Comuna de Paris, a revolução soviética de Outubro, a revolução chinesa. Elas são bem reais. Pode dizer-se no entanto que a dificuldade não pode ser enunciada senão sob esta forma abstrata, que a bloqueia na sua própria posição, e por conseguinte que não pode ser verdadeiramente explicada no pormenor da sua necessidade? Por outras palavras, vamos ter que convir que a dialética da luta de classes e da revolução comunista escapa finalmente no seu conteúdo à teoria? E como pensar então, explicando-as de acordo com a teoria de Marx, a história das revoluções socialistas concretas, os seus sucessos, os seus fracassos, como pensar o alcance universal das lições que encerram e aplicá-las na nossa prática, se, no princípio, os poderes da teoria se estendem até à véspera do processo revolucionário, mas não para além?
4- O “fim da política”
Examinemos, para terminar com a análise das formulações de Marx no Manifesto, um último ponto. Relevamos com efeito uma tese que ao mesmo tempo concentra os elementos precedentes, incluindo as “dificuldades” que nós lhes descobrimos, e lhes dá uma nova formulação muito importante. Esta tese está implicada na fórmula: “Os antagonismos de classes uma vez desaparecidos […] então o poder público perde o seu caráter político”[v].
Nesta formulação, encontraremos mais qualquer coisa do que 1. a ideia de que toda a luta de classes é uma luta política, 2. a ideia de que a dominação política duma classe implica o poder de Estado desta classe, 3. a ideia da desaparição necessária do Estado em seguida ao desaparecimento das relações de classes?
Parece-nos que sim: encontramos aí, nesta base, a tese da desaparição necessária do político como tal na história humana. Não só uma determinada forma de “política” transformada numa outra pelas novas condições, mas o desaparecimento puro e simples de todo a “política” quaisquer que sejam as suas formas.
Por outras palavras, encontramos a ideia duma forma de organização social (associação dos indivíduos, organização e apropriação coletiva da produção, etc.) como tal não política, ou melhor: estranha a toda a política, a-política. Nestas formulações de Marx, “fim do Estado” implica, parece-nos, “fim da política” e não apenas fim das instituições ou aparelhos políticos do passado, mas fim da prática política.
Objetar-me-ão talvez que se trata aqui duma pura questão de terminologia: todos são livres, em certo sentido, de definir como entendem os termos que usam; e, por exemplo, Marx é livre de identificar “política” e “Estado”, de forma que o fim do Estado seja por definição o fim da política, da prática política.
Esta objeção, no entanto, não é sustentável. Só teria sentido se não tratássemos aqui (e no materialismo histórico em geral) senão dum sistema teórico assente nas suas próprias convenções iniciais, nos “axiomas” colocados arbitrariamente. Então o materialismo histórico não seria senão o equivalente “teórico” do utopismo constantemente combatido por Marx. Mas, no Manifesto, tal como indica o seu título, estamos perante outra coisa. Que nos recordemos da tese (no começo do capítulo II), segundo a qual os comunistas “não estabelecem princípios particulares sobre os quais desejariam modelar o movimento operário”. Marx e Engels não tratam do “futuro” senão em relação às lutas presentes, e em termos que constituem eles próprios intervenções práticas nestas lutas, sobre a própria base da linguagem na qual se formulam. Eis porque, cedo ou tarde, estes termos puderam vir a funcionar como palavras de ordem.
A terminologia reconduz-nos pois aos seus próprios efeitos, que são necessários e não convencionais. E, por isso, às questões que levanta uma tal tese suplementar: o que implica ela? A que se opõe?
Marx fala-nos dum poder público que perdeu o seu caráter político. Jogando ainda aqui, para as criticar, com oposições de categorias ideológicas burguesas, sugere-nos pensar num “poder público” fora da sua relação com instituições “privadas”, e antes de tudo com a propriedade privada. Falta dizer que esta indicação é, uma vez mais, puramente negativa e provisória.
Esta tese, que é necessário tomar na sua forma mais demarcada para não se fugir aos problemas que põe, não deixa de nos fazer pensar imediatamente noutras formulações célebres do Marxismo, como na formulação ulterior de Engels: “O governo das pessoas (die Regierung über Personen) dá lugar à administração das coisas (die Verwaltung von Sachen) e à direção das operações de produção.”[vi] Fórmula que, certamente (voltarei a este ponto), nos fala de pessoas (portanto, indivíduos) e não de classes, mas que apresenta o grande interesse de não ser apenas negativa. Ela determina uma contrapartida ao desaparecimento do Estado, fazendo surgir à luz, ao mesmo tempo o caráter não político desta contrapartida: a administração das coisas, a direção do processo de produção.
Abramos aqui um parêntesis. Sabe-se que esta fórmula vem de Saint-Simon. O próprio Engels o indica mais atrás do Anti-Dühring (III, cap. 1): “Em 1816, [Saint-Simon] proclama a política ciência da produção e prediz a total reabsorção da política na economia. Se a ideia de que a situação econômica é a base das instituições políticas, só aparece aqui em germe, a passagem do governo político dos homens a uma administração das coisas e a uma direção das operações de produção, portanto a abolição do Estado sobre que ultimamente se fez tanto barulho, encontra-se já claramente enunciada aqui.”
Em Saint-Simon, a tese tem uma significação ao mesmo tempo utópica e tecnocrática. Utópica, porque reclama a transformação imediata, a inversão da política em “ciência da produção” industrial, que faz a sua abolição “realizando-a”. Tem além disso uma significação tecnocrática: visto que não é, como julga Saint-Simon, a tendência espontânea da economia industrial, uma vez que, de fato, o Estado e a política não podem desaparecer por eles próprios, mas somente sob o efeito duma luta de classes, a palavra de ordem da administração das coisas, etc., não pode corresponder na prática senão a uma dominação política que não ousa confessar-se como tal, e se dissimula sob pretensos imperativos “econômicos”, “técnicos”, etc. Em Engels, estes dois aspectos desaparecem precisamente na medida em que, conforme ao que o Manifesto já expunha, a conquista do poder político pelo proletariado é posta como etapa e meio necessários. Mas permanece em aberto a questão de saber se, nestas condições, a ideia duma pura “administração das coisas”, a ideia da sociedade não política, tem um conteúdo totalmente diferente.
Deixemo-la, para já, em aberto.
[i] Lênin. O Estado e a Revolução, Obras completas, tomo XXV, pág. 447/448. A tradução francesa da passagem de A Guerra Civil em França de Marx difere ligeiramente, na tradução corrente do livro de Marx (Edições Sociais), retomada no Manifesto (Edições Sociais), e na tradução de O Estado e a Revolução (obras completas de Lênin, Paris-Moscou, tomo XXV). Respeito esta diferença. O texto alemão diz: “Aber die Arbeiterklasse kann nicht die fertige Staatsmashinerie einfach in Besitz nehmen usw…”. É pois a tradução das Obras de Lênin que está mais literalmente exata (“tomar a máquina de Estado já pronta”). Mas a tradução francesa corrente (“tomar tal como é a máquina do Estado”), que, recolocada no contexto, tem o mesmo sentido, põe cobro a qualquer equívoco sobre a interpretação deste “já pronta” (se ainda fosse necessário).
[ii] “Os comunistas não formam um partido distinto oposto aos outros partidos operários. Não têm interesses que os separem do conjunto do proletariado. Não estabelecem princípios particulares sobre os quais queiram modelar o movimento operário. Os comunistas não se distinguem dos outros partidos operários senão em dois pontos: 1. Nas diferentes lutas nacionais do proletariado, põem à frente e valorizam os interesses independentes da nacionalidade e comuns a todo o proletariado; 2. Nas diferentes fases que atravessa a luta entre proletários e burgueses, representam sempre os interesses do movimento na sua totalidade”.
[iii] “Combatem pelos interesses e os fins imediatos da classe operária; mas no movimento presente, defendem e representam ao mesmo tempo o futuro do movimento”.
[iv] O Estado e a Revolução, op. cit., pág. 435.
[v] Sabe-se que esta tese figura também, sob uma forma muito próxima, em A Miséria da filosofia.
[vi] Anti-Dühring, III parte, cap. 2.