CEM FLORES

QUE CEM FLORES DESABROCHEM! QUE CEM ESCOLAS RIVALIZEM!

Conjuntura, Destaque, Internacional

Eduardo Sá Barreto: Emergência climática à luz do relatório mais recente do IPCC

Enchente no Rio Grande do Sul, 2024.

Cem Flores

11.08.2024

A recente catástrofe ambiental do capitalismo no Rio Grande do Sul matou quase 200 pessoas, deixou quase mil feridas, centenas de milhares desalojadas e 2,4 milhões afetadas, de acordo com os dados oficiais. Os principais atingidos foram os/as trabalhadores/as, como tem sido a regra nos crescentes desastres ambientais, no Brasil e no mundo. Não apenas porque vivem em áreas mais vulneráveis, mas também porque não possuem recursos para se defender dessas barbáries causadas pela destruição do capital em busca de lucro.

No meio de muita demagogia e cinismo, os patrões e seus governos – federal, estadual e de vários municípios – passaram imediatamente a agir para retomar a produção e o tempo perdido com o desastre, explorando ainda mais as classes trabalhadoras. De acordo com o IBGE, no mês de maio, no qual boa parte do Rio Grande do Sul estava debaixo d’água, a produção industrial do estado caiu 26,3% – o que mostra que mesmo na catástrofe a ditadura das fábricas permaneceu. Já em junho, essa mesma produção industrial cresceu 34,9%, retomando inteiramente o nível de produção de abril. Ou seja, para os patrões da indústria gaúcha é como se nada tivesse acontecido! Isso só reforça que para a natureza e para as massas exploradas, o sistema capitalista significa cada vez mais devastação!

Os eventos no Rio Grande do Sul ocorreram após o ano mais quente da história e apenas um semestre depois das enchentes de setembro de 2023. Com evidências cada vez mais amplas e concretas de que caminhamos para uma catástrofe ambiental planetária, o debate e a luta em torno da questão ambiental se amplia em vários países. Cabe ao movimento comunista incidir em tal questão apontando as reais causas da atual situação e a inviabilidade do modo de produção capitalista contornar a destruição (que ele mesmo causa!) das condições de vida no planeta. Os investimentos em combustíveis fósseis, por exemplo, continuam em alta, apesar da urgente necessidade de uma transição energética. Afinal, eles continuam mais lucrativos e estimulados por poderosos capitais.

Os/as comunistas devem denunciar clara e diretamente que o capitalismo e a burguesia, com o seu regime de exploração e destruição, são insustentáveis ambientalmente e os principais responsáveis pelo colapso ambiental atual em todo o mundo. Que a crescente concentração de capital e o aumento da desigualdade são agravantes diretos da crise ambiental.

As/os comunistas devem afirmar também que quanto maior a crise do capital, como a que estamos vivendo neste século, mais o capitalismo se torna explorador e destrutivo. A crise do capital agrava a crise ambiental, enquanto a crise ambiental é, cada vez mais, componente estrutural da crise do capital e também da determinação da taxa de lucro.

Por fim, os/as comunistas devem denunciar radicalmente as ações dos estados e das corporações capitalistas e seu pretenso “capitalismo verde”, ou a ideologia burguesa de “sustentabilidade” – ideologias destinadas a abrir novos ramos de produção, aumentar os lucros, destruir concorrência, adotar medidas protecionistas em benefício de seus capitais e exportar poluição, degradação ambiental e exploração para os países dominados. No Brasil, por exemplo, as ações “verdes” do governo Lula são meras declarações de intenções ou programas com poucos recursos, enquanto se despejam de bom grado centenas de bilhões de reais todos os anos para o agronegócio. Igualmente devemos criticar os reformistas e oportunistas de “esquerda” que buscam conciliar capitalismo e ambientalismo. É impossível superar a crise ambiental sem superar o capitalismo!

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No intuito de avançar nesse debate, divulgamos o texto do pesquisador Eduardo Sá Barreto. O camarada, que recentemente esteve em live da TV A Comuna debatendo a catástrofe no Rio Grande do Sul, é estudioso do assunto e autor do livro “O capital na estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas“.

O texto abaixo, do ano passado, analisa um relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima) no qual se ratifica o impacto das “atividades humanas” no aquecimento global. Por atividades humanas, leia-se: atividades capitalistas na agropecuária e na indústria, além das exigências do capital de circulação de mercadorias e pessoas.

Barreto demonstra que, mesmo após inúmeros acordos e encontros internacionais em prol da redução das emissões de gases de efeito estufa, o contrário tem ocorrido: as emissões continuaram a crescer. Isso significa que um futuro habitável no planeta se torna cada vez mais inviável.

Ou derrotamos o capitalismo, ou as condições climáticas se agravarão, com impactos desastrosos para as massas exploradas. O que vivemos no Rio Grande do Sul é apenas um exemplo do “futuro” que o capitalismo tem a nos oferecer.

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Emergência climática à luz do relatório mais recente do IPCC

Eduardo Sá Barreto

01.05.2023

O Relatório Síntese do sexto Relatório de Avaliação (SYR-AR6) sobre mudanças climáticas do IPCC reafirma categoricamente aquilo que já sabemos há bastante tempo: “Atividades humanas, especialmente pela emissão de gases de efeito estufa, inequivocamente causaram aquecimento global” [1].

O mecanismo básico já é amplamente conhecido e razoavelmente simples de enunciar. Nossas atividades emitem um conjunto variado de gases de efeito estufa que em parte são absorvidos por sistemas terrestres e oceânicos e em parte se depositam na atmosfera. À medida que a concentração desses gases se eleva, quantidades crescentes de energia infravermelha permanecem aprisionadas no sistema climático, provocando elevação da temperatura média do planeta e uma série de outras desestabilizações biogeoquímicas.

Isso explica de certa forma porque as mudanças climáticas têm sido um tema de preocupação e debates sistemáticos há mais de trinta anos. Em 1992, na Cúpula da Terra, no Rio de Janeiro, Fidel Castro já discursava afirmando que uma “importante espécie biológica está em risco de desaparecer pela rápida e progressiva liquidação de suas condições naturais de vida: o homem [sic]. Agora estamos cientes deste problema, quando quase é tarde para impedi-lo”. Ou seja, naquele que se tornou o espaço de encontro entre ciência e política por excelência, afirma-se há décadas (sem que isso seja visto como algo controverso) que “temos pouco tempo”. Desde a primeira Conferência das Partes da UNFCCC em 1995 (COP1, Berlin, Alemanha), assistimos à maioria das nações do globo reunir-se em outras vinte e seis dessas conferências anuais, com promessas e acordos cada vez mais ambiciosos, motivados por um discurso persistente de urgência.

Se o tempo é tão curto e a situação é tão grave, se governos do mundo todo sabem disso e selam acordos para reverter tal quadro, então seria razoável esperar que estivéssemos a caminho de equacionar ao menos os principais riscos, correto? Não. Até o observador mais distraído sabe que não temos sido capazes de reduzir o nível de emissões no ritmo necessário. Menos gente sabe, no entanto, que sequer temos sido capazes de interromper o crescimento do nível global de emissões. Menos gente ainda sabe que quase metade das nossas emissões acumuladas se concentra justamente no período pós-1990.

É isso que o IPCC nos informa com precisão. Estima-se que 58% de todas as nossas emissões desde 1850 ocorreram entre 1850 e 1989, um intervalo de 139 anos. Nos 29 anos seguintes, entre 1990 e 2019, situam-se os 42% restantes [2]. Diante de tudo que sabemos, de toda a exortação e de tudo que fizemos, chamar isso apenas de fracasso é uma forma de elogio.

Tal resultado é certamente fruto de uma substancial insuficiência de ação (algo que comentaremos a seguir), mas não deve ser considerado como fruto de pouca ou nenhuma ação. O próprio IPCC relata como a UNFCCC, o Protocolo de Quioto e, mais recentemente, o Acordo de Paris vêm impulsionando as ambições nacionais e como a implementação bem-sucedida de medidas econômicas e regulatórias já tem sido capaz de obter avanços em eficiência energética, contenção de desmatamento e disseminação de novas tecnologias. Em outros termos, há esforço considerável e algum êxito nesse esforço, mas ele é coroado com o fracasso geral de sequer interromper o crescimento das emissões globais. Isso deveria ser suficiente para suspeitarmos que o déficit de ação não é estritamente de natureza quantitativa. A pergunta “qual ação?” importa tanto (ou mais) que a pergunta “quanta ação?”. Teremos ocasião de explorar a primeira dessas perguntas nas próximas 4 ou 5 colunas. Por ora, observemos o que o IPCC tem a dizer sobre a segunda.

De acordo com o Relatório Síntese, caso todos os compromissos nacionalmente determinados (NDCs) de mitigação sejam integralmente implementados, ainda assim estaríamos aquém do volume e ritmo necessários de declínio das emissões para garantir alguma chance de limitarmos o aquecimento a 1,5 °C acima da temperatura de referência (uma média dos anos 1850 a 1900). Na verdade, esse hiato expressivo existe até mesmo se pretendermos limitar o aquecimento a 2 °C [3]. Não bastasse a lacuna entre o prometido e o necessário, também somos informados pelo documento de que há uma lacuna importante entre os compromissos presentes nas NDCs e aquilo que vem sendo efetivamente implementado. Em outros termos, à lacuna entre o necessário e o prometido acrescenta-se uma lacuna entre o prometido e o cumprido.

O que se promete é, de saída, insuficiente. E mesmo o insuficiente não se cumpre. As razões para isso não devem ser buscadas apenas em determinantes conjunturais, como a vontade política, as pressões populares ou o equilíbrio de forças. No que tange às nossas respostas à emergência climática, o “necessário” situa-se em um terreno em que a sociedade capitalista não é capaz de operar. Mostrar e demonstrar isso é tarefa de uma crítica ecológica da sociedade capitalista, que será tema de colunas subsequentes. Por ora, percebam que o crônico déficit de ação apontado pelo relatório não pode ter outro resultado senão o desperdício do pouco tempo que talvez ainda reste para fazer algo de efetivo.

Isso também é apontado de maneira cristalina pelo IPCC. Em um dos destaques do texto, lê-se: “Há uma janela de oportunidade rapidamente se fechando para assegurar um futuro habitável e sustentável para todos”[4]. Para além da repetição do senso de urgência, algo mais chama a atenção: “para todos”. Somos obrigados a concluir, ainda que o relatório não o diga, que uma vez fechada a janela de oportunidade para resguardar um planeta habitável para todos, certamente ainda restará uma janela de oportunidade para resguardar um planeta habitável para alguns; e depois para alguns poucos etc. Se juntarmos aqui outros dois destaques contundentes, temos uma imagem distópica que o IPCC desenha de maneira impressionista [5].

Na página 15, afirma-se que “para qualquer nível de aquecimento futuro, os riscos relacionados ao clima são maiores do que os avaliados na AR5 e os impactos de longo prazo previstos são múltiplas vezes maiores daquilo que é atualmente observado” [6]. Naturalmente, isso implica a necessidade de que o esforço de mitigação seja o mais monumental possível, de modo a garantir que o nível de aquecimento futuro seja o menor possível. Contudo, tanto na página 27 quanto na 33 é dito que “trajetórias ambiciosas de mitigação implicam transformações abrangentes e por vezes disruptivas em estruturas econômicas existentes, com consequências distributivas significativas nos e entre países”[7].

Enquanto a humanidade estiver submetida à lógica cega do capital, o futuro possível – e até mesmo provável – que podemos extrair dessas duas passagens é um em que, tendo se fechado as janelas de oportunidade “para todos” e “para alguns”, a multiplicação acelerada de impactos tenderá a impulsionar lutas desesperadas para garantir um planeta habitável “para uns poucos”, com todas as implicações trágicas previsíveis. Por trás do termo sóbrio e acético “consequências distributivas” devemos ser capazes de ler a ampla variedade de consequências que ele realmente indica quando combinado à erosão acelerada das condições de habitabilidade do planeta: imperialismo ecológico, racismo ambiental, ecofascismo, zonas de sacrifício, genocídio, guerra!

O “temos pouco tempo” que ouvimos recorrentemente há trinta anos não se refere mais ao tempo para evitarmos um conjunto bastante dramático de impactos da crise climática. Esse tempo já acabou, é o que nos informa o relatório mais recente do IPCC. O pouco tempo que ainda nos resta diz respeito à tarefa histórica de livrar a humanidade do capital e, assim, recolocar ao nosso alcance a possibilidade de nos adaptarmos a um mundo mais hostil por caminhos em que ainda caibam todos [8].

Referências

[1] IPCC, Synthesis report of the IPCC sixth assessment report (AR6): summary for policymakers. 2023, p. 4.

[2] Ibidem.

[3] Ibidem, p. 23.

[4] Ibidem, p. 25.

[5] Se os(as) autores(as) do relatório nos obrigam de maneira consciente ou não a fazer esse tipo de inferências, pouco importa. A “pintura impressionista” tem detalhes suficientes para fazermos essas inferências com segurança.

[6] Ibidem, p. 15; ênfase adicionada.

[7] Ibidem, p. 27 e 33; ênfase adicionada.

[8] Apenas para que não haja dúvidas, vale enfatizar que isso não implica uma defesa da adaptação em detrimento da mitigação. Na verdade, uma lição clara do relatório é que apenas a mitigação mais ambiciosa e extraordinária (e, acrescento eu, impossível no capitalismo) seria capaz de preservar as possibilidades de adaptação que ainda existem.

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- 11/08/2024