160 Anos da Associação Internacional dos Trabalhadores: atualidade e lições de sua Mensagem Inaugural
Cem Flores
13.09.2024
Neste mês se comemora os 160 anos do surgimento da Associação Internacional dos Trabalhadores, esse esforço heroico e original do proletariado mundial em sua luta contra o capital. Os comunistas e fundadores do marxismo foram desde o início dedicados militantes e dirigentes dessa organização, colaborando, através da luta política e ideológica com outras correntes do movimento operário, para que a classe cumprisse seu objetivo: emancipar-se por conta própria. A “1ª Internacional” acabou em 1872, sendo um marco sobre o qual iriam partir as posteriores iniciativas internacionalistas da classe operária.
Reproduzimos novamente a Mensagem Inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores, de Karl Marx (Obras Escolhidas, Editorial Avante!, Tomo II), de 1864, ano da fundação da Associação. Marx, um de seus principais dirigentes junto com Engels, também redigira seus estatutos.
A mensagem, como verão, é espantosa pela sua atualidade. Primeiro por apontar uma tendência geral do capitalismo que vem se reforçando globalmente no atual momento histórico: a constituição de um polo da sociedade em prosperidade e outro em constante miséria. Como diz o Chanceler do Tesouro Público da época na caneta de Marx: “Este inebriante aumento de riqueza e poder está inteiramente confinado às classes possidentes!”. No capitalismo não é possível um desenvolvimento igualitário entre as classes pois “os senhores da terra e os senhores do capital sempre usarão os seus privilégios políticos para defesa e perpetuação dos seus monopólios económicos. Muito longe de promover, continuarão a colocar todo o impedimento possível no caminho da emancipação do trabalho”. Ou seja, sem colocar em questão o poder das classes dominantes, através de um “concurso fraterno”, longe dos “preconceitos nacionais”, tudo é ilusão. Nas palavras de Marx na mensagem “conquistar o poder político tornou-se, portanto, o grande dever das classes operárias”.
A mensagem também é brilhante ao destruir, há 160 anos, qualquer ilusão reformista com o desenvolvimento econômico capitalista como alternativa para a classe operária e os trabalhadores, ilusão hoje tão presente nas organizações ditas de “esquerda”:
“Em todos os países da Europa, tornou-se agora uma verdade demonstrável a todo o espírito sem preconceitos e apenas negada por aqueles cujo interesse está em confinar os outros a um paraíso de tolos que nenhum melhoramento da maquinaria, nenhuma aplicação da ciência à produção, nenhuns inventos de comunicação, nenhumas novas colónias, nenhuma emigração, nenhuma abertura de mercados, nenhum comércio livre, nem todas estas coisas juntas, farão desaparecer as misérias das massas industriosas; mas que, na presente base falsa, qualquer novo desenvolvimento das forças produtivas do trabalho terá de tender a aprofundar os contrastes sociais e a agudizar os antagonismos sociais.”
Marx à época recorria aos dados disponíveis que, junto com a teoria que os ilumina e expõe seus limites, conseguiam demonstrar os vários aspectos dessa realidade: relatórios sobre comércio, indústria, saúde pública, legislações… A lista é enorme para uma mera mensagem inaugural. Não há nada mais distante de Marx que um discurso dogmático e baseado em princípios supostamente universais. Como dirá depois Lenin, a alma do marxismo é a análise concreta da situação concreta.
A busca de um rigor para com a análise concreta da realidade se unia a um empenho no nível prático: fazer dessa análise uma arma na mão da classe operária, além de construí-la sob o ponto de vista e a experiência proletária. Seu chamado para as “classes operárias dominarem elas próprias os mistérios da política internacional”, significa lutar para uma autonomia teórica, que no texto aparece sob um nome provisório de “economia política da classe operaria”.
A atenção às condições de vida dos trabalhadores aqui não é um mero detalhe, ou um lamento moralista. Assim como n’O Capital, ela faz parte da análise científica da realidade (cuja ideologia burguesa bloqueia), além de ser um chamado à guerra de classe.
Marx ainda traz importantes lições sobre a luta de classes e sua dinâmica, seja em período de ascensão das forças revolucionárias, seja nos períodos de derrotas e refluxo da luta das massas. Essa dinâmica só pode ser entendida completamente do ponto de vista internacional: “Enquanto a derrota dos seus irmãos continentais desanimou as classes operárias inglesas e quebrou a sua fé na sua própria causa, restaurou para o senhor da terra e para o senhor do dinheiro a sua confiança algo abalada. Retiraram insolentemente concessões já anunciadas”. Além disso, deve-se escapar das lógicas simplistas de vitória-derrota: Marx comenta como as derrotas por vezes sedimentam conquistas e as vitórias também apontam falhas a serem corrigidas. De toda forma, é através da luta que a classe operária e os trabalhadores experimentam por conta própria, e a nível de massas, novas formas de se organizar, produzir e exercer seu poder – essenciais para um dia se tornarem a classe dominante.
* * *
MENSAGEM INAUGURAL DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DOS TRABALHADORES.
Fundada em 28 de setembro de 1864 numa reunião pública, realizada em St. Martin`s Hall, Long Acre, Londres. [N1]
Operários,
É um facto assinalável que a miséria das massas operárias não tenha diminuído de 1848 a 1864; e, contudo, este período não tem rival quanto ao desenvolvimento da indústria e ao crescimento do comércio. Em 1850, um órgão moderado da classe média britânica, de informação superior à média, predizia que se as exportações e as importações da Inglaterra viessem a elevar-se 50 por cento, o pauperismo inglês cairia para zero. Infelizmente, em 7 de Abril de 1864, o Chanceler do Tesouro Público [Chancellor of the Exchequer](1*) deliciava a sua audiência parlamentar com a afirmação de que o comércio total de importação e exportação da Inglaterra se tinha elevado em 1863 “a 443 955 000 libras! soma assombrosa cerca de três vezes superior ao comércio da época comparativamente recente de 1843!”. Apesar de tudo isto, foi eloquente acerca da “pobreza”. “Pensai”, exclamava ele, “nos que estão na fronteira dessa região”, nos “salários. . . não aumentados”; na “vida humana. . . que em nove casos sobre dez não é senão uma luta pela existência!” Não falou do povo da Irlanda, gradualmente substituído pela maquinaria no Norte e por pastagens de carneiros no Sul, ainda que mesmo os carneiros, nesse país infeliz, estejam a diminuir, é verdade que não a uma taxa tão rápida como os homens. Não repetiu o que tinha então acabado de ser denunciado, num súbito acesso de terror, pelos mais altos representantes dos dez mil da alta. Quando o pânico da garrotte[N2] alcançou um certo auge, a Câmara dos Lordes ordenou que se fizesse um inquérito e que se publicasse um relatório acerca da deportação e servidão penal. A verdade veio ao de cima no volumoso Livro Azul de 1863[N3], e ficou provado por factos e números oficiais que os piores criminosos condenados, os forçados de Inglaterra e Escócia, trabalhavam muito menos arduamente e passavam de longe melhor do que os trabalhadores agrícolas da Inglaterra e da Escócia. Mas, isto não foi tudo. Quando, em consequência da Guerra Civil na América[N4], os operários do Lancashire e do Cheshire foram lançados para as ruas, a mesma Câmara dos Lordes enviou para os distritos manufactureiros um médico encarregado de investigar qual a mais pequena quantidade possível de carbono e de nitrogénio a ser ministrada da forma mais barata e mais simples que, em média, pudesse apenas bastar para “prevenir doenças [causadas] pela fome”. O Dr. Smith, o delegado médico, averiguou que 28 000 grãos de carbono e 1330 grãos de nitrogénio eram o abono semanal que manteria um adulto médio. . . apenas acima do nível das doenças [causadas] pela fome e descobriu, além disso, que essa quantidade estava muito perto de coincidir com a alimentação escassa a que a pressão de uma miséria extrema tinha efectivamente reduzido os operários do algodão(2*). Mas, vede agora! O mesmo sábio doutor foi, mais tarde, delegado de novo pelo alto funcionário médico do Conselho Privado[N5] para examinar a alimentação das classes trabalhadoras mais pobres. Os resultados das suas investigações estão contidos no Sixth Report on Public Health [Sexto Relatório sobre Saúde Pública] publicado por ordem do Parlamento no decurso do presente ano. O que é que o doutor descobriu? Que os tecelãos de sedas, as costureiras, os luveiros de pelica, os tecelãos de meias, etc, nem sequer recebiam, em média, a ração miserável dos operários do algodão, nem sequer [recebiam] o montante de carbono e nitrogénio “apenas suficiente para prevenir as doenças [causadas] pela fome”.
“Além disso,” citamos o relatório, “no que toca às famílias da população agrícola examinadas, verifica-se que mais de um quinto tinha menos do que a estimada suficiência de alimentação carbonada, que mais de um terço tinha menos do que a suficiência estimada de alimentação nitrogenada e que em três condados (Berkshire, Oxfordshire e Somersetshire) a insuficiência de alimentação nitrogenada era a dieta local média.” “É preciso não esquecer”, acrescenta o relatório oficial, “que a privação de alimentação é muito relutantemente aguentada e que, em regra, uma grande pobreza de dieta só sobrevirá quando outras privações a precederam. . . Mesmo a limpeza terá sido considerada cara ou difícil e, se ainda houver esforços de respeito por si próprio para a manter, cada esforço desses representará tormentos de fome adicionais.” “Estas são reflexões dolorosas, especialmente, se não nos esquecermos de que a pobreza a que aludem não é a pobreza merecida pela ociosidade; em todos os casos, é a pobreza de populações trabalhadoras. De facto, o trabalho que fornece a escassa ração de alimento é, para a maior parte, excessivamente prolongado.”
O relatório exibe o facto estranho, e bastante inesperado, de que: “De entre as partes do Reino Unido”, Inglaterra, Gales, Escócia e Irlanda, “a população agrícola da Inglaterra”, a parte mais rica, “é consideravelmente a mais mal alimentada”; mas, de que mesmo os operários agrícolas do Berkshire, Oxfordshire e Somersetshire passam melhor do que grande número de hábeis operários do Leste de Londres que trabalham a domicílio.
São estas as declarações oficiais publicadas por ordem do Parlamento em 1864, durante o milénio do comércio livre, numa altura em que o Chanceler do Tesouro Público disse à Câmara dos Comuns que
“a condição média do trabalhador inglês melhorou num grau que sabemos que é extraordinário e sem exemplo na história de qualquer país ou qualquer idade”.
Destas congratulações oficiais destoa a seca observação do Relatório oficial sobre a Saúde Pública:
“A saúde pública de um país significa a saúde das suas massas, e as massas dificilmente serão saudáveis, a menos que, até na sua própria base, sejam pelo menos moderadamente prósperas.”
Deslumbrado pelo “Progresso da Nação”, com as estatísticas a dançar diante dos seus olhos, o Chanceler do Tesouro Público exclama num êxtase impetuoso:
“De 1842 a 1852 o rendimento colectável do país aumentou 6 por cento; nos oito anos de 1853 a 1861, aumentou 20 por cento, na base tomada em 1853! o facto é tão espantoso que é quase inacreditável!. . . Este inebriante aumento de riqueza e poder”, acrescenta o Sr. Gladstone, “está inteiramente confinado às classes possidentes!”
Se se quiser saber em que condições de saúde arruinada, de moral manchada e de ruína mental esse “inebriante aumento de riqueza e poder inteiramente confinado às classes possidentes” foi e está a ser produzido pelas classes do trabalho, olhe-se para o quadro das oficinas de alfaiates, impressores e costureiras traçado no último Relatório sobre a Saúde Pública! Compare-se com o Report of the Children’s Employment Commission(3*) de 1863, onde é afirmado, por exemplo, que:
“Os oleiros como classe, tanto os homens como as mulheres, representam uma população muito degenerada, tanto fisicamente como mentalmente”, que “a criança não saudável é, por sua vez, um pai não saudável”, que “uma deterioração progressiva da raça tem de continuar” e que “a degenerescência da população de Staffordshire ainda seria maior se não fosse o recrutamento constante da região adjacente e os casamentos mistos com raças mais saudáveis.”
Dê-se uma olhadela ao Livro Azul do Sr. Tremenheere sobre os “Agravos de que se queixaram os oficiais de padaria”! E quem é que não estremeceu com a declaração paradoxal feita pelos inspectores de fábricas, e ilustrada pelo Registrar General(4*), de que os operários do Lancashire estavam efectivamente a melhorar em saúde, quando ficaram reduzidos à ração miserável de alimento, em virtude da sua exclusão temporária da fábrica de algodão por falta de algodão e de que a mortalidade das crianças estava a diminuir porque agora, enfim, era às suas mães permitido darem-lhes em vez do cordial de Godfrey(5*), os seus próprios peitos.
Veja-se mais uma vez o reverso da medalha! Os Relatórios do Imposto sobre Rendimento e Propriedade, apresentados perante a Câmara dos Comuns em 20 de Julho de 1864, mostram-nos que às pessoas com rendimentos anuais avaliados pelo colector de impostos em 50 000 libras e mais se tinham juntado, de 5 de Abril de 1862 a 5 de Abril de 1863, uma dúzia mais uma, tendo o seu número crescido nesse único ano de 67 para 80. Os mesmos Relatórios desvendam o facto de que cerca de 3000 pessoas dividem entre si um rendimento [income] anual de cerca de 25 000 000 de libras esterlinas, bastante mais do que o rendimento [revenue] total repartido anualmente por toda a massa dos trabalhadores agrícolas de Inglaterra e Gales. Abri o censo de 1861, e descobrireis que o número dos proprietários de terras masculinos de Inglaterra e Gales diminuiu de 16 934 em 1851 para 15 066 em 1861, de tal modo que a concentração de terras cresceu em dez anos 11 por cento. Se a concentração do solo do país em poucas mãos se processar à mesma taxa, a questão da terra ficará singularmente simplificada, tal como ficou no Império Romano, quando Nero sorriu com a descoberta de que metade da Província de África era possuída por seis senhores. Insistimos tanto tempo nestes “factos tão espantosos que são quase inacreditáveis “, porque a Inglaterra está à cabeça da Europa do comércio e da indústria. Estaremos lembrados de que, há uns meses atrás, um dos filhos refugiados de Louis Philippe felicitou publicamente o trabalhador agrícola inglês pela superioridade da sua sorte sobre a do seu camarada menos florescente do outro lado do Canal. Na verdade, com as cores locais alteradas e numa escala algo contraída, os factos ingleses reproduzem-se em todos os países industriosos e progressivos do Continente. Em todos eles, teve lugar, desde 1848, um inaudito desenvolvimento da indústria e uma inimaginável expansão das importações e exportações. Em todos eles, “o aumento de riqueza e poder inteiramente confinado às classes possidentes” foi verdadeiramente “inebriante”. Em todos eles, tal como em Inglaterra, uma minoria das classes operárias viu os seus salários reais algo aumentados; embora, na maioria dos casos, a subida monetária dos salários denotasse tanto um acesso real ao conforto como o facto do hóspede do asilo de mendicidade ou do orfanato da metrópole, por exemplo, em nada ser beneficiado por os seus meios de primeira necessidade custarem 9£ 15s. e 8d. em 1861 contra 7£ 7s. e 4d. em 1852. Por toda a parte, a grande massa das classes operárias se estava a afundar mais, pelo menos à mesma taxa que as acima delas subiam na escala social. Em todos os países da Europa, tornou-se agora uma verdade demonstrável a todo o espírito sem preconceitos e apenas negada por aqueles cujo interesse está em confinar os outros a um paraíso de tolos que nenhum melhoramento da maquinaria, nenhuma aplicação da ciência à produção, nenhuns inventos de comunicação, nenhumas novas colónias, nenhuma emigração, nenhuma abertura de mercados, nenhum comércio livre, nem todas estas coisas juntas, farão desaparecer as misérias das massas industriosas; mas que, na presente base falsa, qualquer novo desenvolvimento das forças produtivas do trabalho terá de tender a aprofundar os contrastes sociais e a agudizar os antagonismos sociais. A morte por fome, na metrópole do Império Britânico, elevou-se quase ao nível de uma instituição, durante esta época inebriante de progresso económico. Essa época fica marcada nos anais do mundo pelo regresso acelerado, pelo âmbito crescente e pelo efeito mais mortífero da peste social chamada crise comercial e industrial.
Após o fracasso das Revoluções de 1848, todas as organizações partidárias e jornais partidários das classes operárias foram, no Continente, esmagados pela mão de ferro da força, os mais avançados filhos do trabalho fugiram desesperados para a República Transatlântica e os sonhos efémeros de emancipação desvaneceram-se ante uma época de febre industrial, de marasmo moral e de reacção política. A derrota das classes operárias continentais, em parte, devida à diplomacia do Governo inglês, agindo, então tal como agora, em solidariedade fraterna com o Gabinete de Sampetersburgo[N6], cedo espalhou os seus efeitos contagiosos para este lado do Canal. Enquanto a derrota dos seus irmãos continentais desanimou as classes operárias inglesas e quebrou a sua fé na sua própria causa, restaurou para o senhor da terra e para o senhor do dinheiro a sua confiança algo abalada. Retiraram insolentemente concessões já anunciadas. As descobertas de novas terras auríferas conduziram a um imenso êxodo, que deixou um vazio irreparável nas fileiras do proletariado britânico. Outros dos seus membros anteriormente activos foram apanhados pelo suborno temporário de mais trabalho e salários melhores e tornaram-se “fura-greves políticos” [political blacks]. Todos os esforços feitos para manter ou remodelar o Movimento Cartista[N7] falharam assinalavelmente; os órgãos de imprensa da classe operária foram morrendo um a um pela apatia das massas e, de facto, nunca antes a classe operária inglesa tinha parecido tão inteiramente reconciliada com um estado de nulidade política. Se, então, não tinha havido qualquer solidariedade de acção entre as classes operárias britânica e continental, havia, para todos os efeitos, uma solidariedade de derrota.
E, contudo, o período que passou desde as Revoluções de 1848 não deixou de ter os seus aspectos compensadores. Apontaremos aqui apenas para dois grandes factos.
Após uma luta de trinta anos, travada com a mais admirável perseverança, as classes operárias inglesas, aproveitando uma discórdia momentânea entre os senhores da terra e os senhores do dinheiro, conseguiram alcançar a Lei das Dez Horas[N8]. Os imensos benefícios físicos, morais e intelectuais daí resultantes para os operários fabris, semestralmente registados nos relatórios dos inspectores de fábricas, de todos os lados são agora reconhecidos. A maioria dos governos continentais teve de aceitar a Lei Fabril [Factory Act] inglesa em formas mais ou menos modificadas e o próprio Parlamento inglês foi cada ano compelido a alargar a sua esfera de acção.
Mas, para além do seu alcance prático, havia algo mais para realçar o maravilhoso sucesso desta medida dos operários. Através dos seus órgãos de ciência mais notórios — tais como o Dr. Ure, o Professor Sénior e outros sábios desse cunho —, a classe média tinha predito, e a contento dos seus corações, provado, que qualquer restrição legal às horas de trabalho teria de dobrar a finados pela indústria britânica que, qual vampiro, não podia senão viver de chupar sangue, e ainda por cima sangue de crianças. Em tempos idos, o assassínio de crianças era um rito misterioso da religião de Moloch, mas só era praticado em algumas ocasiões muito solenes, uma vez por ano, talvez, e, mesmo assim, Moloch não tinha uma propensão exclusiva para os filhos dos pobres. Esta luta acerca da restrição legal das horas de trabalho enfureceu-se tanto mais ferozmente quanto, à parte a avareza assustada, ela se referia, na verdade, à grande contenda entre o domínio cego das leis da oferta e da procura que formam a economia política da classe média e a produção social controlada por previsão social, que forma a economia política da classe operária. Deste modo, a Lei das Dez Horas não foi apenas um grande sucesso prático; foi a vitória de um princípio; foi a primeira vez que em plena luz do dia a economia política da classe média sucumbiu à economia política da classe operária.
Mas, estava reservada uma vitória ainda maior da economia política do trabalho sobre a economia política da propriedade. Falamos do movimento cooperativo, especialmente, das fábricas cooperativas erguidas pelos esforços, sem apoio, de algumas “mãos” ousadas. O valor destas grandes experiências sociais não pode ser exagerado. Mostraram com factos, em vez de argumentos, que a produção em larga escala e de acordo com os requisitos da ciência moderna pode ser prosseguida sem a existência de uma classe de patrões empregando uma classe de braços; que, para dar fruto, os meios de trabalho não precisam de ser monopolizados como meios de domínio sobre e de extorsão contra o próprio trabalhador; e que, tal como o trabalho escravo, tal como o trabalho servo, o trabalho assalariado não é senão uma forma transitória e inferior, destinada a desaparecer ante o trabalho associado desempenhando a sua tarefa com uma mão voluntariosa, um espírito pronto e um coração alegre. Em Inglaterra, os gérmenes do sistema cooperativo foram semeados por Robert Owen; as experiências dos operários, tentadas no Continente, foram, de facto, o resultado prático das teorias, não inventadas, mas proclamadas em alta voz, em 1848.
Ao mesmo tempo, a experiência do período de 1848 a 1864 provou fora de qualquer dúvida que o trabalho cooperativo — por mais excelente que em princípio [seja] e por mais útil que na prática [seja] —, se mantido no círculo estreito dos esforços casuais de operários privados, nunca será capaz de parar o crescimento em progressão geométrica do monopólio, de libertar as massas, nem sequer de aliviar perceptivelmente a carga das suas misérias. É talvez por esta precisa razão que nobres bem-falantes, filantrópicos declamadores da classe média e mesmo agudos economistas políticos, imediatamente se voltaram todos com cumprimentos nauseabundos para o preciso sistema de trabalho cooperativo que em vão tinham tentado matar à nascença, ridicularizando-o como Utopia do sonhador ou estigmatizando-o como sacrilégio do Socialista. Para salvar as massas industriosas, o trabalho cooperativo deveria ser desenvolvido a dimensões nacionais e, consequentemente, ser alimentado por meios nacionais. Contudo, os senhores da terra e os senhores do capital sempre usarão os seus privilégios políticos para defesa e perpetuação dos seus monopólios económicos. Muito longe de promover, continuarão a colocar todo o impedimento possível no caminho da emancipação do trabalho. Lembremo-nos do escárnio com o qual, na última sessão, Lord Palmerston deitou abaixo os defensores da Lei dos Direitos dos Rendeiros Irlandeses [Irish Tenants’ Right Bill]. A Câmara dos Comuns, gritou ele, é uma casa de proprietários de terras.
Conquistar poder político tornou-se, portanto, o grande dever das classes operárias. Parecem ter compreendido isto, porque em Inglaterra, Alemanha, Itália e França tiveram lugar renascimentos simultâneos e estão a ser feitos esforços simultâneos para a reorganização política do partido dos operários.
Possuem um elemento de sucesso — o número; mas o número só pesa na balança se unido pela combinação e guiado pelo conhecimento. A experiência passada mostrou como a falta de cuidado por este laço de fraternidade, que deve existir entre os operários de diferentes países e incitá-los a permanecer firmemente ao lado uns dos outros em toda a sua luta pela emancipação, será castigada pela derrota comum dos seus esforços incoerentes. Este pensamento incitou os operários de diferentes países, congregados em 28 de Setembro de 1864 numa reunião pública em St. Martin’s Hall, a fundar a Associação Internacional.
[Uma] outra convicção influenciou [ainda] esta reunião.
Se a emancipação das classes operárias requer o seu concurso fraterno, como é que irão cumprir essa grande missão, com uma política externa que persegue objectivos criminosos, joga com preconceitos nacionais e dissipa em guerras piratas o sangue e o tesouro do povo? Não foi a sabedoria das classes dominantes, mas a resistência heróica das classes operárias de Inglaterra à sua loucura criminosa, que salvou o Ocidente da Europa de mergulhar de cabeça numa cruzada infame pela perpetuação e propagação da escravatura do outro lado do Atlântico. A aprovação desavergonhada, a simpatia trocista ou a indiferença idiota com que as classes superiores da Europa assistiram a que a fortaleza de montanha do Cáucaso caísse como presa da Rússia e a heróica Polónia fosse assassinada pela Rússia; as imensas e irresistidas usurpações desse poder bárbaro, cuja cabeça está em Sampetersburgo e cujos braços estão em todos os Gabinetes da Europa, ensinaram às classes operárias o dever de dominarem elas próprias os mistérios da política internacional, de vigiarem os actos diplomáticos dos seus respectivos Governos, de os contra-atacarem, se necessário, por todos os meios ao seu dispor, [o dever de,] quando incapazes de o impedirem, se juntarem em denúncias simultâneas e de reivindicarem as simples leis da moral e da justiça, que deveriam governar as relações dos indivíduos privados, como as regras supremas do comércio das nações.
O combate por semelhante política externa faz parte da luta geral pela emancipação das classes operárias.
Proletários de todos os países, uni-vos!
Notas de rodapé:
(1*) William Gladstone
(2*) Quase não precisamos de lembrar ao leitor que, à parte os elementos de água e certas substâncias inorgânicas, o carbono e o nitrogénio formam a matéria em bruto da alimentação humana. Todavia, para alimentar o sistema humano, aqueles constituintes químicos simples têm de ser fornecidos sob a forma de substâncias vegetais ou animais. As batatas, por exemplo, contêm principalmente carbono, enquanto o pão de trigo contém substâncias carbonadas e nitrogenadas numa proporção devida. (Nota de Marx.)
(3*) Relatório da Comissão sobre o Emprego de Crianças. Marx refere-se aqui ao primeiro relatório desta comissão. (Nota da edição portuguesa.)
(4*) Registrar General: funcionário que na Grã-Bretanha tinha a superintendência do sistema de registo de nascimento, mortes e casamentos. (Nota da edição portuguesa.)
(5*) Nome de um licor tónico, reconstituinte. (Nota da edição portuguesa.)
Notas de fim de tomo:
[N1] Em 28 de Setembro de 1864 teve lugar uma grande reunião pública internacional de operários no St. Martin’s Hall de Londres; nela foi fundada a Associação Internacional dos Trabalhadores (mais tarde conhecida como Primeira Internacional) e eleito um Comité provisório, que contava Karl Marx entre os seus membros. Marx foi depois eleito para a comissão designada a 5 de Outubro, na primeira sessão do Comité, para redigir os documentos programáticos da Associação. A 20 de Outubro a comissão encarregou Marx de rever o documento por ela preparado durante a doença de Marx e redigido no espírito das ideias de Mazzini e Owen. Em lugar desse documento, Marx escreveu de facto dois textos inteiramente novos — a Mensagem inaugural da Associação Internacional dos Trabalhadores e os Estatutos Provisórios da Associação —, que foram aprovados na sessão da comissão de 27 de Outubro. Em 1 de Novembro de 1864 a Mensagem e os Estatutos foram ratificados por unanimidade pelo Comité provisório, que se constituiu em órgão dirigente da Associação. Este órgão, que entrou na história como Conselho Geral da Internacional, foi predominantemente denominado Conselho Central até finais de 1866. Karl Marx foi de facto o dirigente do Conselho Geral. Foi o seu verdadeiro organizador, o seu cnefe, o autor de numerosas mensagens, declarações, resoluções e outros documentos do Conselho. Na Mensagem Inaugural, primeiro documento programático, Marx conduz as massas operárias à ideia da necessidade de tomar o poder político, de fundar um Partido proletário independente e de assegurar a união fraterna entre os operários dos diferentes países. Publicada pela primeira vez em 1864, a Mensagem Inaugural foi muitas vezes reeditada ao longo de toda a história da Primeira Internacional, que deixou de existir em 1876. (retornar ao texto)
[N2] Em francês no texto: garrote. Garroters era o nome dado aos bandidos que estrangulavam as suas vítimas. No início dos anos 60 do século XIX tais agressões começaram a repetir-se frequentemente em Londres e foram objecto de uma discussão especial no Parlamento.
[N3] Livros Azuis (Blue Books): denominação geral — devida à cor da capa — da publicações dos materiais do Parlamento britânico e dos documentos diplomático do Foreign Office (Ministério dos Negócios Estrangeiros). São editados em Inglaterra desde o século XVII e constituem a principal fonte oficial sobre a história económica e diplomática do país. Trata-se na p. 6 do Report of the Commissioners Appointed to Inquire into the Operation of the Acts Relating to Transportation and Penal Servitude (Relatórios dos Comissários Nomeados para Inquirir acerca das Leis Que Se Relacionam com a Deportação e a Servidão Penal), t. 1, Londres, 1863.
[N4] A Guerra Civil na América (1861-1865) opôs, nos Estados Unidos, os Estados industriais do Norte e os Estados escravistas do Sul, que se rebelaram contra a abolição da escravatura. A classe operária da Inglaterra opôs-se à política da burguesia inglesa, que apoiava os plantadores escravistas, e impediu a ingerência da Inglaterra na Guerra Civil nos Estados Unidos.
[N5] O Conselho Privado (Privy Council) surgiu em Inglaterra no século XIII e era composto inicialmente por representantes da nobreza feudal e do alto clero. Sendo o mais alto órgão consultivo do rei, o Conselho Privado desempenhou até ao século XVII um importante papel na governação do Estado. Com o desenvolvimento do parlamentarismo e o reforço do poder do gabinete de ministros o Conselho Privado perde gradualmente a sua importância.
[N6] Referência ao governo tsarista da Rússia, cuja capital foi, a partir do século XVIII, a cidade de Sampetersburgo.
[N7] Movimento revolucionário de massas dos operários ingleses nos anos 30-40 do século XIX. Os cartistas elaboraram em 1838 uma petição (Carta do Povo) ao Parlamento, a qual continha as reivindicações do sufrágio universal para os homens de mais de 21 anos, o voto secreto, a abolição das restrições censitárias para os candidatos a deputados ao Parlamento, etc. O movimento começou com grandes comícios e manifestações e decorreu sob a palavra de ordem de luta pela aplicação da Carta do Povo. Em 2 de Maio de 1842 foi entregue ao Parlamento uma segunda petição dos cartistas, incluindo já uma série de reivindicações de carácter social (redução da jornada de trabalho, aumento dos salários, etc). Esta petição, tal como a primeira, foi rejeitada pelo Parlamento. Em resposta a isto, os cartistas realizaram uma greve geral. Em 1848 os cartistas marcaram um desfile de massas para o Parlamento com uma terceira petição, mas o governo concentrou tropas e dispersou desfile. A petição foi rejeitada. Depois de 1848 o movimento cartista entrou em declínio. A causa principal do insucesso do movimento cartista foi a ausência de programa e táctica precisos e de uma direcção consequentemente revolucionaria. Mas os cartistas exerceram uma grande influência tanto na história política da Ingaterra como no desenvolvimento do movimento operário internacional.
[N8] A luta da classe operária por uma redução legislativa da jornada de trabalho para dez horas foi travada em Inglaterra desde os finais do século XVIII, e a partir do começo dos anos 30 do século XIX ganhou vastas massas do proletariado. A lei sobre a jornada de trabalho de dez horas (Ten Hour’s Bill), extensiva apenas a mulheres e adolescentes, foi aprovada no Parlamento em 8 de Junho de 1847. Todavia, na prática, numerosos industriais não respeitavam esta lei.