O capitalismo encontrou limites intransponíveis? François Chesnais.
Desde o ano passado o blog Cem Flores vem publicando uma série de artigos com o objetivo de aprofundar os estudos que já vimos fazendo, a partir do marxismo, sobre a crise geral do imperialismo, crise que atinge o conjunto da economia mundial, do sistema capitalista no mundo.
Postamos em outubro de 2016, com uma apresentação, o prefácio e dois capítulos do livro de Lenin “Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo” (aqui), comemorando os 100 anos de publicação dessa obra magistral.
Um mês depois apresentamos uma análise crítica à posição do Partido Comunista da Grécia sobre o imperialismo (acesse aqui).
Aprofundamos a análise do tema em dezembro apresentando e debatendo o texto de Francisco Martins Rodrigues “Os clássicos e o imperialismo: que actualidade?” (aqui).
Fizemos ainda uma resenha crítica ao texto de Dani Nabudere “A Economia Política do Imperialismo”, publicada em maio desse ano, que pode ser acessada aqui.
Além desses 04 artigos que debatem a atualidade do conceito e a situação do imperialismo hoje, apresentamos ainda ao leitores do blog a tradução de dois trabalhos de Tom Thomas, extremamente atuais, sobre a crise geral do modo de produção capitalista no mundo e as perspectivas para o movimento revolucionário: o livro “2015 – Situação & Perspectivas” (aqui) e uma atualização de sua avaliação no texto “Situação em 2015: Atualização e Confirmação” (aqui).
Com o objetivo de aprofundar a análise da crise hoje reproduzimos abaixo o texto de François Chesnais intitulado “O capitalismo encontrou limites intransponíveis?”. Esse artigo foi publicado em português na edição nº 24 da revista eletrônica O Comuneiro (link para o original aqui).
Na apresentação do artigo o editor da revista, Ângelo Novo, que fez a tradução para o português, apresenta o texto que versa “sobre um tema que tem estado na mente de muitos nós desde, pelo menos, a crise de 2007-8: terá o capital encontrado limites absolutos ao seu típico movimento de expansão? É uma interrogação que coloca certamente algumas questões a quem procura desenhar linhas estratégicas para o derrube deste sistema iníquo e ruinoso, mas nunca nos poderá afastar da única certeza que temos, a da luta.”
Mesmo discordando de várias posições defendidas por François Chesnais (em particular sua tese sobre a financeirização, que se afasta do marxismo) consideramos importante a leitura do texto publicado em O Comuneiro pelo apurado estudo que faz da crise hoje. Trata-se de uma importante contribuição para a análise da situação atual da conjuntura no mundo e recomendamos seu estudo.
O capitalismo encontrou limites intransponíveis?
François Chesnais[*]
Em seu número 631/632, de novembro de 2016, a revista Inprecor publicou um texto traduzido da versão castelhana que saiu na revista Herramienta, ela própria traduzida do original em inglês. Este ensaio original vem na conclusão de um livro saído na coleção «Historical Materialism» sobre o capital financeiro e as finanças que eu escrevi à luz da crise de 2007-2008 e das transformações nas formas globalizadas de exploração dos proletários[2]. Tanto a conclusão do livro como o texto publicado em Inprecor têm como horizonte as perspectivas da sociedade humana. As observações de amigos que o leram me convenceram da necessidade de clarificar alguns argumentos.
Por seu lado, uma série de acontecimentos políticos dos últimos meses convidam a encurtar o horizonte desta reflexão. Muitos estudos têm sido publicados, desde há dois ou três anos, sobre as tensões políticas globais, nacionais e internacionais, bem como sobre as doenças societais francesas e europeias. Um grande número de autores relaciona estas questões com o neoliberalismo, a “globalização” e as suas consequências. Aqui elas são relacionadas com o curso do capitalismo e o seu impasse. Em lugar de eventos ao nível da “superestrutura”, o meu texto centra-se de novo na “infra-estrutura”, no movimento de acumulação de capital a longo prazo e nas barreiras que esta enfrenta. A perspectiva é a de uma situação em que as consequências políticas e sociais de um baixo crescimento e de uma instabilidade financeira endêmica, com o caos político que eles criam, já hoje, em certas partes do mundo e, potencialmente, noutras ainda, estão em vias de convergir com o impacto social e político das mudanças climáticas.
Este texto – inicialmente publicado na revista A l’encontre – tem obviamente implicações políticas fortes. É a expressão de uma inflexão teórica pessoal assaz radical, pois que, ainda há dez anos, a revista Carré Rouge havia participado de uma rede de discussão sobre a atualidade do comunismo em que os participantes expressaram opiniões diversas sobre o período[3]. Mas foi, obviamente, em 2008, que começou esta mudança, que já podemos apreciar em um texto meu também publicado em Herriamenta e Inprecor, no qual tentei articular a crise económica e financeira com a crise das mudanças climáticas[4].
O conceito de “barreiras” ou “limites” ao modo de produção
Quase dez anos após o início da crise económica e financeira mundial, uma vez que ela começou em julho-agosto de 2007 e explodiu em setembro de 2008, o ritmo da taxa de crescimento do PIB mundial obedeceu ao quadro seguinte. As últimas projeções do F.M.I. são de 3% para 2017 como para 2018[5].
O que eu coloco em discussão é saber se a crise económica e financeira mundial de 2007-2008 pode ser vista, simplesmente, como uma “grande crise” de um capitalismo ainda capaz de abrir um nova fase longa de reprodução alargada à escala do “mercado mundial finalmente constituído” ou, pelo contrário, deve ser entendida como o ponto de partida de um momento histórico em que o capitalismo irá se confrontar com limites que não poderá mais ultrapassar.
No livro III de O Capital, Marx afirma que “a produção capitalista tende constantemente a exceder os limites que lhe são imanentes, mas só o consegue fazer utilizando meios, que, mais uma vez, e agora em escala maior, recolocam depois perante si essas mesmas barreiras”[6]. A questão posta é a de saber se a produção capitalista se está agora confrontando com barreiras que ela não pode mais ultrapassar, nem mesmo temporariamente. Estaríamos em presença de duas formas de limites intransponíveis, com implicações muito fortes para a reprodução do capital e a gestão da ordem burguesa, sobretudo para a vida civilizada. Uma delas, decorrente dos efeitos da automação, remonta ao século XIX e tem um caráter imanente, interno ao movimento do capital, sobre o qual Marx insistiu fortemente. A outra, decorrente da destruição pela produção capitalista dos equilíbrios eco-sistémicos, particularmente da biosfera, não foi prevista por Marx e foi inicialmente definida como um limite externo.
Comecemos com a primeira, sobre a qual Ernest Mandel defendeu, desde 1986, a tese de uma mudança qualitativa. A maximização do lucro, ela própria sem limites, baseia-se na maximização da quantidade de mais-valia ou sobrevalor produzido e realizado. Implica, contraditoriamente, o emprego do maior número possível de proletários e o recurso à mecanização, portanto a substituição do trabalho vivo (o dos assalariados) pelo trabalho morto (as máquinas), ou seja, a diminuição da quantidade de trabalho necessária para valorizar um determinado capital. Com efeito, Marx escreveu: “a extensão da produção afirma-se sob um dupo aspecto: ela impele ao crescimento do sobretrabalho, ou seja, à redução do tempo necessário à reprodução da força trabalho; ela restringe o número de trabalhadores necessários para pôr em movimento um determinado capital”[7]. É aí que reside a causa do declínio da taxa de lucro. Sendo, então, a situação do capitalismo ainda a de um sistema que experimentava tecnologias drasticamente menos “poupadoras de trabalho” do que hoje em dia, e tendo ainda o planeta inteiro para conquistar, Marx podia escrever que, se “o crescimento do capital depende tanto da massa como da taxa de lucro”, a situação era que “o desenvolvimento da produção capitalista provoca a queda da taxa de lucro, mas uma vez que envolve a implementação de capitais cada vez mais importantes, aumenta a massa desse lucro”. A acção destas “influências contraditórias” se afirmava “periodicamente pelas crises, que são erupções violentas, após as quais o equilíbrio é restaurado momentaneamente”[8].
O que Mandel defendeu foi a idéia de uma mudança na força relativa destas influências contraditórias, na análise das consequências do que ele chamou de “robotismo”, então em sua infância. Em 1986, em seu prefácio à edição da Penguin Books do Volume III de O Capital, Mandel afirma que “a extensão da automação, para além de um certo limite, conduz, inevitavelmente, primeiro a uma redução no volume total do valor produzido, e depois a uma redução no volume do sobrevalor realizado”. Ele viu um “limite inultrapassável” portador de uma “tendência do capitalismo para o colapso final.”[9]. Muito mais recentemente, a relação da automação com a crise global de 2007-2008 foi exposta em 2011 por um autor marxista de percurso muito diferente, o chefe de fila do grupo Krisis, Robert Kurz. Kurz fala de “produção real insuficiente de sobrevalor” (…) sobre o pano de fundo de uma nova ruptura estrutural no desenvolvimento capitalista, marcada pela terceira revolução industrial (a microeletrônica) e de “’limite interno do capital’, que acaba por se tornar um limite absoluto”[10].
A segunda barreira foi sendo identificada teoricamente, de forma progressiva, no decurso dos debates no seio da Ecologia Política dos Estados Unidos da América, especialmente entre James O’Connor, John Belamy Foster, Joel Kovel e Jason Moore. Eles começaram com o artigo de 1988 de James O’Connor sobre a “segunda contradição” do capitalismo. No caso da ecologia, os debates sobre “limites absolutos”, a que voltaremos mais adiante, são, em primeiro lugar, sobre a extensão dos efeitos sobre a taxa de lucro da diminuição dos recursos naturais não-renováveis e, por outro lado, sobre as graves consequências decorrentes da incapacidade do capitalismo para retardar o avanço das mudanças climáticas, tendo o modo de produção capitalista desenvolvido um tipo de relação com o seu meio ambiente que transforma a biosfera ao ponto de ameaçar as relações civilizadas[11].
O problema do futuro do capitalismo tornou-se uma questão suficientemente premente para que Michael Roberts dedique o último capítulo de seu livro recente à “possibilidade de que o capitalismo tenha atingido a sua data de validade”, quando ele, até então, a tinha apenas mencionado de passagem em frases episódicas de artigos em seu blogue. Depois de muitas tergiversações, acaba por concluir que não, que “a Longa Depressão não é uma espécie de crise final”, que há “ainda mais seres humanos para explorar” e que “haverá sempre inovações tecnológicas para lançar um novo ciclo Kondratiev”, enquanto alinha no mesmo capítulo elementos que sugerem o contrário. Ele estima que “o capitalismo vai recuperar em algum momento a sua saúde”, oferecendo para terminar uma definição muito peculiar de barbárie, como “uma queda a um nível de produtividade do trabalho e em condições de vida pré-capitalistas”, que contrasta fortemente com aquela que Mandel dá mais abaixo[12].
As questões políticas
O encontro, pelo capitalismo, de limites que ele não poderá atravessar não significa, de forma alguma, o fim da dominação política e social da burguesia, menos ainda a sua morte, mas abre a perspetiva de que esta conduza a humanidade para a barbárie. O desafio é que aqueles e aquelas que são explorados pela burguesia, ou que não estejam a ela vinculados, encontrem maneiras de se libertarem do seu curso mortífero.
As implicações sociais e políticas de uma “estagnação secular” muito mais grave, em seus fundamentos, do que a dos anos 1930, são difíceis de medir, mas, obviamente, imensas, especialmente porque a situação pode oscilar em caso de ruptura de um ponto do ecossistema, em resultado das mudanças climáticas. Um crescimento muito fraco do PIB global, e mais ainda do PIB per capita, coloca já problemas muito grandes às burguesias. O mercado global é composto de grupos industriais e bancários em concorrência brutal e oligarquias nacionais profundamente rivais.
A política de Donald Trump reflete uma situação em que todos os golpes são, a partir de agora, permitidos entre as burguesias. Internamente, o crescimento das desigualdades (de rendimento, de patrimónios, de acesso à educação e à saúde) acelera-se e as suas conseqüências são cada vez mais difíceis de gerir. Mandel falava, em 1986, de “desafios crescentes a todas as relações burgueses fundamentais e aos valores da sociedade como um todo”, após um “aumento do desemprego em massa e dos setores marginalizados da população, do número daqueles que ‘abandonam’ e de todos aqueles a quem o desenvolvimento ‘final’ da tecnologia capitalista expulsa do processo de produção”. Para aqueles e aquelas “de baixo”, que vivem em um mundo globalizado, dominado por completo pelo capitalismo, as implicações são extremamente graves, tanto no plano quotidiano como no do horizonte histórico.
Com efeito, Mandel escreveu que
“a tendência do capitalismo para o colapso final (….) não é necessariamente a favor de uma forma superior de organização social ou de civilização. Precisamente em função da própria degeneração do capitalismo, estão se multiplicando os fenômenos de decadência cultural, de regressão nos campos da ideologia e do respeito pelos direitos humanos, acompanhando a sequência de crises multifacetadas com as quais essa degeneração nos irá defrontar” (nos defronta já, F. C.).
Marcado pelas formas assumidas pela barbárie no século XX, Mandel pensava que
“a barbárie, enquanto resultado possível do colapso do sistema, é uma perspectiva muito mais concreta e precisa hoje do que era nos anos 1920 ou 1930. Mesmo os horrores de Auschwitz e Hiroshima parecerão mínimos em comparação com os horrores que a humanidade enfrentará na decrepitude contínua do sistema. Nessas circunstâncias, a luta por uma saída socialista toma o significado de uma luta pela sobrevivência da civilização humana e do género humano”[13].
Mandel moderou esta perspectiva catastrófica com esta mensagem de esperança inspirada pelo Programa de Transição (1938):
“O proletariado, como Marx mostrou, reune todos os pré-requisitos para conduzir esta luta com sucesso; hoje isso continua a ser mais verdadeiro do que nunca. E ele tem, pelo menos, o potencial para adquirir também os pré-requisitos subjetivos para uma vitória do socialismo mundial. A concretização deste potencial dependerá, em última análise, dos esforços conscientes dos marxistas revolucionários, integrando-se nas lutas espontâneas periódicas do proletariado para reorganizar a sociedade de acordo com os princípios socialistas e conduzindo-o em direção a objetivos precisos: a conquista do poder de Estado e a revolução social radical. Não vejo razões para estar mais pessimista hoje, sobre o resultado deste empreendimento, do que Marx o estava quando escreveu O Capital“[14].
Em 1986 estava ainda aberta a possibilidade de que o colapso da burocracia soviética abrisse caminho para a “revolução política” na U.R.S.S. e nas democracias populares, enquanto o movimento contemporâneo de globalização do capital mal tinha ainda sido lançado. A situação em que nos estamos hoje é bem diferente. Os processos de superação do capitalismo e de transição para a sociedade liberta da propriedade privada, que estavam contidos, ao que parecia, no próprio movimento do capital, como as pessoas da minha geração ensinavam aos jovens militantes, perderam sua validade, incluindo aqueles apresentados pelo próprio Marx[15]. A bifurcação em relação à direcção atual do caminho por onde a humanidade se está encaminhando dependerá exclusivamente da luta, portanto, do estado das relações políticas de classe entre os trabalhadores largo sensu e a burguesia (a “correlação de forças”). Ora, no plano global, elas são atualmente muito desfavoráveis aos primeiros.
Algumas características originais da crise económica e financeira aberta em 2007-2008
Antes de discutir mais detalhadamente a forma e o grau em que as duas barreiras são insuperáveis, devemos caraterizar a crise económica e financeira mundial que começou em 2007-2008. Há entre os marxistas que trabalham no mundo anglófono e heterodoxos norte-americanos como Paul Krugman e Joseph Stiglitz, um consenso amplo mas, é claro, muito vago, para dizer que se trata de uma crise muito grande, de importância semelhante à de 1929. Alguns caracterizam-na como “estrutural” ou “sistêmica”. Mas, mesmo entre estes, a grande maioria dos economistas críticos ou anticapitalistas esperam que ela tenha um fim, que em algum momento haja uma retomada da acumulação. Entre os economistas de língua francesa, os termos “estrutural” e “sistêmico” remetem, mais ou menos (especialmente o primeiro), à Teoria da Regulação, cujos defensores estão divididos sobre a natureza da crise atual.[16]
Eu tento evitar estas palavras, especialmente “estrutural”, fortemente conotadas com o fordismo, apoiando-me em observações de Paul Mattick:
“Se a crise encontra a sua razão última no próprio capitalismo, cada crise particular difere daquela que a precedeu, precisamente por causa das mudanças permanentes que afectam, à escala global, as relações de mercado e a estrutura do capital. Nestas condições, não se pode determinar com antecedência, nem a ocorrência das crises, nem a sua duração e gravidade. Isto é tanto mais assim quanto os sintomas de crise aparecem após a própria crise e não fazem mais que torná-la manifesta aos olhos da opinião pública. Não podemos tão pouco reduzir a crise a fatores «puramente econômicos», embora ela ocorra efetivamente de forma «puramente econômica», ou seja, tem a sua origem nas relações sociais de produção travestidas em formas econômicas. A competição internacional, que se joga igualmente com meios políticos e militares, reage sobre o desenvolvimento econômico, do mesmo modo que este último, por sua vez, estimula as várias formas de competição. Também não podemos entender cada crise específica senão no relacionamento que ela mantém com o desenvolvimento da sociedade global”[17].
De forma telegráfica, podemos reter as seguintes particularidades da crise de 2007-2008.
- Ela deflagra no final de um período muito longo, de setenta anos (sem paralelo na história do capitalismo), de acumulação ininterrupta. A crise de 1974-1976, com a sua réplica, o double dip de 1980-1982, provocou uma mudança de ritmo nos países capitalistas avançados, mas não refreou a dinâmica de reprodução alargada ao nível mundial. Ao contrário do que sustentam Jean-Marie Harribey, Michel Husson, Esther Jeffers, Frédéric Lemaire e Dominique Plihon, em livro muito recente do Attac[18], eu não creio que as três décadas entre 1976 e 2007 sejam uma espécie de crise “estrutural” permanente com episódios multiformes. O período que se inicia em 1982, vê as burguesias, lideradas por Reagan e Thatcher, não só lançar-se contra a classe trabalhadora, a ritmos diferentes em diversos países, mas se voltar para o mercado mundial e completar toda a construção com a reintegração da China.
- Nunca se deve perder de vista que a fase fordista e o seu longo período de acumulação tiveram lugar em condições históricas muito particulares, na sequência da Grande Depressão da década de 1930, com o consequente encerramento massivo de capacidades de produção, e após a Segunda Guerra Mundial, com as suas destruições em escala muito, muito grande. O campo de investimento lucrativo foi desaterrado. Outra dimensão, também muito importante, foi que o capital pôde servir-se de um acervo ainda pouco explorado de tecnologias criadoras de grandes setores indústriais e de uma reserva de conhecimento científico de potencialidades ainda inexploradas. Mesmo o enfraquecimento político passageiro de 1945, da burguesia face à classe trabalhadora, jogou a favor do relançamento da acumulação. Sem as concessões que o capital foi forçado a fazer ao proletariado, nunca teria havido regulação “fordista”.
- O terreno em que a crise se tem jogado depois de 2007-2008 é o do mercado global completamente formado. A China nunca foi uma “periferia”[19] do capitalismo mundial, mas um país de dimensão continental com uma tradição científica muito antiga, composto por homens e mulheres educados, que escapou durante quarenta anos à sua dominação. Foi na China que o capitalismo encontrou ainda, em 2009, os fatores de reserva (tecnologia e proletários) para a sua impulsão, antes, como vimos mais acima, que a curva da taxa de crescimento do PIB mundial infletisse para baixo, até se tornar quase plana.
- Os Estados Unidos da América estiveram na origem dos principais impulsos para a globalização contemporânea e foram os principais arquitetos e beneficiários dos arranjos institucionais globais, de que o Fundo Monetário Internacional (F.M.I.) e a Organização Mundial do Comércio (O.M.C.) são os pilares. Mas lutando contra a tendência à queda da taxa de lucro em casa por meio de deslocalizações maciças para a China, os Estados Unidos ajudaram um rival poderoso a emergir. Dez anos após o início da crise, a guerra comercial característica da década de 1930 se perfila no horizonte, com os Estados Unidos de Donald Trump prontos para se lançarem nela.
- Em todos os países, as classes trabalhadoras largo sensu entraram na crise no quadro de relações económicas e políticas extremamente favoráveis ao capital. A liberalização do comércio e do investimento directo internacionalizou o processo de centralização e concentração do capital, permitindo a formação de imensos grupos industriais. Ela também permitiu, o que é mais grave, a competição entre trabalhadores, de país a país e de continente a continente. Houve uma globalização do exército industrial de reserva. Cada burguesia tem que lidar com as consequências de tudo isto como puder, para além das decorrentes da expansão da robótica, mas fá-lo-á a partir de posições de força muito marcadas face aos trabalhadores.
- A crise que eclodiu em 2007-2008 é uma crise de sobreacumulação e sobreprodução de natureza global, mesmo que estas estejam localizadas em países, setores e indústrias específicos. Ela se desdobra com uma crise de lucratividade que os economistas medem com uso de diferentes cálculos da taxa de lucro. Aqui eu dou-lhe o mesmo sentido empregue por Mandel e Kurz, ou seja, uma queda no volume total do valor produzido e do volume de sobrevalor ou mais-valia realizado. Os antecedentes da cise de 2007-2008 remontam à crise asiática de 1997-1998. As repercussões financeiras que ela teve em Wall Street anunciavam já a crise financeira que aí estouraria dez anos depois.
- A sobreacumulação de capital produtivo tem sido acompanhada por uma muito forte acumulação de capital fictício. Iniciada nos anos 1960 e crescendo rapidamente com a dívida do Terceiro Mundo, na década de 1980, acelerou ainda mais depois de 1998, com a utilização maciça do endividamento para sustentar o crescimento nos E.U.A. e, ainda que de forma diferenciada, por alguns países da Europa. O endividamento das empresas e das famílias foi acompanhado, a partir de 2005, pelo dos bancos entre si. Ele se caracteriza por um salto nas técnicas de titularização e é acompanhado pela formação de um “sistema bancário sombra” que escapa a qualquer controlo devido à desregulação financeira[20].
- Ao contrário da crise dos anos 1930, devido ao resgate dos bancos e dos mercados financeiros, a destruição de capital fictício foi limitada, enquanto que a destruição de capital produtivo ocorreu apenas lentamente e de forma desigual, no caso da China não acontecendo de todo. A função reguladora das crises, de terraplanagem que abre caminho para uma nova fase de acumulação, não teve lugar.
- A análise da economia global como um todo inclui a dimensão das “relações dos homens com a natureza”. O capitalismo se comportou como se o planeta – tanto enquanto conjunto de recursos não renováveis e de espaços terrestres e marítimos a esgotar, como enquanto biosfera que dirige a reprodução das sociedades humanas – pudesse sustentar indefinidamente a intensidade da exploração a que que tem sido submetido[21]. A fase muito longa de crescimento do PIB global foi também de aumento das emissões de CO2.
Informatização, estagnação secular ou limite intransponível do capital?
Precisamos agora de retornar às duas barreiras. Primeiro àquela respeitante ao movimento da taxa e da massa de lucro, ou seja, à mais-valia produzida e realizada. Michel Husson publicou, em Junho de 2016, um estudo intitulado “Estagnação secular ou crescimento digital?”. Concordo com o essencial do que ele lá escreve, tanto mais que no meu texto publicado em Inprecor remeto para os mesmos estudos norte-americanos, nomeadamente os de Richard Gordon. Husson fala do estado de extrema polarização do debate estadunidense e examina os argumentos daqueles que, ao contrário de Gordon, apostam no crescimento digital, ou seja, nas tecnologias que impulsionam a robotização cada vez mais longe. A análise de Husson utiliza estatísticas e cálculos que os economistas neoclássicos não podem contestar. A relações estatísticas entre a rentabilidade e produtividade estabelecidas por Husson mostram que
“até meados dos anos 1980, o abrandamento do crescimento da produtividade se reflete numa tendência da taxa de lucro para cair, nas principais economias. Então, durante a fase neoliberal, o capitalismo conseguiu restaurar a taxa de lucro, apesar de uma desaceleração dos ganhos de produtividade. Mas só pôde fazer isso com base num declínio da participação dos salários na distribuição do valor adicionado e pela implementação de vários dispositivos que não eram sustentáveis, e que levaram à crise”[22].
Hoje em dia pode-se, por um lado, dizer sem grande risco de erro que o capitalismo não poderá recorrer a esses “dispositivos insustentáveis” (nomeadamente a dívida das PME e dos agregados familiares) e constatar, por outro lado, que o uso pelo capital das tecnologias de automação acentua ainda mais os processos analisados por Mandel e Kurz de “redução do volume total do valor produzido e do sobrevalor realizado” e ” produção efetiva insuficiente de sobrevalor”. Husson cita os resultados de um estudo posterior ao de Gordon[23]. Ele mostra que “quando podem ser observados ganhos de produtividade associados às novas tecnologias, eles resultam «de uma baixa da produção relativa [do setor considerado] e de um declínio ainda mais rápido do emprego»”. É, portanto, difícil, escreveu Husson, conciliar “esses declínios na produção com a ideia de que a informatização e as novas tecnologias incorporadas em novos equipamentos estariam na origem de uma revolução na produtividade”. Esta ou aquela empresa pode se beneficiar de ganhos de produtividade, na indústria e em parte dos serviços. “Mas, escreve Husson, as inovações exigem investimentos, e estes devem satisfazer critérios de alta rentabilidade”. Um gráfico desenhado por economistas da Conference Board dos Estados Unidos da América (um dos lobis do patronato estadunidense) e publicado por Michael Roberts no seu blogue ilustra este processo cumulativo de declínio combinado da produtividade do trabalho e do investimento. O investimento em ICT (“information and communication technology”) não se comporta de forma diferente do dos outros setores.
Falar, como Mandel e Kurz o fazem, de uma situação de escassez crescente de mais-valia ou sobrevalor, devida ao declínio conjunto do emprego e do investimento, facilita a discussão mais do que o faz a problemática das causas e contra-causas do declínio da taxa de lucro. Mais exatamente, seria preciso fazer incidir os cálculos sobre a massa dos lucros, tanto quanto sobre a sua taxa, e examinar o possível movimento tendencial para a baixa dessa massa sob o duplo efeito da queda dos investimentos e do seu viés robótico: o que Mandel não fez, nem Kurz, e muito menos eu. Isso permitiria avaliar se, à medida que a penúria de mais-valia se enraíza, se torna estrutural, o que apareceu inicialmente como um “limite interno (imanente) do capital”, suscetível de ser superado temporariamente, acabará por se tornar intransponível.
Husson deixa implícita a questão da baixa da taxa de mais-valia. Mas, como Mandel, ele aponta para as dificuldades de gestão económica, social e política da automação pela burguesia: esta última “põe em causa a coerência das sociedades (desemprego em massa, polarização entre empregos qualificados e pequenos trabalhos, etc.) e agrava um constrangimento crítico, o da ‘realização’. É necessário, com efeito, que exista escoamento para a produção e caímos aqui na contradição fundamental da automação: quem vai comprar os bens produzidos pelos robôs?”[24] Ele remete para um artigo de Mandel[25], onde este evocou uma sociedade dual, com, de um lado, “aqueles que continuam a participar no processo de produção capitalista” e, do outro, aqueles que sobrevivem “por qualquer meio que não seja a venda da sua força de trabalho: assistência social, aumento das atividades «independentes», camponeses ou artesãos parcelares, retorno ao trabalho doméstico, comunidades «lúdicas»”.
O caráter imanente da intransponível barreira ecológica e climática
Se coloquei um ponto de interrogação no final do subtítulo anterior, não o coloco neste aqui. É possível que Roberts e outros tenham razão ao acreditar que a barreira da baixa dos lucros, em taxa e em massa, possa ainda ser repelida pelo capital, antes de se levantar novamente, muito em breve, diante dele. Basta consultar a entrada Mudanças Climáticas (“Climate Change”) na Wikipédia para nos convencermos que o mesmo não se passa quando ocorrem processos retroativos, não datáveis, mas previsíveis. A noção de barbárie, associada por Mandel às duas guerras mundiais e ao Holocausto, aplicar-se-á então às consequências sociais das alterações climáticas. Um dos primeiros a levantar essa hipótese sobre as questões ambientais, de modo genérico, foi Mészáros:
“Até certo ponto, Marx já estava consciente do “problema ecológico”, isto é, dos problemas da ecologia sob o domínio do capital e dos perigos implícitos que isso provoca para a sobrevivência humana. Na verdade, ele foi o primeiro a concetualizar a questão. Ele falou sobre a poluição e salientou que a lógica do capital – que deve visar o lucro, conforme com a sua auto-expansão e acumulação – não pode tomar em consideração os valores humanos ou mesmo a sobrevivência da humanidade (…). O que você não pode encontrar em Marx, é claro, é uma explicação da extrema gravidade da situação que estamos enfrentando. Para nós, a sobrevivência da humanidade é uma questão urgente”[26].
Por sobrevivência da humanidade, é preciso entender, é claro, a sobrevivência da “vida civilizada”, tal como a compreendemos ainda, de forma geral e, portanto, vaga, a partir dos seus resultados (o “acervo adquirido” da luta de classes na Europa). Os seres humanos vão sobreviver, mas se o capitalismo não for derrubado, vão viver numa sociedade global do tipo descrito por Jack London, em seu grande romance “distópico” (contra-utópico), O Tacão de Ferro (1908).
A reflexão de Mészáros beneficiou das discussões e pesquisas teóricas realizadas nos Estados Unidos da América, seguidas mais tarde nos países de língua francesa, a partir da tese da segunda contradição do capitalismo desenvolvida por James O’Connor. Para O’Connor, a primeira contradição, interna, seria a sobre-acumulação e a sobreprodução, apresentadas de forma “marxo-keynesiana”, enquanto a segunda, externa, seria a diminuição da taxa de lucro e da taxa de acumulação, induzidas pelo aumento do custo das matérias-primas (parte “capital circulante” do capital constante), que poderia chegar ao ponto de causar um fenômeno de “subprodução”. No ponto 6 do seu seminal artigo (que lança a revista de que ele será redator principal, Capitalism, Nature, Socialism), ele argumenta que, embora as questões ambientais só possam ser resolvidas dentro do socialismo, e devam ser parte do programa socialista (ecossocialista), o capital será capaz de reconhecer o seu movimento destrutivo e o Estado capitalista de estabelecer mecanismos de regulação. Ele faz mesmo das questões ambientais um domínio de possível compromisso de classe[27]. O’Connor foi atacado, a justo título, sobre o primeiro ponto. E foi o livro de Joel Kovel de 2002, intitulado O inimigo da natureza: o fim do capitalismo ou o fim do mundo?[28], que se tornou o livro de referência do ecossocialismo de língua inglesa.
É sobre a suposta oposição entre “contradição interna” e “contradição externa” e sobre a impossibilidade, para o capitalismo, de mudar a sua relação com o meio ambiente, que é preciso centrar a crítica a O’Connor[29]. A observação metodológica geral mais acabada de Marx sobre as relações dos homens com a natureza está mum texto pouco lido hoje: “Para produzir, os homens entram em determinadas relações e conexões uns com os outros, e é apenas dentro dos limites destas relações sociais que se estabelece a sua ação sobre a natureza”[30]. Dizer que “relações sociais“, no quadro das quais a sociedade global contemporânea, dominada por completo pelo capital, “estabelece sua ação sobre a natureza”, são aqueles que opõem o capital e o trabalho, é proceder a uma simplificação, à qual Marx não se entregou e que não é suficiente para uma compreensão das questões atuais.
A definição pertinente é a de relações sociais comandadas pela valorização indefinida do dinheiro tornado capital num movimento marcado pela redução do trabalho concreto ao trabalho abstrato e a produção e venda de mercadorias, igualmente sem fim. Nos Manuscritos de 1857-1858, Marx escreveu que “o capital, enquanto representa a forma universal da riqueza – o dinheiro – é a tendência ilimitada e incomensurável a superar os seus próprios limites. Caso contrário, deixaria de ser capital, o dinheiro enquanto produtor de si mesmo”[31]. Deve, portanto, extrair sem limites nas reservas terrestres de matérias-primas, os recursos do solo e do subsolo, até que em algum momento mina de forma cada vez mais séria a biosfera e os ecossistemas muito frágeis que lhe estão ligados. A exploração ilimitada da força de trabalho comprada vai a par com a exploração sem limites, até ao esgotamento, dos recursos naturais, acompanhada, a partir de meados do século XX, por modos de produção e consumo que causam um crescimento exponencial das emissões de gases com efeito de estufa. Elas estão contidas no conceito de capital e naquele que lhe é inseparável de produção de mercadorias, das quais uma parte hoje maciça é socialmente inútil e, no que respeita à produção material, devoradora de recursos dificilmente renováveis e altamente emissora de gases com efeito de estufa.
O mecanismo que leva à “sociedade de consumo” e ao seu desperdício sem sentido é o seguinte. Para que a auto-reprodução do capital seja efetiva, é preciso que o ciclo de valorização se encerre com “sucesso”, logo, que as mercadorias fabricadas – a força de trabalho comprada no “mercado de trabalho” e usada de forma discricionária pelas empresas, nos locais de produção – sejam vendidas. Para que os acionistas estejam satisfeitos, é preciso que uma grande quantidade de produtos que cristalizam o trabalho abstrato contido no valor seja despejada no mercado. Para o capital, é absolutamente indiferente que estas mercadorias realmente representem “coisas úteis” ou que tenham disso simplesmente a aparência. Para o capital, a única “utilidade” é aquela que permite fazer lucros e prosseguir o processo de valorização sem fim, de modo que as empresas se tornaram mestras, com a publicidade, na arte de demonstrar àqueles que têm, real ou ficticiamente (crédito), poder de compra, que as mercadorias que lhes estão sendo oferecidas são “úteis”.
As múltiplas dimensões da catástrofe silenciosa da era do “capitaloceno”
Daniel Tanuro usou a expressão “catástrofe silenciosa em marcha” antes de descrever a multiplicidade dos efeitos das mudanças climáticas e das incontáveis degradações ambientais em curso desde o período que remonta à década de 1960[32]. Os efeitos económicos e sociais destes processos produzem-se de forma desigual e diferenciada no espaço mundial, colocando assim uma dificuldade política de grande dimensão. Há já algum tempo, a questão climática é “social”, no sentido básico e radical da destruição das condições eco-sistêmicas da reprodução em um número cada vez maior do partes do mundo[33]. Os efeitos das alterações climáticas já são desastrosos, entre outros, para os povos indígenas do Ártico, da Gronelândia e do Himalaia, para os pastores no leste de África, para pequenos Estados insulares do Pacífico, para as populações rurais do delta do Ganges. Os primeiros a ser ameaçados são os que estão mais distantes e os que foram menos “beneficiários” dos mecanismos de desperdício da “sociedade do consumo”.
Nos países centrais do sistema capitalista mundial, as ameaças parecem ainda distantes, mas há fenómenos que estão impressionando o imaginário social, pelo menos um pouco. Os danos ecológicos em curso incluem o que os cientistas chamam de sexta grande extinção de espécies. O editorial do jornal Le Monde na sexta-feira, 20 de janeiro de 2017, utilizou uma linguagem incomum a propósito do desaparecimento dos macacos. Ele começa por recordar que “os primatas são os nossos primos mais próximos” e, de seguida, “mas o apetite humano pelos bens do planeta é ilimitado”. O editorialista escreveu em conclusão que “os cientistas recomendam que se estabeleça uma governança dos recursos equitativa (…), mas, sobretudo, que se produza e consuma de forma mais razoável. Os seres humanos podem ainda ignorar a mensagem dos cientistas, mas, então, correm o risco de passar a constar entre as espécies que desaparecem”. Simplesmente, não é “o homem” que tem um apetite ilimitado pelos bens do planeta, mas o capitalismo. Jason Moore, que cito no texto publicado em Inprecor, usa fortes argumentos em apoio da sua proposta de que o termo “Capitaloceno” deve ser usado em vez de Antropoceno, para designar a nova era geológica, aquela em que o homem se tornou uma força geofísica, começando a transformar a biosfera a tal ponto que a capacidade do planeta para suportar a vida está sob ameaça[34].
Algumas implicações políticas, como eu as compreendo
“Somente a verdade é revolucionária”, escreveu Gramsci na década de 1930: isto num contexto muito diferente do nosso, uma vez que, apesar do fascismo e da consolidação do estalinismo na União Soviética, a via para a revolução estava ainda aberta e a palavra socialismo mantinha ainda todo o seu significado. O que já não é o caso hoje em dia. A bifurcação em relação à direção atual da via por onde o capital conduz a humanidade dependerá exclusivamente da luta, portanto, do estado das relações políticas de classe entre os trabalhadores largo sensu e a burguesia (a “correlação de forças”). Ora, no plano global, essas relações são atualmente muito desfavoráveis para os primeiros, mas menos assim no nível local, onde as vitórias, pelo menos temporárias, são possíveis.
O que devemos aos ativistas, é explicar-lhes a situação histórica – de que, aliás, a maioria deles está bem consciente – e dizer-lhes que, no imediato, eles não podem fiar-se senão nas palavras de Marx citadas no final do meu livro e do meu artigo publicado em Inprecor, segundo as quais a única certeza que temos é a da necessidade de lutar. Em seguida, devemos instruí-los de forma a que eles saibam colocar a questão da propriedade, entendida como posse dos meios de decidir e de agir, à frente de todos os assuntos em que o movimento anticapitalista esteja envolvido. Finalmente, da mesma forma, devemos preveni-los para que saibam sempre defender a auto-organização nas lutas, mesmo se, na organização do trabalho, a fragmentação mencionada acima torne ainda mais difíceis de implementar formas como o comitê de greve eleito. No seio da juventude, é manifesto que os reflexos internacionalistas são fortes e que é preciso ajudá-los a que possam se exprimir. Há uma grande sede de conhecimento sobre as lutas em outros lugares, seus objetivos e métodos. Mas é a luta contra o racismo de Estado, face à dita “crise dos migrantes”, na verdade a crise dos direitos dos migrantes, que constitui a frente mais essencial e principal.
No campo ecológico, Daniel Tanuro abriu as boas pistas que se retiram do ecossocialismo. Primeiro, “explicar incansavelmente em toda a parte a gravidade da situação e a sua causa. Falando já se está agindo, plantando as sementes da grande cólera indispensável.” Em seguida, “lutar em toda a parte contra todos os grandes projectos de investimento: novos aeroportos, novos oleodutos (“pipelines”), novas auto-estradas, novas perfurações, novas minas, a nova loucura do gás de xisto, os novos caprichos dos geo-engenheiros que sonham dotar a Terra de um termostato… de que eles teriam o controlo. As mobilizações como as de Notre-Dame des Landes, do oleoduto Keystone XL ou o Parque Yasuni, são como barreiras que se interpõem em seu caminho”. Da mesma forma, “dar suporte a todas as iniciativas alternativas coletivas, democráticas e sociais, que façam avançar o conceito de comum, não olhar com desdém os agrupamentos de compra de produtos locais, de agricultura biológica e outras iniciativas tendentes à soberania alimentar, por exemplo. (Eles) podem ser alavancas de sensibilização, especialmente quando organizam o diálogo e, portanto, quebram a separação – generalizada pelo capital – entre produtores e consumidores, ou quando envolvem o movimento sindical”.
As medidas preconizadas por Michel Husson, no final de seu estudo sobre a estagnação, incluindo a partilha das horas de trabalho, estão dotadas de bom senso. A questão é saber quem vai implementá-las e como serão arrancados os meios para decidir e agir, designando as formas de propriedade e de poder que lhes assegurem a concretização. Aquilo que permanece propriedade pública deve, obviamente, ser defendido com unhas e dentes. No mesmo movimento, ao longo de múltiplas mobilizações, a que foi feita referência, afirma-se concretamente uma experiência coletiva, social e política. Esta última pode alimentar o projeto de uma democracia efetiva, socializada, invalidando de facto as simulações de uma “democracia participativa”, que coexistem com o poder destrutivo e estiolante da propriedade privada estratégica.
Plantar as sementes da cólera – desde que ela seja dirigida contra o capitalismo realmente existente – e apoiá-la, quando ele explode em múltiplos terrenos onde as desigualdades suscitam a indignação, até que o horizonte se clarifique, é uma tarefa política quotidiana. Noutros tempos, eu nunca teria pensado em terminar deste modo um artigo político, mas é assim que estamos.
28 de Janeiro de 2017
[*] François Chesnais é um destacado economista marxista, professor associado da Universidade de Paris XIII. Faz parte do Conselho Científico do ATTAC-França. No passado fez parte do coletivo ‘Socialisme ou barbarie’ de Cornelius Castoriadis, militou em pequenas organizações trotskistas, tendo ainda fundado o coletivo que publicou a revista Carré Rouge. Desde a sua fundação, em 2009, aderiu ao Nouveau Parti Anticapitaliste. Entre as suas obras publicadas em livro destacam-se La Mondialisation du capital, Syros, 1994 (primeira edição); Actualiser l’économie de Marx, Actuel Marx Confrontation, Presses Universitaires de France, Paris, 1995; La mondialisation financière: genèse, coûts et enjeux (diretor de publicação e dois capítulos), Syros, Collection Alternatives économiques, Paris, 1996; Tobin or not Tobin : une taxe internationale sur le capital, L’Esprit frappeur, 1999; La finance mondialisée: racines sociales et politiques, configuration, conséquences (direção de edição), La Découverte, 2004; Les dettes illégitimes – Quand les banques font main basse sur les politiques publiques, Éd. Raisons d’Agir, 2011; Finance Capital Today. Corporations and Banks in the Lasting Global Slump, Historical Materialism Book Series, 2016. Este artigo foi publicado originalmente no sítio À l’encontre, a 4 de Fevereiro de 2017, tendo também sido reproduzido no sítio da revista Contretemps. A tradução é de Ângelo Novo.
[2] François Chesnais, Finance Capital Today. Corporations and Banks in the Lasting Global Slump, Historical Materialialism Book Series, Brill, Leiden and Boston, 2016.
[3] Durante mais de dois anos, os militantes pertencentes ao grupo editorial A Contre-Courant, Carré Rouge e L’Émancipation sociale, ou reagrupados em torno da revista À l’encontre reuniram-se, de forma bastante regular, para trabalhar sobre a questão da atualidade do comunismo. Um projecto de “manifesto” Penser le socialisme, penser le communisme aujourd’hui foi difundido entre eles na véspera da reunião realizada em maio de 2006, em Nyon, Suíça. V. Carré Rouge / Rélexion générale. Encontrar-se-á aí também um debate que mantive com Alain Bihr. [NOTA DO EDITOR] O texto do projeto de “manifesto” acima referido foi pubicado, em tradução portuguesa, no N.º 4 de O Comuneiro (março de 2007), sob o título “Pensar o comunismo, hoje”.
[4] François Chesnais, “La crise climatique va se combiner avec la crise du capital”, Inprecor n.° 541/542, septembre-octobre 2008.
[5] International Monetary Fund, “A Shifting Global Economic Landscape”.
[6] Karl Marx, Le Capital, Livro III, Tomo 6, Editions Sociales, Paris, 1957, página 263.
[7] Ibid., página 260.
[8] Ibid., página 262.
[9] Ernest Mandel, “Introduction”, em Karl Marx, Capital, Volume III (Penguin, 1981), p. 78.
[10] Robert Kurz, “Théorie de Marx, crise et dépassement du capitalisme”, 2011, trecho da entrevista realizada como apresentação do livro de Kurz Vies et mort du capitalisme. Chroniques de la crise (Lignes, 2011), publicada na revista “Archipel” (Longo Maï), n.º 203, de maio de 2012. Kurz apresentou uma primeira formulação das suas teses em 1991, num livro não traduzido para o francês, de título equivalente a O afundamento da modernização.
[11] John Bellamy Foster, “The Epochal Crisis – The Combined Capitalist Economic and Planetary Ecological Crises”, Monthly Review, n.º 65/5 (october 2013), pág. 1.
[12] Michael Roberts, The Long Depression. How it Happened, Why it Happened and What Happens Next, Haymarket Books, Chicago, 2016, pág. 235 e pág. 270.
[13] Ibid. Mandel, pág. 89.
[14] Ibid. Mandel, pp. 89-90.
[15] Penso aqui, nomeadamente, no processo descrito por Marx no capítulo XXXII do livro primeiro de O Capital: “Esta expropriação é realizado por ação das leis imanentes da produção capitalista, que resultam na concentração dos capitais. Correlativamente a esta centralização, à expropriação de muitos capitalistas por poucos, desenvolvem-se a uma escala sempre crescente a aplicação da ciência à tecnologia, o uso da terra com método e em conjunto, a transformação das ferramentas em instrumentos poderosos apenas pelo seu uso em comum, permitindo economia dos meios de produção, o entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado universal, de onde o caráter internacional imprimido ao regime capitalista. À medida que diminui o número de magnatas do capital que usurpam e monopolizam todas as vantagens deste período de mudança social, estão aumentando a miséria, a opressão, a escravidão, a degradação, a exploração, mas também a resistência da classe trabalhadora, sempre em crescimento e cada vez mais disciplinada, unida e organizada pelo próprio mecanismo da produção capitalista. O monopólio do capital torna-se um entrave ao modo de produção que cresceu e floresceu com ele e sob seus auspícios. A socialização do trabalho e a centralização dos seus propulsores materiais alcançam um ponto onde elas não podem mais se conter no seu invólucro capitalista. Este invólucro estilhaça-se. A hora da propriedade capitalista soou. Os expropriadores são por sua vez expropriados”.
[16] Em seu último livro (Economie politique des capitalismes: Théorie de la régulation et des crises, La Découverte, 2016) Robert Boyer não se pronuncia sobre a “Grande Recessão” estadunidense de 2008 e sua expansão internacional. A leitura do seu livro, nomeadamente de páginas 86-105, sugere que esta é a última etapa da crise do regime de acumulação e regulação fordista, começada em 1974-1976, a finança surgindo em oposição a várias das suas formas institucionais essenciais. Para ele, o regime de crescimento financeirizado foi, no máximo, um “sucessor potencial para o modelo fordista de desenvolvimento”. Em contrapartida, um outro livro regulacionista, de Jacques Mazier, Mickaël Clévenot e Vincent Duwicquet (Quand les crises reviennent…, Economica, 2016) identifica a formação, favorecida pela liberalização financeira, de um regime de crescimento financeirizado, do qual descreve as características, incluindo um equilíbrio macroeconômico baseado no uso crescente da dívida e um modo de regulação completamente singular, formado por uma sucessão de pequenas crises financeiras e a intervenção dos bancos centrais. Isso levou os autores a analisar cuidadosamente a crise 2007-2008, em seus aspectos de crise financeira. No entanto, eles hesitam quanto a saber “se se trata de uma ‘grande crise’, sinalizadora de um esgotamento do modo de regulamentação pelas crises” ou, apesar da sua dimensão considerável, ainda uma “pequena crise”, uma vez que “a finança como ator dominante do regime de crescimento não foi posta em causa.”
[17] Paul Mattick, Crises et théories des crises, Editions Champ Libre, Paris, 1976, na tradução francesa, p. 48. A edição original é de 1974. O autor apoia-se, por sua vez, em observações de Engels.
[18] Jean-Marie Harribey, Michel Husson, Esther Jeffers, Frédéric Lemaire e Dominique Plihon, Cette crise qui n’en finit pas… par ici la sortie, Editions Les Liens qui Libèrent, 2017.
[19] Este é o termo usado pelos autores de Cette crise qui n’en finit pas… par ici la sortie para falar sobre os chamados países “emergentes”.
[20] Esther Jeffers e Dominique Plihon, “Le shadow banking system et la crise financière”, La documentation française. Cahiers français, n.º 375, Junho de 2013.
[21] Isto é verdade, também, para o “socialismo real”, durante os sessenta anos de sua existência. Veja-se François Chesnais e Claude Serfati, “Les conditions physiques de la reproduction sociale”, in J.-M. Harribey e Michael Löwy (coord.), Capital contre nature, Actuel Marx Confrontation, Presses Universitaires de France, Paris, 2003.
[22] Michel Husson, “Stagnation séculaire ou croissance numérique”, Analyses et Documents Économiques, n.° 122, junho 2016.
[23] Daron Acemoglu, David Autor, David Dorn, Gordon H. Hanson e Brendan Price, “Return of the Solow Paradox?”, American Economic Review, vol. 104, N.º 5 (2014).
[24] Michel Husson, ibid., 2016.
[25] Ernest Mandel, “Marx, la crise actuelle et l’avenir du travail humain” , Revue Quatrième Internationale, n.° 20, maio de 1986.
[26] Istvan Mészáros, The Alternative to Capital’s Social Order: From the «American Century» to the Crossroads Socialism or Barbarism, Monthly Review Press, New York , 2001, pág. 99.
[27] James O’Connor, “Capitalism, Nature, Socialism: A Theoretical Introduction”, Capitalism, Nature, Socialism, 1 (1): 11-38, 1988.
[28] Joel Kovel, The Enemy of Nature: The End of Capitalism or the End of the World?, Zed Books, London – New York, 2007 (2ª edição).
[29] Jean-Marie Harribey falou desta contradição como não sendo “lógica: o capitalismo desenvolve as duas contradições conjuntamente – elas são assim internas a si mesmo”, “Marxisme écologique ou écologie politique marxienne”, in Bidet J., Kouvélakis E. (sob a direção de), Dictionnaire Marx contemporain, Paris, PUF, Actuel Marx Confrontation, 2001, p. 183-200.
[30] Marx, Travail salarié et capital, Editions sociales, Paris, 1952, página 31. Repito aqui uma análise que desenvolvi em meu capítulo do livro coordenado por Vincent Gay, Pistes pour un anticapitalisme vert, Syllepse, 2010.
[31] Marx, Manuscrits de 1857-58, Editions Sociales, Paris, 1980, volume I, pág 273.
[32] Daniel Tanuro, “Face à l’urgence écologique”, Inprecor, N.° 619-620, septembre-octobre, 2015.
[33] Ver François Chesnais e Claude Serfati, “Les conditions physiques de la reproduction sociale”, citado na nota 20. Em seu trabalho de antropólogo, Maurice Godelier tinha feito, muito mais cedo, das “condições de reprodução (e de não reprodução) dos sistemas sociais, sob o duplo constrangimento das suas estruturas internas e do seu ambiente ecológico”, uma das suas áreas de pesquisa, usando mesmo o termo, então pouco usual, de ecossistema. Veja-se Maurice Godelier, “Reproduction des écosystèmes et transformation des systèmes sociaux”, Economie rurale, 1978, n.° 124.
[34] Jason W. Moore, Capitalism in the Web of Life: Ecology and the Accumulation of Capital, Verso Books, New York, 2015.