O Hipócrita Patriotismo Burguês de Bolsonaro e seus Objetivos
Bolsonaro presta continência à sua bandeira em evento nos EUA.
Cem Flores
Todos lembram a patética frase de campanha com a qual Bolsonaro empolgava os setores mais reacionários do país e com a qual encerrou um dos seus discursos de posse: “a nossa bandeira jamais será vermelha”. Todos também recordam o fajuto slogan da campanha de Bolsonaro: “Brasil acima de tudo”. Todos igualmente viram o logotipo de propaganda do seu governo: “Pátria Amada, Brasil”. Por fim, todos obviamente sabem do apoio das forças armadas à sua candidatura e do número recorde de oficiais que tiraram o pijama para ocuparem cargos no alto escalão governamental[1], consolidando a tutela militar ao personagem medíocre e grotesco que sonha representar o papel de herói[2]. Todos esses fatos pretensamente caracterizariam o patriotismo, o amor ao Brasil, como um dos traços principais dessa abjeta “nova era” (sic!) do país que teria começado no mês passado. Pois é, só que não…
Como a história nos ensina com frequência, as aparências enganam e às vezes escondem os verdadeiros fenômenos. Os fatos, vistos apenas em sua superfície, não revelam suas raízes profundas. A ideologia atua como reflexo, necessariamente imaginário, das reais condições de existência[3].
Em resumo, além de serem banais e requentadas, as declarações patrióticas de Bolsonaro e sua corja também são hipócritas.
A hipocrisia do patriotismo de Bolsonaro e sua corja se dá em vários níveis. O primeiro é o do mais vil servilismo que a corja – neste caso capitaneada pelo olavete Eduardo Bolsonaro – presta, genuflexa, aos EUA e seu atual governo de extrema-direita. O segundo, é a necessidade primordial de atender à classe dominante – “os nossos patrões”, como disse Bolsonaro em evento de campanha – a qualquer custo e, nesse caso, a bandeira que honram é o dinheiro, de preferência na cor verde do dólar, e o deus ao qual se prostram, o lucro. O terceiro, alinhado ao anterior, é a definição restrita de a quem a “pátria” pertence nessa “nova era”: aos banqueiros e ao capital, aos proprietários (com destaque aos ruralistas), aos burgueses e às camadas médias, aos brancos (racismo), aos heterossexuais (homofobia), aos cristãos (intolerância religiosa), relegando a absoluta maioria da população – pobre, parda, preta, trabalhadora e explorada – e os povos oprimidos que habitam nosso país ao aumento da exploração e a uma deterioração ainda maior de suas condições de vida.
Comecemos pelo primeiro caso: para Bolsonaro e sua corja, o Brasil deve estar acima de tudo, menos dos interesses do “grande irmão” (sic!) do norte. Não basta à Bolsonaro prestar continência/obediência à bandeira dos EUA (antes da eleição) e ao conselheiro de segurança nacional do EUA, John Bolton (depois)[4]. Suas primeiras declarações como presidente eleito foram de propor aos americanos instalar uma base militar no Brasil – no que, pelas notícias da imprensa, seus próprios militares governistas foram contra; tentar tornar o Brasil um dos pouquíssimos países do mundo a seguir a paranoia religiosa/geopolítica de Trump de mudar a embaixada do país em Israel de Tel Aviv para Jerusalém; e igualmente seguir Trump na retirada do país do acordo de Paris sobre o clima global[5]. Nenhuma das três ações se efetivaram até agora. Mas a fidelidade canina aos EUA e a Trump restou comprovada nessas declarações de intenções…
A mais importante ação efetiva, até agora, da política de “siga-o-chefe” foi o reconhecimento (sic!) do auto-proclamado (sic!) presidente da Venezuela, Juan Guaidó, imediatamente após Trump haver feito o mesmo. Nossa análise mais detalhada da crise na Venezuela encontra-se aqui: https://cemflores.org/index.php/2019/01/27/sobre-a-crise-na-venezuela/.
Esse posicionamento do governo brasileiro na crise da Venezuela não se dá, obviamente, pela paixão democrática de Bolsonaro e sua corja. Aos idólatras da última ditadura militar no Brasil só interessa a liberdade do capital, dos lucros e da exploração do trabalho (alheio).
O que interessa aos novos governistas é tornarem-se a si próprios sócios preferenciais dos EUA na América do Sul, mediante a aceitação de migalhas e a “terceirização” para si das ações para alcançar interesses gringos (aliás, não muito diferente do governo Lula na missão “pacificadora” da ONU no Haiti…).
Essa nova disposição “brazileira” já foi muito bem captada pelo atual principal artífice político da estratégia imperialista dos EUA para a América Latina, Marco Rubio, gusano e senador republicano da Flórida[6]. Em artigo recente[7], Rubio define um programa para o Brasil de forma explícita como há tempo não se via. Vejamos suas, digamos, “orientações” para Bolsonaro:
“O governo Bolsonaro já indicou que busca uma ainda maior proximidade nas relações de segurança e econômicas com os Estados Unidos … é crucial que os Estados Unidos capitalizem essa oportunidade histórica”.
“O governo Trump deve se mover rapidamente para avançar objetivos que serão bem-vindos pelo governo Bolsonaro, tais como …
impulsionando nossas ligações de defesa e inteligência …
aumentando os investimentos no comércio …
cooperação no setor de energia …
expansão do acesso dos EUA à indústria espacial do Brasil … novo parceiro para reforçar nossas capacidades espaciais e expandir nossa cooperação no espaço … sua localização geográfica oferece potencial para lançamentos espaciais …
cooperação adicional contra o terrorismo e as redes criminosas transnacionais …
assistência técnica às agências militares e de combate ao crime do Brasil para esforços de segurança de fronteira e para assegurar que terroristas não estejam usando o aeroporto internacional de São Paulo como porta de saída para as Américas”.
O programa dos EUA para a acumulação ampliada dos seus capitais no Brasil é explícito e cristalino. Identifica setores de interesse e projetos prioritários. Ah… mas íamos esquecendo de mencionar as migalhas. Segundo Rubio, em troca dos itens acima, os EUA “apoiariam a adesão do Brasil à OCDE”.
Mas a ampliação do potencial de lucro das empresas americanas no Brasil não é toda a história. No cenário das agravadas contradições interimperialistas entre EUA e China e EUA e Rússia, é do maior interesse dos EUA expulsar seus rivais ou, ao menos, diminuir sua importância no seu antigo “quintal”.
Depois de iniciar uma guerra comercial com a China e de romper um antigo tratado armamentista com a Rússia, para ficarmos em apenas dois exemplos recentes, a política imperialista dos EUA de Trump – no sentido leninista, de “partilha territorial do mundo entre as potências capitalistas mais importantes”[8] – agora busca reconquistar seu espaço na América do Sul, em parte perdido para Rússia (sobretudo na Venezuela) e, principalmente, para a China. Rubio também é explícito quanto a isso:
“Os valores culturais e democráticos do Brasil são naturalmente mais alinhados com os dos Estados Unidos (do que com a China)”.
“Um Brasil forte, democrático e vibrante que esteja alinhado mais de perto com os Estados Unidos como parceiro estratégico pode ser uma força multiplicadora para tratar a atual crise na Venezuela … e para conter as intenções malignas de regimes autoritários como China, Rússia e Irã que buscam expandir suas presença e atividades na América Latina”.
Como toda a potência imperialista, a ação dos EUA de fortalecer sua presença no Brasil (ou em qualquer país) também é, ao mesmo tempo, a busca por eliminar ou enfraquecer a presença dos seus rivais.
Como dizia o Comandante Ernesto “Che” Guevara: no imperialismo não se pode confiar nem mesmo um pouquinho assim, nada!
E, assim, passamos para o segundo aspecto da hipocrisia do nacionalismo burguês de Bolsonaro e sua corja: a defesa intransigente dos interesses da burguesia brasileira. Neste caso, a intenção é que, assumindo o posto de parceiro ou sócio (minoritário) preferencial dos EUA na América do Sul, o capital brasileiro possa se beneficiar tanto de um hipotético maior acesso ao mercado americano (p.ex., via retirada de tarifas e restrições alfandegárias, sanitárias, etc.), quanto da parceria subordinada ao capital americano aplicado no Brasil, nesses novos espaços prioritários de acumulação elencados no texto citado acima. Brasil acima de tudo, menos dos lucros (é claro!).
Eduardo Bolsonaro em campanha.
O reconhecimento dos EUA a essa disposição está, entre outros, expresso, em termos políticos, no posto honorífico conferido pelo ex-estrategista-chefe de Trump, Steve Bannon, ao filhinho Eduardo Bolsonaro: o de representante na América do Sul da sua articulação internacional de extrema-direita, populista e retrógada[9].
No entanto, essa defesa dos interesses das classes dominantes brasileiras mediante um patriotismo burguês que vise alinhar os interesses do Brasil aos dos EUA, tem dois impactos distintos e contraditórios.
De um lado, é uma ideologia hipócrita na qual as juras de amor ao país são apenas disfarces para buscar enganar os operários e as classes dominadas, mas também, de outra forma, as camadas médias (que vestem a camisa amarela da Nike/CBF). No primeiro caso, assim como a religião, servem como ideologia dominante, ideologia da classe dominante agindo entre as classes dominadas, para ocultar a exploração e dominação de classe. No segundo, para as camadas médias, como mais uma forma de sua identificação às classes dominantes, juntamente com a ideologia militarista, que ressurge em tempos de crise econômica-política, como símbolo de garantia da ordem, ou seja, manutenção do status quo e de sua posição de classe.
Ou seja, para as classes dominantes e seu governo, o que importa não é país, patriotismo ou nacionalismo, mas sim a defesa de seus interesses de classe, manutenção de seu regime de exploração e acumulação ampliada de lucros. Se a maioria da população entende patriotismo daquela forma, a ideologia dominante terá atingido seu objetivo. Ou seja, o patriotismo é, aqui também, uma das ideologias da classe dominante para atingir seus objetivos de classe.
A contradição em que se enreda o “patriotismo americanista” de Bolsonaro e sua corja é que a defesa intransigente dos interesses dos EUA entra (ou entrará) em conflito com (pelo menos com parcela dos) os interesses da burguesia brasileira – agronegócio, mineração, petróleo, importação, etc. – em seus negócios com a China (e, também, com a União Europeia e outros).
A China é, já faz alguns anos, a maior parceira comercial do Brasil, tanto nas exportações quanto nas importações, respondendo por quase um quarto (23,5%) desse total. Esses fluxos de comércio (exportações mais importações) com o Brasil somaram quase US$100 bilhões em 2018, 70% acima dos US$58 bilhões com os EUA. O superávit comercial brasileiro com a China chegou a US$29,5 bilhões no ano passado, enquanto houve ligeiro déficit com os EUA, o que significa que o mercado chinês de commodities representou polpudos lucros para o conjunto da burguesia brasileira. Também pudera, as exportações do país para a China, US$64 bilhões, foram bem mais que o dobro das vendas para os EUA[10].
A China é, também, e crescentemente, fonte de investimentos e empréstimos (exportação de capital) ao Brasil. Só nos investimentos diretos, os chineses já acumulam US$21 bilhões no Brasil, valor que cresceu 143% nos últimos dois anos. Se esse valor ainda é pequeno diante dos US$119 bilhões dos EUA, em 2010 o percentual dos investimentos chineses em relação aos americanos era de 7%, passando para 18%, em 2017[11]. Ou seja, são os investimentos de capitais chineses os que crescem mais aceleradamente no Brasil.
Como esses dois exemplos pontuais indicam, os bolsonaristas podem ficar deslumbrados com seu papel de (sub)parceiros (pseudo)preferenciais dos EUA na região, mas o que interessa a seus patrões, a burguesia brasileira, é a defesa dos seus interesses e lucros e, para isso, não poderão negligenciar a China. Ou seja, os interesses do vil metal da burguesia colocam-na, e ao governo brasileiro, no meio da disputa interimperialista dominante no mundo de hoje[12]. Não haverá posicionamento em favor de um lado que não gere contradições com o outro.
O patriotismo, que já havia cedido lugar ao americanismo, agora cede lugar ao lucro e terá que se equilibrar entre seu “aliado natural” e as “intenções malignas”, buscando recolher as migalhas que surgirem dos conflitos interimperialistas entre EUA e China.
Concluímos com a terceira característica do hipócrita patriotismo burguês de Bolsonaro e sua corja: ao contrário da pátria como união de todos (utilizado, por exemplo, na hipocrisia da era lulista e em vários outros momentos, quando a burguesia entende conveniente), no Brasil atual, para seus governantes e apoiadores, “pátria” explicitamente exclui os operários e demais trabalhadores (aos quais restaria uma reforma trabalhista para reduzir as conquistas da classe à “informalidade”); exclui os brancos, os pretos e pardos moradores das favelas e periferias (deixados à violência conjunta das polícias, milícias e crime organizado); exclui a comunidade LGBT (largados à sua própria sorte por contrariar os ditames do fundamentalismo religioso e do conservadorismo); exclui os povos oprimidos do país (indígenas e quilombolas, alvos de crescente extermínio e assalto de suas terras). Exclui também, e de forma fundamental, qualquer um que proteste, se manifeste, mobilize e ganhe as ruas e as fábricas em defesa de sua classe, de suas conquistas, de sua condição de vida.
A foto abaixo tornou-se um símbolo desse hipócrita patriotismo burguês:
Manifestação pelo impeachment em 2016: o verde e amarelo é para todos?
A posição dos comunistas sempre foi explícita em relação ao nacionalismo e ao patriotismo burguês. Contra as guerras e as invasões que eles causaram seguidamente nos últimos séculos e seguem causando, contra a exploração dos dominados e dos povos que essas ideologias justificam, os comunistas opõem a organização dos trabalhadores e a sua solidariedade internacional, eternizadas no lema: Proletários de todos os países, uni-vos!
Nós somos hermanos dos explorados famintos na periferia de Caracas, assim como somos brothers dos operários americanos de Detroit, com seus empregos destruídos (mesmo eles tendo votado em Trump). Nós somos 兄弟姐妹 dos chineses migrantes do campo para as fábricas-quarteis e que agora começam a se organizar e levantar contra a repressão patronal-estatal e também somos الأخوة والأخوات dos trabalhadores sauditas, dominados por uma ditadura medieval e pró-americana.
Aos brasileiros da foto acima, no entanto, só dedicamos desprezo e ódio de classe[13]. Assim como a Bolsonaro, Rodrigo Maia, Davi Alcolumbre, Temer. Também aos assassinos da Vale em Mariana e Brumadinho e a todos os que compartilham sua sede sagrada do lucro sobre todo o resto.
A exploração não será eterna. O movimento proletário, seguido de todas as massas dominadas, acabará com a exploração, assim como já o fez várias vezes antes. O presente é de luta, o futuro nos pertence!
[1] Ver a lista dos 32 principais, dos quais 26 oficiais generais das três forças, principalmente do Exército, em https://congressoemfoco.uol.com.br/governo/governo-bolsonaro-ja-passa-de-30-militares-em-postos-chave/. A Folha de São Paulo já fala em mais de 45 os militares nomeados para cargos no governo: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/01/militares-ja-se-espalham-por-21-areas-do-governo-bolsonaro-de-banco-estatal-a-educacao.shtml
[2] Inspirado na frase de Marx sobre o Bonaparte menor no prefácio à segunda edição de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, de 1869, disponível em https://www.marxists.org/portugues/marx/1852/brumario/prefacio.htm.
[3] Conceito e frase (explicitamente) althusserianos citados conforme o filme Luta em Itália, de 1970, do Coletivo Dziga Vertov.
[4] Conforme, entre outros, a insuspeita Veja: https://veja.abril.com.br/mundo/em-encontro-no-rio-bolsonaro-presta-continencia-para-bolton/.
[5] https://theintercept.com/2018/11/11/amadorismo-e-delirios-conspiratorios-marcam-primeiros-passos-da-politica-externa-de-bolsonaro/.
[6] Conforme as informações do New York Times em https://www.nytimes.com/2019/01/26/world/americas/marco-rubio-venezuela.html.
[7] Marco Rubio. US Should Go Big on Brazil. https://edition.cnn.com/2019/01/29/opinions/us-should-go-big-on-brazil-rubio/index.html.
[8] Lênin. Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo, disponível em https://www.marxists.org/portugues/lenin/1916/imperialismo/cap7.htm.
[9] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/02/bannon-anuncia-eduardo-bolsonaro-como-lider-sul-americano-de-movimento-de-ultradireita.shtml.
[10] http://www.mdic.gov.br/balanca/mes/2018/BCP056A.xlsx.
[11] https://www.bcb.gov.br/publicacoes/relatorioid.
[12] Para acrescentar um pouco de comédia pastelão a essa história, veja-se o caso da viagem da comitiva dos parlamentares eleitos do partido de Bolsonaro à China e diatribes que isso causou na parcela americanista de seus apoiadores. O melhor relato está na piaui: https://piaui.folha.uol.com.br/olavo-lidera-insurgencia-entre-bolsonaristas/ e https://piaui.folha.uol.com.br/deputados-do-psl-na-china-mandam-recado-para-bolsonaro-sobre-previdencia/.
[13] Ao substituir a Liga dos Justos pela Liga Comunista e trocar seu slogan, de “Todos os Homens São Irmãos” para “Proletários de Todos os Países, Uni-vos”, “Marx teria declarado que havia muitos homens de quem ele não desejava ser irmão de modo algum” (McLELLAN, Donald. Karl Marx. Vida e Pensamento. Petrópolis: Vozes, 1990, pg. 188).