Cem Flores
Trazemos para os nossos leitores, o texto de 1971 de Louis Althusser que serviu de apresentação ao livro “Os Conceitos Elementares do Materialismo Histórico”[i], em memória da camarada Marta Harnecker, sua autora, falecida neste 15 de junho último.
Marta Harnecker se definia como “educadora popular”, definição esta que temos pleno acordo. Em boa parte da sua vida, a camarada Marta tentou fazer chegar a todos os lutadores desta América, os conceitos, ou melhor, as ferramentas teóricas para iluminar a luta dos povos desse continente de forma mais didática, mesmo correndo com isso o risco que todo texto didático incorre (esquematismo, reducionismo, etc.). A leitura dos “Cadernos de Educação Popular”, do “Conceitos Elementares do Materialismo Histórico” e outras obras, lidos e estudados, muita das vezes, sob a luz de candeeiro nas casas humildes, na clandestinidade sob as mais brutais ditaduras, tem, contudo, o mérito de ter iniciado a grande viagem de vários militantes comunistas nesta empreitada da pavimentação da estrada que nos levará ao futuro comunista.
Escolhemos este texto porque, mais do que uma apresentação, é uma advertência a todos os iniciantes e velhos lutadores. E para, juntamente com Althusser, citar o camarada Mao: Não nos esqueçamos jamais da luta de classes!
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Os Conceitos Elementares do Materialismo Histórico
Apresentação de Louis Althusser
Ao apresentar esta nova edição corrigida e ampliada do livro de Marta Harnecker, que recomendo calorosamente, desejo recordar uma ideia muito simples que está implícita nas transformações por que passou a versão original para dar lugar a esta nova edição. Uma ideia muito simples mas que tem consequências teóricas e políticas importantes.
Eis a ideia: toda a teoria de Marx, isto é, a ciência que Marx fundou (o materialismo histórico) e a filosofia que ele descortinou (o materialismo dialético) têm por centro e coração a luta de classes.
A luta de classes é, portanto, “o elo decisivo”, não só na prática política do Movimento Operário marxista-leninista, mas também na teoria, na ciência e na filosofia marxistas.
Sabemos claramente, desde Lênin, que a filosofia representa a luta de classes na teoria, mais precisamente, que toda filosofia representa um ponto de vista de classe na teoria, contra outros pontos de vista de classe opostos. Sabemos que a filosofia marxista-leninista (o materialismo dialético) representa o ponto de vista da classe operária na teoria: é o “elo decisivo” para compreender a filosofia marxista e desenvolvê-la. É o “elo decisivo” porque esta filosofia pode deixar de “interpretar” o mundo para ajudar em sua transformação revolucionária.
Todavia, que a luta de classes seja também o “elo decisivo” na teoria científica de Marx, é, talvez, difícil de apreender.
Contento-me com um único exemplo: O capital. Eis um livro que contém a ciência marxista, os princípios fundamentais da ciência marxista. Não obstante, não devemos nos iludir; não basta ter um livro diante dos olhos – é necessário saber lê-lo. Pois bem, há uma maneira de ler O capital, uma maneira de “compreender” e de “expor” a teoria científica de Marx, que pode ser perfeitamente burguesa, isto é, influenciada, marcada, penetrada pela ideologia burguesa, mais precisamente, pela ideologia economicista ou sociologista burguesa.
Por exemplo, pode-se ler O capital da seguinte maneira: como uma teoria da Economia Política do modo de produção capitalista. Começar-se-á pela Infraestrutura, examinar-se-á o “processo do trabalho”, distinguir-se-ão as “forças produtivas” e as “relações de produção”, analisar-se-á a mercadoria, o dinheiro, a mais-valia, o salário, a reprodução, a renda, o lucro, o juro, a baixa tendencial da taxa de lucro e assim por diante. Em resumo, descobrir-se-ão, tranquilamente, em O capital, as leis da Economia capitalista. E quando se houver terminado esta análise dos mecanismos “econômicos”, acrescentar-se-á um pequeno suplemente: as classes sociais, a luta de classes.
Acaso o minúsculo e inacabado capítulo acerca das classes sociais não está no final de O capital? Acaso se pode falar em classes sociais antes de desmontar o mecanismo da Economia capitalista, e a luta de classes um simples efeito da existência das classes? Acaso Marx não nos convida a considerar as classes sociais (e portanto, a luta de classes) como simples produto, o último produto da estrutura da Economia capitalista, como o resultado desta? Acaso as classes sociais não constituem um simples efeito da Economia capitalista, e a luta de classes um simples efeito da existência das classes?
Uma leitura deste tipo, uma interpretação assim de O capital constituem uma deformação grave da teoria marxista: uma deformação economicista burguesa. As classes sociais não se acham no final de O capital– estão presentes do começo ao fim da obra. A luta de classes não é um efeito (derivado) da existência das classes sociais: a luta de classes e a existência das classes são uma única e mesma coisa. A luta de classes é o “elo decisivo” para compreender O capital.
Quando Marx deu a O capital o subtítulo de Crítica da Economia Política, não queria apenas dizer que se propunha a criticar os economistas clássicos, mas também a ilusão economicista (burguesa). Queria criticar radicalmente a ilusão burguesa que separa cuidadosamente, por um lado a atividade de produção e de intercâmbio e, por outro, as classes sociais, as lutas políticas, etc. Marx queria mostrar que todas as condições da produção, da circulação, da distribuição capitalistas (portanto, toda a chamada Política) se acham dominadas pela existência das classes sociais e da luta de classes.
Expliquemos em poucas palavras o principio essencial da tese de Marx. Não há produção econômica “pura”, não há circulação (intercâmbio) “pura”, nem há distribuição “pura”. Todos esses fenômenos econômicos são processos que ocorrem sob relações sociais que são, em última instância, isto é, sob suas aparências, relações de classe, e relações de classes antagônicas, isto é, relações de luta de classes.
Tomemos, por exemplo, a produção material dos objetos de utilidade social (valor de uso), tal como apresenta, à primeira vista, nas unidades de produção (fabricas, explorações agrícolas, etc.). Esta produção material supõe a existência de “forças produtivas” onde a “força de trabalho” (os trabalhadores) põe em ação instrumentos de produção (ferramentas, maquinas) que transformam a matéria-prima. Um economista burguês ou um leitor “economicista” de O capital veria ali um simples processo de trabalho técnico. Pois bem, basta refletir, como o faz Marx, para perceber que é um contrassenso. É preciso dizer que as forças produtivas são postas em ação no processo de trabalho sob a dominação das relações de produção, as quais são relações de exploração. Se há operários, deve-se ao fato de serem trabalhadores assalariados, isto é, explorados. Se há operários que não possuem senão sua força de trabalho e se veem obrigados (por fome: Lênin) a vendê-la, é porque existem capitalistas que possuem os meios de produção e compram a força de trabalho para explorá-la, para extrair dela a mais-valia. A existência das classes antagônicas se acha inscrita, portanto, na própria produção, no coração mesmo da produção: nas relações de produção.
É preciso ir mais longe: as relações de produção não constituem algo que venha agregar-se às forças produtivas como simples “forma”. As relações de produção penetram nas forças produtivas, já que a força de trabalho que põe em ação as forças produtivas faz parte, ela mesma, “das forças produtivas”, e que o processo de produção capitalista tende sempre à máxima exploração da força de trabalho. E como é esta tendência que domina todo o processo de produção capitalista, faz-se necessário dizer que os mecanismos técnicos da produção se encontram submetidos aos mecanismos (de classe) de exploração capitalista. O que chamamos de forças produtivas é, ao mesmo tempo, a base material (“base técnica”, diz Marx) e a forma de existência histórica das relações de produção, isto é, das relações de exploração. Marx mostrou, admiravelmente, no Livro I (quarta Seção. Caps. 14 e 15), que as sucessivas formas da organização do processo de produção (a manufatura e a grande indústria) outra coisa não eram senão as formas sucessivas de existência material e histórica das relações de produção capitalista. É, portanto, um erro economicista e tecnocrático separar as forças produtivas das relações de produção. O que existe é a unidade (tendencial), em formas de existência material, das forças produtivas e das relações de produção, sob a dominação das relações de produção.
Se é assim, não há produção “pura” e tampouco economia “pura”. Com as relações de produção as classes estão presentes desde o inicio do processo de produção. Com esta relação entre as classes antagônicas criam-se as bases da luta de classes; a luta de classes está, portanto, enraizada na própria produção.
Mas isto não é tudo. Nenhuma sociedade existe, isto é, tem duração na História, se ao produzir não reproduz condições materiais e sociais de sua existência (de sua produção). Pois bem, as condições de existência da sociedade capitalista constituem a condição da exploração que a classe capitalista faz a classe obreira suportar: a classe capitalista deve reproduzi-las custe o custar. Para compreender O capital é necessário elevar-se até a reprodução: e se compreenderá, então, que a burguesia não pode assegurar a estabilidade e a duração da exploração (que impõe a produção), senão na condição de conduzir uma luta de classes permanente contra a classe operaria. Essa luta de classe se produz perpetuando ou reproduzindo as condições materiais, ideológicas e políticas da exploração. Realiza-se na produção (redução do salário destinado à reprodução da força de trabalho; repressão, sanções, demissões, luta anti-sindical, etc.). Realiza-se também fora da produção: aqui é onde intervém o papel do Estado e dos Aparelhos ideológicos do Estado (Escola, Igreja, Informação, Sistema político) para submeter a classe operária mediante a repressão e a ideologia.
Se é assim que se lê, O capital deixa de ser uma teoria da “Economia Política” do capitalismo, para transformar-se na teoria das formas materiais, jurídico-políticas e ideológicas de um modo de produção, fundado na exploração da força de trabalho assalariada – para chegar a ser uma teoria revolucionária.
Nesta conformidade, colocam-se em seu lugar a economia política, as forças produtivas, a técnica e assim por diante.
Pode-se, pois, formar outra ideia da luta de classes e renunciar a certas ilusões “humanistas” que surgem da ideologia pequeno-burguesa (e que são o complemento das ilusões “economicistas”). Vê-se o indivíduo forçado a abandonar a ideia de que a sociedade capitalista teria existido de alguma maneira antes da luta de classes e que esta, como a conhecemos, seria o produto do proletariado (e de seus aliados) em rebelião contra as “injustiças” da sociedade. Realmente, a luta de classes, própria da sociedade capitalista, é consubstancial à sociedade capitalista: começou com ela, foi a burguesia que a conduziu desde seus primórdios com uma tenacidade sem igual, contra o proletariado então desarmado. Longe de rebelar-se contras as “injustiças”, o proletariado não fez outra coisa, a princípio, senão resistir à luta de classes burguesa, antes de organizar-se, de desenvolver sua consciência, e de passar à contraofensiva, depois à ofensiva, até a tomada do poder.
Sendo assim, se a teoria cientifica de Marx nos demostra que tudo se relaciona com a luta de classes, compreendemos melhor as razões desse fato sem precedente na História: a “fusão” da teoria marxista e do Movimento operário. Não se tem refletido suficientemente a respeito desse fato: por que, e como, o Movimento operário, que existia antes de Marx e Engels escrevessem o Manifesto, se reconheceu a si próprio em uma obra tão difícil como O capital. É a partir de um ponto de vista comum: a luta de classes. Ela está no âmago de O capital e da teoria marxista. Marx devolveu, em teoria cientifica, ao Movimento Operário o que havia recebido em experiência política.
Como diz Mao: “Não nos esqueçamos jamais da luta de classes.”
L. ALTHUSSSER
Fevereiro de 1971
[i]HARNECKER, M. Os Conceitos Elementares do Materialismo Histórico. 2ª edição. São Paulo: Global Editora e Distribuidora ltda, 1983.