A Restauração Capitalista na China: textos de Francisco Martins Rodrigues
70 Anos da Revolução Comunista na China e 41 Anos do Início da Restauração Capitalista
Cem Flores
O iniciador das reformas capitalistas na China, Deng Xiaoping, é comumente citado como tendo dito a frase: “enriquecer é glorioso!”. Sendo ou não o perpetrador dessa infâmia, 41 anos depois do início de suas políticas de restauração capitalista, a restaurada burguesia chinesa pode afirmar que cumpriu o desejo do seu falecido líder, conforme podemos ver na manchete acima.
Não obstante suas centenas de bilionários e sua forte burguesia; as montanhas de investimentos estrangeiros e a crescente liberalização da propriedade privada; seus monopólios, seu capital financeiro, sua exportação de capitais e suas ações para uma (re)partilha do mundo; sua integração ao mercado mundial de mercadorias e capitais; mas, principalmente, não obstante o impressionante grau de exploração da classe operária e demais trabalhadores na China; apesar de tudo isso, a China atual ainda é uma esfinge que devora boa parte daqueles que a enfrentam, que titubeiam na resposta à simples questão feita pelo monstro: capitalista ou socialista?
Em geral, os que titubeiam diante dessa pergunta dizem ser, em diversos graus, “de esquerda”, mas há os que se definem como socialistas ou mesmo, marxistas. Para alguns desses, a China seria a prova de que países “subdesenvolvidos” podem se “desenvolver”, desde que “rompam” com o padrão neoliberal, tendo suas políticas econômicas dirigidas pelo Estado. Note-se que nessas análises, quase sempre, se “esquece” das classes e de sua luta. Por um lado, o “crescimento econômico” parece objetivo comum, compartilhado, por toda a sociedade (o que objetivamente subordina o proletariado à burguesia) e, por outro, o Estado, nessas interpretações, paira acima das classes, sem ser um instrumento de dominação das classes dominantes (o que serve como justificativa ideológica para a própria dominação).
Para outros, trilhando caminhos similares, a China representaria a ascensão de um hipotético “Sul global”, se opondo aos EUA e sua dominação imperialista. Essas teorias, que incorporam um confronto entre as duas grandes potências, parecem querer impor às classes exploradas apenas o papel de escolher qual dessas poderia desempenhar “melhor” (sic!) o papel de potência dominante. Com isso, a atuação independente da classe operária, em luta conjunta com as demais massas oprimidas, se esvai no apoio a um dos imperialismos rivais e as expectativas de tomada do poder e construção do socialismo somem do horizonte.
Há ainda aqueles que defendem que a China estaria construindo “um” socialismo, seja o tal “socialismo de mercado” (sic!), seja um socialismo “com características chinesas”. Em termos marxistas-leninistas esse conceito, inexistente, é puro non sense. Mas o papel – e ainda mais a internet! – aceitam tudo…
O fetiche e a absolutização do crescimento econômico (ainda mais contraposto às crises e à estagnação do capitalismo atual) e da atuação do Estado e de suas empresas estatais (opondo-se ao neoliberalismo e às privatizações) não considera sob quais relações de produção dominantes estes ocorrem e obscurece a questão mais básica e fundamental para a análise marxista de uma formação econômico-social. Para colocar essa pergunta nos termos expressos por Francisco Martins Rodrigues:
“Só que há ainda o outro factor a ter em conta — qual a classe que realmente exerce o poder?”.
Diante da necessidade de analisar a China de um ponto de vista revolucionário, do ponto de vista da classe operária em sua luta contra o capitalismo, utilizando sua teoria científica, o marxismo-leninismo, e também considerando a importância do capitalismo chinês para a análise de classes no mundo atual, para a dinâmica do sistema imperialista mundial, para suas contradições, e também para o capitalismo brasileiro, recuperamos três intervenções desse dirigente comunista, datadas de 2003 a 2007 e republicadas em sua página do portal marxists.org sobre a restauração do capitalismo na China.
A Burguesia e o Proletariado na China
No último dia 22 de agosto ocorreu o encontro anual e a premiação das 500 maiores e melhores empresas privadaschinesas. O nome do evento é similar aos anualmente realizados no Brasil pela revista Exame e pelo jornal Valor Econômico. Não se trata de uma coincidência, mas do mesmo objetivo: premiar, bajular e fazer lobby do capital.
O encontro, patrocinado pela Federação da Indústria e do Comércio da China – cujo nome também não é mera coincidência com o da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), que se vestiu com a bandeira chinesa esta semana, ou da Confederação Nacional da Indústria (CNI) – e órgãos estatais, entre eles a Administração Estatal para Regulação dos Mercados (uma espécie de CVM chinesa?), tinha, neste ano, o “tocante” tema de “relembrar a aspiração (!) dos empreendedores”.
O responsável pelo evento afirmou em seu discurso que “o desenvolvimento do setor privado recebeu muita atenção no último ano”, citando simpósio de empreendedores privados presidido pelo próprio todo-poderoso Xi Jinping no ano passado. Nesse evento, Xi premiou esses “pioneiros da reforma” em comemoração aos 40 anos do início das reformas capitalistas. É, faz sentido…
Segue a matéria da Câmara de Comércio chinesa: todas essas ações “trouxeram um novo ímpeto para o saudável desenvolvimento do setor privado, animando e encorajando os empreendedores”.
Para quem ainda não se cansou de tanto “socialismo com especificidades chinesas”, continuemos: “O setor privado é uma importante força promotora do progresso social, e um importante sujeito na promoção das reformas estruturais pelo lado da oferta, no desenvolvimento de alta qualidade e na construção de uma economia moderna”. Só lembrando: “economia da oferta” (“supply-side economics”) é uma das principais teorias divulgadas pela universidade de Chicago, onde se formou Paulo Guedes…
Para terminar com isso: essas 500 maiores/melhores empresas – encabeçadas pela Huawei e seu faturamento de mais de US$100 bilhões em 2018 – aumentaram seus ativos, sua escala de produção e sua estrutura produtiva, que foi “otimizada”, tornaram-se mais globais, aumentaram suas contribuições sociais e… “o nível de lucros melhorou”. Mesmo na novilíngua do “socialismo de mercado”, lucro continua significando exploração da força de trabalho. É isso o que o “socialismo” (sic!) chinês tem a comemorar?
Para os que possam achar difícil de acreditar no relato acima, segue o link: http://www.chinachamber.org.cn/News/201909/t20190920_141282.html.
O fortalecimento da burguesia na China – processo do qual demos um pálido vislumbre acima – também se reflete, obviamente, na acumulação de riqueza privada que é o seu objetivo. Como já presente na imagem que abre este texto, a China capitalista tem visto um acelerado crescimento das grandes fortunas. Não podemos esquecer que esse enriquecimento vem de lucros cada vez maiores e que o corolário desses lucros é a exploração da força de trabalho alheia. Como diria o Xiaoping, enriquecer é glorioso, porém uns vão enriquecer primeiro (e mais!) que os outros…
Essa frase antissocialista pode ser ilustrada com uma lista dos patrões chineses com riqueza pessoal acima de US$ 10 bilhões, disponível aqui. Seus principais setores de atuação empresarial variam entre tecnologia (internet, comércio eletrônico, jogos online), setor imobiliário, indústria (automóveis, mineração) e varejo (utilidades domésticas, entregas). O restante da lista, disponível no link acima, inclui os setores de alimentação e bebidas, agronegócio, farmacêuticos, têxteis e educação. Essa ampla gama de setores ilustra a disseminação e o fortalecimento do capital privado no país. Mais que isso, para se chegar a esses valores bilionários, as empresas certamente passaram por um largo processo de centralização de capital, possivelmente monopolizando setores e regiões na China, além de seu crescimento no exterior.
Como bem resumiu Francisco Martins Rodrigues na década passada:
“Aquilo a que se tem assistido na China ao longo da última década é ao florescimento com espantosa velocidade de uma classe capitalista apostada em expropriar os bens públicos por todos os meios possíveis – Yiching Wu chama-lhe mesmo “capitalismo gangster”.”
E o que o “socialismo com características chinesas” tem a oferecer aos operários? O mesmo que qualquer capitalismo…: exploração do seu trabalho, apropriação do seu excedente, longas jornadas em condições de trabalho ruins, e tudo o mais que os brasileiros conhecem bem no seu cotidiano.
Uma triste listagem pode ilustrar a situação operária nas grandes fábricas-prisões do capitalismo chinês. Trata-se da lista com 25 casos de suicídios de trabalhadores nas fábricas da Foxconn, a maior montadora de aparelhos Apple do mundo. O suicídio, nesses casos, foi a forma extrema desses(as) trabalhadores(as) de se livrarem da escravidão assalariada a que eram submetidos(as).
Mas esta não é a única forma de reação do proletariado. De acordo com os dados mais recentes do China Labour Bulletin, houve 1.701 “incidentes” registrados em 2018. No primeiro semestre deste ano já foram outros 712. As greves têm se ampliado do setor manufatureiro para o de serviços e construção, atingindo não apenas as empresas privadas, mas também as estatais. As razões do protesto operário são as mesmas de qualquer país capitalista: demissões, baixos salários, atrasos no pagamento, longas jornadas, insegurança, etc.
Essa luta crescente, que também inclui o surgimento de coletivos de comunistas, tem como um dos efeitos os aumentos dos salários na China nos últimos anos. Os defensores do “socialismo chinês” que enxergam nisso alguma forma de bonança do Estado aparentemente em prol das classes dominadas, esquecem-se dessa luta de classes como impulsionadora dessa realidade, assim como do baixíssimo patamar inicial de salários e condições de vida, que fez da China, em seu processo de restauração capitalista, o paraíso manufatureiro dos monopólios globais.
Aliás, a ilusão de que o Estado chinês poderia ser um freio à expansão burguesa e não um importante elemento indutor da acumulação capitalista, num país em que o proletariado não é a classe dominante, é outra característica comum a essa “esquerda” iludida. Francisco Martins Rodrigues também identificou bem essa característica:
“E o facto de as alavancas centrais da economia continuarem estatizadas não é garantia de qualquer controle sobre os apetites da nova classe burguesa – pelo contrário, torna ainda mais virulenta a sua ofensiva. As prerrogativas burocráticas não são, ao contrário do que se supõe, antagónicas com o mercado mas coexistem com ele, reforçando-se mutuamente. O chamado neoliberalismo beneficia, no contexto da China, desta proliferação de grupos de interesses dentro do próprio Estado.”
Olhando o florescimento da burguesia e a exploração dos operários, é forçoso concluir com Francisco Martins Rodrigues:
“O crescimento imparável da economia chinesa desde que adoptou as “reformas de mercado” conduz inexoravelmente para um desenvolvimento capitalista, à custa de tremendos custos sociais e políticos: desemprego crescente, exploração intensificada, degradação dos serviços de saúde e educação, explosão da dívida do governo e preços instáveis.”
A China como País Imperialista
Além de qualificar a China como capitalista, após mais de 40 anos do início das reformas capitalistas naquele país, queremos avançar mais, precisar melhor nossa análise do capitalismo chinês e seu papel na economia mundial atual. Aprendemos, com Lênin, que o capitalismo, a partir do século XX, entrou em sua etapa imperialista. Imperialismo, de acordo com o conceito leninista, é o capitalismo atual, dos monopólios, do capital financeiro, da exportação de capitais e da partilha do mundo entre os cartéis e entre os países imperialistas.
Olhando, por um lado, cada uma das características do conceito de imperialismo (e todas elas em seu conjunto), e, por outro, a atual divisão internacional do trabalho, a internacionalização dos processos de produção (as chamadas cadeias globais de valor), as zonas de influência existentes, e as contradições do sistema imperialista mundial, não nos resta outra conclusão a não ser afirmar que a China se constituiu, neste século, como um país imperialista, como um país dominante no sistema imperialista mundial.
Tomemos, por exemplo, a exportação de capitais. Em 2018, a China foi o segundo país que mais recebeu investimentos diretos estrangeiros, US$139 bilhões, atrás apenas dos EUA (gráfico à esquerda). Essa magnitude dos investimentos diretos na China comprova seu papel fundamental na divisão internacional do trabalho e nos processos de produção internacionalizados. Ou seja, os monopólios internacionais não têm dúvidas sobre o caráter capitalista do modo de produção chinês…
Mas isso ainda não é exportação de capitais chineses. No mesmo ano de 2018 – também usando dados do relatório mundial de investimentos da Unctad – as empresas chinesas, que no processo de expansão internacional tornam-se monopólios característicos da era imperialista do capitalismo, fizeram o segundo maior investimento direto de todos os países do mundo, após as empresas japonesas. O montante total chegou a impressionantes US$129 bilhões.
Só que esses valores anuais se apequenam diante do montante total desses investimentos no período de restauração capitalista. Afinal, já lá se vão mais de 40 anos… De acordo com a mesma fonte, esses totais são trilionários! Primeiro, vamos ao total do investimento direto acumulado na China pelas empresas estrangeiras. Chegamos ao assombroso número de US$1,6 trilhão de dólares. Imaginem só a magnitude dos lucros que esse capital extrai dos trabalhadores chineses!
Já a exportação de capital sob a forma de investimento direto chinês no exterior acumulou cifra ainda maior. Embora seja movimento mais recente que a abertura da China ao capital estrangeiro, essa exportação de capitais chineses já supera o total dos investimentos estrangeiros na China. Estamos falando de uma cifra de US$1,9 trilhão.
Sobre o capital financeiro na China, cremos que basta mencionar que dos 10 maiores bancos do mundo, 4 são chineses. Certamente esse é um tema a explorar mais, porém já nos permite vislumbrar a vinculação desses capitais bancários com os capitais dos demais setores da economia chinesa.
Para finalizar essa exposição sumária, devemos tratar do tema da partilha do mundo entre as potências e seus carteis. Nesse caso, os caminhos do imperialismo chinês são traçados às claras. Sua iniciativa fundamental nos dias de hoje sob esse aspecto é a chamada Rota da Seda ou, no seu nome oficial, Um Cinturão, Uma Rota (One Belt, One Road). Essa iniciativa visa reforçar a presença do capital chinês no exterior, reforçar os laços dos países receptores de capitais chineses com a China, internacionalizar a produção chinesa e garantir fontes permanentes de fornecimento de matérias-primas, commodities e insumos.
Essa iniciativa amplia as zonas de influência do imperialismo chinês, que já estão bem estabelecidas nos seus vizinhos do sudoeste asiático e, de forma crescente, na relação comercial-produtiva-financeira nos países da África e da América Latina.
Resta-nos, para finalizar esse tema, a crítica de um trecho de Francisco Martins Rodrigues sobre o imperialismo chinês e as contradições interimperialistas no mundo:
“O crescimento da China é positivo no equilíbrio de forças mundial porque pode neutralizar a agressividade do imperialismo americano. Ao povo chinês, ao povo dos EUA, aos povos de todo o mundo, convém que o regime chinês se oponha ao imperialismo. Mas só um marxismo de meia tigela confunde isto com socialismo.”
Para qualquer comunista, está fora de questão o apoio a países capitalistas/imperialistas em suas disputas internas. Não existe opção por um “imperialismo melhor” (sic!). Achamos que esse é o ponto principal que Francisco destaca ao ressaltar que não se trata de “socialismo chinês”.
E quanto ao acirramento das contradições imperialistas ser “positivo”, “conveniente” aos povos? Entendemos tratar-se, no caso, da explicitação do caráter contraditório do capitalismo, de sua tendência a conflitos intra-burgueses, a recessões e a guerras. E, principalmente, que essas contradições e crises podem desnudar a verdadeira face do que o capitalismo representa para as populações despossuídas de todos os países: mais exploração, mais miséria, mais violência.
Se nossa percepção estiver correta, no entanto, faltou considerar um aspecto que avaliamos indispensável: a existência de partidos comunistas fortes, com ampla vinculação às lutas das massas, armado com a teoria marxista-leninista. É só com esse instrumento mais avançado de luta que a classe operária e os povos de todos os países poderão se aproveitar das contradições do capitalismo e superá-lo. O papel de todos os comunistas, na China como no Brasil, é reconstruí-lo.
A China precisa do renascimento e do fortalecimento do seu movimento revolucionário da classe operária e demais classes dominadas para, mais uma vez, derrubar o capitalismo
Terminemos essa já longa introdução com o resgate que Francisco Martins Rodrigues faz da frase de Mao Tsé-Tung no início da Revolução Cultural:
“Apetece recordar a advertência de Mao em Maio de 1966: ‘Os representantes da burguesia que se infiltraram no Partido Comunista negam a necessidade da ditadura do proletariado contra a burguesia. São servidores leais da burguesia e do imperialismo. Esforçam-se por manter a ideologia burguesa de opressão e exploração do proletariado. São um bando de contra-revolucionários que estão contra o Partido Comunista e o povo. Os representantes da burguesia que se infiltraram no partido, no governo, no exército e nos sectores culturais são um bando de revisionistas contra-revolucionários. Se lhes dermos ocasião, transformarão a ditadura do proletariado em ditadura da burguesia. A luta deles contra nós é uma luta de morte. Por isso a nossa luta contra eles deve ser também uma luta de morte’”.
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Para onde vai a China?
Francisco Martins Rodrigues
Setembro/Outubro de 2007
Primeira Edição: Política Operária nº 111, Set-Out 2007
Fonte: Francisco Martins Rodrigues Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Où va la Chine? de Peter Franssen. INEM, Bruxelas, 2007. www.marx.be
O n° 78 da revista Études Marxistes, do Partido do Trabalho da Bélgica, é inteiramente preenchido com um bem documentado artigo intitulado “O desenvolvimento do socialismo na China”. Como o título já deixa perceber, o balanço do autor é francamente optimista. Acha que o “socialismo” está a avançar na China e que o PC Chinês continua “fiel” ao marxismo.
Porquê? Pela razão que deixa embevecidos todos os progressistas distraídos — o crescimento fenomenal da China, o avanço por saltos na economia, no nível de vida, na saúde, no ensino. Mas isso, só por si, não prova nada quanto a socialismo. Há três quartos de século também os progressistas, espantados perante a cavalgada da industrialização e da mecanização agrícola na União Soviética, esqueciam-se de perguntar quem estava no poder. Para o senso comum, a equação governo “comunista” + nacionalizações + desenvolvimento económico = socialismo parece indiscutível. Só que há ainda o outro factor a ter em conta — qual a classe que realmente exerce o poder?
A verdade é que eles não querem saber desse pormenor da ditadura do proletariado inexistente. Não há sinais de poder das massas e há muitos sinais de poder dos capitalistas na China? O partido comunista está penetrado pelo espírito do negócio e do lucro? A propaganda sobre a “harmonia social” não consegue disfarçar as contradições de classe que crescem exponencialmente? Não faz mal. Pois não é o próprio PCC que reconhece estar ainda na “primeira fase do socialismo”? Logo, está tudo justificado.
Como, apesar de tudo, não se pode ignorar as realidades brutais da sociedade chinesa, o autor do artigo lamenta, com ingenuidade postiça: “Porque permite o PCC que se desenvolva um importante sector privado, chinês e multinacional? Não se corre o risco de esvaziar pouco a pouco o socialismo da sua substância?” O “risco” de “esvaziar pouco a pouco o socialismo”… Boa piada!
O crescimento da China é positivo no equilíbrio de forças mundial porque pode neutralizar a agressividade do imperialismo americano. Ao povo chinês, ao povo dos EUA, aos povos de todo o mundo, convém que o regime chinês se oponha ao imperialismo. Mas só um marxismo de meia tigela confunde isto com socialismo.
Apetece recordar a advertência de Mao em Maio de 1966: “Os representantes da burguesia que se infiltraram no Partido Comunista negam a necessidade da ditadura do proletariado contra a burguesia. São servidores leais da burguesia e do imperialismo. Esforçam-se por manter a ideologia burguesa de opressão e exploração do proletariado. São um bando de contra-revolucionários que estão contra o Partido Comunista e o povo. Os representantes da burguesia que se infiltraram no partido, no governo, no exército e nos sectores culturais são um bando de revisionistas contra-revolucionários. Se lhes dermos ocasião, transformarão a ditadura do proletariado em ditadura da burguesia. A luta deles contra nós é uma luta de morte. Por isso a nossa luta contra eles deve ser também uma luta de morte.”
O comité central esclareceu depois que isto era um exagero e que havia apenas “pontos de vista diferentes sobre a maneira de construir o socialismo”. Como se viu.
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Restauração Capitalista na China(1)
Francisco Martins Rodrigues
Primeira Edição: Não foi possível encontrar publicado este texto nem conseguimos datá-lo, e por isso pensamos ser inédito. Muito provavelmente, terá sido retido por FMR para posteriores melhoramentos. Parece ser aliás uma versão primitiva depois desdobrada em dois artigos publicados na Política Operária nº 103 de Jan-Fev de 2006: “A revolução chinesa nunca existiu?”, assinado por FMR, e “A ‘restauração capitalista’ na China’, condensação por FMR do artigo de Yiching Wu na Montly Review.
Fonte: Francisco Martins Rodrigues — Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Um novo volume sobre Mao, cheio de “revelações” apimentadas, está a vender-se como pãezinhos quentes(2). Para se fazer passar por obra séria, promete a “resposta definitiva para os enigmas da revolução chinesa”, desde as tragédias da Revolução Cultural aos mistérios do ódio de Mao a Liu Shao-chi. A mensagem final não corre o risco de surpreender ninguém: Mao não era bem igual a Hitler mas não lhe ficava longe; a revolução, eis a verdadeira origem de todas as desgraças e todos os crimes; “o comunismo nunca deu nem nunca dará certo em lado algum”.
Como poderemos demonstrar que obras destas não informam mas ocultam, que são mais uma peça na campanha montada pela burguesia para se livrar do pesadelo das grandes revoluções do século passado? Não certamente se insistirmos na atitude defensista e justificadora em que continuam a refugiar-se tantos comunistas, sempre prontos a explicar tudo por factores pessoais, por erros, por contingências. Só conseguiremos derrotar esta campanha se soubermos explicar como desceram os regimes do “socialismo real”, da audácia das grandes conquistas populares à supressão das liberdades, das visões arrojadas de libertação da humanidade ao cinzentismo conformado, do sonho internacionalista inicial à estreiteza nacionalista; como degeneraram os partidos comunistas em cliques de burocratas e os heróis revolucionários em aparatchiks corruptos.
É o que tenta fazer um artigo recentemente publicado na Monthly Review(3) sobre as causas da transformação que actualmente decorre na China. O seu autor, Yiching Wu, chama a atenção para aquilo que deveria ser óbvio para marxistas: para as relações sociais e políticas que vigoraram na China desde a tomada do poder pelos comunistas.
Crescimento imparável
Acenar com os tremendos êxitos económicos da China e debater, como insistem em fazer alguns no campo da esquerda, se o regime chinês ainda cabe ou não no conceito de socialismo, se é um “socialismo de mercado”, ou um “socialismo com mercado”, susceptível de vir a sofrer uma evolução positiva, dado que o poder continua nas mãos do Partido Comunista – é uma utopia que dá a medida do abastardamento a que chegou ao longo do último século a noção de socialismo.
Aquilo a que se tem assistido na China ao longo da última década é ao florescimento com espantosa velocidade de uma classe capitalista apostada em expropriar os bens públicos por todos os meios possíveis – Yiching Wu chama-lhe mesmo “capitalismo gangster”.
Os mecanismos de mercado, introduzidos para criar algumas aberturas controladas na vida social, pôr a elite governante ao abrigo da insatisfação popular pela despolitização das decisões socioeconómicas, e assim ganhar tempo para enfrentar a competição capitalista global, vieram a transformar-se numa alavanca poderosa da transformação dos detentores do poder em proprietários de capital. Com a conversão em massa dos bens públicos em capital privado, nas mãos dos que controlam o poder político, a imensa riqueza apropriada e acumulada durante as décadas anteriores está a ser lançada no circuito da produção e distribuição capitalista.
E o facto de as alavancas centrais da economia continuarem estatizadas não é garantia de qualquer controle sobre os apetites da nova classe burguesa – pelo contrário, torna ainda mais virulenta a sua ofensiva. As prerrogativas burocráticas não são, ao contrário do que se supõe, antagónicas com o mercado mas coexistem com ele, reforçando-se mutuamente. O chamado neoliberalismo beneficia, no contexto da China, desta proliferação de grupos de interesses dentro do próprio Estado.
Denunciar estas práticas apenas como casos pontuais de corrupção no seio do Estado “socialista” é minimizar o seu significado político e histórico. O crescimento imparável da economia chinesa desde que adoptou as “reformas de mercado” conduz inexoravelmente para um desenvolvimento capitalista, à custa de tremendos custos sociais e políticos: desemprego crescente, exploração intensificada, degradação dos serviços de saúde e educação, explosão da dívida do governo e preços instáveis.
Estamos perante uma grande transformação social, perante uma brutal acumulação capitalista primitiva levada a cabo pelos detentores do poder burocrático e pelas suas redes de influências.
Maoísmo e Revolução Cultural
Com o seu aspecto aberrante na história do socialismo mundial, a Revolução Cultural na fase final do maoísmo pôs a tónica na persistência da luta de classes mesmo depois do derrube das classes exploradoras. Na perspectiva de Mao, o perigo de degeneração do socialismo não surgiria forçosamente do derrubamento violento do Estado socialista, mas mais provavelmente da influência corrosiva das classes derrubadas sobre o partido no poder. Uma vez que uma clique degenerada de dirigentes aderisse às ideias burguesas, a direcção usurpada do partido procederia à transformação do carácter de classe do poder de Estado, desmantelando a economia socialista, criando uma nova classe dominante e desenvolvendo um sistema político burguês de forma acabada.
Porquê então fracassaram as aspirações de revitalização do socialismo proclamadas pela Revolução Cultural? Porque faltava ao maoísmo um alvo de classe claramente definido. A sua política de classe era simultaneamente demasiado ampla e demasiado estreita: os seus objectivos políticos eram personalizados e portanto difusos. Mesmo nos dias mais iconolastas da Revolução Cultural, os alvos da luta iam das tradições reaccionárias e dos privilégios burocráticos até à arte e literatura, ao comportamento sexual, aos hábitos de vestuário… Essa noção de classe vulgarizada a extremos absurdos tornou-se uma mistela confusa totalmente inócua.
Assim, apesar da sua vigilância extrema contra as tendências regressivas, o maoísmo da fase final foi impotente para atingir a estrutura fundamental da dominação de classe no Estado pós-revolucionário. Centrando-se no burocratismo, no revisionismo e nos privilégios distributivos, a Revolução Cultural atacou as tendências ideológicas dos burocratas mas não o seu sistema de dominação. Como notou Richard Kraus, Mao, o “principal rebelde”, era ao mesmo tempo o “principal quadro” do regime burocrático.
Com o seu esforço para revolucionarizar a cultura, promover a consciência proletária e combater o egoísmo burguês, a Revolução Cultural conseguiu interromper por um tempo a consolidação da classe governante incipiente. Mas tudo se passou ao nível da “cultura”. Com a sua aparência de radicalismo extremo, as mobilizações de massas, embora tendo mitigado algumas manifestações mais gritantes de elitismo burocrático, deixaram virtualmente intocada a distinção estrutural entre governantes e governados. Esta “revolução na cultura” representou o ponto mais alto do maoísmo, mas também o seu limite político.
E quando, no final dos anos 60, um certo número de jovens críticos tentaram levar mais longe as implicações políticas mais radicais contidas no maoísmo, eles encontraram-se debaixo do fogo das chefias oficiais da Revolução Cultural. Ao atacar o conservadorismo e reformismo do movimento, ao proclamar que não se tratava de derrubar governantes individuais e restos de velhas ideologias mas de procurar as raízes de classe dos problemas sociais e políticos da China; ao invocar o exemplo da Comuna de Paris e reivindicar a destruição da “nova burguesia burocrática” e do seu monopólio do aparelho de Estado, como condição para se estabelecer uma genuína sociedade igualitária e socialista, na qual o povo pudesse realmente participar e exercer o autogoverno – esses críticos foram denunciados como ultra-radicais, anarquistas anti-Partido, ou mesmo contra-revolucionários, e reprimidos de forma implacável, em muitos casos sob ordens directas da “esquerda” da chefia da Revolução Cultural.
Ao devorar os seus próprios filhos rebeldes, o maoísmo consumiu rapidamente a sua energia política e ficou prisioneiro dos seus limites históricos.
Restauração burguesa?
Chega agora o momento de perguntar se a “restauração capitalista” não foi um mito, se a teoria maoísta da luta de classes não teve uma função de diversão e mistificação. Ao concentrar o fogo contra os restos das velhas tradições, as tendências espontâneas pequeno-burguesas e os adeptos insidiosos da via capitalista, o discurso maoísta sobre a restauração capitalista distorceu e obscureceu a contradição central da sociedade chinesa pós-revolucionária.
A grande revolução social através da qual o povo trabalhador da China conseguiu avanços sociais e políticos de enorme alcance histórico, sob a condução do partido marxista-leninista, e avançou após 1949 na abolição da propriedade privada dos meios sociais de produção, expropriando as classes possidentes, debatia-se com pesadas limitações históricas. Apesar das amplas realizações, que deram às massas trabalhadoras urbanas e rurais o acesso a benefícios socioeconómicos de significado histórico, no respeitante às relações sociais, as classes trabalhadoras populares permaneceram efectivamente separadas dos meios de produção e distribuição. Não se constituiu uma estrutura política na qual o aparelho de Estado fosse efectivamente controlado pelos cidadãos. A propriedade social exaltada nos manuais não passava de uma ficção legal; era controlada de facto por uma burocracia de Estado imensamente poderosa, um aparelho não sujeito ao controle popular democrático. A actividade de massas gozava de grande visibilidade, mas a participação democrática efectiva das classes populares na vida do Estado, não apoiada em garantias institucionais, era severamente limitada.
Como o Estado revolucionário foi dissociado da sua base social logo desde início, o aparelho político que tinha servido para destruir as velhas desigualdades deu origem a novas desigualdades. Os benefícios concedidos, nos anos de ascenso, às classes trabalhadoras por uma burocracia paternalista puderam ser anulados quando as circunstâncias políticas mudaram.
O monopólio burocrático do poder económico e político é pois a chave para compreender a marcha da restauração na China e o papel central desempenhado pela classe burocrática na evolução da China para o capitalismo.
A mais importante lição histórica a retirar da actual transição da China (e da Rússia) para o capitalismo é que socialismo sem uma democracia plena é inviável. Uma democracia genuína é a mais efectiva salvaguarda do socialismo. Tendo emergido como uma brilhante alternativa ao capitalismo, o “socialismo realmente existente” produziu Estados muito poderosos, os quais, em nome do socialismo, concentraram e monopolizaram os recursos sociais e políticos, reproduzindo o estatuto dominado da população trabalhadora – quando, para Marx, a abolição da propriedade privada não era o fim em si, apenas o meio para a abolição final das relações de trabalho alienadas. Assim, o “socialismo realmente existente” preparou alguns dos ingredientes da sua própria mutação em capitalismo.
A história, escreveu uma vez Lenine, conhece todas as espécies de metamorfoses. À luz das transformações em curso, há razão para perguntar se o “socialismo realmente existente” foi uma pausa na via luminosa para o socialismo, ou se não terá agido como uma parteira do capitalismo, se não terá sido apenas mais uma fase transitória na longa história das metamorfoses do capitalismo. Esta seria uma grande ironia da história e uma colossal tragédia, mas a história é astuciosa.
Notas de rodapé:
(1) Título da responsabilidade de Ana Barradas.
(2) Trata-se provavelmente do livro Mao… a história desconhecida, de Chang Hun e Jon Halliday, ed. Bertrand, Lisboa.
(3) “Rethinking ‘Capitalist Restoration’ in China” (Repensar a ‘restauração capitalista’ na China”), de Yiching Wu. Monthly Review, nº 6/57, Novembro de 2005. http://www.monthlyreview.org.
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A Revolução Chinesa Nunca Existiu?
Francisco Martins Rodrigues
Janeiro/Fevereiro de 2003
Primeira Edição: Política Operária nº 103, Jan/Fev 2003
Fonte: Francisco Martins Rodrigues – Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
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Está a fazer sucesso um novo volume sobre Mao, da autoria de uma escritora de origem chinesa, em parceria com um professor universitário norte-americano(1). Propagandeado como obra séria de investigação e aplaudido por muitos como a “resposta definitiva para os enigmas da revolução chinesa”, é, apesar da pretensão académica e da abundância de citações de fontes, bibliografia e notas, uma difamação de baixo nível. A revolução que libertou 500 milhões de seres humanos de um destino trágico — miséria, doenças, analfabetismo, servidão — e trouxe a China para a modernidade aparece rebaixada ao nível de um psicodrama sórdido entre tiranos sedentos de poder. Mao, o líder e pensador revolucionário que inspirou a emancipação de um quinto da humanidade das trevas da servidão, é rebaixado às dimensões de um ditador sanguinário e sem escrúpulos; ele teria programado deliberadamente a morte de milhões de chineses, a sua luta contra Liu Shao-chi não passaria de uma conspiração palaciana; até as vitórias do Exército de Libertação seriam inventadas (o ditador Chiang Kai-chek teria deixado passar a Longa Marcha para não pôr em risco a vida do seu filho, nas mãos de Staline!); etc.
Assim chega a autora à conclusão desejada:
“A revolução foi a origem de todas as desgraças e todos os crimes”; “o comunismo nunca deu nem nunca dará certo em lado algum”.
O “estudo sério” sobre Mao é afinal mais uma peça na infindável produção de histórias de terror sobre os “ditadores mais sanguinários de todos os tempos”. Só o hábito, já enraizado na opinião pública, de tomar como bom tudo o que se diga contra a revolução e o comunismo leva a que muitos nem se apercebam da grosseira manipulação a que são sujeitos. Engodados pelas “revelações” escandalosas sobre os antigos ídolos, não notam que obras destas não informam mas ocultam o que aconteceu e as causas de ter acontecido. Na realidade, o que hoje se lê sobre os ex-regimes comunistas ultrapassa o que no auge da guerra mundial publicavam os folhetos de propaganda dos nazis. Os políticos, jornalistas e intelectuais que aplaudem estas “corajosas revelações” deveriam, para ser coerentes, reabilitar a causa hitleriana.
Há, é certo, correntes minoritárias, no que resta do movimento marxista-leninista, que persistem em defender a revolução chinesa e a figura de Mao. Mas a coerência não é o seu forte. Não reconhecem que ao auge revolucionário depois da tomada do poder pelos comunistas sucedeu um refluxo burguês. Agarram-se a histórias sobre factores pessoais, erros e traições para explicar uma transformação social regressiva. Alegam que o que se diz sobre a actual situação social na China seria fruto da propaganda da burguesia ocidental, alarmada pela concorrência imparável das mercadorias chinesas. Fazem com a China o mesmo que fizeram durante meio século com a União Soviética, quando recusaram obstinadamente encarar os factos gritantes que de lá chegavam, esperando até ao último minuto que o regime “soviético” defunto “corrigisse os erros”.
A verdade é que os avanços espectaculares conseguidos pela China nos últimos anos estão a reanimar nos saudosistas do ex-“campo socialista”, seduzidos pela força aparente deste regime ainda nominalmente comunista que não entra em descalabro nem se rende ao imperialismo, sonhos de uma “rectificação” salvadora.
Ora, debater, como insistem em fazer com toda a seriedade, se o regime chinês ainda cabe ou não no conceito de socialismo, se é um “socialismo de mercado”, ou um “socialismo com mercado”, susceptível de vir a sofrer uma evolução positiva, dado que o poder continua nas mãos do Partido Comunista — é uma aberração que dá a medida do abastardamento a que chegou o pensamento marxista oficial sobre o socialismo.
A campanha de denegrimento da burguesia não se enfrenta com desculpas mal amanhadas. É preciso explicar como desceram os regimes da Rússia e da China, da audácia das grandes conquistas populares e das visões arrojadas de libertação da humanidade à supressão das liberdades, ao conservadorismo dogmático e ao terror; como degeneraram os partidos comunistas em cliques de burocratas sem alma e os heróis revolucionários em aparatchiks corruptos.
Notas de rodapé:
(1) Mao – a história desconhecida, de Chang Hun e Jon Halliday. Ed. Bertrand, Lisboa.