A nova crise mundial do capital: a conjuntura internacional nos tempos de pandemia
Cem Flores
28.04.2020
Doze anos após a eclosão da última grande crise mundial do capital (2008/09) – da qual o capitalismo ainda não encontrou uma recuperação propriamente dita – e depois de dois anos de clara desaceleração nas principais economias imperialistas, que já estavam a caminho de uma recessão, a economia mundial volta a viver uma crise do capital de dimensões históricas, detonada por uma pandemia. Esses fatos inauguram novas condições para a luta de classes a nível global. Diante disso, cabe ao proletariado, a todos/as os/as trabalhadores/as e demais classes dominadas, aos lutadores e às lutadoras, aos/às comunistas, compreendermos essa nova realidade na qual nossa luta já está a se desenvolver.
A nova crise agrava o estado depressivo do sistema imperialista mundial
Apesar das suas marcadas diferenças específicas, essas duas crises – de 2008/09 e de 2020 – compartilham a magnitude histórica, fruto do nível alcançado pelas contradições do capitalismo, em sua fase imperialista, em escala mundial, refletidas notadamente nas taxas de lucro em queda, na quase estagnação da produtividade, nos conflitos interimperialistas e na crescente desigualdade.
Olhando em escala temporal mais ampla, o capital parece ter esgotado o dinamismo de acumulação e lucros aberto pela incorporação dos antigos países socialistas no mercado internacional capitalista e pela desregulamentação, privatização e abertura aos fluxos de capitais a partir dos anos 1980, pela revolução tecnológica a partir dos anos 1990, e mesmo pela ofensiva de desregulamentação dos mercados de trabalho neste século. Ainda que esse estado depressivo do sistema imperialista mundial seja verdadeiro, o capitalismo não vai se reformar a si mesmo nem cair de podre por si só. Para evitar que o nosso futuro seja um caos sem fim, o capitalismo precisa ser derrubado pela ação militante das massas trabalhadoras de todos os países.
Possivelmente em função desse estado depressivo da economia capitalista mundial, os principais países imperialistas perdem, a cada crise e de forma permanente, a trajetória de crescimento anterior. Os dois gráficos abaixo ilustram esse fato para o período posterior à crise de 2008, primeiro para os EUA e, depois, para a Europa.
As primeiras análises sobre a crise atual vão exatamente nessa mesma direção. Neste mês, o Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou suas projeções para o PIB mundial deste ano e do próximo. As trajetórias de crescimento previstas antes do início da crise (em janeiro) e depois (abril), são muito similares ao pré-2008 comparado com o pós. Para o FMI, no entanto, a crise atual supera a anterior: “o Grande Lockdown [bloqueio ou fechamento, como o FMI está chamando a situação atual] caracteriza a mais grave recessão desde a Grande Depressão, muito pior do que a crise financeira mundial de 2009”.
A magnitude prevista pelo FMI para a crise atual corresponde às economias do Japão e da Alemanha – somadas! Importante lembrar, no entanto, que esse é apenas o cenário de referência do FMI, que aponta chances reais de cenários ainda mais adversos e com perdas ainda mais gigantescas.
A Organização Mundial do Comércio (OMC) também divulgou suas projeções para o impacto da crise atual no comércio mundial. Novamente, vemos uma perda da tendência pós-2008 e a mesma trajetória nas projeções sobre a crise atual (tirando o otimismo de ofício dos aparelhos internacionais do capital…).
As características da pandemia do novo coronavírus para a crise atual
Se a dimensão histórica da crise do capital atual pode ser comparada com a crise iniciada em 2008, é importante também analisar as suas características e diferenças específicas. A crise atual tem como gatilho as medidas de contenção contra a pandemia de coronavírus impostas pela maioria dos países. Essas medidas implicam, em maior ou menor grau, restrições ao funcionamento de empresas e à circulação de pessoas, interrupções em cadeias de produção e demissão em massa de trabalhadores/as.
O capitalismo mundial neste século tem sido marcado por uma sucessão de epidemias: SARS (2002-03), Gripe Suína (2009), MERS (2012), Ebola (2014-16) e agora Covid-19 (2019-?), para citar apenas as principais, de caráter global. Há vários elementos para afirmar que a devastação ambiental causada pelo capitalismo tem facilitado o surgimento e a disseminação dessas epidemias, assim como sua cada vez maior integração mundial. Mas esta pandemia é diferente.
A maior capacidade de contágio do coronavírus, somada às condições já precárias de vida e de saúde de grande parte das massas trabalhadoras, têm gerado um enorme e crescente número de mortos no mundo. Segundo o site worldometers, já são mais de 200 mil mortos pela doença respiratória causada pelo vírus e há cerca de 3 milhões de casos ativos (dados de 27.04.2020). Nos EUA, epicentro atual da pandemia, as comunidades negras têm sido as mais afetadas pelo vírus: representam cerca de 30% das contaminações e das mortes, mesmo sendo por volta de 15% da população do país. As razões são bem conhecidas: habitação mais precária, piores condições de saneamento, menor acesso a serviços de saúde, comorbidades, e a maior exploração em empregos informais e precários. Em suma: a dominação capitalista!
Seu grande contágio tem forçado vários países a adotarem medidas restritivas inéditas, para que não se exponha a acumulação e a dominação capitalista aos riscos e a um caos social e sanitário incontrolável. Mas essas medidas para contenção da contaminação, coordenadas pelos Estados, também são função do cenário atual de maior repressão e autoritarismo do capitalismo e da ofensiva da burguesia na luta de classes – e a pandemia parece estar sendo o laboratório de novas medidas de controle e repressão, que tendem a ser permanentes, seja por parte das empresas, das polícias e dos demais aparelhos repressivos de Estado capitalista, contra o proletariado e as demais classes dominadas.
A dinâmica da crise também é impactada pelos limites do conhecimento atual sobre o coronavírus, seu contágio e imunidade. Não é comprovada ainda a existência de “passaporte de imunidade” aos já contaminados. Tampouco são descartadas novas (segunda, terceira, etc.) ondas de contaminação e novas medidas de contenção. A possibilidade desses eventos continuarem por um ou dois anos pode levar à interrupção de investimentos, mais demissões, maior endividamento de governos, empresas e população, restrições ao comércio internacional e ao funcionamento das cadeias globais de produção, nacionalismo, xenofobia, repressão e autoritarismo.
Ou seja, as medidas de contenção e os demais efeitos da pandemia constituem o momento inicial não só da crise atual, como da nova fase da ofensiva burguesa. Mas a estrutura e as contradições do capitalismo em cada país e do sistema imperialista mundial são suas causas estruturais.
As dimensões empíricas da crise já visíveis atualmente
As estatísticas atualmente disponíveis ainda são muito poucas, mas já dão uma medida das dimensões da crise, confirmando a projeção catastrófica feita mesmo pelos aparelhos internacionais do capital.
O primeiro desses indicadores a ser divulgado foi o “índice de gerentes de compras” (purchasing managers index, PMI) composto (indústria e serviços) global. Esse PMI composto global é calculado a partir de entrevistas feitas em 40 países, com aproximadamente 400 empresas em cada país. Seu objetivo é saber a perspectiva das empresas para produção, encomendas, emprego, custos, preços de venda, exportações, fornecedores, estoques. Pela construção do índice, valores abaixo de 50 indicam recessão. O gráfico abaixo foi divulgado no dia 3 de abril e mostra o resultado das entrevistas realizadas na segunda quinzena de março. Mesmo sem ainda ter atingido o auge das medidas de restrição em vários países, o indicador já mostrou a economia mundial em queda livre.
Essa queda vertiginosa da atividade econômica está provocando efeitos devastadores nas massas trabalhadoras. Em seu relatório de 7 de abril, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) já constata um violento impacto de queda de 6,7% nas horas trabalhadas no mundo (o que equivale a 230 milhões de trabalhadores/as com jornada semanal de 40 horas). Além disso, cerca de 40% da força de trabalho mundial trabalham em setores fortemente atingidos pela crise.
A miséria e a fome estão crescendo rapidamente, juntamente com o adoecimento e a maior exploração da força de trabalho ocupada. As medidas estatais de “proteção”, na prática, têm significado redução de salário e perspectiva de piora nas condições de vida das massas trabalhadoras que já estavam em situação ruim. Mas um dos resultados tem sido a ocorrência de paralisações, protestos e criação de redes de solidariedade em vários países.
Na crise atual, a China tem uma importância fundamental. Não apenas por constituir a segunda maior potência imperialista global, não apenas por apresentar uma clara tendência de desaceleração antes da crise, mas principalmente por ser o primeiro país atingido pela pandemia, o primeiro a adotar as restrições e o primeiro a iniciar seu levantamento gradual.
O gráfico abaixo mostra o enorme impacto da crise no PIB chinês, que caiu 6,8% no primeiro trimestre de 2020 – primeiro valor negativo desde a virada para o capitalismo, no final dos anos 1970.
O relatório da pesquisa PMI para a indústria chinesa mostra que os capitalistas chineses viam demanda fraca, queda nas encomendas, forte queda nas exportações, problemas nas linhas globais de produção e muito desemprego. Dessas informações podemos concluir que: 1) esta crise tem caráter mundial, ao 2) afetar tanto as condições de produção e de realização domésticas quanto 3) as cadeias de produção e comércio mundiais, portanto 4) seus efeitos se prolongarão durante o período de adoção das medidas restritivas em cada país e 5) continuarão mesmo após essas medidas serem relaxadas, considerando seus impactos na falência de empresas e no desemprego, no baixo nível de investimento e no alto nível de endividamento.
Mas a importância da China nesta crise não se restringe às informações econômicas já disponíveis e à anterioridade na contaminação e contenção. O papel da China no sistema imperialista pode sair fortalecido dessa crise pois: 1) o país, que já tem a maior indústria do mundo, se revelou também o maior produtor mundial de equipamentos médicos – setor de sua produção que tende a se fortalecer com a crise e ampliar sua liderança global, 2) o país já está em plena tentativa de normalização de sua produção, o que pode leva-lo a ocupar os mercados mundiais de concorrentes, e 3) o país está buscando, a todo o custo, reforçar sua participação internacional em todos os aspectos, incluindo nos aparelhos internacionais do capital (como a Organização Mundial de Saúde, OMS, por exemplo).
Em relação à luta de classes na China capitalista, a pandemia deu amplo espaço para o reforço 1) do discurso nacionalista e de união nacional – que justifica ideologicamente a exploração do proletariado e sua subordinação à burguesia e ao seu Estado – e 2) das medidas e dos instrumentos (legais, tecnológicos e ideológicos) de contenção, vigilância, controle e repressão desses próprios trabalhadores e trabalhadoras.
Os EUA, por outro lado, se converteram atualmente no epicentro da pandemia mundial. O impacto imediato e mais significativo, do ponto de vista das classes dominadas, além da contaminação e das mortes tratadas acima, é o vertiginoso crescimento do desemprego. O gráfico abaixo mede a quantidade de trabalhadores/as que pedem seguro-desemprego a cada semana. Nas últimas cinco semanas, esse número já atinge 26,5 milhões!
Em função do gigantesco impacto da crise na economia americana, o Estado capitalista dos EUA tem organizado o maior pacote de salvação do capital do mundo. Segundo o FMI, as medidas somam quase US$ 3 trilhões, incluindo tentativas de evitar falências, empréstimos a estados e municípios e pequenas empresas, redução temporária de impostos, gastos hospitalares e com testes. Além dessas ações, o banco central do EUA entrou com pelo menos outros US$ 2,3 trilhões em financiamentos ao governo, aos bancos e grandes empresas, além de reduzir seus juros para zero novamente, como em 2008. Por fim, em sua função de emissor da moeda mundial, assumiu compromissos de emprestar dólares para todos os países da Área do Euro e outros 13 países, incluindo o Brasil.
Essa escalada da crise nos EUA acelerou e aprofundou a trajetória recessiva dos últimos dois anos. As tendências que temos observado nos últimos anos no centro do imperialismo mundial devem se radicalizar na nova recessão: 1) ampliação da importância dos grandes monopólios transnacionais sediados nos EUA, mediante nova rodada de centralização de capital, 2) adoção de novas medidas protecionistas e 3) acirramento dos conflitos interimperialistas, não obstante 4) a continuidade da sua perda relativa de importância na economia global, 5) crescimento do nacionalismo e da xenofobia e 6) ampliação da exploração capitalista, piora das condições do mercado de trabalho, aumento da miséria e da fome, juntamente com níveis recordes de desigualdade social.
Nos demais países imperialistas, Europa e Japão, o cenário geral é similar (embora não tenhamos analisado suas conjunturas mais especificamente), com recessões históricas e crescimento do desemprego e piora das condições de vida das massas dominadas. Para os países dominados, a deterioração das condições de vida proletária, camponesa e das demais classes exploradas é ainda mais aguda.
A classe operária, os camponeses, as massas dominadas, nada podem esperar da burguesia, das classes dominantes, dos seus Estados capitalistas e seus aparelhos de dominação a não ser mais exploração, mais repressão, mais miséria, mais morte. O caminho de enfrentar as dificuldades é confiar cada vez mais nos seus próprios esforços e na solidariedade de classe.
Façamos nós com nossas mãos / tudo que a nós nos diz respeito!