CEM FLORES

QUE CEM FLORES DESABROCHEM! QUE CEM ESCOLAS RIVALIZEM!

Cem Flores, Teoria

Algumas teses para retomar o marxismo: materialismo histórico

Introdução

Nosso objetivo nestas breves considerações sobre a ciência da história, evidentemente, não é o de tentar uma sistematização do estado do materialismo histórico. Queremos somente colocar para trabalhar alguns de seus conceitos básicos que acreditamos centrais para realizar a análise concreta da realidade brasileira. Colocar para trabalhar conceitos como forças produtivas, relações de produção, força de trabalho, instrumentos de trabalho, objetos de trabalho, modo de produção, infraestrutura e superestrutura, Estado, luta de classes, etc., um conjunto de conceitos que sabemos trabalham juntos, dependem todos uns dos outros, daí que para tratar do materialismo dialético seria necessário tratar de todos ao mesmo tempo, o que não nos é possível fazer, daí nos aprofundarmos no tratamento de alguns conceitos e tratarmos outros de forma sumária, insuficiente, insuficiência que reconhecemos que só a continuidade de nossa prática, o trabalho destes conceitos na realidade brasileira vai nos permitir suplantar.

E quando dizemos que é necessário colocar para trabalhar os conceitos do materialismo dialético e histórico na realidade brasileira, queremos dizer que buscamos fazer exatamente – não o contrário, o oposto, do que tem sido praticado no Brasil – mas fazer a análise da formação econômico-social brasileira de outra forma, de outro ponto de vista, de um ponto de vista radicalmente diferente. Ou dizendo melhor, fazer a análise concreta da formação econômico-social brasileira e não rotular, “construir à maneira dos hegelianos” ,“…sem ulterior estudo, tudo e mais alguma coisa…” – como aliás há mais de um século Engels alertava a nós todos em carta a Conrad Smith, em 05 de agosto de 1890,

A palavra «materialista» [materialistisch], na Alemanha, serve, em geral, a muitos escritores jovens de simples frase com que etiquetam, sem ulterior estudo, tudo e mais alguma coisa, isto é, colam esta etiqueta e, então, crêem ter resolvido alguma coisa. A nossa concepção da história, porém, é, antes de tudo, uma directiva [Anleitung] para o estudo, [não é] nenhuma alavanca de construções à maneira dos hegelianos [Hegelianertum]. A história toda tem de ser estudada de novo, as condições de existência [Daseinsbedingungen] das diversas formações sociais [Gesellschaftsformationen] têm que ser investigadas em pormenor, antes de se tentar deduzir a partir delas os modos de ver [Anschauungsweise] políticos, de direito privado, estéticos, filosóficos, religiosos, etc., que lhes correspondem. (MARX e ENGELS, Obras Escolhidas em Três Tomos, Tomo III, Edições Avante, Lisboa, 1985, p. 543).

Isto é, ao invés de rotular – ao contrário de pegar conceitos retirados da análise de processos revolucionários ocorridos em outras formações sociais, em outro momento histórico, em outras práticas concretas, “à maneira dos hegelianos”, para resolver a questão da necessidade da análise concreta; ao invés de indagar da natureza da revolução a partir de etiquetas, se democrático-burguesa, nacional democrática ou nacional-anti-imperialista, questão que se coloca para a prática de maneira irresolúvel já que implica na tentativa de “colar etiqueta” – o que nos propomos é trabalhar o processo histórico com os instrumentos teóricos do marxismo, para aí determinar a melhor forma de qualificá-lo, de qualificar os processos de transformação que estão latentes na situação concreta, aí “expor adequadamente o movimento real”. (Marx, O Capital, livro 1, t. 1, Abril Cultura, 1983, p. 20).

A apreciação de um processo histórico de uma forma ou de outra somente é possível depois de analisada a realidade. Marx e Engels não se cansaram de repetir que nada mais fizeram do que analisar a realidade, do que colocar os conceitos do materialismo dialético e histórico para trabalhar na realidade, e isto é radicalmente diverso de analisar a realidade a partir de conceitos elaborados para qualificar situações concretas ocorridas em outro momento, em outras formações econômico-social como: revolução democrático-burguesa, nacional democrática, etc.

“A pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão íntima. Só depois de concluído esse trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real. Caso se consiga isso, e espelhada idealmente agora a vida da matéria, talvez possa parecer que se esteja tratando de uma construção a priori”. (MARX, O Capital, Abril Cultural, livro 1, t. 1, 1983, p. 21).

Poderíamos dizer que se vai à realidade não com os instrumentos de análise, não com os instrumentos do método, da ciência, seus conceitos, mas com conceitos resultantes da análise de processos concretos em outra realidade, em outro momento histórico, exatamente a concepção metafísica que a ciência da história condena quando Marx propõe que,

“O concreto é concreto por ser a síntese de múltiplas determinações, logo, unidade da diversidade. É por isso que ele é para o pensamento um processo de síntese, um resultado, e não um ponto de partida, apesar de ser um verdadeiro ponto de partida e portanto igualmente o ponto de partida da observação imediata e da representação” (MARX, Contribuição à Crítica da Economia Política, Martins Fontes, 1977, p. 218-219).

Assim, ao invés de realizar a “síntese” das “múltiplas determinações” da realidade que queremos “estudar”, aplica-se o “resultado” do “estudo” de uma outra totalidade, em outro momento histórico, e suas múltiplas determinações e, simplesmente “colam esta etiqueta e, então, crêem ter resolvido alguma coisa”. “A nossa concepção da história, porém, é, antes de tudo, uma directiva para o estudo…”.

Não existe outro caminho para a ciência da história a não ser o de “ [investigar em pormenor] as condições de existência das diversas formações sociais…, antes de se tentar deduzir a partir delas os modos de ver políticos, de direito privado, estéticos, filosóficos, religiosos, etc., que lhes correspondem” , colocar para trabalhar os conceitos do materialismo histórico nas condições de existência das diversas formações econômico sociais.

ALGUMAS QUESTÕES PARA DISCUTIR O MATERIALISMO HISTÓRICO

Os marxistas sabem, desde as páginas da Ideologia Alemã, que toda formação econômico-social para existir e subsistir precisa reproduzir as condições de sua existência.

Devemos lembrar a existência de um primeiro pressuposto de toda a existência humana e, de toda a história, a saber, que os homens devem estar em condições de poder viver a fim de «fazer história» … O primeiro fato histórico é pois a produção dos meios que permitem satisfazer essas necessidades, a produção da própria vida material; trata-se de um fato histórico, de uma condição fundamental de toda a história, que é necessário, tanto hoje como a milhares de anos, executar dia a dia, hora a hora … (MARX, A Ideologia Alemã, Presença, 1976, p. 33).

Assim, sabemos desde Marx e Engels que toda formação econômico-social necessita produzir as condições de sua existência e, necessariamente, ao mesmo tempo que produz, e para produzir, necessita reproduzir as condições de sua produção, “a produção dos meios que permitem satisfazer essas necessidades, a produção da própria vida material”, sem o que não poderia existir e se desenvolver uma semana sequer, como diz Marx à Kugelmann em carta de 11 de julho de 1868, “Qualquer criança sabe que um país que parou de trabalhar, não digo nem um ano, mas umas poucas semanas, morrerá” (MARX, O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann, 1974, Paz e Terra, p. 226), e alertam Marx e Engels na Ideologia Alemã: “Em qualquer concepção histórica é primeiro necessário observar este fato fundamental em toda a sua importância e extensão e colocá-lo no lugar que lhe compete” (MARX, A Ideologia Alemã, Presença, 1976, p. 33), colocá-lo no lugar que lhe corresponde na ciência da história. Daí porque até quase o fim de sua vida Engels não se cansa de reafirmar que “… Segundo a concepção materialista da história, o momento em ultima instância determinante [in letzter Instanz bestimmende], na história, é a produção e a reprodução da vida real.”, em carta a Jose Bloch, em 21 de setembro de 1890 (MARX e ENGELS, Obras Escolhidas em Três Tomos, Tomo III, Edições Avante, Lisboa, 1985, p. 547).

Começaremos por este ponto a tratar do materialismo histórico.

Para viver, os homens devem produzir os bens materiais que consomem e, para isto, ao mesmo tempo reproduzir as condições de produção destes bens. E para produzi-los e reproduzir as condições de sua produção, estabelecem relações com a natureza nas formas das relações de cooperação que estabelecerem entre si, relações de cooperação que são ao mesmo tempo relações de trabalho, necessidade natural e condição indispensável à produção e reprodução das condições de existência dos homens.

Relações com a natureza que não são relações entre homens isolados e a natureza, mas relações entre homens cooperando em formas determinadas de relações de trabalho; relações de produção que se dão ou entre homens cooperando em condições de igualdade dentro de grupos – no período do comunismo primitivo – ou através de relações entre classes, formas de cooperação que se estabelecem para produzir a partir do surgimento da divisão da sociedade em classes, relações de produção que dependem do tipo de relação de propriedade que se estabelece sobre os meios de produção.

Portanto, para produzir os bens materiais indispensáveis à existência material e à reprodução de uma determinada formação econômico-social, se estabelece uma forma de produzir, um conjunto de processos de trabalho cujo sistema constitui o processo de produção do modo de produção considerado, uma forma de produzir que é uma forma de trabalhar a natureza para dela extrair os bens necessários à reprodução de determinada formação social.

Assim, a produção é sempre, e em quaisquer condições, produção social, produção que se realiza através de processos de trabalho que se dão/se fazem, em relações de produção determinadas, em formações econômico-sociais determinadas. “Assim, sempre que falamos de produção, é à produção num estágio determinado do desenvolvimento social que nos referimos …” (MARX, Contribuição à Crítica da Economia Política, 1977, p. 202).

Aqui um parêntese, Marx nos mostra não só em O Capital, mas já em a Contribuição à Crítica da Economia Política a historicidade das categorias, analisando detidamente a categoria trabalho que parece à primeira vista e do ponto de vista idealista metafísico como uma categoria “universal”. Mostra Marx que mesmo as categorias mais abstratas são produto de condições históricas e só tem validade nelas:

Este exemplo do trabalho mostra com toda a evidência que até as categorias mais abstratas, ainda que válidas – precisamente por causa de sua natureza abstrata – para todas as épocas, não são menos, sob a forma determinada desta mesma abstração o produto de condições históricas e só se conservam plenamente válidas nestas e no quadro destas (MARX, Contribuição à Crítica da Economia Política, 1977, p. 223).

Mas, voltemos a nossa discussão sobre processo de trabalho. Processos de trabalho que são sucessões de ações sistematicamente reguladas efetuadas pelos agentes de produção que as exercem sobre objetos de trabalho determinados (matéria bruta, matéria-prima, animais domésticos, terra, etc.), utilizando para trabalhar instrumentos de trabalho também determinados (ferramentas das mais primitivas, passando pela terra, às máquinas, etc.) objetivando transformar os objetos de trabalho em produtos, valores de uso, ou objetos de consumo destinados a satisfazer as necessidades humanas diretas, ou em matérias-primas e instrumentos de trabalho, meios de produção que vão garantir a reprodução do processo de trabalho, do processo de produção.

Deste modo, poderíamos definir uma forma de produzir, um modo de produção, como um conjunto de processos de trabalho em, ou sob, determinadas relações de produção, cujo sistema – unidade contraditória – constitui o processo de produção de um modo de produção concreto, formas de trabalho em processos de produção determinados, em última instância, pelo estágio de desenvolvimento dos meios de produção existentes e, dentre eles, principalmente, dos instrumentos de trabalho.

Por conseguinte, um modo de produção constitui-se numa unidade contraditória e complexa, onde determinadas relações de produção põem em ação meios de produção e força de trabalho, forças produtivas ao mesmo tempo para produzir e reproduzir as condições de produção. Marx expõe o processo de reprodução ao discutir o processo de produção capitalista no livro terceiro de O Capital:

Vimos que o processo de produção capitalista é uma forma historicamente determinada do processo social de produção em geral. Este último é tanto processo de produção das condições materiais de existência da vida humana quanto processo que, ocorrendo em relações histórico-econômicas de produção específicas, produz e reproduz essas mesmas relações de produção e, com isso, os portadores desse processo, suas condições materiais de existência e suas relações recíprocas, isto é, sua forma sócio-econômica determinada. Pois a totalidade dessas relações, em que os portadores dessa produção se encontram com a Natureza e entre si, em que eles produzem, essa totalidade é exatamente a sociedade, considerada segundo sua estrutura econômica (MARX, O Capital, Abril Cultural, 1983, livro 3, t. 2, p. 272).

Marx mostra que o processo social de produção “… é tanto processo de produção das condições materiais de existência … quanto processo que … produz e reproduz” enquanto produz e reproduz as condições de existência “essas mesmas relações de produção e, com isso, os portadores desse processo, suas condições materiais de existência e suas relações recíprocas,”, quer dizer, as classes, as condições de sua existência, as condições de dominação e a luta de classes, “isto é, sua forma sócio-econômica determinada… a totalidade dessas relações …”, a reprodução de uma determinada unidade de forças produtivas e relações de produção, uma determinada formação econômico-social. Infra-estrutura e superestrutura como vai nos mostrar Marx.

Ora, o que são esses meios de produção, essa força de trabalho, essas forças produtivas, colocadas em ação em relações de produção determinadas no processo de produção?

As forças produtivas de um modo de produção constituem-se também em uma unidade contraditória que reúne em si os meios de produção à agentes de produção, meios de produção que, como já dissemos, se compõem de objetos de trabalho (matéria bruta, matéria-prima, terra, animais domésticos, etc.), que são trabalhados por instrumentos de trabalho (das ferramentas menos elaboradas às máquinas, etc.) de maneira que se transformem, ou em produtos próprios a satisfazerem as necessidades humanas diretas (alimentação, vestuário, moradia, etc.), ou em matérias primas e instrumentos de trabalho destinados a garantir a continuidade do processo de trabalho, do processo de produção; forças produtivas que são colocadas em ação, dentro de relações sociais de produção determinadas, pelos agentes de produção, pela força de trabalho, isto é, a capacidade do homem de dispêndio de energia em atividades físicas e intelectuais.

Marx designa a unidade objetos de trabalho + instrumentos de trabalho ou de produção através do conceito de meios de produção. E designa pelo conceito de força de trabalho, o conjunto de formas de dispêndio de energia humana por intermédio dos meios de produção existentes, nas formas concretas de cooperação existentes, ou, dizendo de outra forma, em relações sociais de produção determinadas.

Portanto, a unidade forças produtivas se expressa na equação que reúne a unidade meios de produção-força de trabalho, sob/em determinadas relações sociais de produção, constituindo uma nova unidade, e é preciso lembrar, unidade contraditória; o modo de produção. Ou dizendo de forma mais clara: processos de produção que se dão sob relações sociais de produção que são relações de classe, relações entre classes antagônicas, melhor dizendo, relações de luta de classes nas quais a classe dominante luta para, no processo de produção, manter sua dominação e explorar a classe dominada e a classe dominada luta por dar fim à exploração.

É novamente importante voltar a uma indicação preciosa nos deixada por Marx em O Capital. Já dissemos atrás, definindo modo de produção, que este compreende a unidade contraditória de formas de trabalho determinadas em processos de produção determinados, sob determinadas relações de produção, modo de produção determinado, em última instância, pelo estágio de desenvolvimento dos meios de produção existentes, e dentre eles, principalmente, os instrumentos de produção.

Como Marx vê esta determinação em última instância “de toda a construção social”, portanto, determinação de toda a formação social pelo estágio de desenvolvimento dos meios de produção existentes, principalmente, pelos instrumentos de produção, formação econômico-social que tem nas relações de produção seu “segredo mais íntimo, o fundamento oculto de toda a construção social e, por conseguinte, de forma política das relações de soberania e de dependência, em suma, de cada forma específica de Estado”?

É sempre na relação direta dos proprietários das condições de produção com os produtores diretos – relação da qual cada forma sempre corresponde naturalmente a determinada fase do desenvolvimento dos métodos de trabalho, e portanto a sua força produtiva social – que encontramos o segredo mais íntimo, o fundamento oculto de toda a construção social e, por conseguinte, de forma política das relações de soberania e de dependência, em suma, de cada forma específica de Estado (MARX, O Capital, Abril Cultural, 1983, livro 3, t. 2, p. 251).

Como diz Marx, são nas relações de produção – “relação direta dos proprietários das condições de produção com os produtores diretos”, relações das quais, “cada forma sempre corresponde naturalmente a determinada fase do desenvolvimento dos métodos de trabalho, e portanto a sua força produtiva social”, isto é, são determinadas por eles – “que encontramos o segredo mais íntimo, o fundamento oculto de toda a construção social”. Unidade dialética, compreensão sem a qual nada podemos afirmar do marxismo.

É importante ressaltar, neste momento, que em um modo de produção concreto coexistem várias relações de produção, formas de produção, e seus correspondentes instrumentos de trabalho, subsumidos, compreendidos, no modo de produção dominante.

Contudo, introduziremos esta questão mais adiante.

Num modo de produção dado, as forças produtivas relacionam-se em determinadas relações de produção, relações de classes antagônicas, relações de luta de classes – e cremos que é importante enunciar assim para expressar a unidade contraditória contida no conceito de modo de produção: a unidade forças produtivas/relações de produção não é uma adição. A unidade não é uma soma de partes, mas sim um tecido de relações objetivas que transcende a particularidade de cada uma de suas partes, constituindo uma totalidade unificada.

É necessário que não se conceba a totalidade nem como uma adição de partes nem como absolutamente distinta de suas partes constitutivas, mas que se entenda que a totalidade se define pelas relações específicas que se estabelecem entre as contradições, fundamental, principal, secundárias, que a constituem, que constituem a totalidade.

Esta concepção de totalidade é importante porque, de um lado, é a totalidade que possibilita a determinação específica de uma contradição particular e, de outro, são as relações específicas que se estabelecem entre suas contradições que determinam a totalidade concreta.

De um lado, é a totalidade representada por uma formação sócio-econômica, a realidade concreta, que possibilita a determinação específica de cada uma de suas contradições, enquanto são as relações específicas que se estabelecem entre suas contradições intrínsecas que permite a determinação da realidade concreta expressa na formação econômico-social, na totalidade.

Por exemplo, a contradição entre capital e trabalho, que é uma das contradições próprias ao sistema capitalista, sua contradição fundamental, se determina especificamente no Brasil na especificidade das relações que se estabelecem, a cada situação concreta, no conjunto de contradições que compõem esta formação econômico-social, esta totalidade econômico-social concreta historicamente determinada.

Nesta situação concreta a classe dominante brasileira, burguesia brasileira, detentora do capital, vai apresentar diante do sistema econômico mundial do imperialismo uma posição que não é exatamente a mesma da burguesia norte-americana; da mesma forma que o operariado brasileiro vai apresentar um comportamento próprio que o individualiza entre o operariado internacional, não obstante a que a contradição entre o capital e o trabalho exista tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos.

Julgar que a análise concreta das particularidades que constituem cada situação concreta, é um fato de menor importância, que pouco acrescenta à compreensão concreta da realidade, não só é um desvio teórico, como, na realidade, encaminha a análise para a elucubração metafísica ao retirar da teoria a análise da situação concreta, fonte de sua vida, restando como teoria um esquema formal, vazio, sem significação objetiva.

É importante aqui lembrar Marx quando criticava a estultice daqueles que, presos a esquemas formais, estabelecem modelos, aplicando-os a situações concretas distintas.

Mas todas as épocas da produção têm certas características comuns, certas determinações comuns… No entanto, este caráter geral ou estes traços comuns, que a comparação permite estabelecer, formam por seu lado um conjunto muito complexo cujos elementos divergem para revestir diferentes determinações. Algumas destas características pertencem a todas as épocas, outras apenas comuns a umas poucas. [Algumas] destas determinações revelar-se-ão comuns tanto à época mais recente como à mais antiga. Sem elas, não é possível conceber qualquer espécie de produção… do mesmo modo, é importante distinguir as determinações que valem para a produção em geral, a fim de que a unidade – que se infere já do fato de o sujeito, a humanidade, e o objeto, a natureza serem idênticos – não nos faça esquecer a diferença essencial. Este esquecimento é o responsável por toda a sapiência dos economistas modernos que pretendem provar a eternidade e a harmonia das relações sociais atualmente existentes (MARX, Contribuição à Crítica da Economia Política, 1977, Martins Fontes, p. 203).

Mas, voltemos à reprodução das condições de produção.

É só através das relações de produção que estabelecem entre si, que os homens se relacionam, por meio de instrumentos de produção, com a natureza, e que se realiza a produção. Marx e Lenin nos mostraram que a utilização das forças produtivas (meios de produção-força de trabalho) seria ininteligível, se não se compreendesse que ela só se efetua sob determinadas relações de produção. Essas relações de produção podem ser de dois tipos: as que se dão em formações sociais onde todos os seus membros gozam de uma mesma condição; são agentes da produção; ou em formações sociais onde existe uma divisão entre seus membros; uns, agentes da produção e outros não agentes da produção, que, entretanto, intervêm na produção pelo fato de que detém o domínio, a propriedade, dos meios de produção: as formações sociais de classes. Portanto, relações de classe, relações através das quais uma classe explora a outra.

Ou, dizendo de outra forma, formações econômico-sociais de classe, como a formação social capitalista, onde não agentes da produção detêm o domínio dos meios de produção e, a partir desta posição na produção, se apropriam sem contrapartida de uma parte do produto do trabalho dos agentes da produção, a mais-valia, isto é, apropriam-se do produto do trabalho destes agentes realizando-o, do que – de sua realização – cedem uma parte aos agentes da produção, para que possam se reproduzir enquanto agentes da produção, e ficam com a outra parte para si mesmos, utilizando uma parcela da parte da qual se apropriam para seu consumo e a outra para reproduzir os meios de produção de que necessitam para continuar produzindo.

Como se depreende desta formulação, no modo de produção capitalista as relações de produção capitalistas são ao mesmo tempo relações de exploração capitalistas, unidade que se expressa de forma completa neste modo de produção.

Explicando melhor. Se o que afirmamos é verdadeiro para todas as formações sociais de classe, nas formações sociais capitalistas assume uma forma característica: é que o modo de produção capitalista produz, como todos os outros, objetos de utilidade social consumidos individualmente, coletivamente ou produtivamente, o que é verdadeiro para todo modo de produção, só que, no modo de produção capitalista são produzidos em relações de produção que são, ao mesmo tempo, relações de exploração.

A produção só pode se efetuar concretamente quando meios de produção: objeto de trabalho e instrumento de trabalho, são colocados para trabalhar, no processo de produção, pela força de trabalho. Meios de produção e força de trabalho que só são meios de produção e força de trabalho dentro de relações de produção determinadas, que são, no mesmo processo, relações de exploração determinadas. Justamente, essa relação dos meios de produção com a força de trabalho que torna efetiva a produção material, se dá no regime capitalista unicamente segundo essas relações: de um lado, a propriedade dos meios de produção e, por outro, de não propriedade dos meios de produção pelos agentes da produção, o que permite aos que tem a propriedade dos meios de produção se apossem, sem contrapartida, do valor produzido pela força de trabalho. O que tornam as relações de produção capitalistas ao mesmo tempo relações de exploração.

Podemos verificar, analisando as questões centrais do modo de produção capitalista, que, de forma diferente dos modos de produção anteriores, este não tem como objetivo principal a produção de objetos de utilidade social para lograr com eles lucro na esfera da circulação. O modo de produção capitalista tem como objetivo principal a produção da mais-valia, a produção do próprio capital na produção.

E esta é uma característica central do modo de produção capitalista na qual devemos deter nossa atenção.

Podemos dizer, buscando uma formulação rigorosa, que o modo de produção capitalista é a produção necessariamente crescente, ampliada, da mais-valia, do capital, por meio da produção dos objetos de utilidade social, de mercadorias, e, portanto e necessariamente, da exploração crescente, “ampliada”, da força de trabalho, por meio da produção. Modo de produção onde as relações de exploração subordinam, necessariamente, as relações de produção.

Nunca é demais repetir a importância de chamar a atenção para esta característica do modo de produção capitalista revelada por Marx: o modo capitalista de produção é um sistema no qual a produção está subordinada à exploração. Desta forma podemos dizer que tudo numa formação social capitalista, sua superestrutura, está determinada pela base material das relações de produção capitalistas que são ao mesmo tempo relações de exploração capitalista, isto é, um sistema de exploração no qual a produção ampliada do capital, à reprodução ampliada do capital, e portanto a superestrutura que lhe corresponde está subordinada à exploração.

Anteriormente tivemos a oportunidade de dizer que toda forma de produção é uma totalidade na qual se dá a unidade de um conjunto de relações de produção sob a dominação de relações de produção dominantes e características do modo de produção dominante, relações de produção e formas de trabalho, conjunto de relações de produção que exigem agentes da produção qualificados para executar operações definidas, em uma ordem definida, a partir de formas de trabalho definidas. Uma “divisão técnica” do trabalho definida a cada situação concreta de um modo de produção concreto.

Marx nos mostra, e a luta de classes comprova contra toda evidência, que a divisão, organização e direção técnicas do trabalho resultam de uma impostura ideológica e de que todas as formas de divisão e organização técnicas do trabalho são resultado, direto e indireto, das relações de produção dominantes e, portanto, das relações de exploração, e, consequentemente que, toda divisão técnica do trabalho é, no concreto, uma divisão do trabalho determinada pela divisão de classes. Aqui precisamos fazer um esclarecimento: seguindo a indicação de outros marxistas propomos utilizar o conceito de divisão social do trabalho em um sentido diferente daquele empregado por Marx.

Marx emprega em O Capital a expressão “divisão social do trabalho” para designar a divisão do trabalho entre os diferentes ramos da produção social: indústria e agricultura e, em seguida, diferentes ramos da indústria. Propomos usar para isto a expressão “divisão do trabalho social” e deixar a expressão “divisão social do trabalho” para expressar o efeito das relações de produção/relações de classe/relações de exploração, no interior do processo de produção capitalista. E é neste sentido que vimos utilizando o conceito de divisão social do trabalho.

Marx e a tradição marxista nos dizem que são as relações de produção que determinam a divisão e a organização técnica do trabalho e que, no modo de produção capitalista, são as relações de produção/relações de exploração capitalista que determinam, sob formas específicas, as relações técnicas da divisão da organização do trabalho. O que quer dizer que as relações de produção/relações de exploração capitalista não determinam somente a extração da mais-valia, mas que as relações de produção/relações de exploração exercem outros efeitos específicos na produção, pela divisão social do trabalho.

Porém, toda a forma de produção se faz pela co-existência de vários processos de trabalho e, consequentemente, pela distribuição da força de trabalho entre os diversos postos de trabalho nos vários processos de trabalho necessários à realização, coordenação e direção do processo de produção; divisão definida, em última instância, pela unidade objetos de trabalho/instrumentos de trabalho.

E como se dá no capitalismo essa divisão da força de trabalho pelos diferentes postos de trabalho? Aparentemente, a divisão da força de trabalho pelos diferentes postos de trabalho necessários ao processo de produção se dá em função da correspondente habilitação dos agentes do trabalho que os ocupam. Essa resposta, debaixo de sua “evidência técnica” tem a função de encobrir a realidade, na sociedade capitalista os postos de trabalho, o lugar que cada um ocupa na produção, são distribuídos em razão de uma divisão de classes implacável e intransponível, insuperável.

Esta linha insuperável, traçada pela divisão de classes que demarca, distribui a força de trabalho pelos postos de trabalho, em um posto de trabalho e não noutro – é encoberta por outra linha de demarcação que a justifica no mesmo processo que a esconde: a divisão pelos postos de trabalho a partir da capacitação técnica.

Isto é, da divisão baseada em que uns possuem o monopólio de determinada qualificação e outros são, não só impedidos de ter acesso, objetivamente, a essa qualificação, como são segregados, encaminhados para outras qualificações. Assim, a divisão pelos postos de trabalho não resulta de um processo que se dá dentro da fabrica, empresa – consequência de uma divisão técnica do trabalho, resultado da unidade técnica entre instrumentos de trabalho e objetos de trabalho – mas de um processo exterior a ela, processo que faz corpo com a divisão de classes e o processo de produção que esta implica.

O que queremos mostrar é que, no capitalismo, diferente do escravismo e de outros modos de produção, estas capacidades, isto é, a qualificação da força de trabalho não é da responsabilidade da fábrica, da empresa – usamos o termo empresa de forma abrangente para referir as diversas organizações, das quais a principal é a fabrica, privadas ou estatais que, no capitalismo, produzem ou participam da produção de bens e serviços, com vista, à obtenção de lucros – mas de um sistema exterior a ela, o sistema escolar que qualifica de forma diferente a força de trabalho em razão de seu meio de origem, através de mecanismos que reduplicam os obstáculos práticos, econômicos e ideológicos que distribuem antecipadamente, a partir de uma base de classe, os indivíduos pelos diversos postos de trabalho na produção. Sistema exterior à empresa, sistema escolar capitalista que já predispõe a força de trabalho para a distribuição que irá se efetuar na empresa pelos diversos postos de trabalho, e que não pode ser nenhum outro visto que corresponde ao sistema de exploração capitalista e não pode ser diverso do que é.

Assim, a divisão do trabalho, já apontada por Marx, entre o trabalho braçal e trabalho intelectual, revela a divisão de classe real que determina/estabelece o lugar, designa o local, que cada agente da produção vai ocupar dentro do processo de trabalho, no processo de produção.

Tendo em vista que as relações capitalistas de produção são, ao mesmo tempo, relações da exploração capitalistas e que estas relações expressam-se, reduplicando os efeitos da luta de classes que reina no interior do processo de produção, resulta a dominação da divisão social do trabalho, divisão que é efeito da divisão de classes, sobre uma falsa divisão puramente técnica do trabalho.

É evidente que as relações de produção capitalistas funcionam para determinar o lugar de cada agente na produção, porque além do proletariado não possuir meios de produção, e é por isso, obrigado a vender sua força de trabalho, passando a apêndice da máquina, ele, também, pensa na/pensa a, ideologia dominante, ideologia que diz que o trabalho é pago segundo o seu valor e que, portanto, deve o operário respeitar o contrato que fez ao vender sua força de trabalho, e junto com isto, deve também respeitar o conjunto de regras impostas pela fabrica, pela empresa, pelo “mundo do trabalho”, já que é da natureza técnica do processo de trabalho a existência de postos de trabalhos diferentes, ocupados por indivíduos de qualificação diferente, qualificação a que ele não teve acesso por condições “naturais” suas e da “sociedade”.

Neste ponto é importante nos deter em uma questão que, infelizmente não podemos desenvolver: primeiro, as relações de produção capitalistas não são relações determinadas por razões puramente técnicas, mas são, ao mesmo tempo e, principalmente, relações da exploração capitalista; segundo, as relações de produção capitalistas, relações de classes, relações de exploração entre classes antagônicas, são apresentadas como relações “naturais”, expressas como relações jurídicas “naturais”.

Diferente do escravismo e do feudalismo, o modo de produção capitalista não assegura à classe dominante a apropriação do excedente exercendo sua dominação sobre o trabalho e o consumo dos trabalhadores desde o exterior, fora do processo de produção imediato, como, por exemplo, a apropriação do produto do trabalho pelo dono do escravo no escravismo, ou o tributo pago pelo servo no feudalismo. No capitalismo, a apropriação do excedente se dá no processo de produção imediato com a incorporação da força de trabalho enquanto mercadoria no processo de produção.

No capitalismo, a força de trabalho é consumida no processo de produção sob a forma capitalista; melhor dizendo, a força de trabalho é consumida no processo de trabalho no qual se dá o consumo produtivo material dos meios de produção já capitalizados. Assim, podemos identificar no valor das mercadorias produzidas pelo capital três frações: a que corresponde ao valor dos meios de produção consumidos; a que corresponde ao valor da reposição da força de trabalho consumida; e, por fim, a fração que representa um excedente, resultado do consumo produtivo dos meios de produção materiais pela força de trabalho, no processo de trabalho/processo de produção, que excede o valor necessário para repor a força de trabalho.

Portanto, esse novo valor que provém do fato de que a força de trabalho foi gasta de forma capitalista, quer dizer, no consumo produtivo dos meios de produção materiais aparece como resultado natural do processo de produção, como consequência da organização capitalista do processo de produção e das relações capitalistas de produção.

Enquanto no escravismo, o proprietário do escravo se apropria do produto e, portanto, do excedente porque é dono do escravo, ou no feudalismo, o senhor se apropria do excedente através da cobrança do tributo ao servo, cobrança de tributo sobre uma produção que nem de longe participa, no capitalismo a produção do excedente se dá no seio do processo de produção, no processo que faz do trabalho excedente, da necessidade de produzir o trabalho excedente máximo, a mais-valia máxima, a condição do trabalho em geral e, portanto, da tendência à superexploração uma característica central do capitalismo na unidade processo de produção/processo de exploração.

O processo de produção capitalista é sempre e necessariamente o processo no qual se tende a limitar ao máximo a parte do trabalho necessário e a se estender ao máximo a parte do trabalho excedente.

O que nos permite afirmar que o processo de produção capitalista é, ao mesmo tempo, o processo de exploração capitalista, e que o processo de produção capitalista tende sempre e permanentemente à superexploração.

Assim, a produção da mais-valia é sempre o resultado da luta de classes onde a classe dominante busca organizar o processo de produção sempre de forma a produzir a mais-valia máxima em cada situação específica e a classe operária luta para resistir a este processo.

Deste modo, a mais-valia não é uma forma de exploração capitalista dentre outras; é a forma de produção e de exploração capitalista em um mesmo processo, na unidade contraditória de um mesmo processo, é a luta de classes no processo de produção.

Está assim clara a constatação de Marx, por onde começamos este trabalho, a de que a condição última da produção é a reprodução das condições da produção: reproduzir as forças produtivas e as relações de produção existentes. Nenhuma formação social conseguiria sobreviver se não fosse capaz de reproduzir as condições da produção ao mesmo tempo que produz, e é por aí que devemos analisar cada formação econômico-social concreta, cada situação concreta.

Ou, dizendo de outra forma, ao reproduzir as condições de produção cada formação econômico-social, reproduz necessariamente as forças produtivas e as relações de produção; portanto, reproduz a força de trabalho enquanto força de trabalho qualificada, tecnicamente e ideologicamente, para as condições de produção específicas a cada formação social concreta.

Não é difícil perceber como se dá a reprodução dos meios de produção – instrumento de produção e objetos de trabalho – entre as forças produtivas, condição básica para a reprodução de uma formação social.

O que importa agora é discutir como se dá a reprodução da força de trabalho.

De forma diferente do processo de reprodução dos meios de produção, a reprodução da força de trabalho, no capitalismo, se passa, no fundamental, fora da empresa, através do salário, meio material de reproduzir a força de trabalho, valor necessário à reposição da força do trabalho do operário e que lhe permite estar em condições de trabalhar no dia seguinte, diferente do escravismo ou da servidão no feudalismo, onde a reposição do necessário a reprodução da força de trabalho se dá pela aplicação de uma sua fração a produção dos meios necessários a sua reprodução.

E este é o exemplo da impossibilidade de transpor a análise de uma situação concreta para outra e a necessidade do estudo das condições históricas singulares e, por isso mesmo, necessárias, que regem a constituição das formações econômico-sociais concretas, isto é, as relações sociais que constituem a estrutura das formações sociais determinadas.

Toda a obra de Marx é um exemplo da análise concreta e todos os marxistas insistem nesta questão central do marxismo, “a análise concreta da situação concreta”, como pede Lenin. Marx nos alerta contra qualquer generalização, mesmo que formações econômicas sociais tenham “a mesma base econômica”, o modo de produção capitalista, por exemplo, se geram formações econômico-sociais distintas o que requer sua análise concreta.

Isso não impede que a mesma base econômica – a mesma quanto às condições principais – possa devido a inúmeras circunstâncias empíricas distintas, condições naturais, relações raciais, influências históricas externas, etc. exibir infinitas variações e graduações em sua manifestação, que só podem ser entendidas mediante análise dessas circunstâncias empiricamente dadas (MARX, O Capital, Abril Cultural, 1983, livro 3, t. 2, p. 251-2).

Por exemplo, nas relações de trabalho escravistas estabelecidas na colonização do Brasil, os donos de engenho tendiam a adquirir os meios necessários para reproduzir a força de trabalho escrava fora do engenho, isto é, preferiam adquiri-los fora do engenho a deixar que os escravos mesmo os produzissem, como resultado de uma forma específica de produção que, sob relações de trabalho escravistas, produzia mercadoria para o mercado externo, europeu, o que implicava que, para maximizar o excedente, se tendesse a não despender forças produtivas para garantir a reprodução da força de trabalho, nem a consumir força de trabalho nem meios de produção, neste caso a terra, para garantir a reprodução da força de trabalho.

Contudo, para reproduzir a força de trabalho no capitalismo como força de trabalho não é suficiente o salário, o meio material capaz de garantir sua reprodução, não basta garantir à força de trabalho as condições materiais de sua reprodução. Para que a força de trabalho se reproduza, enquanto força de trabalho, para uma dada forma de produção, esta deve ser dotada de uma competência, de uma habilitação, ou seja, estar apta a ser utilizada no sistema complexo do processo de produção, nos postos de trabalho e nas relações de produção correspondentes.

O desenvolvimento das forças produtivas e o tipo de unidade historicamente constituído das forças produtivas em determinado momento exigem que a força de trabalho deva ser habilitada e diferentemente habilitada e, portanto, reproduzida como tal. Diversamente habilitada para atender as exigências da divisão social-técnica do trabalho, em seus diferentes “postos” e “empregos” e meios de produção.

Assim, a reprodução da qualificação da força de trabalho, no regime capitalista, ao contrário do que ocorria nas formações sociais anteriores, escravistas e servis, tende, porque se trata de uma tendência no capitalismo, a dar-se não mais pela aprendizagem na própria produção, no local de trabalho, porém, cada vez mais, fora da produção, através do sistema escolar capitalista e de suas outras instâncias e instituições, segundo as exigências diversas colocadas pela divisão social-técnica do trabalho.

Qualificação diversificada e específica da força de trabalho, específica porque atende a uma relação – unidade – específica das forças produtivas, unidade constituída historicamente dentro de uma divisão social-técnica do trabalho, nas/e sob relações de produção também historicamente definidas, isto é, relações de classes antagônicas, relações de luta de classes.

Qualificação específica que se faz através da aprendizagem na escola de habilidades diversas que designam o lugar, fazem a locação diversificada da força de trabalho no processo da produção de acordo com esta habilitação, qualificação que não é só técnica – profissional, igualmente ideológica, já que aprende-se, ao mesmo tempo e junto com essas técnicas e esses conhecimentos que funcionam como a aprendizagem de determinadas habilidades, as regras de boas maneiras, de convivência no mundo do trabalho que todo agente do trabalho deve observar, segundo o lugar que lhe é destinado na produção e fora dele. Dizendo de forma clara, regras de conduta e respeito, à divisão social – técnica do trabalho e, no final das contas, regras de respeito a ordem estabelecida pela dominação de classe.

Ou melhor, em uma formulação ainda mais precisa e mais clara, diremos que a reprodução da força de trabalho exige não só a reprodução de sua habilitação, mas, ao mesmo tempo, a reprodução de sua submissão às regras da ordem estabelecida, isto é: de parte dos operários, a reprodução de sua submissão à ideologia dominante; e por parte dos agentes da exploração e da repressão, a reprodução de sua capacidade para manipular bem a ideologia dominante a fim de que garantam ‘pela palavra’ ou pela repressão a dominação de classe.

Explicitando, a reprodução da qualificação da força de trabalho é garantida nas formas e sob as formas da sujeição ideológica, sujeição que é mais que mero respeito ou obediência, porém a aceitação como natural e verdadeira da ideologia dominante.

O que queremos reter, demonstrar aqui, é que no capitalismo, num determinado estágio do desenvolvimento das forças produtivas e do tipo de unidade historicamente constitutiva das forças produtivas e sob relações de produção determinadas – unidade diferente em suas determinações em cada formação social, e ainda diferentes em países imperialistas ou formações sociais dominadas – a reprodução da força de trabalho, enquanto força de trabalho, nestas condições e para estas condições, tem a tendência de se dar cada vez mais fora da produção, pelo salário e pela escola – ensino básico e médio, escolas técnicas, profissionais, etc. – que reproduz sua qualificação tanto enquanto reproduz a habilitação técnica, tanto enquanto reproduz esta habilitação técnica nas formas e sob as formas da sujeição ideológica à ideologia dominante.

É necessário explicar o que entendemos por esta habilitação da força de trabalho, característica a cada formação social, diferente para dominantes e dominados, e ainda, específica à inserção específica de cada país dominado na economia mundial, habilitação que pode não ultrapassar a aprendizagem de técnicas simples, saber ler, escrever, contar, situar-se em uma cronologia, identificar objetos, realidades, etc. e, ou, elementos relativamente aprofundados de conhecimento científico, resultados científicos, métodos de raciocínio e de demonstração, essencialmente, se desenvolver em técnicas de manipulação e utilização de certos métodos e resultados científicos para resolver problemas e executar trabalhos práticos completamente desligados do conhecimento das ciências.

Para nós é importante ressaltar esta questão porque subsidiará o desenrolar do nosso trabalho quando formos colocar a teoria para trabalhar sobre a formação social brasileira, colônia e depois semicolônia, país dependente e dominado sob o imperialismo, e suas contradições específicas, formação social concreta, num dado nível de desenvolvimento das forças produtivas e, consequentemente, num tipo de unidade das forças produtivas em relações de produção historicamente constituídas, num largo período de transição de colônia ao capitalismo.

Sabemos, com as indicações que nos dá Marx, de que nas formações sociais escravistas e servis a habilitação técnica da força se dá no decorrer do processo de produção, nas formas e sob as formas da sujeição ideológica à ideologia dominante. Sujeição que tem no Aparelho religioso seu instrumento dominante, sujeição à ideologia dominante resolvida na e pela Igreja.

Portanto, o problema que se coloca à análise da situação concreta da formação social brasileira a partir da colonização é a necessidade de analisar uma formação social concreta, historicamente constituída e, não impor-lhe modelos universais-formais como modelos explicativos, portanto, analisar as condições históricas singulares nas quais se formou, num dado nível de desenvolvimento de forças produtivas que lhe corresponde e, consequentemente, um tipo específico de unidade dessas forças produtivas, correspondendo a determinadas relações de produção, também específicas, que determinam, em última instância, uma superestrutura também específica a unidade forças produtivas – relações de produção, seu desenvolvimento e as condições históricas singulares nos quais se deu. Isto é, numa formação social concreta – num dado nível de desenvolvimento de forças produtivas e num tipo específico de unidade dessas forças produtivas, correspondendo a determinadas relações de produção, portanto uma infraestrutura específica, corresponde uma superestrutura, quer dizer, uma superestrutura específica a esta infraestrutura, nos limites desta infraestrutura que é por sua vez determinada por ela, pela sua superestrutura.

Portanto, no caso da formação social colonial brasileira, formação social constituída sobre o trabalho escravo com o fim de produzir bens a serem realizados no mercado externo, a partir da agroindústria canavieira, necessita para se reproduzir de uma forma singular/específica de sujeição da força de trabalho que implica em uma forma específica de divisão de classes, de repressão, de autoritarismo, de obscurantismo, correspondente a uma forma específica de superestrutura, forma específica de unidade infraestrutura superestrutura.

Portanto, uma forma específica de obscurantismo, de autoritarismo, de elevados níveis de repressão, uma separação de classes radical, passa a ser política “natural” do governo colonial, forma específica de funcionamento da superestrutura que dispensava a educação ou qualquer forma de esclarecimento da classe dominada, da massa escrava, ou mesmo mestiça e branca pobre, esclarecimento que se constituiria numa irrealidade, deslocada na formação social colonial brasileira assentada em relações de produção escravistas.

Assim, as relações de produção escravistas cobravam formas específicas de dominação, formas específicas de autoritarismo, repressão, divisão de classes, formas ideológicas específicas, que implicavam na prática de políticas com o objetivo de impedir o esclarecimento da classe dominada, de reprovar ou de se opor a seu esclarecimento por considerá-lo um perigo para a sociedade. Constituir uma sociedade ignorante.

Por quase 300 anos, até a fuga da família real para o Brasil, não tem lugar, na colônia, para a imprensa, a circulação de jornais e livros é escassa, mesmo entre a classe dominante, e a escola seria um corpo estranho nesta formação determinada por sua contradição principal; a contradição que opõem os senhores colonizadores aos escravos, na unidade da totalidade das contradições que a compõem: a contradição principal que estrutura a formação social colonial brasileira e que determina a existência e o desenvolvimento das demais contradições. Repetindo o que já assinalamos:

No processo, complexo, de desenvolvimento de um fenômeno, existe toda uma série de contradições; uma delas é necessariamente a contradição principal, cuja existência e desenvolvimento determinam a existência e o desenvolvimento das demais contradições ou agem sobre elas (MAO TSÉ-TUNG, 1969, Obras Escolhidas, v. 1, p. 559).

Podemos dizer que no processo complexo do desenvolvimento de uma formação social concreta é a contradição principal, “cuja existência e desenvolvimento” determina “existência e o desenvolvimento das demais contradições ou agem sobre elas” (MAO TSÉ-TUNG, 1969, v. 1, p. 559).

Seja em que caso for não cabe qualquer dúvida que em cada uma das etapas do desenvolvimento do processo apenas existe uma contradição principal que desempenhe o papel diretor. Assim, pois, se um processo comporta várias contradições, existe necessariamente uma delas que é a principal e desempenha o papel diretor, determinante, enquanto que as outras ocupam apenas uma posição secundária, subordinada (MAO TSÉ-TUNG, 1969, v. 1, p. 561).

E mais, a contradição principal, que determina o caráter do desenvolvimento de uma formação social concreta nas condições de determinação recíproca entre o conjunto de contradições que compõem sua unidade, é interna e, mais ainda, é uma contradição antagônica. E as contradições externas vão determinar o desenvolvimento desta formação social nas formas e limites determinados por suas contradições internas.

Nossa afirmação tem dois aspectos, quando aplicada no caso concreto e específico da formação colonial brasileira.

Se a reprodução da formação social brasileira constituída com a colonização e que mantém, no fundamental, suas características até os fins do século XIX, tem como um de seus requisitos o obscurantismo, o autoritarismo, formas específicas de divisão – separação – de classes e repressão, na reprodução do submetimento das classes dominadas à classe e à ideologia dominante, diferentemente de outras formações sociais escravistas ou feudais, tem a necessidade de qualificar de forma específica a classe dominante colonial, isto é, a fração da classe dominante que estava na colônia, tem de qualificá-la fora da colônia em formas de ideologia, poderíamos dizer, alheias e desligadas da colônia.

E vamos avançar aqui uma tese.

Quando dizemos que a colonização, a formação social historicamente constituída aqui – no momento e parte do processo de transição de um conjunto de países da Europa para o capitalismo e, portanto, em um dado nível de desenvolvimento de forças produtivas que lhe corresponde e um tipo específico de unidade dessas forças produtivas, correspondendo a relações de produção escravistas – faz-se em razão da necessidade de acumulação de capital mercantil nas mãos da burguesia mercantil européia, em função das exigências estabelecidas pela produção e reprodução do processo de transição para o capitalismo, representado pelo mercantilismo, processo historicamente determinado, queremos dizer que a formação social colonial brasileira se conforma com elementos de formas de produção não-capitalistas que, aqui, assumem feições próprias, isto é, que se compõem de forma específica, não característica das formações sociais onde originalmente apareceram: escravismo e mercantilismo, se compõem para atender as necessidades de uma nova formação social, constituída em razão das exigências concretas do processo de transição para o capitalismo.

Ou dizendo de outra forma: a formação social constituída concretamente com a colonização sobre um dado nível de desenvolvimento de forças produtivas e um tipo específico de unidade dessas forças produtivas, conforma-se, não como a justaposição de elementos de formas de produção escravistas e mercantilistas, porém, por um processo de combinação onde essas formas combinadas e modificadas assumem feições próprias, isto é, se compõem numa unidade específica, numa formação social específica, para atender as necessidades históricas de constituição de um mundo colonial constituído em razão das exigências concretas do processo da transição para o capitalismo nos países desenvolvidos da Europa.

Na formação social escravista, na formação social colonial que se constituiu no Brasil, assentada no trabalho escravo, na força de trabalho escravo, no desterro e escravização do negro africano, praticando uma forma de produção de baixa tecnologia e incipiente divisão do trabalho, não exigindo a qualificação técnica da força de trabalho, a diversificação da qualificação da força de trabalho segundo as exigências da divisão social-técnica do trabalho, em seus diferentes “postos” e “empregos”, muito pelo contrário, não só a forma de produção implicava que a qualificação da força de trabalho, de cada trabalhador, a capacitação para exercer as diversas funções que a empresa agroexportadora açucareira requeria se desse na própria produção, como também a qualificação da força de trabalho, mesmo nas mais rudimentares habilidades, não tinha lugar, nem para ser pensada, daí a forma e o nível específico de repressão, obscurantismo, autoritarismo, separação de classes, que o submetimento da classe dominada vai exigir.

Da mesma forma vai se colocar a formação de uma classe dominante, da fração da classe dominante colonial que se mantinha no Brasil, problema da formação-qualificação da classe dominante, se assim podemos dizer, formação qualificação ideológico-prática. O problema da formação ideológico-prática específica, apropriada à classe dominante para administrar a colônia que se inseria no processo de expansão do capital mercantil, produzindo para o mercado mundial que se ia formando, parte da divisão mundial do trabalho que se ia constituindo.

Durante o período colonial, o problema da formação de uma classe dominante foi resolvido em Coimbra, que se conformou a este papel. Com a vinda da Corte para o Brasil, o que representou na prática a formação de um Estado nacional, e, mais tarde, com a “independência”, com a constituição da superestrutura para um Estado nacional, a necessidade de continuar a formação de quadros para a dominação, e a impossibilidade de prosseguir fazendo isto em Portugal, coloca a necessidade de formá-los no Brasil, daí a necessidade de instalar o ensino superior no Brasil, à moda de Coimbra, como já dissemos em formas de ideologia alheias e desligadas da colônia, porém nas condições do Brasil. Daí a preocupação com a formação das “elites” e o não lugar para o ensino básico, para a qualificação das classes dominadas.

Retomemos o fio de nossa discussão.

A estrutura de toda a formação social se constitui de níveis ou instâncias articulados/relacionados de forma específica por uma determinação específica. Estrutura que se compõe da unidade infraestrutura e superestrutura: infraestrutura, unidade das forças produtivas e relações de produção, e a superestrutura, com as instâncias jurídico-política (o direito e o Estado) e a ideológica.

A tópica marxista da infraestrutura e da superestrutura indica as relações que se estabelecem numa totalidade social: a superestrutura determinada, em última instância, pela eficácia da infraestrutura, e a autonomia relativa da superestrutura com relação a infraestrutura e sua ação de retorno sobre a infraestrutura.

Engels, defendendo a si e a Marx da acusação de ser “mecanicista”, nos deixou importantes indicações sobre as relações infraestrutura e superestrutura.

… Segundo a concepção materialista da história, o momento em última instância determinante [in letzter Instanz bestimmende], na história, é a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx nem eu alguma vez afirmamos mais. Se agora alguém torce isso [afirmando] que o momento econômico é o único determinante, transforma aquela proposição numa frase que não diz nada, abstrata, absurda. A situação [Lage] econômica é a base [Basis], mas os diversos momentos da superestrutura [Überbau] – formas políticas da luta de classes e seus resultados: constituições estabelecidas pela classe vitoriosa uma vez ganha a batalha, etc., formas jurídicas, e mesmo reflexos [Reflexe] de todas estas lutas reais nos cérebros dos participantes, teorias políticas, jurídicas, filosóficas, visões [Anschauungen] religiosas e o seu ulterior desenvolvimento em sistemas de dogmas – exercem também a sua influência [Einwirkung] sobre o curso das lutas históricas e determinam em muitos casos preponderantemente [vorwiegend] a forma delas. Há uma ação recíproca [Wechselwirkung] de todos estes momentos, em que, finalmente, através de todo o conjunto infinito de casualidades (isto é, de coisas e eventos cuja conexão interna é entre eles tão remota ou é tão indemonstrável que nós a podemos considerar como não-existente, a podemos negligenciar), o movimento econômico vem ao de cima como necessário. Senão, a aplicação da teoria a um qualquer período da história seria mais fácil do que a resolução de uma simples equação do primeiro grau. (MARX e ENGELS, Obras Escolhidas em Três Tomos, Tomo III, Edições Avante, Lisboa, 1985, p. 547).

É importante apresentar este longo texto de Engels já que nos permite ver que é esta determinação, em última instância, da totalidade social, de sua unidade e da articulação de suas contradições pela infraestrutura que define que, só a partir do ponto de vista da reprodução, é possível pensar a existência e a natureza da superestrutura.

E mais, só do ponto de vista da reprodução é possível pensar a totalidade social e quem diz reprodução diz relações de produção, diz luta de classe, a reprodução das condições de produção. A reprodução das relações de produção é uma empreitada da classe dominante que realiza-se por meio da luta de classes que opõe a classe dominante à classe dominada, o que implica, portanto, que situar-se do ponto de vista da reprodução das condições de produção é, e aqui nos permitam repetir a formulação, em última instância, situar-se no ponto de vista da luta de classes.

É isso que Engels nos diz quando nos fala das formas políticas da luta de classes e seus resultados, formas econômicas e políticas que configuram uma formação econômico-social concreta. O que nos diz Marx em o O Capital; “É sempre na relação direta dos proprietários das condições de produção com os produtores diretos …” (relação direta que são relações de produção, relações de dominação, de exploração, relações de classe, luta de classes) “… que encontramos o segredo mais íntimo, o fundamento oculto de toda a construção social…” (MARX, O Capital, Abril Cultural, 1983, livro 3, t. 2, p. 251).

Assim é que só a partir da reprodução, só a partir da luta de classes, é possível analisar uma formação econômico-social, formular e resolver os problemas da natureza de uma formação econômico-social, de sua superestrutura: o que é o Estado, o que é a Ideologia e quais as relações que mantém entre si.

É pensando assim que buscamos nos situar deste ponto de vista, do ponto de vista da reprodução, do ponto de vista da luta de classes, na analise do Estado.

Lenin inicia seu trabalho sobre o Estado em O Estado e a Revolução, dizendo que o Estado é concebido explicitamente como aparelho repressor. Portanto, o Estado é o Aparelho de Estado, aparelho de repressão, que garante a dominação das classes dominantes sobre as classes dominadas com o objetivo de manter sua exploração. E, seguindo Lenin, podemos afirmar, ainda, que esta formulação define perfeitamente a “função fundamental” do Estado: garantir a submissão à dominação para garantir as condições de reprodução da exploração, do processo de extração da mais-valia.

Assim, podemos dizer que o Estado é antes de tudo, o aparelho de Estado. Contudo, é necessário, neste ponto, fazer a distinção entre Poder de Estado e Aparelho de Estado, porquanto o Estado só tem sentido em função do exercício do Poder de Estado, é a unidade Poder de Estado/Aparelho de Estado.

É necessário chamar a atenção para a importante lição que nos deu a experiência histórica da luta de classes, tanto na transição para o socialismo como nas peripécias pelas quais passaram e passam as diversas formações sociais de classe – o que é necessário fazer não é construir uma tipologia das formas jurídicas das combinações do Aparelho de Estado e do Poder de Estado – mas analisar as condições históricas concretas da criação/transformação do Aparelho de Estado no processo da conquista e do exercício do poder de Estado pelas classes dominantes ao construir sua dominação.

O Aparelho de Estado pode continuar o mesmo apesar da luta política que resulta na transferência do Poder de Estado de uma classe para outra ou de uma fração de classe a outra. Isso comprova concretamente a distinção entre Poder de Estado e Aparelho de Estado e que o Estado só tem sentido em razão do Poder de Estado porque é a posse do poder de Estado que autoriza o emprego do Aparelho de Estado. Porque é a posse do Poder de Estado que dá à classe ou à fração de classe que o detém o poder de empregar o Aparelho de Estado ou transformá-lo a serviço de seus interesses.

Dito isto, podemos resumir a posição do marxismo sobre o Estado: primeiro; o Estado é o Aparelho de Estado; segundo, o Poder de Estado é diferente do Aparelho de Estado; terceiro, entendendo que o Poder de Estado é o domínio das condições de utilizar o Aparelho de Estado em função de seus objetivos, por conseguinte a luta de classes se dá pela conquista do Poder de Estado, pela utilização do Aparelho de Estado pela classe ou fração de classe que conquistou o poder de Estado, em razão de seus objetivos; Aparelho de Estado e Poder de Estado formam uma unidade. Até aqui, apesar das precisões e distinções, não saímos do que já está considerado na teoria marxista acerca do Estado e de sua principal função. E é aqui, que acutilados pela prática, os marxistas foram obrigados a avançar na compreensão de que o Estado é uma realidade mais complexa do que aquela contemplada na tradição marxista quando descreve sua principal função, a avançar na teoria apresentando uma tese que já se encontra na prática política dos marxistas: ao lado do Aparelho repressor de Estado, mas não se confundindo com ele, se encontram outros Aparelhos, os Aparelhos ideológicos de Estado.

Para poder construir uma teoria científica do Estado, é indispensável, levar em conta não só a distinção entre Poder de Estado e Aparelho de Estado, mas também a distinção entre o Aparelho repressivo de Estado e os Aparelhos ideológicos de Estado.

E o que são estes Aparelhos ideológicos de Estado?

Podemos adiantar, sumariamente, que o que diferencia os Aparelhos ideológicos de Estado do Aparelho repressivo de Estado é que, enquanto estes funcionam principalmente através da repressão para garantir a dominação, os Aparelhos ideológicos de Estado funcionam principalmente “por meio da ideologia”.

Mas, voltemos ao Estado. O Estado, melhor dizendo, os Aparelhos de Estado correspondem: a) ao Aparelho repressor de Estado, isto é, ao governo, à administração, às forças armadas, à polícia, aos tribunais, às prisões; b) aos Aparelhos ideológicos do Estado, isto é, ao Aparelho Escolar, Aparelho Familiar, Aparelho Religioso, Político, Cultural, e mais.

A cada Aparelho ideológico de Estado corresponde o que se chama de instituições ou organizações, e estas diferentes instituições e organizações que constituem os AIE formam um sistema e de que as instituições correspondentes a cada AIE, seu sistema e, portanto, cada AIE, embora definido como ideológico não é redutível à existência de ideias sem suporte real e material. As ideias, a ideologia é realizada em instituições e práticas materiais. Portanto, que essas práticas materiais, onde se realizam a ideologia, estão sustentadas em realidades não-ideológicas.

Aqui é preciso chamar atenção para que não se caia numa armadilha, a armadilha da ideologia burguesa que tenta estabelecer uma divisão dos aparelhos de Estado entre dois campos, o público e o privado.

A mesma armadilha se dá com a conceituação de Estado. Estado que, a despeito de sua conceituação no Direito, sempre é e será o Estado da classe dominante, não por ser sua propriedade, mas simplesmente porque é a classe dominante que detém o poder de Estado e o exerce em função de seus interesses, o que implica que não importa o grau, a porcentagem de participação de representantes formais da classe dominada nos Aparelhos de Estado se a classe dominante continua detendo o poder de Estado. Só a conquista do poder de Estado pela classe dominada permite exercê-lo em razão de seus interesses.

A imprensa, a escola, a igreja, etc. nem sempre são públicas, mas ao contrário, são cada vez menos públicas. Como, então, se poderia classificar a imprensa, a escola, a igreja, etc. que se situam fora da esfera pública enquanto Aparelho ideológico de Estado?

Da mesma forma se dá com a imprensa, ou a escola, etc. Elas são e sempre serão, no capitalismo, Aparelhos ideológicos de Estado, não por serem instituições públicas ou privadas, mas simplesmente porque é a ideologia dominante que se materializa, se realiza, em suas práticas. O que conforma um Aparelho ideológico de Estado é um sistema complexo de práticas que, materializando, realizando, dando existência à ideologia dominante, compreendem e combinam diversas instituições e organizações.

Por isso, o entendimento do conceito de Aparelhos ideológicos de Estado passa por compreender que não são as instituições – a escola, a imprensa, a igreja, etc. – que produzem a ideologia correspondente, são determinados elementos da ideologia dominante que se realizam nas instituições correspondentes e suas práticas.

Resumindo, podemos dizer que os Aparelhos ideológicos de Estado são relativamente independentes uns dos outros e unificados como sistema distinto, em sua totalidade ou em parte, pela ideologia de Estado, unidade garantida pela unidade da política de classe da classe que detém o poder de Estado, a classe dominante, e da ideologia de Estado que corresponde a seus interesses fundamentais de classe.

Para que possamos entender como funcionam os AIE é necessário precisar essa ideologia de Estado, ideologia e política da classe dominante que objetiva garantir a reprodução das relações de produção, a dominação, isto é, a reprodução das relações de exploração em uma formação social de classe concreta.

Se nos colocamos do ponto de vista da reprodução, do ponto de vista da luta de classes, a superestrutura tem por razão assegurar a reprodução das relações de produção, isto é, das relações de exploração da classe dominada pelas classes dominantes, o que quer dizer assegurar, ao mesmo tempo, a reprodução das condições de exercício dessa exploração através do Aparelho repressor de Estado e a reprodução das relações de produção dentro das quais se efetua a exploração, visto que, como dissemos anteriormente, no capitalismo, as relações de produção são num único e mesmo tempo relações de exploração, através dos Aparelhos ideológicos de Estado.

O que torna esses Aparelhos ideológicos de Estado – instituições e organizações distintas, parcialmente autônomas, públicos ou privados, mais ou menos controlados ou determinados pelo Estado – é a ideologia realizada neles, isto é, a ideologia dominante, da classe dominante, da classe que detém o poder de Estado e que determina imperativamente a realização de sua ideologia nesses aparelhos.

Aqui se faz necessário sistematizar o que avançamos na teoria:

O Estado é o aparelho que concentra a dominação da classe dominante, o que quer dizer que toda a superestrutura está centrada, concentrada em torno do Estado, a superestrutura jurídico-política e a superestrutura ideológica, distinção que somente existe sob a dominação do Estado, de uma unidade determinante de forma absoluta, a do poder de Estado e de seus aparelhos, repressor e ideológico;

A ideologia da classe dominante, a ideologia dominante, está também, a despeito de suas variantes, agrupada e concentrada sob a forma da ideologia da classe dominante que detém o poder de Estado, unidade ideológica que apesar de suas contradições internas pode e deve ser chamada de Ideologia de Estado. O que faz a unidade dos diferentes Aparelhos ideológicos de Estado é que estes realizam, cada um em seu campo e sob sua modalidade própria, uma ideologia que, a despeito de suas diferenças ou, até mesmo, de suas contradições internas, é a ideologia de Estado. O que mostra, o que coloca em evidência e não nos permite eludir, é que, enquanto a classe dominante detiver o poder de Estado – o que é uma tautologia, visto que a classe dominante só é dominante porque detém o poder de Estado e, portanto, detém o poder de empregar os Aparelhos de Estado a fim de realizar seus interesses – os Aparelhos ideológicos de Estado realizarão principalmente a ideologia de Estado.

Isto é, as classes dominantes atuarão na luta de classes diretamente pelo Aparelho repressor de Estado e indiretamente pela realização da Ideologia de Estado nos Aparelhos ideológicos de Estado. Porém, se esta é a característica principal dos Aparelhos de Estado, os AIE, de forma mais acentuada e distinta do que os Aparelhos repressivos, permitem um terreno concreto às contradições. Forma distinta porque os Aparelhos ideológicos além de serem diversos e diferentes entre si (a Igreja, a imprensa, a escola, só para não ir mais longe em enumerá-los), mantém uma autonomia relativa com relação ao Estado, mesmo estando unificados pela ideologia de Estado e realizando fundamentalmente a ideologia de Estado.

Nosso objetivo, o ponto preciso que queremos atingir, é o de analisar/compreender a formação social brasileira, formação social colonial típica que se constituiu no Brasil com a colonização, passando pela vinda da Corte, a passagem da Independência à República, a constituição do capitalismo num país dominado, para, de posse desta “compreensão” avançarmos em nossa prática de transformação social.

Como ficou demonstrado, o que caracteriza o Aparelho ideológico de Estado e o diferencia do Aparelho repressor é que enquanto este funciona predominantemente por meio da repressão, os Aparelhos ideológicos de Estado funcionam predominantemente por meio da ideologia.

No período feudal, como também no capitalismo, o Aparelho repressor constituiu-se num corpo reduzido de instituições estreitamente estruturados e articulados pela centralização e comando dos representantes políticos da classe dominante realizando a política da classe dominante, enquanto que no capitalismo atuam, em muito maior número, diferentes Aparelhos ideológicos de Estado, diferentes e relativamente autônomos, uns em relação aos outros e todos com relação a ideologia de Estado que se realiza principalmente por seu intermédio.

Da mesma forma, poderíamos dizer que a unidade de ação do Aparelho repressor, no capitalismo, e mesmo antes dele, é garantida por sua organização e direção centralizada pelos representantes das classes dominantes, aplicando sua política de classe. Diferentemente, a unidade dos Aparelhos ideológicos de Estado é garantida pela ideologia dominante, ideologia de Estado que se realiza neles, de forma dominante, porém permitindo, pela própria natureza da realização da ideologia, um campo mais favorável à expressão das contradições entre dominantes e dominados.

Assim, podemos ver que, enquanto nas suas características gerais, o Aparelho repressor conserva, no capitalismo, os mesmo traços que o caracterizavam no feudalismo, no capitalismo, surge um conjunto extenso de Aparelhos ideológicos diversos e autônomos, que não existiam ou existiam de forma embrionária no feudalismo.

Podemos afirmar que, enquanto desde a formação dos primeiros Estados existiu um Aparelho repressor único, estruturalmente semelhante ao que existe hoje, o mesmo não se pode dizer com relação aos Aparelhos ideológicos, no capitalismo. Há um número muito mais elevado de Aparelhos ideológicos de Estado e suas características são diversas.

É possível constatar num vol d’oiseau sobre o período feudal que o Aparelho de Estado religioso, a Igreja, acumulava um conjunto de funções que no capitalismo vão ser realizadas por Aparelhos ideológicos diversos. Assim é que a Igreja centralizava não só a função religiosa, mas também a escola, a atividade editorial, a elaboração e difusão da informação, a cultura, as atividades de lazer e esporte e, ainda, atividades com relação à saúde, etc.

A história da luta de classes, da luta política e ideológica da burguesia capitalista-comercial pelo poder de Estado contra o senhor feudal, a aristocracia feudal, se materializa numa violenta e concentrada luta antirreligiosa e anticlerical, violenta e concentrada luta de classes contra o Aparelho ideológico de Estado dominante feudal, a Igreja, o que confirma a constatação de que o Aparelho de Estado dominante no período histórico pré-capitalista é a Igreja e de que o resultado desta luta de classes coloca a escola em posição dominante, como Aparelho ideológico de Estado dominante, nas formações capitalistas amadurecidas.

Esta constatação é importante para nossa compreensão da constituição da superestrutura na formação econômico-social brasileira e o papel que vai ocupar a educação, a ciência e a tecnologia, desde o período colonial, o período no qual se dá o estabelecimento de relações de produção capitalistas no Brasil, até hoje. Compreender o obscurantismo que predominou e predomina até hoje na formação social brasileira. As formações capitalistas dominadas não demandam, da mesma forma que os países dominantes, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, muito pelo contrário, a dominação impõe limites a este desenvolvimento.

Outra questão que é importante compreender para analisar o Estado – especialmente nos países dominados – é que o poder político, o Poder de Estado, da classe dominante não se exerce diretamente: não se exerce diretamente primeiro, no sentido de que a dominação econômica baste a si mesma, segundo, não se exerce diretamente no sentido de que a classe dominante não exerce por si mesma o poder político.

A classe dominante exerce o poder político pela intermediação de um aparelho especializado, o aparelho político, colocado acima da “sociedade” (usamos sociedade aqui por comodidade no sentido do conjunto de classes e indivíduos que compõem uma formação social) e diferente a cada formação social.

E exerce o Poder de Estado através de seus representantes, de uma fração determinada e especializada da classe dominante, da classe que detém o domínio, que tem a propriedade dos meios de produção, que detém o domínio da estrutura econômica, e que exerce e pratica o Poder de Estado sobre o Aparelho de Estado em razão dos interesses desta classe dominante de que faz parte, Aparelho de Estado se apresenta “acima” da “sociedade”, “acima” dos interesses particulares de classe.

No funcionamento do Aparelho de Estado a relação de dominação de classe está dissimulada pelo mecanismo que a realiza, isto é, o Aparelho de Estado não é visto como aparelho de dominação de classe nem pelos que detém o poder nem pelos que estão submetidos a ele. O Poder de Estado se apresenta como uma “autoridade” do Estado sobre a “sociedade”, “acima” da “sociedade”, “acima” dos interesses particulares de classe, exercido na forma e pelos agentes escolhidos pela “sociedade”. Porém, não vamos nos alongar aqui, porque o que queremos com estas “considerações” é ver claro em nossas ideias (deixando para a crítica demolidora dos ratos as formulações que superamos por equivocadas, insuficientes ou incompletas); esclarecer para nós mesmos o terreno teórico no qual queremos pisar, para, a partir daí, do ponto de vista da reprodução das condições de produção, da luta de classes, discutir a formação social brasileira, suas diversas etapas, que de forma sumária e incompleta, tentaremos resumir em três fases, etapas:

Formação social colonial, (15… ? à 1808) – forma de produção de mercadorias para o mercado externo sob relações de produção escravistas.

Formação social semicolonial, (1808 à 1888), agrária-escravista, formalmente “independente” com a constituição formal do Estado, centrada na agricultura, na monocultura para a exportação, sob relações de trabalho escravo.

Formação social capitalista dominada, (1889 à 2 …), com avanço das relações capitalistas de produção já no último quartel do século 19, avanço marcado pela extinção formal da escravidão. Estabelecimento de relações capitalistas de produção que se faz de forma específica, específica porque restrita tanto em relação ao espaço geográfico quanto específica em relação à constituição e integração dos diversos setores da economia e diferente dos países capitalistas desenvolvidos, “amadurecidos”.

A forma específica pela qual o capitalismo se estabelece nas formações econômico-sociais correspondente a cada país dominado, gera, produz, uma formação social capitalista também típica a cada país dominado com suas contradições e luta de classes.

O marxismo necessariamente se desenvolve à medida que a prática se desenvolve. Se o marxismo estagnar isto significa que se afastou da prática, da vida, se tornou um dogma. O marxismo se desenvolve segundo seus princípios fundamentais. Considerar o marxismo com algo pronto e acabado é dogmático. Negar os princípios fundamentais e sua verdade universal é tentar revê-lo. O marxismo como qualquer ciência não pode vir senão da prática social, expressar a unidade teoria e prática. Marx chama a atenção para o fato de que se a aparência coincidisse com a essência a ciência seria desnecessária, isto é a realidade nos seria dada, daí porque temos de colocar o marxismo para trabalhar na realidade, realizar o que Lenin conceitua como análise concreta da situação concreta e evitar cair no logro de alguns que, como dizia Engels em Carta a Conrad Schmidt (MARX e ENGELS, Correspondência, Editorial Problema, 1947, p. 484), usam o materialismo histórico para não estudar a história, pregar uma etiqueta e dar o assunto como concluído.

Ao contrário, é preciso trabalhar e pretendemos trabalhar sobre a história, apresentar nossas teses, mesmo as que possam parecer ambiciosas em demasia, para que, em caso de impugnação, possamos defendê-las. Ganhamos todos, estejamos certos ou errados, praticando e retificando nossa prática nos colocamos no caminho que nos aproxima da posição justa. Há que estudar, como diz Engels.

BIBLIOGRAFIA

ALTHUSSER, L. Sobre a Reprodução. Petrópolis: Vozes, 1999.

MARX, K. ENGELS, F. Obras Escolhidas em Três Tomos, Tomo III, Edições Avante, Lisboa, 1985.

MARX, K. O Capital. Crítica da Economia Política. S. Paulo: Abril Cultural, livro 1, t. 1, 1983.

________. O Capital. Crítica da Economia Política. S. Paulo: Abril Cultural, livro 3, t. 2,1983.

________. Contribuição à Crítica da Economia Política. S. Paulo: Martins Fontes, 1977.

________.  A Ideologia Alemã. Lisboa: Editorial Presença, v. 1, 1976.

________.  O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.

MAO TSÉ-TUNG. Obras Escolhidas. Pequim: Edições do Povo, v. 1, 1969.

[1]       Texto de agosto de 2000.

 

Compartilhe
- 16/08/2000