Cada vez mais trabalhadores/as são empurrados/as para sobreviverem nas ruas do Brasil
Casal de trabalhadores desempregados que passaram a sobreviver nas ruas de São Paulo. Enquanto o grande capital bate recorde de lucros e a canalha de bilionários se prolifera, as massas exploradas se afundam ainda mais na miséria.
Cem Flores
28.01.2022
[Nas crises] os salários caem, por causa da concorrência entre os desempregados, da redução do tempo de trabalho e da falta de vendas lucrativas; a miséria se generaliza entre os operários; as eventuais pequenas economias dos indivíduos são rapidamente devoradas; as instituições beneficentes se veem assoberbadas; o imposto para os pobres duplica, triplica e entretanto continua insuficiente; cresce o número de famintos; e de repente toda a massa da população ‘supérflua’ revela sua impressionante magnitude.
Engels, 1845.
A cada ano, milhares de existências proletárias afastam-se das condições de classe normais da classe trabalhadora para cair na escuridão da miséria. Eles caem silenciosamente como um sedimento que se deposita no fundo da sociedade, elementos usados, inúteis, dos quais o capital não pode retirar mais nenhuma seiva, lixo humano que é varrido com vassoura de ferro: contra eles ergue-se o braço da lei, da fome e do frio.
Rosa Luxemburgo, 1912.
Desde o início da pandemia no Brasil e após mais uma violenta recessão, em 2020, a pobreza, a miséria e a fome tornaram-se uma realidade ainda mais dura para uma parcela crescente da massa. Elas estão presentes nas casas de milhões e milhões de trabalhadoras e trabalhadores com salários arrochados, empregos cada vez piores ou amargando o desemprego. Espalha-se nas ruas dos grandes centros urbanos do país, onde as barracas se multiplicam e inúmeros vagam pelas praças e semáforos dia e noite. Realidade agravada com a elevação da carestia de vida diante da alta inflação de alimentos, aluguéis, energia e combustíveis que atinge fortemente os mais pobres.
Essa nova crise do capital impõe esse quadro como um “novo normal”, um novo patamar de miséria para as classes trabalhadoras, não só no Brasil. Em todo o mundo, a crise e seus perversos efeitos geraram, segundo o Banco Mundial, “um aumento sem precedentes” de trabalhadores/as a sobreviverem em situações de pobreza extrema. Apenas em 2020, mais 77 milhões caíram na extrema pobreza, aumentando esse contingente em 12% em um ano só – gerando a chaga capitalista de 732 milhões de trabalhadores/as e seus filhos na extrema pobreza, quase 3,5 vezes toda a população do Brasil. A “retomada” do capital em 2021 não reverteu essa degradação…
Enquanto isso, aqui e no mundo, a centralização e a concentração de capital que atravessa a crise faz encher ainda mais o bolso dos grandes capitalistas. Os bilionários cresceram em número e em fortuna, em meio à barbárie social. Em meio e por conta dessa barbárie: pois esse sistema de exploração em que vivemos, o capitalismo, tende exatamente à polarização social, à brutal e crescente desigualdade de classe. De um lado, alguns poucos ricaços que sugam dinheiro do suor e sangue dos trabalhadores/as e seus serviçais e asseclas. De outro, bilhões de despossuídos vivendo na labuta, quando não na mais pura miséria, como animais, “supérfluos” ao capital. Como dizia Marx, a acumulação de capital é ao mesmo tempo “a acumulação de miséria, o suplício do trabalho, a escravidão, a ignorância, a brutalização e a degradação moral no polo oposto, isto é, do lado da classe que produz seu próprio produto como capital”.
No Brasil atual, conforme os dados mais recentes e a experiência cotidiana das massas trabalhadoras, a miséria cresce aceleradamente, inclusive com o aumento da população de trabalhadores/as sobrevivendo em situação de rua. Essa é uma das faces mais brutais do desemprego e da miséria, um dos níveis mais intensos de degradação que os trabalhadores/as são obrigados a passar no capitalismo. Situação que só desaparecerá com a derrubada desse odioso regime de classe, na luta contra aqueles que nos acorrentam em uma vida de martírios.
O aumento da pobreza e da fome desde o início da pandemia
O atual crescimento da pobreza e da fome agravam o mercado de trabalho e a condição de vida das massas que já vinham sofrendo grande deterioração desde a crise de 2014/16. O desemprego, que explodiu naquela crise, nunca voltou ao patamar anterior – e nem há perspectiva hoje de retorno, dada nossa estagnação crônica.
O novo patamar de desemprego amplo (entre 20% e 30%), junto à piora nos empregos, com o aumento da informalização (taxa de informalidade de 40%, segundo IBGE), e à carestia de vida foram os fatores fundamentais para a nova onda de pobreza, miséria e fome que vem nos atingindo desde o início da pandemia. Há de se destacar também o refluxo das lutas sindicais, com queda nas greves e protesto de trabalhadores/as, que se converteu em poucos e parcos reajustes salariais.
Essa nova onda foi temporariamente paralisada em 2020, por conta do auxílio emergencial da pandemia, de valor base de R$ 600,00. O auxílio atingiu quase 70 milhões de trabalhadores/as, 1/3 da população brasileira, totalizando quase R$ 300 bilhões, quase dez vezes superior ao Bolsa Família.
Com o fim do auxílio de R$ 600,00, em 2021, o efeito temporário se esgotou e a pobreza, a miséria e a fome explodiram. Assim, o novo tamanho da massa em situações extremas de pobreza apareceu de forma mais clara nas estatísticas. Segundo a FGV, no início de 2021, 34,3 milhões de pessoas estavam na extrema pobreza (ganhando menos de R$ 246 mensal por pessoa). Mais de 10 milhões a mais do que em 2019. Isso significa quase a população inteira do Canadá.
Segundo a consultoria Tendências, quase 40 milhões de domicílios no Brasil vivem com renda mensal até R$ 2,8 mil. Mais da metade dos domicílios do país. O capitalismo brasileiro e suas duas crises consecutivas causaram o aumento recente da população nas faixas mais baixas de renda. Essa realidade do capitalismo no Brasil, nos últimos anos, desmontou a propaganda petista de avanço das camadas médias que, na realidade, se encontram cada vez mais esmagadas.
Em 2021, o choque inflacionário puniu principalmente o consumo dos mais pobres. Segundo o IPEA, a inflação para os mais pobres foi cerca de 15% maior do que aquela verificada entre os mais ricos. As brutais cenas de trabalhadores/as revirando restos de comida começaram a se tornar cotidianas na internet e nos canais de televisão, sinais do problema da fome que se alastrou novamente e atingiu níveis alarmantes.
A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional registrou 55% da população brasileira sobrevivendo com “insegurança alimentar” (ou seja, fome) em 2020, identificando uma forte elevação em relação aos últimos anos. Apesar de não haver dados de 2021, a permanência dos fatores que levaram à elevação indica que tal patamar da fome não se reverteu. Abaixo, um infográfico bastante didático sobre esse aumento da fome no Brasil:
Junto a essa dificuldade das massas trabalhadoras de se alimentarem, tem-se a piora constante na qualidade dessa alimentação. Alimentos ultraprocessados e de má qualidade são os mais baratos, práticos e de mais fácil acesso para a grande maioria dos trabalhadores/as, por várias vezes a única opção para matar a fome. O consumo de macarrão instantâneo, o famoso miojo, por exemplo, aumentou consideravelmente. Em 2020, foram 189 toneladas vendidas no país, 21 toneladas a mais do que em 2019.
O desemprego, a pobreza, a miséria e a fome, importante destacar, foram e continuam a ser motivos de protestos e organização das massas durante a pandemia. Nas periferias de todo o país, as organizações comunitárias e as atividades de ajuda mútua e solidariedade se reforçaram. Isso ajuda a entender determinadas ações da burguesia, que busca de todas as formas cooptar e controlar esse ascenso, com sua filantropia e “empreendedorismo social” empresarial, via financiamento, Ong’s, igrejas, partidos e movimentos. Isso quando não consegue reprimir diretamente, com seus braços legais ou clandestinos.
O aumento da pobreza, da miséria e da fome, por fim, serve como uma base material para uma piora generalizada nas condições de vida das massas. Ela impacta no desenvolvimento das crianças e adolescentes, na sua educação – já piorada recentemente com o ensino remoto; na saúde, física e mental; nas relações familiares; no consumo de álcool e outras drogas etc. Piora que as massas lutam cotidianamente para reverter em suas famílias, ruas e comunidades.
A miséria extrema: a população em situação de rua e seu recente crescimento no Brasil
Quem são os moradores do albergue, vítimas do arenque estragado e da aguardente de má qualidade? Um comerciário, um operário da construção civil, um torneiro, um mecânico – trabalhadores, trabalhadores, só trabalhadores. E quem são os sem-nome que a polícia não pode identificar? Trabalhadores, só trabalhadores, ou assemelhados, que ainda ontem eram trabalhadores. E nenhum trabalhador tem garantias contra o albergue, contra o arenque estragado, contra a aguardente de má qualidade. Ainda hoje é vigoroso, respeitável, laborioso – mas o que será dele amanhã se for despedido por ter atingido o limite fatal dos 40 anos, para além do qual o patrão o declara “inutilizável”? Ou se amanhã sofrer um acidente que o deixe aleijado, que o transforme num mendigo aposentado?
Rosa Luxemburgo, 1912.
Quando o desemprego e a miséria atingem de tal forma o trabalhador/a e sua família, a ponto de não conseguirem pagar um aluguel na periferia; quando sua rede de apoio e pessoas próximas já não conseguem oferecer suporte, ou deixam de existir; quando ele ou ela é atingido pela loucura ou pelo vício, a rua se torna seu novo lar, e uma nova fase de degradação se inicia. Sobreviver sem um teto, a mercê do frio ou do calor, da criminalidade, da violência policial aberta.
A população em situação de rua, ou acolhida em alguma instituição social, é por si só um índice de miséria capitalista. E no Brasil atual, ela tem crescido continuamente.
O IPEA estima que a população em situação de rua no país atingiu 220 mil pessoas em março de 2020 (tamanho da cidade de Chapecó). Essa população já havia mais que dobrado se comparada aos números de 2012. Desde aquele ano, quando iniciam as estimativas do IPEA, o crescimento foi praticamente constante.
Essa população vive principalmente em grandes centros urbanos. São Paulo, o maior do país, recentemente divulgou um censo de sua população de rua. O crescimento dessa população tem sido contínuo nos últimos anos, e em 2021 atingiu seu pico: 19,2 mil pessoas morando na rua e 12,7 mil acolhidas em abrigos, totalizando quase 32 mil. Em 2000, o total não chegava a 9 mil pessoas. Com a crise de 2014-16 e a pandemia, o número dobrou.
A grande maioria dessas pessoas é negra, mais uma evidência de nosso racismo profundo, e vem de fora da cidade de São Paulo, seja do interior ou de outros estados. Segundo ativistas e especialistas, esse número ainda é subestimado, tendo em vista a dificuldade de coletar os dados desta população.
As principais causas apontadas para a situação de rua são: perda de trabalho e renda, dependência de álcool e outras drogas e conflitos familiares. A maior parte já sobrevive na rua há mais de 2 anos. Dentre eles, 17% sobrevive há mais de 10 anos nessa situação.
Tem sido cada vez mais constante famílias inteiras irem morar na rua, incluindo crianças e idosos, assim como aquelas que resistem a ir para um “abrigo”. Segundo um trabalhador desempregado que está morando na rua com sua esposa há dez meses: “a gente enfrenta frio, chuva, calor, medo de ser roubado ou agredido, mas não vai para abrigo. Não vamos nos separar para ir a um lugar que somos ainda mais humilhados e corremos mais risco”. O risco e a humilhação provêm das restrições e da péssima qualidade dos serviços nesses abrigos, que também podem se tornar em espaços violentos.
Voltar a ter um emprego fixo é o principal fator para sair dessa situação, segundo os moradores de rua. Dentre eles, a maioria continua com alguma atividade laboral. Maioria vive de bicos, por conta própria, ou sem carteira assinada. É falsa a propaganda do capital e de seus asseclas de que a maioria vive apenas da mendicância, ou mesmo da criminalidade.
“Abaixo a infame ordem social que engendra tamanhos horrores!”
O aumento da miséria tem transformado o centro das cidades em grandes acampamentos de trabalhadores/as dispensados pelo capital que lutam diariamente para sobreviver em condições extremas. O Estado capitalista gere essa população principalmente através do medo e da violência; as migalhas que as empresas jogam para essa camada degradada do proletariado não muda sua situação, útil para o capital na imposição de uma disciplina da força de trabalho e no arrocho dos salários.
É da solidariedade de classe o principal auxílio que esses trabalhadores/as recebem diariamente. E é essa solidariedade a principal barreira para que mais trabalhadores caiam nessa situação.
A luta por uma nova sociedade, socialista, é também uma luta contra essa barbárie. Os que reviram os lixos nas cidades são nossos irmãos/ãs de classe, empurrados a sobreviverem como animais, morrerem como animais, como os 16 mortos de frio em São Paulo, em meados do ano passado. Esses mortos são nossos mortos, assassinados pela burguesia que vive do ócio em suas fortalezas de luxo cada vez mais militarizadas, a olhar sem piedade o que acontece embaixo de seus olhos.
Enquanto houver capitalismo, as palavras de Rosa continuarão atuais:
“trata-se de erguer os corpos envenenados dos sem-teto de Berlim, que são carne da nossa carne e sangue do nosso sangue, sobre as mãos de milhões de proletários e de levá-los neste novo ano de lutas gritando: abaixo a infame ordem social que engendra tamanhos horrores!”
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