Louis Althusser: Livro sobre o Imperialismo (Inédito, 1973) Apresentação e tradução da “Advertência”, por Cem Flores
“Essa é a única coisa que este pequeno livro pretende mostrar: que a luta de classes é o motor da história do capitalismo, portanto também de sua etapa imperialista. Uma coisa elementar”. (pg. 212).
“Aqui está a linha de demarcação radical: relacionar tudo à luta de classes como a causa em última instância” (pg. 232).
“Eu estou convencido que existem comunistas, sim, comunistas, para os quais apenas a classe operária conduz a luta de classes… mas a ideia de que a burguesia passa seu tempo a atacar, que esse sistema não é senão um sistema de luta de classe, que tudo isso não foi alcançado senão pela luta de classe da burguesia, que desde o início e sempre a burguesia edificou seu reino pela luta de classe… e que, provisoriamente, é a sua luta de classe que é a mais forte, e que por isso nós ainda não a derrubamos, isso, alguns comunistas não sabem” (pg. 158-9).
“… é a burguesia que tem a iniciativa geral na luta de classe, em outros termos, é a luta de classe burguesa que é a mais forte. Isso que chamamos de dominação da classe no poder se traduz pela preponderância da luta de classe burguesa sobre a luta de classe proletária… a burguesia conduz sua luta de classe implacável por todos os meios legais e ilegais, tanto na base econômica(a produção e as trocas) sob as formas de opressão próprias à extorsão da mais-valia absoluta e relativa, quanto na superestrutura: pelo aparelho repressivo do Estado e pelos diferentes aparelhos ideológicos do Estado (dentre eles o aparelho político: a ‘democracia’ burguesa, mas também a Igreja, a Escola, etc.)” (pg. 118-9).
Em março deste ano foi publicada na França mais uma obra inédita e inacabada do militante e intelectual marxista Louis Althusser (1918-1990): Escritos sobre a História (1963-1986)[1]. Esse volume, composto de nove artigos, é dominado pelas quase 160 páginas dos extratos do chamado Livro sobre o Imperialismo – texto do qual as citações acima foram tiradas.
Deixado numa gaveta por 45 anos, não se sabem as razões pelas quais o projeto de livro permaneceu inacabado e, aparentemente, abandonado após sua primeira redação. Ao contrário de outros manuscritos, este não apresenta indícios significativos de correções e revisões posteriores na maioria dos capítulos. Os editores o presumem, portanto, escrito praticamente de uma só vez, na segunda quinzena de agosto de 1973.
Mais do que propriamente uma discussão sobre o imperialismo, quer em termos teóricos, quer na análise da conjuntura do capitalismo mundial da época[2]– às vésperas da primeira grande crise mundial do pós-guerra – o Livro sobre o Imperialismocontempla dez capítulos sobre temas um tanto diversos, como pode ser observado na enumeração abaixo:
- Advertência (4 páginas)
- Sobre a relação dos marxistas à obra de Marx (19 pg.)
- O que é um modo de produção? (60 pg.)
- A contradição principal (3 pg.)
- Ilusão da concorrência, realidade da guerra (15 pg.)
- Barbárie? O fascismo foi uma primeira forma (8 pg.)
- Sobre alguns erros e ilusões burgueses (18 pg.)
- Sobre a história do modo de produção capitalista (18 pg.)
- Sobre o imperialismo e o movimento operário (8 pg.)
- “A essência pura” (2 pg.)
Após esta nossa breve apresentação, traduzimos na íntegra o texto da “Advertência”, que inaugura o Livro sobre o Imperialismo. Neste curto texto, Louis Althusser apresenta algumas ideias importantes, que serão desenvolvidas no restante do texto e/ou em outras de suas obras. É o caso da afirmação de que “nós somos submetidos ao imperialismo”. Ao contrário da visão idealista e mecanicista de que ao lutarmos contra o imperialismo nos colocamos fora dele, Althusser resgata o aspecto central do marxismo, a luta de classes, como determinante em última instância da relação de produção, do modo de produção. Se, por um lado, a luta entre as classes define/constitui as próprias classes, por outro, essas são definidas numa relação de produção e de reprodução, que engloba ambas as classes antagônicas. Dessa forma, não há um “lado de fora” para a classe operária em sua luta contra o imperialismo. Nas palavras de Althusser:
“3. Modo de produção capitalista: a relação de produção do modo de produção capitalista é a não detenção absoluta dos meios de produção pelos produtores imediatos e a não detenção relativa da sua força de trabalho. Essa não detenção relativa da força de trabalho toma a forma de uma relação mercantil, o salário.
Essa condição define uma classe: a dos proletários. Ela define ao mesmo tempo uma outra classe: a dos capitalistas. Essas duas classes são antagônicas” (pg. 150).
“A relação de produção que define um modo de produção é uma relação entre classes: mais precisamente, entre as classes que ela constitui; ainda mais precisamente, entre as classes antagonistas que ela constitui” (pg. 160).
Althusser segue afirmando que, além de nos sabermos submetidos ao imperialismo, é preciso conhecer o imperialismo. É preciso estudar o capitalismo contemporâneo, o imperialismo, conhecer seus mecanismos e suas contradições. Esse estudo deve ser, simultaneamente, de uma maneira organicamente ligada, prático/teórico. O estudo do imperialismo, tarefa fundamental para um militante comunista, é concomitante ao combate cotidiano, ao lado da classe operária, contra esse sistema de exploração, e o conhecimento teórico desse sistema e da forma de vencê-lo, de derrubá-lo, de libertar-se.
Nossos modestos esforços em busca de estudar o imperialismo estão reunidos na tag Imperialismo no site Cem Flores e podem ser encontrados em https://cemflores.org/index.php/category/imperialismo/.
Outro ponto levantado por Althusser na Advertência é que o imperialismo não se resume a guerras e agressões imperialistas sendo, sobretudo, exercido nos próprios países imperialistas (“metrópoles” no texto de Althusser), sobre a classe operária dos países imperialistas. Aqui é importante recordar o próprio conceito leninista: o imperialismo é o capitalismo da época atual, a partir do século XX, é o capitalismo em sua fase monopolista. Isso não quer dizer – nunca! – que devamos deixar de denunciar e lutar, por todos os meios possíveis, contra o imperialismo e suas guerras de pilhagem, terrorismo e assassinatos em massa.
A afirmação de Althusser serve de alerta para o fato de que a identificação do imperialismo exclusivamente com suas agressões aos povos do mundo pode reduzir a compreensão do imperialismo como a fase atual do capitalismo. Se não se compreende o imperialismo como o capitalismo atual, pode-se chegar, por muitos caminhos, a relegar a segundo plano a exploração da classe operária e seu papel revolucionário. Dessa forma, substituir a contradição burguesia/proletariado como a contradição principal. E, portanto, degenerar no revisionismo e no oportunismo.
Na época em que Althusser escreveu o Livro sobre o Imperialismo, a formulação revisionista para a contradição principal do imperialismo era a seguinte: “a contradição entre ‘o campo imperialista’ e ‘o campo socialista’” (pg. 187), conforme a declaração de 1960 dos partidos comunistas e operários que orbitavam a URSS de Khruschov. Sem falar dos aspectos concretos da época – “coexistência pacífica”, “cooperação econômica”, que mostravam o caráter não antagônico desse relacionamento – onde estão as classes e sua luta nessa formulação do revisionismo?
Althusser busca então a seguinte formulação para a contradição principal do imperialismo:
“A contradição principal é: a contradição antagônica existente entre a classe capitalista em escala mundial e a classe operária em escala mundial + os aliados da classe operária mundial, a saber os povos lutando por sua libertação” (pg. 188).
Por fim, se o imperialismo é a etapa final do capitalismo, a ser derrubado pela revolução socialista, dando lugar à ditadura do proletariado e ao longo período de transição ao comunismo, a barbárie não está descartada como futuro da “civilização”. A retomada da palavra de ordem “Socialismo ou Barbárie” (explicitando sua vinculação a Marx, Engels e Lênin, além de Rosa Luxemburgo) é expressão da concepção materialista da história como um processo sem sujeito nem fim/fins. Não há no marxismo uma teleologia ou filosofia da história, no qual seus passos já estejam de antemão predeterminados.
Ao contrário, a luta de classes e a capacidade de o proletariado vencer seu inimigo momentaneamente mais forte, a burguesia, é que determinarão o curso da história, permanentemente indefinido e sujeito a “regressões”. Nas palavras de Althusser:
“Ele [o imperialismo] impõe à luta de classes uma tal forma que nós estamos diante de uma ‘bifurcação’, uma ‘encruzilhada’: ou a classe operária consegue, por sua luta de classe, impor o socialismo, e nós nos engajaremos, portanto, na Longa Marcha que, pela ditadura do proletariado, conduzirá ao comunismo, ou ela falha (por algum tempo ou para sempre) e nós acabaremos na ‘barbárie’, quer dizer em formas de decomposição e putrefação do próprio imperialismo” (pg. 210).
“Sobre o imperialismo: que ele já está em decadência e que ele pode apodrecer de pé indefinidamente, e de mais a mais, até a ‘barbárie’. Sobre o futuro: este será ou o socialismo ou a barbárie, conforme a classe operária e seus aliados tomem o poder ou sofram indefinidamente a dominação da classe burguesa – portanto conforme o fato de que a luta da classe operária possa ser conduzida à vitória seguindo uma linha de massas justa e observando práticas de massa justas” (pg. 211).
Politicamente, o fato de nada estar decidido de antemão na luta de classes, isto é, na história, é um chamamento à luta proletária revolucionária: “Mesmo se ela houver perdido, a classe operária pode ainda retomar a iniciativa”(pg. 210-1). Esta “encruzilhada” perdura até hoje, com os sinais da barbárie capitalista se avolumando enormemente no mundo todo, em especial após o início da última grande crise do imperialismo há dez anos.
É preciso retomar o partido comunista, sua justa linha revolucionária, e a organização política do proletariado para avançar em sua luta de classes rumo ao socialismo e ao comunismo.
Cem Flores
26.08.2018
Livro sobre o imperialismo
Louis Althusser
(extratos)
(1973)
[Advertência]
Este livro está consagrado a uma questão “clássica” no marxismo após Lênin: ao imperialismo.
Por que este livro?
Por uma razão simples. Nós vivemos na “etapa” do imperialismo, que é a última etapa da história, quer dizer da existência do capitalismo. Mesmo se lutamos, ao lado da classe operária, contra o imperialismo, nós somos submetidos ao imperialismo. Ou seja, para vencer o imperialismo, nós devemos conhecer o imperialismo, nós devemos conhecer o que distingue o imperialismo das outras etapas do capitalismo, nós devemos ter uma ideia a mais precisa possível das suas características próprias e dos seus mecanismos. É somente a partir dessa condição que a luta de classe proletária será bem conduzida e poderá desembocar na revolução, na ditadura do proletariado e na construção do socialismo: nessa Longa Marcha que nos fará passar do capitalismo ao comunismo.
Mas vocês poderão dizer que essas coisas são bem conhecidas. Nessas condições, por que este livro?
Essas coisas são bem conhecidas… Isso é tão certo assim?
É verdade que nós falamosdo imperialismo e que nós repetimos de bom grado as fórmulas de Lênin sobre as guerras e agressões imperialistas, sobre a partilha do mundo, sobre a pilhagem das riquezas dos países não imperialistas, etc. É verdade que nós apoiamos a luta heroica dos povos da Indochina contra o imperialismo francês, depois o americano, vencido militar e politicamente em terreno menor que o nosso e sobretudo por outros que não nós. E, no entanto, vejamos o que se passa: nós temos naturalmente a tendência a identificarimperialismo com as conquistas e agressões “coloniais” ou “neocoloniais”, com a pilhagem e a exploração do Terceiro Mundo. Tudo isso faz realmente parte do butim do imperialismo. Mas sabemos que o imperialismo se exerce antes de mais nada e sobretudo nas metrópoles, sobre as costas dos trabalhadores das metrópoles? Que o imperialismo é antes de mais nada e sobretudo uma questão interior (e mundial) antes de ser uma questão de intervenções externas?
É preciso, portanto, que as coisas estejam claras.
Para Lênin, o imperialismo é a “etapa suprema”, “última”, “culminante” do capitalismo, em um sentido extremamente preciso. É a última etapa da história, quer dizer da existência do capitalismo. Depois, acabou: não haverá mais capitalismo. Depois, é a revolução proletária, a ditadura do proletariado e a construção do socialismo. Depois começa uma muito longa “transição”, que deverá passar do capitalismo ao comunismo: justamente a construção do socialismo, abrindo a via para a passagem ao comunismo.
Mas atenção! Quando Lênin diz: o imperialismo é a última etapa do capitalismo, e depois acabou – é preciso observar
- que essa última etapa pode durar muito tempo
- que depois nos encontramos diante de uma alternativa: depois é “ou então o socialismo, ou então a barbárie”. Essa frase é de Marx e Engels[3]. Ela quer dizer: a história não tende “naturalmente” e sozinha ao socialismo, pois a história não persegue a realização de um objetivo, como creem todos os idealistas. Ela quer dizer: se as circunstâncias são favoráveis, quer dizer se a luta de classes proletária tiver sido bem conduzida, então, e somente então, o fim do capitalismo pode desembocar na revolução e no socialismo, conduzindo, por uma longa marcha de “transição” ao comunismo. Se não, o fim do capitalismo pode desembocar na “barbárie”. O que é a barbárie? Uma regressão, um apodrecimento, como a história da humanidade já ofereceu centenas de exemplos. Sim, nossa “civilização” pode morrer, não apenas sem passar a uma “etapa” superior, nem regressar a uma etapa inferior que já existiu, mas acumulando todos os sofrimentos de um parto que não pôde se concluir e de um aborto que não é uma libertação[4].
Notas.
[1]ALTHUSSER, Louis. Écrits sur l’Histoire (1963-1986). Paris: Presses Universitaires de France (PUF), março de 2018, 281 pg.
[2]Nota do Cem Flores: Não obstante, em carta a Balibar de 19 de julho de 1973, Althusser menciona o seguinte título para o texto no qual estava trabalhando: “O que é o imperialismo: rumo à crise final do imperialismo”. Nos arquivos há também um texto intitulado “Sobre a crise final do imperialismo”, que permanece inédito.
[3]Nota do Editor: A fórmula célebre “socialismo ou barbárie”, atribuída a Engels por Rosa Luxemburgo em 1916, parece ser a sua própria formulação concisa de uma fórmula que Lênin empregou em artigo publicado alguns meses antes. R. Luxemburgo, A Crise da Social-Democracia[“Brochura de Junius”] seguida de sua crítica por Lênin, trad. J. Dewitte, Bruxelas, La Taupe, “Documentos socialistas”, 1970, pg. 68; Lênin, Obras, op. cit., t. XXI, pg. 295. “Fora da guerra civil pelo socialismo, não há salvação contra a barbárie […]”. A fórmula de Lênin, por sua vez, é uma variação sobre um tema de K. Kautsky, Das Erfurter Programm (1892), Berlim, Dietz, 1965, pg. 141.
[4]Nota do Editor: O texto da Advertência se interrompe aqui, provavelmente inacabado. Althusser desenvolve as questões abordadas aqui num capítulo que parece ser uma outra versão do começo do Livro sobre o Imperialismo, “Barbárie: o fascismo foi uma primeira forma”, pg. 207 e seguintes, a seguir.