CEM FLORES

QUE CEM FLORES DESABROCHEM! QUE CEM ESCOLAS RIVALIZEM!

Cultura, Lutas, Teoria

Outubro e nós (Parte III)

Reproduzimos nessa publicação a 3ª parte do texto Outubro e Nós, do camarada Ângelo Novo, publicado recentemente na edição nº 27 de O Comuneiro. Como indica a apresentação da revista “Ângelo Novo prossegue com a terceira parte da sua pesquisa refletida sobre o significado dos caminhos de outubro para a nossa própria circunstância atual. Desta feita, o objeto em estudo abrange a própria revolução bolchevique, dos decretos sobre a paz e a terra até à morte de Lenine. Aqui se concentra, de forma intensamente dramática, o núcleo essencial desta aventura histórica, dando ocasião a que o autor lance mão de alguns dos seus mais arrojados recursos estilísticos. Na quarta e última parte, abordar-se-á toda a vaga revolucionária do século XX e a espuma que dela ainda persiste, nessa nova vaga em formação para nos transportar ao assalto do futuro.”

Acesse aqui a 2ª parte e a 1ª parte desse artigo.

Outubro e nós (Parte III)

Ângelo Novo[*]

Caminhando um caminho novo

Passar diretamente da clandestinidade para o poder deixou Lenine um pouco tonto, segundo confidenciou na altura aos seus camaradas. Mas não perdeu muito tempo a meter-se ao trabalho, com os seus hábitos meticulosos de sempre. A 26 de outubro, no segundo dia do II Congresso dos Sovietes de Deputados Operários e Camponeses, foram aprovados os cruciais decretos (ukases) da paz e da terra. Lenine passou uma boa parte da noite anterior a redigir este último, baseando-o numa resenha das petições contidas nos mandatos aos deputados ao congresso dos sovietes camponeses, publicada nos respetivos Izvestia. Esperava deste modo erguer uma barreira de defesa da revolução de outubro absolutamente intransponível para os seus inimigos [2]. E não se enganaria, embora tenha assim dado início a uma relação sinuosa e frequentemente desencontrada com as expetativas dos pequenos e médios camponeses russos.

O decreto da terra foi de imediato publicado em separata e enviado para todos os cantos do país. Basicamente, era abolido todo o direito de propriedade privada sobre a terra (em especial dos latifundiários, da coroa e da Igreja), sendo confiada a redivisão e distribuição do usufruto sobre a terra arável aos comités agrários e aos sovietes camponeses locais, que no fundo eram as novas vestes revolucionárias assumidas pelo ancestral mir aldeão. Os bolcheviques abdicavam do seu programa agrário socialista, esperando poder persuadir no futuro os camponeses mais pobres de que era esse o melhor caminho a tomar para as suas vidas. Entretanto, far-se-á plena confiança na iniciativa livre e autónoma das massas.

O programa agrário assim realizado era, na verdade, o dos SR’s, mas estes podiam apenas reivindicar a sua autoria intelectual, pois que, na prática, haviam obstaculizado por todos os meios a sua concretização a partir dos governos provisórios em que participaram, sob pretexto de a depositar nas mãos da sempre adiada Assembleia Constituinte. Inclusivamente, haviam apoiado, a partir do governo, planos de reforma agrária conciliatórios em relação ao latifúndio e a repressão dos comités agrários que demonstravam maior iniciativa radical no terreno. Há quem acuse os bolcheviques de oportunismo cínico, mas na verdade eles limitaram-se a sancionar um movimento revolucionário que, com o seu expresso apoio, contra o governo provisório, estava já em crescente e imparável avanço no terreno desde esse mesmo verão.

Os bolcheviques promoviam, por esta forma, uma aliança social operário-camponesa que se expressava historicamente numa articulação entre uma revolução proletária citadina (com uma expetativa de integração e sobrepujamento pela sua extensão ao resto do mundo capitalista) e uma revolução democrática popular nos campos. Na verdade, dentro do aparato teórico bolchevique clássico, a nacionalização da terra e sua distribuição de forma igualitária era tão só levar “até ao fim” a revolução democrática nos campos, com o apoio da esmagadora maioria do campesinato, arrancando impiedosamente do terreno todos os vestígios senhoriais. Para se ir mais longe, em direção ao socialismo, era necessária aguardar que uma nova polarização social se consolidasse no mundo rural, para então mobilizar o proletariado agrícola e os camponeses pobres contra os proprietários capitalistas mais abastados (kulaks), agora sim, com base num projeto de exploração coletiva do solo.

O decreto da paz é apenas uma proposta dirigida pelo governo operário e camponês da Rússia aos povos e aos governos de todos os países beligerantes para que se decrete um armistício de três meses e se iniciem de imediato conversações para uma paz democrática sem anexações ou tributos. É abolida a diplomacia secreta, comprometendo-se o governo russo a publicar todos os tratados secretos concluídos pelos anteriores governos dos latifundiários e capitalistas, que se declaram nulos e de nenhum efeito. É dirigido um apelo especial aos operários conscientes de Inglaterra, Alemanha e França para que seja definitivamente libertada a humanidade dos horrores da guerra, e, simultaneamente, libertadas as massas laboriosas de toda a escravidão e exploração [3].

O congresso dos sovietes elegeu um novo VTsIK, o comité executivo que era, na verdade, um órgão legislativo que deveria operar de forma permanente entre sessões do congresso. Presidido inicialmente por Kamenev, depois por Sverdlov, ficou composto por 67 bolcheviques e 29 SR’s de esquerda, sendo os 20 lugares restantes divididos entre diversos grupos minoritários. O órgão executivo nacional que foi então empossado intitulou-se conselho de comissários do povo (Sovnarkom), sendo presidido por Lenine e composto unicamente por bolcheviques. Trotsky assumiu aí os negócios estrangeiros, Lunatcharsky a educação, Estaline as nacionalidades, Shliapnikov o trabalho. Aleksei Rykov (1881-1938) era comissário do povo do interior, Viktor Nogin (1878-1924) abraçou o comércio e indústria, Ivan Skvortsov-Stepanov (1870-1928) as finanças, Vladimir Milyutin (1884-1937) a agricultura, Georgy Oppokov (Lomov) (1888-1938) a justiça, Nikolai Glebov-Avilov (1887-1937) os correios e telégrafos, Ivan Teodorovich (1875-1937) a alimentação, sendo o exército e a marinha entregues a um comité composto por Vladimir Antonov-Ovseenko (1883-1938), Nikolai Krylenko (1885-1938) e Pavel Dybenko (1889-1938). Quase todos estes homens têm datas de falecimento muito aproximadas e pode desde já adiantar-se que, quando é esse o caso, as respetivas causas não foram naturais.

Cabia ao Sovnarkom a responsabilidade de encabeçar toda a administração pública, mas esta entrou então massivamente em greve, recusando-se a reconhecer e a colaborar com o novo poder. O mesmo fizeram, aliás, bancários, professores, telefonistas, telegrafistas, etc.. A poderosa federação sindical dos ferroviários (o Vikzhel) ameaçou entrar também em greve geral, a menos que se conseguisse um entendimento político para empossar um governo de unidade socialista. Nadezhda Krupskaya, nas suas memórias, tem uma descrição impressionante do que foram estas primeiras semanas de trabalho de Lenine, procurando erguer com as mãos nuas, juntamente com os seus companheiros, as traves mestras de um Estado inteiramente novo para esta imensa Rússia [4].

A opinião ilustrada russa era praticamente unânime no prognóstico de que a absurda tomada do poder pelos bolcheviques seria efémera, estando provavelmente destinada a colapsar por si própria em poucos dias. A coordenação política da contrarrevolução estava entregue a um comité de salvação pública, que atuava a partir da Duma de Petrogrado, com comités locais atuando um pouco por todo o país.

Foram exploradas algumas vias de possível conciliação entre o novo poder e os partidos filossoviéticos apeados pela revolução de outubro, as quais dariam causa, uma vez mais, à manifestação de importantes clivagens no seio do próprio Partido Bolchevique. SR’s e mencheviques exigiam uma maioria governamental para si próprios, o desarmamento da Guarda Vermelha, a exclusão de Lenine e de Trotsky do governo e um alargamento do VTsIK com a inclusão nele de fortes contingentes burgueses oriundos dos conselhos municipais de Petrogrado e Moscovo. Uma importante fação bolchevique direitista estava inclinada a aceitar estas condições ou a negociar com base nelas. Aí se incluíam, entre outros, Kamenev, Zinoviev (que haviam sido opositores da própria insurreição), Teodorovich, Rykov, Nogin, Lunatcharsky, Milyutin (todos eles comissários do povo), Sokolnikov, Lozovsky e Riazanov.

Lenine não se opôs ao prosseguimento das negociações para um governo de coligação, na base do reconhecimento do poder soviético, convencido de que elas soçobrariam por si mesmas. Efetivamente assim aconteceu, desde logo porque SR’s e mencheviques foram endurecendo ostensivamente as suas condições à medida que a situação militar parecia favorecê-los. Quando isso se revelou completamente ilusório, já não havia nada mais para negociar [5]. Os funcionários públicos foram regressando paulatinamente aos seus lugares, de forma desconfiada e reticente. Os SR’s de esquerda, constituídos em partido independente, aceitariam continuar conversações com vista a integrar o poder soviético. Aos SR’s de direita e aos mencheviques cabe a responsabilidade histórica de, tendo colaborado e aceitado ser leal oposição nos governos provisórios burgueses, não terem aceitado o mesmo papel na república democrática soviética [6].

Kerensky, fugido do Palácio de Inverno, conseguiu fazer um périplo acidentado pela frente norte, evitando à justa ser preso, mas não obteve apoio algum de tomo para os seus intentos contrarrevolucionários. O sentimento dominante nas trincheiras não era, de forma alguma, o ressentimento para com a guarnição de Petrogrado e a repulsa para com o novo poder. Muito pelo contrário. Depois de muitas instâncias conseguiu enfim arregimentar mil cossacos sob a direção do general Krasnov para “salvar a Rússia”. É bem uma medida do desprezo que estes senhores votavam ao povo russo rebelado que quisessem tomar Petrogrado com mil cossacos. Foi ao seu encontro, aos altos de Pulkovo, uma força revolucionária dez vezes mais numerosa e moralizada até ao excesso. Apesar de deficientemente coordenada, após alguns recontros sangrentos, conseguiu derrotar por completo a incursão contrarrevolucionária a 13 de novembro [7]. Foi o Valmy da revolução soviética. Kerensky evitou a rendição à última hora pondo-se novamente em fuga, desta feita disfarçado de marinheiro. Só pararia em França, para não mais voltar ao solo pátrio.

Simultaneamente, um levantamento dos cadetes da escola militar tomou os correios e telefones na capital, sequestrando Antonov-Ovseenko. O mesmo que, dias antes, vencedor no Palácio de Inverno, os deixara seguir em liberdade com a promessa de que não voltariam a levantar armas contra o poder popular. Desta feita as coisas não se resolveriam com a mesma displicência depois de novo triunfo da Guarda Vermelha, mobilizada em ambiente de grande comoção. As gigantescas caves do Palácio de Inverno e de outras mansões abandonadas foram por esses dias sujeitas a um saque pantagruélico. Em consequência destas excursões de razia sobre os “restos do czarismo”, a embriaguez chegou a ser um problema de ordem pública muito sério nestes primeiros tempos da Petrogrado revolucionária. Contudo, o arrebatamento coletivo suscitado pelo ascenso de uma nova ordem social conseguiu, ainda assim, manter a disciplina e aprumo militares nos níveis necessários para sustentar os desafios que lhe foram impostos.

Em Moscovo a luta durou seis dias, com várias reversões de fortuna. Houve muitas centenas de vítimas mortais e danos significativos em diversas joias patrimoniais do Kremlin [8]. O poder soviético consolidou-se ainda, de forma pacífica ou após breves recontros, em diversas outras cidades como Minsk, Kazan, Samara, Saratov, Lugansk, Nijni-Novgorod, Vinnitsya, Cheliabinsk, Ekaterinburg, Ivanovo-Voznesensk, Krasnoiarsk, Irkutsk, etc.. A Ucrânia e a Finlândia aproveitaram o ensejo do decreto sobre as nacionalidades para declarar uma independência antibolchevique sob hegemonia burguesa.

A 2 de novembro é publicada a declaração dos direitos dos povos da Rússia, um decreto regulamentando o direito à autodeterminação das nações submetidas ao império czarista, estabelecendo o princípio da igualdade e o direito à secessão. Logo nos primeiros dias da revolução é instituído o dia de trabalho de 8 horas, a semana de 48 horas, bem como legislação laboral protetora ao melhor nível mundial de então. A 14 de novembro sai o importante decreto sobre o controlo operário. Até ao final do ano, o Sovnarkom (em muito menor grau também o VTsIK) embarcou numa febril atividade legislativa que abarcou o poder judicial, família e divórcio, a liberdade religiosa e separação entre estado e igreja (e entre esta e a escola), para além de numerosos outros assuntos de interesse público. Em janeiro de 1918 é publicado um importante diploma pré-constitucional, intitulado Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado. Na estimativa de Trotsky, uma boa parte da legislação soviética destes primeiros anos podia bem figurar nas obras completas de Lenine (engordando-as em mais uns copiosos volumes) pois que resultou dos resumos, conclusões e sistematizações por ele elaborados a partir de infindáveis horas de discussões no Sovnarkom ou no comité central bolchevique.

A 5 de dezembro é instituído o Soviete Supremo da Economia Nacional (VSNKh ou Veshenka), com o encargo de planear a vida económica e o uso dos recursos financeiros do país, sendo seu primeiro presidente Valerian Osinsky (1887-1938), um jovem radical moscovita do círculo de Bukharine. Este último foi, entretanto, absorvido pelas tarefas de diretor do Pravda, embora Lenine tivesse preferido que ele se concentrasse mais em tarefas económicas. No mesmo dia 5 de dezembro, criou-se ainda a Comissão Extraordinária Panrussa para Combater a Contrarrevolução e a Sabotagem (ChK ou Cheka), entregue à direção de Felix Dzerzhinsky (1877-1926), poeta e experiente revolucionário de origem polaca, companheiro de Rosa Luxemburgo.

Após semanas sucessivas de choques e atritos vários, a 14 de dezembro de 1917, de manhã, a Guarda Vermelha ocupou todos os bancos e, à tarde, o VTsIK fez sair um decreto que os nacionalizou. A atividade bancária foi declarada monopólio do estado e todos os bancos fundidos com o banco estatal. É já conhecida a fé que Lenine depositava na banca moderna como instrumento central de gestão de uma economia em socialização, que ele poderá ter recolhido em Saint-Simon e que, inconfessadamente, partilhava com austromarxistas contemporâneos como Rudolf Hilferding e Otto Bauer. Toda a dívida externa do estado russo foi repudiada em bloco.

A revolução soviética foi saudada entusiasticamente por toda uma geração de artistas de vanguarda: futuristas, cubistas, construtivistas, suprematistas, etc.. Houve, desde logo, uma enorme explosão de dinamismo, intervenção e criatividade cultural, que passava pelas grandes salas de espetáculo para chegar aos cafés, clubes, cabarets e à própria rua. Nas artes plásticas notabilizaram-se nomes como Wassily Kandinsky, Marc Chagall, Kazimir Malevitch, El Lissitzky, Vladimir Tatlin, Boris Kustodiev, Liuba Popova, Varvara Stepanova, Aleksandr Rodchenko. O rasto de inquieta criatividade trazido por estes artistas chegaria aos cartazes políticos, ao cinema, ao grafismo, à arquitetura, à cerâmica, ao mobiliário e mesmo ao vestuário. O projeto de monumento à terceira internacional (Tatlin) ou o cartaz litográfico “Vence os brancos com a cunha vermelha” (Lissitzky) ficaram emblemáticos. No teatro destacaram-se dois gigantes, o já maduro Konstantin Stanislavsky e o dinâmico e entusiasta Vsevolod Meyerhold. Na poesia, evidenciaram-se três nomes maiores de jovens, todos de perfil trágico: Aleksandr Blok, Vladimir Mayakovsky e Sergei Essenine. Boris Pasternak também chegou a ser companheiro de viagem. Mais tarde, já na NEP, chegaram os cineastas Sergei Eisenstein, Vsevolod Pudovkin, Aleksandr Dovzhenko e Dziga Vertov, este um documentarista conhecido pelo seu kino pravda [9].

A revista da Frente de Esquerda nas Artes, nas suas duas séries (LEF e Novy LEF), publicadas entre 1923 e 1929, foi a mais acabada expressão desta bissetriz entre modernismo e socialismo. Mayakovsky dirigiu as duas séries, a primeira delas juntamente com o crítico Osip Brik, marido de Lylia Brik, musa e femme fatale do movimento, com quem o poeta acabara então de terminar uma relação apaixonada de vários anos. A casa dos Brik em Moscovo ganhou fama de ser um ponto de encontro entre intelectuais e chekistas. A irmã mais nova de Lylia viria a ser conhecida nas letras francesas como Elsa Triolet e infetaria com o vírus comunista a Louis Aragon, seu amantíssimo segundo esposo.

Aleksandr Bogdanov, expulso dos bolcheviques em 1909, desiludido com a ação política, escreveu duas novelas de ficção científica sobre sociedades socialistas em Marte. Regressou à Rússia aproveitando uma amnistia, a tempo de ser imediatamente mobilizado para a guerra. Saudou depois as sucessivas revoluções de 1917, sendo embora favorável à unidade socialista e à Assembleia Constituinte. Continuou distante dos bolcheviques, colaborando na Novaya Zhizn de Gorky. Avançou, porém, com uma proposta de grande radicalidade, que previa uma completa rotura com toda a arte e cultura burguesas. Surgiu daí o movimento por uma cultura proletária, o Proletkult, sob a forma de uma federação de associaçõesartísticas onde o vanguardismo estético se fundia com o extremismo político. Arte, ciência e vida quotidiana deviam ser totalmente revolucionadas [10].

No seu auge, em 1920, o Proletkult chegou a ter 84.000 membros distribuídos por 300 estúdios, clubes, cooperativas, sindicatos e grupos fabris. A sua direção manteve-se sempre nas mãos de intelectuais pequeno-burgueses, muitos deles aliás não bolcheviques. A sua proposição básica consistia na ideia de que a cultura proletária se caraterizava necessariamente pelo coletivismo e por uma união indestrinçável entre as dimensões física e espiritual. A partir daí, porém, investigações e experiências não avançaram mais resultados conclusivos de valia indiscutível. E o proletariado não se reconhecia nas suas produções. Embora se verificasse uma explosão de interesse das classes populares pela fruição cultural, a sua procura dirigia-se sistematicamente para espetáculos esteticamente mais conservadores. Nadezhda Krupskaya quis remeter as atividades do grupo para o departamento de educação de adultos do comissariado do povo dirigido por Lunatcharsky (onde ela própria trabalhava), mas os seus dirigentes eram muito ciosos da sua autonomia e tinham uma ideia muito mais ambiciosa da sua missão histórica. Entre os seus periódicos mais destacados contaram-se Proletarskaia kultura e Gorn (O Forno). As peculiares teorias educacionais de Bogdanov foram também postas em ação na denominada Universidade Proletária de Moscovo.

Dispondo inicialmente de apoios públicos, o Proletkult começou desde muito cedo a ser contestado frontalmente por Zinoviev, Lenine, Trotsky e Gorky. Gozava apenas do apoio de Bukharine e mais alguns dos seus amigos esquerdistas. O grupo acabou por cair decididamente em desfavor ainda durante a guerra civil. Procurou-se, então, revalorizar e difundir a herança cultural burguesa, preservando na íntegra a liberdade de criação e investigação. Um novo catecismo socialista para a cultura viria a surgir apenas já nos anos 1930, mas agora sem qualquer sturm und drang vanguardista. Bogdanov morreu 1928, quando procurava rejuvenescer-se por meio de sucessivas transfusões sanguíneas. Intrépido batedor para uns, charlatão para outros. Nem vale a pena dizer de que lado esteve Lenine nessa disputa.

Com a revolução de outubro, como na promessa bíblica, os humildes foram exaltados e os soberbos humilhados. É uma circunstância rara, em termos históricos, mas de forma alguma excecional. Na experiência de vida do comum dos mortais, pode bem nunca ocorrer um único instante desses, que todos fomos educados para considerar a suprema das abominações. Mas no cômputo global das eras e das civilizações, há abundantes registos de experiências dessas. Basta ler Tucídides [11].

Na história geológica, há também abundantes registos de tremores de terra, inundações e deslizamentos. São catástrofes que respondem por muitas tensões acumuladas paulatina, quase impercetivelmente, ao longo de muito tempo. A analogia é seguramente imperfeita e serve aqui, naturalmente, apenas como uma imagem literária. No entanto, tenho para mim que as sociedades humanas são, de algum modo, equiparáveis a sistemas homeostáticos, no sentido de que não podem ser sujeitas indefinidamente a tensões centrífugas sem que se produza nelas uma reação reintegradora. Eu alargaria a conhecida ideia de Karl Polanyi sobre um “duplo movimento” na sociedade capitalista para dizer que todo o transcurso histórico das sociedades de classes, até hoje, parece ser animado por um conjunto integrado de tensões centrífugas e centrípetas. As primeiras destroem o patamar de solidariedade social existente, enquanto as segundas vão tentar repor essa coesão mínima, agora já a um novo nível de complexidade na organização produtiva. É este o rasto geral aparente deixado pelas lutas de classes nas sociedades ditas civilizadas. Nele, a revolução soviética ficará certamente registada como um grande evento centrípeto de repercussão mundial.

Famílias russas que viviam confortavelmente e que não puderam ou não quiseram partir para o exílio, passaram anos de privação, de insegurança e de vexame, na sequência da revolução bolchevique. O povo russo não precisou de se ilustrar com a leitura de clássicos do marxismo, nem de recolher instruções avulsas de doutrinadores encartados. Entendeu instintivamente que era chegada a hora de um nivelamento social geral e fê-lo sentir aos de cima de uma forma rude, por vezes com uma ponta de requintada crueldade. Deixou por completo de haver senhores e senhoras (barin) nas ruas citadinas. Serviçais e trabalhadores circulavam com as camisas desabotoadas, bonés à banda e pistolas ostensivamente presas à cintura. Interpelavam com aspereza os burgueses (burzhooi), nas lojas, nas repartições, nos teatros, nos transportes públicos. As filas de abastecimento racionado eram iguais para todos. Mas as rações atribuídas a famílias da antiga burguesia correspondiam a um terço das de trabalhadores normais e a um quarto das de trabalhadores em funções de grande desgaste físico. Membros da antiga burguesia de ambos os sexos, dos 14 aos 55 anos, tinham de trazer consigo um “livro de trabalho”, por meio do qual provariam ter executado recentemente tarefas produtivas, sem o que não lhes seriam dadas quaisquer senhas de racionamento ou autorizações para viajar. Tribunais populares aplicavam uma justiça revolucionária. Buscas, confiscos e requisições eram quotidianos.

As boas mansões foram retalhadas para dar habitação a várias famílias proletárias, às ordens de comités locais de moradia. Nestes comités pontificavam, por vezes, muitos porteiros ou empregados domésticos, que democraticamente conduziam os trabalhos de modo a que aos donos das casas se atribuíssem as dependências subalternas, enquanto os quartos nobres eram atribuídos a si próprios ou a famílias operárias [12]. A ditadura do proletariado era uma realidade concreta, quotidiana e amplamente participada, não uma abstração ideológica formada na cabeça de alguns, como se quer, por vezes, fazer crer.

Entre as primeiras medidas legislativas do poder soviético esteve a abolição do casamento religioso, a despenalização da homossexualidade, a legalização do aborto, a liberdade do divórcio a requerimento de um dos cônjuges, a concessão de iguais direitos políticos, sociais e económicos à mulher, a igualdade civil dos filhos nascidos fora do casamento. Todas estas medidas foram sistematizadas, em 1918, num Código de Direito de Casamento, Família e Tutela. Conjugado com o ambiente febril e as agudas privações da época, este quadro legal criou uma tremenda instabilidade nas relações familiares. Estas nunca viriam realmente a consolidar-se em qualquer novo modelo, com as crianças finalmente a pagar o preço por isso. Em 1921, havia cerca de sete milhões de crianças sem morada, vagueando em toda a Rússia.

O bolchevique com ideias mais claras no campo das relações de família foi, sem dúvida, Aleksandra Kollontai, que chegou a ser comissária do povo para a assistência social, demitindo-se em protesto contra a paz de Brest-Litovsk. Fundou e dirigiu depois o departamento da mulher (Zhenotdel) no secretariado do comité central do Partido Bolchevique. Kollontai promoveu o conceito de uma “nova mulher”, liberta da opressão do casamento, do trabalho doméstico e da criação de filhos. Todas essas tarefas deveriam ser assumidas pela sociedade e pelo estado. Por meios públicos ou associativos se deveria assegurar o cuidado e a educação das crianças, a moradia coletiva – com serviços domésticos integrados de cozinha, lavandaria, creche, etc. – e a assistência social. A família nuclear monogâmica, já em crise, estava destinada a dissolver-se no comunismo, como o próprio estado. Para Kollontai, o amor deveria ser libertado da ideologia e do impulso psicossocial possessório, com a “união livre” a tomar o lugar do casamento tradicional [13]. Isso, ela própria o praticou, aliás, com assinalável coragem, nas suas ligações publicamente assumidas com Pavel Dybenko (que, ele sim, fez questão de se casar com ela) e Aleksandr Shliapnikov, dois homens consideravelmente mais novos e também de origem social muito inferior à sua.

Aleksandra era uma mulher bela, elegantíssima e absolutamente temerária na afirmação das suas ideias de “revolução sexual” – em parte inspiradas pela escritora feminista austríaca Grete Meisel-Hess – para a prossecução das quais colocou sempre uma esperança inabalável na classe trabalhadora. Já a teoria do amor como “copo de água”, a tomar livremente por quem se quisesse dessedentar sexualmente, altamente escandalosa e explicitamente reprovada por Lenine, não encontra qualquer apoio nos escritos ensaísticos de Kollontai, embora lhe seja frequentemente atribuída, com base em falas de uma personagem de uma novela sua. O seu ideal era antes o de um “eros alado”, ou amor-camaradagem, em que a atração física entre dois seres se eleva, sem amarras, à pesquisa mútua das mais ricas e multiformes cambiantes espirituais e morais, no respeito e em sintonia com a busca coletiva de um destino social de solidariedade e liberdade.

Os anos iniciais da revolução soviética foram bem preenchidos com manifestações ousadas, próprias de um ambiente em que tudo, subitamente, parecia possível e tudo podia ser questionado. Sem dispor, de forma alguma, de apoio oficial, havia por então um grupo de agit-prop revolucionária que se passeava nu pelas ruas, ostentando uma braçadeira onde se lia “Abaixo a vergonha!”. Chegou a organizar assim uma marcha com perto de 10.000 participantes, culminada com discursos e palavras de ordem. Havia, aliás, nesse tempo, uma praia fluvial de nudistas em Moscovo, bem à vista da catedral de Cristo o salvador [14]. Mas esta era, enfim, uma questão que, pela natureza das coisas, não podia deixar de estar marcada por uma certa sazonalidade.

O decreto da terra foi logo seguido de um apelo do Conselho de Comissários do Povo aos camponeses para que tomassem o poder sobre as terras em suas próprias mãos. O que eles já vinham fazendo e não deixaram de fazer então de forma acrescida. As linhas gerais desta revolução agrária teriam uma concretização mais detalhada na lei sobre a socialização da terra, aprovada pelo 3.º Congresso Panrusso dos Sovietes, em 18 de janeiro de 1918. Era uma altura em que havia colaboração governativa entre bolcheviques e SR’s de esquerda, sendo aliás o titular do Comissariado do Povo para a Agricultura (Narkomzem) um membro deste último partido, Andrei Kolegaev.

A redistribuição do uso da terra ficou sempre a cargo dos comités da terra e/ou sovietes locais, sendo muito assimétrica ao longo de todas as zonas do país sob controlo revolucionário, de acordo com diferentes caraterísticas geográficas, sociais ou políticas. Os SR’s de esquerda favoreciam o critério da distribuição por número de braços disponíveis para o trabalho, enquanto os bolcheviques tendiam a favorecer uma redistribuição com base nas bocas a alimentar, ressalvando sempre a possibilidade futura de criação de unidades coletivas, entendidas como mais produtivas. Em qualquer caso, a redistribuição foi radical. Em consequência, o grosso do campesinato (mesmo que relativamente abastado) ficou para sempre solidamente ligado à revolução, reagindo fortemente a quaisquer sugestões ou tentativas de reversão. Suportaria mais tarde estoicamente as requisições do poder bolchevique, pelo menos enquanto sentiu do outro lado a ameaça da reação senhorial.

Até ao início dos anos 1930, a Rússia soviética postou-se na vanguarda mundial do conservacionismo ecológico [15]. Leis para a proteção das florestas foram publicadas em 1918 e 1923, sendo criada uma administração florestal centralizada. Foi regulamentada a caça e protegidas espécies de fauna selvagem. Lenine era um grande amante da natureza e tinha muito apreço por destacados cientistas que podem ser considerados entre os fundadores do ecologismo russo, como o entomologista Grigory Kozhevnikov, o ornitólogo Vladimir Stanchinsky, o geobotânico Vladimir Sukachev, o geoquímico Vladimir Vernadsky ou o agrónomo Nikolai Vavilov. Outro aliado seu nesta luta foi Lunatcharsky, no seu posto dirigente do Comissariado do Povo para a Educação (Narkompros). Foi sob a sua tutela que foram criadas as reservas naturais de natureza virgem (zapovednik), com intuitos científicos e pedagógicos. As primeiras a ser criadas, em Astrakhan e nos Urais, foram iniciativas pioneiras deste tipo em todo o mundo. Em 1929 elas abrangiam já 4 milhões de hectares. Foi ainda criado um Comité Estatal para a Proteção dos Monumentos da Natureza. Mas a iniciativa não vinha só do estado, pois que surgiram numerosas sociedades e associações ambientalistas, reunidas depois em diversas federações nacionais conservacionistas.

Escolhos e bifurcações

Desde 1905, a convocação de uma Assembleia Constituinte era uma palavra de ordem fundamental do Partido Bolchevique. Juntamente com a nacionalização da terra e o horário de trabalho de oito horas formava um dos três pilares (ou três baleias, por referência a uma fábula cosmogónica popular russa) do bolchevismo. De março a outubro de 1917, os bolcheviques não se cansaram de protestar contra o constante adiamento da sua eleição. Sempre fora defendida a sua compatibilidade e complementaridade com o poder soviético. As listas eleitorais foram formadas antes de outubro, de acordo com uma lei eleitoral emanada do governo de Kerensky. A data do escrutínio fora igualmente então fixada em 12 de novembro de 1917. As listas SR’s, elaboradas antes da cisão no partido, colocaram nos lugares privilegiados conhecidas figuras direitistas, que dominavam o aparelho partidário. Os SR’s de esquerda cindiram imediatamente após a revolução de outubro (a propósito da atitude a tomar perante o II Congresso Panrusso dos Sovietes), mas constituir-se-iam em partido independente apenas em dezembro de 1917.

Lenine, tomando em consideração as novas realidades políticas, propunha agora novo adiamento da eleição, bem como a revisão das listas, o banimento dos kadets e o alargamento etário do eleitorado a todos os maiores de 18 anos. Sverdlov estava mais em contato com os sentimentos nas províncias e sustentou não haver condições políticas para novos adiamentos. Por fim, Lenine, embora apreensivo, aquiesceu na concretização da eleição para a constituinte, no âmbito de um acordo político global com os SR’s de esquerda. Fez apenas questão de submeter a Assembleia Constituinte, como todos os restantes órgãos estatais eletivos, ao princípio da revocabilidade dos mandatos [16]. Este acordo político permitiu que os SR’s de esquerda passassem a integrar o Sovnarkom e outros aparatos estatais revolucionários, designadamente a Cheka. O novo Sovnarkom de coligação tinha 18 comissários do povo, dos quais 11 bolcheviques e 8 SR’s de esquerda, entre estes últimos estando o da agricultura, o da justiça e o dos correios e telégrafos.

O escrutínio para deputados à Assembleia Constituinte teve assim lugar por volta do previsto dia 12 de novembro, com algumas variações de distrito para distrito. Certas partes mais remotas do país não chegaram a conhecer qualquer eleição. Nesse tempo não se anunciavam resultados eleitorais nacionais horas depois do encerramento das urnas. Na verdade, ainda hoje não há números inequívocos. A expetativa generalizada era a de que se formaria uma assembleia muito dividida. Como se veio depois a apurar, o Partido Socialista Revolucionário assegurou perto de 18 milhões de votos (40%) e 380 deputados, para 10,6 milhões de votos (24%) e 168 deputados bolcheviques. Os SR’s ucranianos recolheram uns adicionais 3,4 milhões de votos (7,7%). Mencheviques (1,14 milhões – 2,6% – 18 deputados) e kadets (2 milhões – 4,7% – 17 deputados) eclipsaram-se no voto nacional, embora estes últimos tenham, ainda assim, recolhido bastantes votos nas cidades (onde foram geralmente a segunda força mais votada), expressando a confiança neles depositada pelo grosso da burguesia e pequena burguesia. Os mencheviques locais recolheram uma sólida maioria na Geórgia.

O partido de Lenine dominou expressivamente o escrutínio nas grandes cidades, bem como nas frentes de guerra norte e ocidente, as zonas geográficas que foram palco dos grandes afrontamentos revolucionários de caráter nacional no decurso desse ano. O Partido Socialista Revolucionário continuava a merecer a confiança da grande maioria do campesinato, mas é duvidoso que esse mandato tenha expressado fielmente a vontade dos eleitores. Mais provavelmente, essa vontade reiterava apenas, no essencial, aspirações que haviam sido entretanto incorporadas no decreto da terra elaborado por Lenine. Dos 380 deputados SR’s eleitos, apenas uma ínfima minoria aderira à sua ala esquerda, quando testes eleitorais recentes, nos sovietes camponeses, demonstravam que o balanço de forças entre as duas fações populistas estava, na verdade, muito equilibrado. Tivesse a composição da Assembleia Constituinte refletido essa realidade, ter-se-ia provavelmente formado nela uma maioria apoiante da revolução de outubro.

Enquanto decorriam as eleições para a Assembleia Constituinte realizou-se em Petrogrado o Congresso Panrusso dos Deputados Camponeses, no decurso do qual se solidificou a aliança entre bolcheviques e SR’s de esquerda. O VTsIK foi alargado para incluir deputados camponeses eleitos neste congresso, passando doravante a ser denominado como Comité Executivo dos Deputados Operários, Soldados e Camponeses. O órgão supremo da república passaria, de agora em diante, a ser o congresso panrusso unificado dos deputados de todos os sovietes, incluindo os camponeses.

A 13 de dezembro de 1917, Lenine faz publicar anonimamente no Pravda as suas ‘Teses sobre a Assembleia Constituinte’ [17]. Para além das circunstâncias específicas que debilitavam a legitimidade e a genuína representatividade da assembleia convocada, havia que estabelecer muito claramente que o poder soviético já constituído era de uma muito superior densidade democrática. Representava, para além disso, o franquear de uma era histórica mais avançada, a caminho do estabelecimento de uma ordem socialista, enquanto a Assembleia Constituinte fazia ainda parte do universo político burguês, que era uma ordem de privilégio e exploração. Caso surgisse, assim, uma incompatibilidade entre estes dois princípios de legitimidade político-constitucional, só à força revolucionária enérgica e decidida do proletariado é que caberá decidir a contenda.

Os deputados constituintes eleitos começaram a afluir à capital e, depois de alguns incidentes, a sessão inaugural da Assembleia Constituinte foi agendada para o Palácio Táuride a 18 de janeiro de 1918. Foi aí eleito como presidente Viktor Chernov, derrotando Maria Spiridonova na primeira prova de força entre os deputados. De seguida os bolcheviques propuseram à votação a consagração da Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, procurando assim submeter a Assembleia Constituinte ao poder soviético, fazendo-a reconhecer expressamente toda a legalidade por este, entretanto, instituída. A maioria derrotou facilmente esta proposta, levando a que bolcheviques e SR’s de esquerda abandonassem a assembleia. Por fim, a Guarda Vermelha deu ordem de dispersão da sessão, sem que os deputados remanescentes tivessem levantado grande resistência, provavelmente temerosos pela sua segurança. No dia seguinte o VTsIK dissolveu formalmente a Assembleia Constituinte, numa decisão que não levantou grandes controvérsias no campo revolucionário, nem, na verdade, qualquer assinalável comoção na sociedade.

A bandeira da Assembleia Constituinte, contudo, seria instrumental, a partir daí, como toque a reunir das forças contrarrevolucionárias e, sobretudo, na angariação de poderosos apoios internacionais para elas. Maioritariamente céticas ou mesmo abertamente abjurantes que eram em relação a quaisquer instituições democráticas, a hostes reacionárias passaram a dispor de uma palavra de ordem fácil, trompeteada à exaustão pelos ultraminoritários kadets: todo o poder à Assembleia Constituinte! Estavam demarcados os campos. Centenas e centenas de oficiais do exército czarista formam uma força voluntária antissoviética que começa a reunir-se na região do estuário do Don, onde o general Alexei Kaledine fora eleito ataman dos cossacos na sua assembleia tradicional, declarando-se depois em rebelião contra o poder de Moscovo.

Os rivais generais Kornilov e Alexeiev passaram por Novocherkassk, a ancestral capital cossaca, procurando estabelecer entre si uma difícil divisão de tarefas. O consciencioso general Brusilov, achando justa a causa antibolchevique, recusou-se a aderir. Na sua avaliação o povo russo já escolhera claramente os vermelhos e agora havia que acompanhá-lo no seu erro. O povo estava de uma maneira realmente impossível. Assediados por vermelhos ucranianos e pelos soviéticos de Rostov e Taganrog, os voluntários brancos são obrigados a uma retirada apertada sobre a estepe gelada até ao Kuban. Kaledine suicida-se com um tiro no coração (como fizera Krymov por altura da kornilovschina). O fogoso Kornilov morre atingido por um certeiro obus vermelho; o experiente e ponderado Alexeiev, de insuficiência cardíaca, alguns meses depois. Mas o foco criado pela marcha sobre o gelo pegaria finalmente de raiz, dirigido por um homem de segunda linha, o general Anton Denikine, assim que, nessa primavera-verão, a guerra civil em terras cossacas se definiu em favor das forças mais abastadas e tradicionalistas. A Ucrânia, por esses anos, foi um campo de passagem em constante tropel para alemães, monárquicos, republicanos burgueses, cossacos, polacos, franceses, vermelhos (russos ou locais), brancos, negros anarquistas e verdes camponeses.

A primeira constituição da República Soviética Federal Socialista Russa seria aprovada pelo 5.º Congresso Panrusso dos Sovietes (o verdadeiro poder constituinte) a 10 de julho de 1918 [18]. A classe trabalhadora era instituída como classe social dirigente, de acordo com os princípios da ditadura do proletariado. Uma aliança histórica entre operários e camponeses constitui o esteio fundamental da vida política deste novo estado, que tem por fim último abolir a exploração do homem pelo homem e acabar com a divisão da sociedade em classes antagónicas. Operários e camponeses devem armar-se e constituir-se em Exército Vermelho, desarmando as classes possidentes.

O órgão supremo da república era, naturalmente, o Congresso Panrusso dos Sovietes, composto por representantes dos sovietes urbanos, na base de 1 deputado por 25.000 habitantes, e representantes dos sovietes da província, na base de 1 deputado por 125.000 habitantes. O papel dirigente da classe operária tinha expressão muito concreta num acentuado enviesamento da representação democrática. O direito de voto é concedido a homens e mulheres, sendo excluídas as pessoas que empregam trabalho assalariado, as que vivem de rendimentos, comerciantes privados, monges, padres e funcionários e agentes da antiga polícia. Teve consagração constitucional o princípio bíblico de que quem não trabalha não come (art.º 18º). A opção pelo federalismo foi muito debatida e contraria orientações anteriores dos bolcheviques, sendo, contudo, a forma que se achou para acomodar transitoriamente o direito à autodeterminação nacional, até ser possível atingir finalmente a fraternal unidade socialista. Com já vinha sendo a prática, o congresso elegerá o VTsIK, que por sua vez elegerá o Sovnarkom. O princípio da separação de poderes foi completamente descartado, por ser incompatível com a democracia direta, ideal a atingir pela república proletária. A aprovação e entrada em vigor deste histórico marco político-jurídico seria o pretexto próximo para uma violentíssima polémica entre Kautsky e Lenine [19].

A 3 de dezembro de 1917 abriram-se negociações para um cessar-fogo com representantes dos impérios alemão e austro-húngaro. Essa parte foi fácil. Pelo privilégio de encetar negociações de paz separadas com os russos, os alemães concederam até termos de armistício muito honrosos e agradáveis. Os aliados, naturalmente, recusaram sumariamente quaisquer conversações de paz globais. A 9 de dezembro iniciaram-se na cidade bielorussa de Brest-Litovsk as negociações para os termos de paz definitivos na frente leste. Aqui é que iam ser elas. O governo revolucionário soviético já decretara internamente a paz, mas agora era preciso oferecê-la efetivamente ao povo russo, essa paz há tanto tempo prometida como uma coisa simples. E faltava saber até que ponto a aceitabilidade dos seus termos possíveis poderia ser envenenada pelas suspeições levantadas por certas viagens ferroviárias oferecidas em tempos, não só aliás a Lenine e seus correligionários. Martov e um grupo de mencheviques internacionalistas também haviam viajado nesse ano através da Alemanha em guerra, com o beneplácito das suas autoridades militares, para regressarem do exílio à Rússia revolucionária.

Trotsky encabeçava a delegação soviética às negociações. Fazia dela parte também o polaco Karl Radek (1885-1939), editor de um jornal antiguerra de língua alemã, que, com assinalável desenvoltura revolucionária, começou logo ali a distribuir pessoalmente propaganda antiguerra aos soldados germânicos, bem à vista dos seus oficiais superiores. O estado-maior teutónico não estava ali para alinhar em brincadeiras, nem para ouvir longas tiradas de denúncia anti-imperialista. A 14 e 15 de dezembro o general Hoffmann faz ler o seu rascunho de tratado de paz, com anexações em profundidade nos territórios do império russo. Trotsky rompeu as negociações e regressou a Petrogrado.

Lenine expressou em forma de teses a sua opinião de que, naquela conjuntura histórica, deviam ser aceites as condições de paz impostas pelos imperialistas germânicos. A sua opinião era minoritária no comité central bolchevique. Formaram-se aí três correntes, a mais forte das quais, encabeçada por Bukharine, era a favor do prosseguimento da guerra, agora num sentido revolucionário e sem alianças com quaisquer potências imperialistas. Enquanto não houvesse forças para tomar a ofensiva, far-se-ia uma guerrilha defensiva, sem concessões, esperando que as classes operárias europeias se inspirassem neste exemplo de impoluta integridade revolucionária.

Longe de ser um mero arrebatamento romântico, esta posição era, porventura, todas as contas feitas, a mais realisticamente calculada de todas. Nas circunstâncias em que se encontravam, não era crível que os imperialistas alemães se aventurassem a avançar muito mais do que aquilo que acabariam por fazer, de qualquer maneira, logo de seguida. Em contrapartida, poderia ter-se salvaguardado uma maior moralização, coerência e unidade no campo revolucionário. Teria sido, indiscutivelmente, uma posição muito mais favorável para influenciar um levantamento revolucionário antiguerra coordenado em toda a Europa. Assinando uma paz separada, deixaste de contar para os outros sacrificados por esta mesma guerra.

Lenine teve normalmente razão nas suas polémicas partidárias, por pensar melhor, mais claro e mais adiante. Aqui, a meu ver, foi demasiado conservador no seu cálculo dos riscos. Lenine não era, obviamente, um homem fisicamente timorato. No entanto, julgava-se investido de uma missão, depositário de um precioso fio de ligação/transmutação entre duas épocas históricas, que, em nome da humanidade, não tinha o direito de colocar estupidamente em risco de quebra. Honrou a palavra dada pelos bolcheviques de que se faria a paz, mas esta bem cedo se revelaria ilusória. E o preço foi demasiado elevado, permitindo que os fantasmas do comboio blindado voltassem a assolar a revolução soviética.

Lenine não foi, obviamente, um agente alemão. No entanto, era constitucionalmente germanófilo. Uma grande parte das suas esperanças expressara-se originalmente e continuava a fazê-lo no seio da grande cultura de língua alemã, em sua articulação com o respetivo movimento operário. É bem possível que preferisse esperar um mundo em que a revolução proletária em terras germânicas transbordasse para o resto do mundo desenvolvido (aí incluída a Rússia acidentalmente pioneira), do que num mundo em que a Alemanha fosse finalmente esmagada, humilhada e isolada. Marx e Engels também pensaram assim, nas guerras do seu tempo, como ele seguramente sabia. Grã-Bretanha e E.U.A. eram nações do liberalismo individualista, do empiriopragmatismo e do “trade-unionismo”, muito avessas ao espírito revolucionário de massas. Fosse por que razões fosse, Lenine preferia uma Alemanha tendencialmente vencedora na guerra e isso tornava-se cada vez mais penosamente óbvio para todos, camaradas, adversários ou inimigos. Entretanto, nas circunstâncias dadas, Bukharine, com boas razões, não se achou à altura de desafiar Lenine na direção do partido e da revolução.

Trotsky tentou formular uma posição intermédia, que era no sentido de, recusando a guerra, não se assinarem quaisquer termos de paz. Vencedora no debate interno (depois de recolher o apoio dos minoritários leninistas), foi esta a posição que os soviéticos levariam finalmente às conversações de Brest-Litovsk, para grande escândalo dos militaristas neoprussianos. Verificou-se assim nova rotura negocial. Os alemães deram o armistício como sem efeito e decidiram retomar a ofensiva, não encontrando qualquer resistência no terreno. A “pátria socialista” foi declarada em perigo. Lenine chamou à sua presença oficiais czaristas detidos na Fortaleza de Pedro e Paulo para que lhe apresentassem um plano de defesa de Petrogrado com os recursos disponíveis [20]. Finalmente, novos termos de paz, agora ainda mais leoninos, foram aceites e assinados pelo poder bolchevique, ainda que sob protesto, a 3 de março de 1918. A Rússia perdia, para além da Polónia, obviamente, todos os territórios bálticos, parte da Bielorrússia, retirava da Finlândia, reconhecia a independência da Ucrânia e cedia mesmo à Turquia as cidades de Batum, Kars e Ardahan (aliás georgianas ou arménias).

A Rússia era amputada de 26% da sua população, 27% da superfície cultivada, 26% das suas vias férreas, 75% da sua capacidade de produção de ferro e aço. As potências aliadas decretaram um bloqueio em forma à Rússia soviética capitulacionista. Pior do que tudo isso, geraram-se clivagens e feridas profundas no campo revolucionário. O bureau bolchevique de Moscovo deixou de reconhecer a autoridade do comité central. A República Soviética da Sibéria declarou considerar-se em estado de guerra com a Alemanha. Chegou a haver conversações secretas entre SR’s de esquerda e bolcheviques adeptos da guerra revolucionária, contando-se os votos necessários no VTsIK para apear Lenine e empossar um novo governo encabeçado por Piatakov [21]. Trotsky desdobrou-se em esforços conciliatórios. No seu sétimo congresso (6-8 de março), o Partido Bolchevique consegue enfim salvar a sua unidade e adota oficialmente o nome de comunista. Dada a sua maior segurança e profundidade territorial, é adotada Moscovo como capital do estado soviético. Lenine muda-se, por comboio, dos seus minúsculos aposentos no Smolny para um quarto de serviçais no Kremlin.

O tumultuoso debate sobre as negociações de Brest-Litovsk deixaria profundas marcas no Partido Bolchevique e na vida soviética [22]. Os socialistas revolucionários de esquerda opuseram-se ferozmente ao tratado e abandonaram a coligação do poder assim que este foi ratificado no 4.º Congresso Panrusso dos Sovietes. A aliança operário-camponesa foi posta em causa e os sovietes tornaram-se monopartidários por todo o país, o que os foi esvaziando paulatinamente de toda a relevância política. O centro do poder transferiu-se para os órgãos do partido, com as assembleias e executivos soviéticos a ratificar rotineiramente as suas propostas, que se tornavam de facto decisões. O projeto de democracia proletária soçobrou. Talvez viesse a soçobrar mesmo sem Brest-Litovsk, mas o facto é que sucedeu em sua sequência e consequência. Outro inconveniente grave de Brest-Litovsk foi que, capitulando perante o que viria a ser o lado perdedor da guerra, o estado soviético viu consideravelmente agravado o seu isolamento internacional durante os primeiros anos.

Outro grande obstáculo a um bom entendimento durável entre bolcheviques e SR’s de esquerda foi causado pela situação alimentar nas capitais, Moscovo e Petrogrado, que se começou a deteriorar de forma alarmante a partir de janeiro de 1918. Houve que tomar medidas de emergência. Em maio, o VTsIK concedeu ao Comissariado do Povo para os Abastecimentos (Narkomprod) poderes extraordinários para tomar medidas de combate à burguesia rural e aos especuladores, o que se veio a traduzir num decreto que ficou conhecido como da ditadura dos víveres. O Narkomprodcomeçou a organizar destacamentos operários armados para impor o respeito do monopólio estatal do comércio de cereais (instituído ainda pelos governos provisórios) e proceder à requisição de todo o grão excedente na posse dos produtores agrícolas na província. Lenine traçou um paralelo entre esses destacamentos e a “ida para o povo” de 1874 [23]. Na verdade, ele contava com estes operários para desempenharem um verdadeiro apostolado pela luta de classes e o socialismo entre o campesinato mais pobre. Uma iniciativa destas não teria sido possível no tempo da aliança governamental com os SR’s de esquerda e, na verdade, seria um dos motivos para a violenta rotura total que se verificaria mais tarde com eles.

Eminentemente confiável, meticuloso e dotado de uma memória prodigiosa, o factótum do partido era por estes tempos Iakov Sverdlov. Com a sua morte de tifo (ou influenza), em março de 1919, foi preciso tomar disposições novas. A partir do 8.º Congresso do Partido Comunista Russo (Bolchevique), nesse mesmo mês, ficou estabilizada uma estrutura organizativa com três importantes órgãos no comité central: o Politburo, o Orgburo e o secretariado. Ao primeiro competia tomar todas as decisões que não admitiam demora, ao segundo dirigir o trabalho organizacional do partido e ao terceiro prestar assistência técnica a ambos. Era por estes três órgãos que passava tudo o que de importante se decidia a nível nacional, entre as reuniões quinzenais do comité central.

Estaline foi designado como o elemento de ligação entre o Orgburo e o Politburo, sendo o único a integrar ambos estes os órgãos. Tinha assento ainda no Sovnarkomcomo comissário do povo das nacionalidades e do controlo do estado (depois Inspeção Operária e Camponesa – Rabkrin). Tudo isto para além do desempenho de numerosas missões militares, na guerra civil e na guerra russo-polaca. Após o 11.º congresso (abril de 1922) acumulou ainda com o secretariado, e logo no cargo proeminente de secretário-geral do partido (agora de toda a União Soviética). Entre os serviços que ele aí superentendia estava a Secção de Registo e Distribuição (Uchraspred) que preparava as nomeações e transferências de todo o pessoal do partido. Foi reunindo à sua volta um enorme poder, a partir de funções aparentemente rotineiras e desinteressantes, o que se tornou decisivo a partir do momento em que Lenine adoeceu e teve uma quebra abrupta de atividade, deixando cair das suas mãos a direção política geral que vinha exercendo.

O 8.º congresso do Partido Bolchevique Russo, reunido de 18 a 23 de março de 1919, aprovou um novo programa. O anterior programa datava já do tumultuoso 2.º congresso do Partido Social-Democrata, realizado no exílio em 1903. O novo programa consagrou a teoria leninista do imperialismo como estádio último (ou culminante) do imperialismo. Contra as objeções de Bukharine e Piatakov consagrou também a doutrina e a palavra de ordem do direito à autodeterminação dos povos. O reconhecimento prático deste direito tinha as suas nuances e especificidades.

Em teoria, no longo prazo, as nações estavam destinadas a dissolver-se no comunismo, juntamente com o estado. Até lá, o nacionalismo é essencialmente uma questão de igualdade. O nacionalismo proletário afirma o princípio da existência de nações livres e iguais. Este princípio, a sociedade burguesa é incapaz de cumpri-lo, pois que está dependente da contínua agressão e submissão do outro. Para tratamento das questões relativas às diversas nacionalidades foi criado, logo no primeiro governo soviético, um Comissariado do Povo das Nacionalidades (Narkomnats), sob a direção de Estaline. No seu âmbito, foram criadas inúmeras secções nacionais, das mais óbvias às mais exóticas, algumas delas sem qualquer referência territorial.

O fim último dos comunistas era, é claro, a criação de uma união livre de repúblicas socialistas e a dissolução das nações. Mas a união era uma opção de quem, em primeiro lugar, exerceu já o direito à autodeterminação, incluindo o acesso à independência pela secessão. Este direito seria reconhecido segundo o particular estádio histórico em que se encontram as nações oprimidas pelo antigo império russo. Pode ser uma autodeterminação nacional burguesa, exercida contra forças feudais, tradicionalistas ou tribais; pode ser uma autodeterminação nacional proletária, exercida contra a burguesia local em conluio com o imperialismo. O poder soviético russo reconhecerá qualquer uma destas opções, quando elas forem progressivas na sua situação histórica particular. Mas não reconhecerá a autodeterminação burguesa quando, na situação concreta, essa for uma opção reacionária, ou seja, quando existirem já nessa nação forças maduras capazes de, contra esse projeto, levar o proletariado ao poder. Era a chamada opção pela “autodeterminação dos trabalhadores”. Na prática, estes critérios foram ainda temperados por considerações diplomáticas e de realpolitik.

Foi reconhecida prontamente a independência da Polónia e da Finlândia. Nesta última, o partido social-democrata era muito forte e tentou tomar o poder por via revolucionária, seguindo-se uma guerra civil. O governo soviético, neste conflito, apoiou a “República Operária Socialista Finlandesa”, inclusive com as forças russas que ainda permaneciam em território finlandês. No entanto, mantinha simultaneamente relações de estado a estado com a república burguesa finlandesa, que acabou por prevalecer com o apoio alemão. Na Estónia, Letónia e Lituânia foram reconhecidas repúblicas soviéticas independentes, em 1918, antes da invasão alemã de fevereiro, e repúblicas burguesas, em 1921, concluída a paz com os polacos. O governo soviético reconheceu a independência ucraniana, mas não a república da “Rada” – apadrinhada sucessivamente por austríacos, alemães, franceses e polacos – embora mantivesse contatos com ela. Os seus favores estiveram sempre com a República Soviética Socialista Ucraniana, que teve inicialmente a sua sede em Kharkov (uma cidade industrial grão-russa), acabando depois por se instalar em Kiev e conquistar a parte ocidental do país. Uma República Soviética Bielorrussa proclamou-se também, em fevereiro de 1919, em Minsk, onde, na verdade, o nacionalismo burguês nunca tivera expressão relevante. Só os alemães tinham aí criado, muito passageiramente, uma entidade fantoche ao seu serviço.

A efémera República Federativa Democrática Transcaucásica (abril-maio de 1918) nunca foi reconhecida pelo poder soviético. Dos seus estilhaços, foi reconhecida uma república soviética no Azerbaijão e outra na Arménia. Na Geórgia, em contrapartida, foi reconhecida uma república burguesa (menchevique) em 1920, por tratado e com troca de embaixadores. A verdade, porém, é que os mencheviques georgianos no poder, sob a liderança de Noe Zhordania, se revelaram provocadores em extremo, ao transformaram Tbilissi em palco de agitação internacional antibolchevique, no qual desfilaram figuras como Karl Kautsky (!!!), Emil Vandervelde e Ramsay MacDonald. Com grande desconforto de Lenine, esta mesma república acabou por ser invadida pelo Exército Vermelho, em fevereiro-março de 1921, para se proclamar em seu lugar uma república soviética socialista. E não seria ainda o fim da questão georgiana.

O desafio mais grave aos princípios bolcheviques da autodeterminação das nações viria, porém, a ser posto pelo Turquestão. Os colonos russos proclamaram uma república soviética em Tashkent, mas esta era na verdade uma entidade neocolonial eivada de um forte preconceito supremacista grão-russo. Gerou-se um conflito gravíssimo e insanável com a maioria autóctone, turcófona e muçulmana, cujas elites dirigentes tinham, por outro lado, fortes reservas aos propósitos de transformação social proclamados pelos bolcheviques.

Os princípios teóricos mais cuidadosamente elaborados nem sempre encontram uma tradução inequívoca na realidade complexa das formações sociais concretas. Em contrapartida, essa realidade tem algumas linhas de fratura que se revelaram inamovíveis, ainda hoje, cem anos depois, nalguns destes países, tendo, entretanto, os ventos da história por aí passado e repassado tumultuosamente, em desencontradas direções.

As diversas repúblicas socialistas soviéticas entretanto constituídas foram celebrando tratados bilaterais com a Federação Russa. Com algumas variantes, e diversa solenidade, todos estes tratados previam uma unificação da organização e comando militar, dos órgãos de controlo da economia nacional e do comércio externo, das finanças, do trabalho, dos órgãos de abastecimento, dos transportes e da administração telegráfico/postal. Só a Ucrânia ficou com alguma autonomia para ter a sua própria diplomacia e política externa. Com a criação, por tratado, agora multilateral, da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, em dezembro de 1922, ficou concluído o edifício e o Narkomnats foi extinto, dando-se a sua missão por cumprida. Passou a existir, um congresso de sovietes (órgão supremo), um VTsIK e um Sovnarkom de toda a união, para além dos das diversas repúblicas. Nos órgãos do partido operou-se um desdobramento paralelo. Na prática o que se passou, em termos de continuidade burocrática, foi que os antigos órgão russos transmutaram-se em órgãos da união, com alguns ajustamentos. A constituição política da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas seria aprovada pelo respetivo VTsIK a 6 de julho de 1923 e ratificada pelo segundo congresso dos sovietes de toda a união, realizado a 31 de janeiro de 1924, já depois da morte de Lenine.

No seio da própria República Federativa Russa foram previstas disposições de caráter autonómico e/ou de promoção cultural para acomodar os interesses de basquires, tártaros, tchuvaches, carélios, udmurtes, maris, judeus, alemães do Volga, mordovianos, buriates, iacutes, os numerosos grupos norte-caucasianos e dezenas e dezenas de outras pequenas etnias [24].

Chegados ao leme do estado sem um programa económico digno desse nome, os bolcheviques foram obrigados a reagir e manobrar de improviso durante alguns meses. Os propósitos de Lenine em política económica não eram, no imediato, de uma extrema radicalidade. Tratava-se apenas de tomar algumas medidas, dar alguns passos em direção ao socialismo. Ele tinha um pensamento evolucionista em termos de formações sociais históricas e da transição entre elas.

Uma das peculiaridades do capitalismo russo é que o frustre e serôdio desenvolvimento industrial existente era uma criação do despotismo czarista, que o promoveu a partir do endividamento externo e de uma severa taxação sobre o campesinato, laborando este em condições maioritariamente pré-capitalistas. O Estado era promotor do desenvolvimento industrial e do subdesenvolvimento agrícola, não havendo uma articulação mercantil profunda e bem estabelecida entre estes dois setores da economia [25]. Esta era a grande fragilidade da economia russa, que foi aguentando periclitantemente todos os abalos da guerra e da agitação social revolucionária, sempre sob os avisos de Lenine de que se aproximava uma imensa catástrofe. E a catástrofe, depois de rondar ameaçadoramente durante uns anos, acabou por vir, efetivamente, já com os bolcheviques no poder.

Desde a revolução de fevereiro, haviam surgido na paisagem industrial russa os comités de fábrica, que procuraram estabelecer um controlo operário sobre a vida fabril [26]. Em que devia exatamente traduzir-se esse controlo operário não ficava claro em todas as situações. Podia ser apenas o exercício de um direito de informação ou algo mais próximo de uma verdadeira cogestão. No limite, os operários sinalizavam que estavam ali prontos para assumir a direção de todo o processo produtivo. Era uma frente móvel na luta de classes. Na conceção de Lenine, consagrada pelo decreto de 14 de novembro, o controlo operário era um simples meio para se fazer o registo e contabilidade da produção e distribuição de bens, ao serviço da ditadura do proletariado. Controlo operário era controlo pelo estado operário. Todas as informações industriais deveriam ser coligidas localmente a fim de ser tratadas centralmente a nível nacional.

Por alturas de abril de 1918, com a morte de Kornilov, Lenine julgou já passada a fase da guerra civil, salvo um ou outro afloramento ocasional. Concluída, ainda que precariamente, a paz imposta pelos imperialistas alemães, era altura de passar à construção da nova ordem. Nesse âmbito, havia que, em sequência, organizar um registo e um controlo rigoroso da produção e distribuição de produtos, elevar a produtividade geral do trabalho e socializar de facto a produção [27]. Não era requerido, nem aconselhável, de momento, um assalto frontal e extensivo à propriedade privada sobre os meios de produção. O capital não é uma coisa mas uma determinada relação social que é preciso superar na prática, por relações de produção mais eficazes, porque historicamente superiores numa mesma linha de progresso ascensional.

Havia, naturalmente, outras conceções de controlo operário, que propugnavam uma gestão autónoma das unidades industriais pelos respetivos coletivos operários. Foram consideradas pelos bolcheviques como perigosos desvios anarcossindicalistas, tributários do espírito proprietário pequeno-burguês. O poder soviético esforçou-se assim sempre por articular subordinadamente os comités de fábrica com os sindicatos, e estes últimos com o estado central, em especial a Veshenka. Estas conceções encontraram apoio no Conselho Central Panrusso dos Sindicatos, de que era então secretário o bolchevique Solomon Lozovsky. As conceções rivais tinham assento nas conferências dos comités de fábricas, que procuraram federar este movimento a nível nacional com objetivos que hoje denominaríamos de autogestionários.

Após Brest-Litovsk, os amigos de Bukharine demitiram-se todos da Veshenka, que passou a ser presidida pelo moderado Alexei Rykov. Na direção da economia soviética passou a ter um papel de relevo Yuri Larin (1882–1932), um ex-menchevique de origem judaica cujos estudos do exílio sobre a economia de guerra alemã já haviam chamado a atenção de Lenine. A palavra de ordem do poder bolchevique era agora capitalismo de Estado, no modelo alemão. O que os bolcheviques pretendiam estabelecer era uma economia capitalista regulada estatalmente, apenas alguns dos seus setores sendo paulatinamente levados a operar de acordo com princípios socialistas [28]. Face ao estado a que as coisas chegaram, esta era uma missão só para pessoas de extraordinária coragem.

Seriam implementadas políticas sociais promotoras das massas laboriosas. A regulação geral da economia visaria estrategicamente a passagem ao socialismo, mas a maioria dos industriais continuaria a buscar o seu lucro privado, operando de acordo com as suas próprias técnicas e culturas produtivas. Um papel central seria reservado às cooperativas de produção, de crédito e de consumo. Foram mesmo encetadas negociações com vista a uma reentrega dos bancos à gestão privada, para a formação de joint-ventures com importantes capitalistas russos e paraa captação de grandes investimentos estrangeiros (nada disto se concretizou, mas Lenine tinha abertura ideológica para considerar estas hipóteses). Impôs-se um rigoroso monopólio estatal sobre o comércio externo.

No seu conjunto, tudo isto compunha a velha ideia leninista do capitalismo monopolista de estado como antecâmara do socialismo. Uma economia de lucro privado seria enquadrada e planificada pelo estado proletário, com a assistência dos operários organizados nos próprios locais de produção. Especialistas burgueses (spetsy) seriam procurados para dirigir a produção mesmo nas indústrias entretanto estatizadas, sendo remunerados de acordo com as suas expetativas, ou seja, consideravelmente acima dos níveis da média operária. A revolução soviética nunca praticou a igualdade de salários, apesar do que Lenine escreveu sobre o assunto em O Estado e a Revolução enas Teses de Abril. No entanto, inicialmente, um comissário do povo ganhava aproximadamente o mesmo que um operário especializado. Os privilégios exorbitantes dos spetsy e a prática de salários à peça foram objeto de grande controvérsia.

O problema não era apenas de diferença de rendimentos, mas também de função social. A eficácia industrial, considerou-se então, exige a obediência do coletivo produtor à vontade de uma única pessoa, pelo que assim deveria continuar a suceder. Só com a elevação progressiva da socialização do trabalho estas realidades se alterariam. Sob a direção da ditadura do proletariado, o processo real de produção será finalmente revolucionado, com o surgimento de novas forças produtivas, novas relações de produção, uma nova divisão social do trabalho. Até lá, deve continuar a obedecer-se sem discussão ao diretor fabril e respetiva cadeia hierárquica.

Os partidários da “guerra revolucionária” no seio do Partido Bolchevique formaram aí uma fação organizada de “esquerda comunista”, tendo começado a publicar uma publicação própria, intitulada Kommunist, de que saíram quatro números entre abril e junho de 1918. Os membros desta fração (Bukharine, Piatakov, Osinsky, Bubnov, Uritsky, Radek, Smirnov, Preobrazhensky) demitiram-se de todas as suas funções executivas e manifestavam divergências profundas com a linha maioritária do partido também em matéria de política económica e industrial. Lenine respondeu-lhes com a costumeira torrente de invetivas e algumas precisões teóricas interessantes [29]. Bukharine (futuro genro de Larin), paladino apaixonado que fora da guerra revolucionária, mantendo a sua adesão aos comunistas de esquerda, tinha em política económica posições bastante mais matizadas, sem dissidências graves com o que era então a prática do poder bolchevique. Discordava apenas, veementemente, por motivos teóricos, da sua caraterização como capitalismo de estado [30]. A pressão e carga dramática dos acontecimentos apenas acrescentava ainda mais paixão à polémica doutrinal.

A dinâmica acelerada da luta de classes muito cedo pôs completamente em causa a prossecução dos planos de economia mista e capitalismo de estado [31]. A contratação de especialistas burgueses com elevados salários, a autoridade do diretor fabril único, a centralização da administração económica e os projetos de joint-ventures foram muito contestados pelas massas operárias, com expressão em posições assumidas pela esquerda comunista. A existência e atividade dos comités de fábrica continuou também a ser uma área de grande tensão. Muitos proprietários e gestores burgueses começaram a praticar o lock-out, a sabotar a produção e, finalmente, a abandonar as suas unidades produtivas, movimento que se tornou uma debandada a partir do eclodir da guerra civil em maio-junho de 1918.

Praticamente toda a indústria teve de ser nacionalizada, pelo Sovnarkom, pela Veshenka ou por iniciativa regional ou local, sobretudo como resposta de emergência à iniciativa no terreno dos próprios operários. Eram as nacionalizações punitivas. Finalmente, por decreto de 28 de junho, o Sovnarkom nacionalizou genericamente os principais ramos de indústria. Mesmo empresas comerciais e de serviços de dimensão familiar acabariam por ser estatizadas. Não havia suficiente capacidade de gestão para dar resposta a todos estes desafios. Entretanto, agora sim, uma verdadeira guerra civil em boa e devida forma estava já em curso. Juntamente com o bloqueio exterior, ela cortou a grande maioria dos abastecimentos em fontes de energia e matérias primas.

A produção industrial caiu então precipitadamente até níveis impensáveis, de cerca de 20% ou menos do seu volume de 1913. O absentismo e a exaustão campeavam entre os trabalhadores, muitas vezes pagos com as próprias peças produzidas, que procuravam depois trocar por comida pelos seus próprios meios. O sistema nacional de transportes colapsou. Entendendo nada mais ter a esperar de útil das cidades, os camponeses passaram a viver entregues a si próprios e ao artesanato local. Quem ficou assim isolado e estrangulado foi o citadino, privado das suas fontes de abastecimento alimentar. Começou então um verdadeiro êxodo urbano, facilitado pelas raízes que muitas populações suburbanas ainda mantinham no campo. No outono de 1920, a população das 40 capitais de província declinara 33% em relação a 1917. Quanto maiores as cidades, maior a debandada [32]. Uma inflação galopante atirou a circulação monetária para a estratosfera. O racionamento, a requisição e a troca direta de produtos passaram a ser a regra.

Quando as relações de produção não estão estabilizadas, o resultado provável é uma queda abrupta da produção, podendo ficar comprometida a sobrevivência e a reprodução da comunidade no mesmo nível de desenvolvimento das forças produtivas. Isso mesmo, aliás, foi o que exprimiu na altura o conspícuo capitalista russo exilado Pavel Ryabushinsky, com a advertência pretensamente compungida de que seria precisa a intervenção da “mão descarnada da fome” para que o povo russo voltasse a aprender qual era o seu lugar. A fome chegou, efetivamente, com o seu tétrico cortejo de frio e epidemias diversas (sobretudo o tifo), mas o facto absolutamente notável é que o esperado efeito “pedagógico” mal se fez sentir. E aqui reside a extraordinária singularidade da revolução soviética. Para que isso tivesse sucedido é natural que tenha contribuído a extraordinária violência, arbitrariedade, inamovibilidade e amesquinhamento que caraterizavam o jugo de classe na Rússia czarista e, consequentemente, o proporcional ressentimento que ele causou nas classes dominadas.

Mas há aqui que contar também com o facto de que esta revolução dispôs de uma direção excecionalmente visionária, cultivada e tenaz nas suas convicções. Ao ponto de podermos dizer que esta foi a primeira revolução social na história que foi, ao menos, parcialmente consciente. Havia o conhecimento de que, por tentativa e erro, havia que se achar uma nova conjugação no eixo formado por forças produtivas e relações de produção. Lenine, Trotsky e Bukharine, em especial, foram incansáveis perscrutadores de novas sendas sobre o horizonte histórico [33]. Entretanto, enquanto se procurava assim acertar agulhas históricas, a vida corrente ia-se tornando impossível para a generalidade da população. Incomparavelmente pior do que todas as provações da guerra imperialista. Mas as pontes para um regresso ao passado estavam completamente cortadas. A fome de justiça era mais forte. E não havia ninguém no horizonte a quem render-se. As estepes russas são vastas. O inimigo ou a salvação estavam longe, muito longe.

Terror, cavalaria vermelha, comunismo de guerra

Nos primeiros afrontamentos após outubro, os bolcheviques libertavam de pronto os seus prisioneiros, mediante promessas de não voltar a levantar armas contra o poder soviético. Fizeram isso com o general Krasnov, que, muito prontamente, eleito atamandos cossacos do Don, estava ativo no sul a lutar contra os soviéticos com apoio alemão. A Cheka começa a conduzir atividades sistemáticas de repressão civil por alturas da ofensiva alemã anterior à conclusão da paz de Brest-Litovsk. A 12 de abril de 1918 foram invadidos e encerrados vinte e seis centros anarquistas em Moscovo, havendo confrontos de rua com dezenas de mortos. Pôs-se assim termo a uma relação difícil de cooperação revolucionária entre bolcheviques e anarquistas, que se havia tornado impossível na sequência de Brest-Litovsk. Contudo, muitos anarquistas continuaram a colaborar ocasionalmente e a manter contatos com o poder soviético, como foi o cado do sindicalista russo-americano Bill Shatov ou do caudilho camponês ucraniano Nestor Makhno.

A partir de julho, as atividades repressivas da Cheka intensificam-se, na sequência do assassinato de Volodarsky por um terrorista SR, dos desembarques de tropas aliadas no norte e da organização por Boris Savinkov de um levantamento antibolchevique em Iaroslav, com apoio francês. Em resultado de uma pressão irresistível de tropas inimigas na zona, toda a família do deposto czar é executada, em Yekaterinburgo, na noite de 16 para 17 de julho de 1918, para prevenir que se pudesse tornar um troféu e bandeira política contrarrevolucionária. Lenine e Sverdlov foram, aparentemente, os decisores, como acontecia então em muitas ocasiões de emergência. Lenine nunca decidia sozinho. Ainda que sob grande pressão, conferenciava sempre com um ou dois camaradas, que variavam conforme os assuntos.

As relações entre bolcheviques e SR’s de esquerda começaram, entretanto, a dar também sinais de grande tensão. Não apenas a propósito de Brest-Litovsk, mas também pela política de requisição forçada de cereais na província e por uma caricata polémica em torno da pena de morte. Embora adeptos e praticantes frequentes do assassinato político, os SR’s de esquerda eram intransigentemente opostos à pena de morte legal e sua ministração em sentença judicial.

Enquanto participavam e disputavam de forma acesa o 5.º Congresso Panrusso dos Sovietes, em inícios de julho, os SR’s de esquerda assassinaram a tiro o embaixador alemão, conde Mirbach, procurando assim induzir um reatamento da guerra. Os homicidas eram agentes superiores da Cheka e introduziram-se na embaixada alemã com uma credencial assinada por Dzerzhinsky. Simultaneamente, tudo conforme previamente decidido no comité central SR de esquerda, foi acionada uma autêntica insurreição em Moscovo, com réplicas noutras localidades. O levantamento incipiente foi rapidamente dominado. A cultura militar SR não ultrapassara muito a fase das ações exemplares. Todavia, tornou-se impossível a continuação da participação SR de esquerda nas instituições do poder soviético. Foi uma infelicidade histórica que não tivesse sido dado aos bolcheviques ter como parceiros senão esta gente confusa e imponderada, como que saída diretamente de um romance de Dostoievsky.

A dimensão das atividades repressivas do jovem estado soviético conhece, contudo, uma súbita escalada, a partir de 30 de agosto, data em que, em Petrogrado, é assassinado Moisei Uritsky (em frente à sede local da Cheka) e, em Moscovo, Lenine gravemente ferido a tiro pela terrorista SR Dora Kaplan. Nos inícios de setembro, o VTsIK e o comissário do povo do interior, Grigory Petrovsky, proclamam o terror de massas contra a burguesia. Por esta altura, a guerra civil já estava bem acesa e o terror vermelho respondia, olho por olho, ao terror branco, nas linhas de frentes como na retaguarda.

O terror vermelho é um terror de classe dirigido contra a burguesia, mesmo que empobrecida, como era comum nesses tempos. Não são feitas investigações e compiladas provas aturadas de concretas atividades contrarrevolucionárias. Basta a origem de classe, o nível de instrução e indícios sumários de uma atitude hostil. Como disse o chekista Martin Latsis, a Cheka não julga, ataca e fere. As vítimas mortais do terror vermelho foram 22 na primeira metade de 1918, cerca de 6.000 na segunda metade, para um total à volta de 50.000 para todo o período da guerra civil. Do lado branco, os números foram seguramente muito superiores. Para além das execuções, era também prática comum a tomada de reféns entre familiares ou próximos dos elementos visados, do que poderiam resultar novas execuções, se não se verificassem as ações ou resultados pretendidos. O terror revolucionário russo foi motivo para mais uma polémica iniciada por Kautsky, com as despesas do lado soviético desta vez a ser assumidas por Trotsky [34], que tão condescendente se havia mostrado para com o papa do socialismo na década inicial do século.

O terror começou a abrandar no final de 1918, fora das frentes na guerra civil e em algumas operações de requisição de grão. As comemorações do primeiro aniversário da revolução, a 7 de novembro, pautaram-se por um jubiloso otimismo, com a inauguração, em Moscovo, de um artisticamente medíocre monumento a Marx e Engels. “Estamos a viver tempos maravilhosos” disse Lenine nessa ocasião. “Vemos rebentar a aurora da revolução socialista mundial do proletariado em vários países”. Por esta altura, a armada alemã havia-se amotinado e espalhado a revolução pelas ruas de Kiel, de onde ela se propagou para Hannover, Frankfurt, Munique, Berlim, Viena, Budapeste, Praga. O império austro-húngaro dissolveu-se. A 9 de novembro, o kaiser Wilhelm II abdica e é proclamada a república na Alemanha. A guerra aproxima-se do seu fim a passos largos. Virá ao encontro prometido essa ansiada revolução socialista europeia, alvorada de um mundo novo? Proletários de todos os países vão, enfim, unir-se?

A revolução soviética não foi económica em sacrifícios e em vítimas inocentes. Lenine não recuava e não hesitava perante o terror, quando sentia necessidade de recorrer a ele. Deixou testemunho disso em muitas instruções escritas, que recentemente têm sido desenterradas e abundantemente comentadas. Uma delas é esta:

“Para os camaradas Kuraev, Bosch, Minkin e outros comunistas de Penza:

Camaradas! A sublevação dos kulaks em cinco condados” (uezd?) “deve conduzir a uma impiedosa repressão. Tal é exigido pelos interesses de toda a revolução, pois que se trava agora, por todo o lado, a ‘última e decisiva batalha’ com a kulakaria. Um exemplo tem de ser dado.

  1. Enforquem (tem que ser pela forca, para que o narod veja) não menos que uma centena de notórios kulaks, gente rica, sugadores de sangue.
  2. Publiquem os seus nomes.
  3. Extraiam todo o seu grão.
  4. Designem reféns, de acordo com o telegrama de ontem.

Façam tudo isto de modo a que, por centenas de milhas em redor, o narod veja, vibre, saiba, grite em redor: eles estão a estrangular e vão estrangular os kulakssugadores de sangue.

Recibo do telegrama e implementação.

Vosso, Lenine

  1. S.: Encontrem gente que seja mais dura[35].

A regra na história tem sido os ricos e poderosos massacrarem impiedosamente os seus inferiores. Muito raramente vemos episódios de sentido contrário, que a consciência humanitária dominante logo considera como horrivelmente contranatura. Lenine tinha estatura moral, presença de espírito, dimensão humana, histórica e ontológica para dar estas ordens. Não lhe tremia a mão quando escrevia e assinava isto, em nome dos pobres e humilhados de todos os tempos. Esta é, sem dúvida, uma das razões fundamentais porque a revolução soviética terminou vitoriosa. Por terrível que possa parecer dizê-lo, perante uma situação dada que já é de violência inevitável (sendo a fome uma das mais terríveis formas de violência), será porventura em apontamentos como este que mais reconheço Lenine como meu irmão, meu capitão. No entanto, neste caso particular, esta ordem de Lenine tinha tanto de heroico como de equivocado. Também aqui, o sublime está paredes meias com o ridículo.

O leitor contemporâneo deste documento, mesmo esses raros exemplares isentos de predisposição hostil, concluirá que Lenine estava a tentar aterrorizar os camponeses. Nada mais falso. Lenine estava a tentar libertar, desinibir, encorajar os camponeses pobres na sua inevitável luta contra os ricos. Pressionado pela excruciante necessidade de fazer chegar alimentos às cidades, julgou chegada a hora de incitar a luta de classes nos campos. No seu dispositivo teórico, isto equivalia a antecipar um pouco a revolução socialista no mundo rural, criar desde já instrumentos para passar depois gradualmente à coletivização da terra sob o impulso dos camponeses pobres. Foi após a rotura com os SR de esquerda que se decidiu avançar com esta “ofensiva proletária”. Na verdade, com algumas variações regionais, o proletariado rural era geralmente muito escasso e não havia relações claras e firmemente estabelecidas de antagonismo e exploração entre camponeses pobres e ricos. Havia, isso sim, entre eles, no seio dos resquícios do mir tradicional, um complexo jogo social que envolvia inveja, cálculo, obsequiosidade, auxílio mútuo, parentesco e clientelismo. Não passava bem pela cabeça do muzhik atirar-se à garganta do kulak às ordens de uns senhores de Moscovo.

A partir do verão de 1918 começaram a ser criados os comités de camponeses pobres (kombedy), cuja missão fundamental era assistir – pela denúncia e condução aos locais – os destacamentos itinerantes de operários na execução da política de requisição forçada de grão (prodrazvyorstka) aos grandes e médios agricultores. Em reconhecimento destes serviços, os kombedy ficavam para si com algum do grão requisitado, mais alguns instrumentos manufaturados trazidos das cidades. Era também suposto explorarem granjas coletivas mas estas quase nunca passaram de intenções piedosas. Os verdadeiros camponeses pobres, aliás, geralmente evitavam como a praga estes comités que ostentavam o seu nome. Os membros dos kombedy eram, muito frequentemente, soldados, artesãos, imigrantes citadinos deslocados e outros elementos alheios às relações tradicionalmente solidárias da comuna rural. Pelas funções desempenhadas, ficavam normalmente sujeitos ao ostracismo, senão à hostilidade aberta da aldeia. Noutros locais, numa estratégia claramente concertada, aderiram aos kombedy todos os camponeses, sob a alegação de serem todos igualmente pobres. A sua contribuição foi finalmente julgada supérflua. Havia aqui uma situação não profícua de duplo poder. Os comités de camponeses pobres foram dissolvidos e integrados nos sovietes locais, logo na primavera de 1919.

A política de requisição de grão – extensível a batatas, açúcar, carne, peixe e qualquer outro tipo de produto alimentar – para abastecimento das cidades e do Exército Vermelho, causou atritos e confrontos muito frequentes, onde pereceram muitas dezenas de milhares de requisitantes e de camponeses. A resposta dos camponeses às requisições, começou pela ocultação do produto, mas depois passou a incluir a recusa de semear mais terra do que a estritamente necessária para alimentar as suas famílias, resultando daí uma alarmante quebra geral da produção.

A transição de formas individuais para formas coletivas de cultivo da terra foi proclamada por um decreto do VTsIK de fevereiro de 1919. Mas era uma batalha muito difícil. O espírito camponês resistia à integração em grandes explorações e as melhores terras já haviam sido retalhadas e atribuídas individualmente pelos comités de terra, no tempo em que aí pontificavam os SR. Dissolvidos os kombedy, foi tentada uma conciliação com os camponeses médios, mas estes permaneceram individualistas impenitentes e eram suspeitos de alimentar o mercado negro. Em fevereiro de 1921 publicou-se um novo estatuto da organização socialista da terra. As terras confiscadas à nobreza que continuavam sem cultivo foram distribuídas por quintas estatais (sovkhozes) ou associativas (kolkhozes), que atraíram muito do mesmo pessoal que constituíra antes os kombedy. Normalmente estas explorações não tiveram sucesso e foram muito criticadas, nos congressos camponeses, como sendo antros de desleixo. Muitas delas acabaram por ser destruídas nas guerras rurais desse mesmo ano de 1921 [36].

Com o alargamento da área sob controlo soviético e a acumulação de experiência por parte das equipas operadoras da prodrazvyorstka, foi possível amenizar um pouco o agudo estrangulamento do abastecimento alimentar às cidades. Mas o problema de fundo mantinha-se por resolver. A entrega da terra aos camponeses traduzira-se numa redução muito marcada da dimensão média das explorações agrícolas. As grandes herdades foram extintas, sem que se conseguisse erguer em seu lugar modernas explorações coletivas. As culturas extensivas, onde elas existiram, foram substituídas pela agricultura de subsistência local, com um duplo declínio em área cultivada e em produtividade média, dado o nível técnico muito rudimentar. Por outro lado, feitos os indispensáveis fornecimentos ao Exército Vermelho, não sobravam, para troca, produtos industriais de caraterísticas e qualidade capazes de interessar o camponês. Nestas condições, tornava-se muito difícil assegurar um caudal regular de escoamento de produção agrícola para as cidades, em quantidade e diversidade aceitáveis. O decreto da terra pode ter garantido a vitória da revolução bolchevique, mas legou uma série de problemas de muito difícil resolução.

Uma verdadeira guerra civil, entre exércitos convencionais politicamente opostos, começou a definir-se no terreno a partir do início do verão de 1918. Havia em território russo uns 50.000 soldados checos e eslovacos a combater o império austro-húngaro, sob comando francês. Com a assinatura da infame paz de Brest-Litovsk ficaram abandonados à sua sorte. Pretendiam regressar ao ocidente e para isso foram-se deslocando para leste, armas na mão, pelo transiberiano, até ao oceano pacífico. Entram em choque com o soviete de Cheliabinsk, que ocupam. Recolhem a adesão de voluntários russos amigos da derrotada causa constitucional e espalham-se por uma série de cidades no leste da Rússia e na Sibéria. Sob a sua proteção estabelece-se, com sede em Samara, um Comité de Membros da Assembleia Constituinte (Komuch), que se autoproclamou autoridade suprema do país, organizando um “exército popular”. Na sequência de uma conferência, realizada em setembro, com a participação de diversas outras entidades territoriais antibolcheviques, constitui-se depois, com sede em Omsk, um governo provisório panrusso, presidido por Avksentiev. Era uma república de opereta, de dominante socialista-revolucionária de direita, com alguma participação kadet [37].

Alegadamente em auxílio dos seus aliados checoslovacos, forças militares francesas e britânicas desembarcam em Murmansk, Arkhangelsk, depois Baku. Os japoneses tomam Vladivostok, onde desembarcam também britânicos e norte-americanos. A Alemanha ocupa toda a Ucrânia. Nesse verão, na zona do Kuban, o general monárquico Anton Denikine consegue consolidar com base nos voluntários brancos um verdadeiro exército, que será generosamente municiado e equipado pelo governo britânico.

Trotsky é nomeado comissário do povo para a guerra em março de 1918 e começa, de imediato, a organizar um exército soviético, a partir dos guardas vermelhas e massas operárias desempregadas de Petrogrado. Rodeou-se de alguns jovens como o médico Ephraim Skliansky (1892-1925). Era preciso mobilizar, armar, instruir, enquadrar e comandar centenas de milhares, em breve milhões de homens (5,5, para ser preciso), num exército moderno, disciplinado e bem doutrinado. Para isso recorreu em massa, às dezenas de milhares, a verdadeiros especialistas, que não podiam ser outros senão os oficiais do antigo exército czarista. Para os enquadrar e vigiar foram colocados comissários políticos bolcheviques, que deveriam contra-assinar todas as ordens. Foi restabelecida a pena de morte militar, recomposta a hierarquia e a disciplina, com todos os seus rituais salutatórios, afastadas definitivamente as assembleias e as eleições. Os privilégios para os oficiais, em alimentação e acomodações, também foram repostos.

Face aos resultados entretanto obtidos, todos estes princípios de organização militar, com o sólido apoio de Lenine, viriam a ser aprovados no 8.º congresso do partido a 18-23 de março de 1919, por 174 votos contra 95. Mas está bom de ver que geraram uma forte oposição, que se foi arrastando sempre de forma surda, eclodindo esporadicamente à luz do dia. Para além de vozes da esquerda comunista (Vladimir Smirnov), constituiu-se também a chamada “oposição militar” à volta do grupo de Tsaritsyn, com os descontentes oficiais de origem popular Semyon Budyonny e Kliment Vorochilov, por detrás dos quais pontificava Estaline [38]. Começou aqui a criar-se uma questão Trotsky no Partido Bolchevique, tanto mais assanhada quanto este obtinha, de facto, brilhantes, decisivos e espetaculares êxitos, com toda a sua autossuficiência, autoritarismo e altaneira rispidez.

A questão militar bolchevique tocava em suscetibilidades de classe, mas era sobretudo uma questão de eficácia militar. As milícias da guarda vermelha, mobilizadas com grande entusiasmo e gozando de amplo apoio popular, obtiveram grandes sucessos, no início, mas não podiam, de forma alguma, por si sós, defrontar os exércitos brancos em formação regular, generosamente armados pelas potências ocidentais, treinados e comandados por experientes oficiais de carreira. O Exército Vermelho tinha urgentemente que dar um enorme salto qualitativo. Necessitava de ter comunicações eficazes, recolha e tratamento de informações, coordenação de movimentos, comando centralizado, inteligência tática e estratégica, capacidade para executar manobras vastas e complexas. Face a uma guerra que era preciso travar já, tudo isto só se podia assegurar com recurso a especialistas militares já formados e experientes. Os socialistas revolucionários de esquerda mantiveram-se sempre teimosamente adversos à criação de um exército regular, enquanto os comunistas de esquerda se foram rendendo aos poucos à sua necessidade.

O primeiro grande êxito do Exército Vermelho dá-se a 10 de setembro com a recaptura de Kazan aos checoslovacos, por meio de uma flotilha fluvial e diversos movimentos envolventes por terra. Trotsky destaca-se na ação, mas também no polémico justiciamento sumário de desertores, incluindo um comissário político velho bolchevique [39]. A 9 de novembro eclode a revolução na Alemanha, que se desmorona militarmente, sendo forçada a solicitar a paz. O governo soviético anula o tratado de Brest-Litovsk. Os derrotados alemães, entretanto, não deixariam de constituir uma ameaça, pois que os aliados lhes ordenam que permaneçam no Báltico dando aí abrigo à contrarrevolução russa às portas de Petrogrado. A 18 de novembro, o almirante Aleksandr Koltchak, com uma história ligada à exploração ártica, dá um golpe de estado em Omsk, proclamando-se dirigente supremo da Rússia, investido de poderes ditatoriais. As instituições republicanas são dissolvidas e os dirigentes SR presos. A partir desta data, esquecida a Assembleia Constituinte, a causa branca está entregue em exclusivo à reação pura e dura. Em dezembro os franceses desembarcam em Odessa. Em abril de 1919 ocorre um motim na frota expedicionária francesa no mar negro, em ligação ao qual se celebrizou André Marty.

Um dos segredos cruciais para o êxito nesta guerra civil será a arte de intimidar, persuadir ou aliciar os desertores a voltarem ao combate. A deserção foi um fenómeno que se cifrou na ordem dos milhões, adquirindo uma certa sazonalidade ao ritmo da vida camponesa. Nessa matéria, a vantagem esteve largamente do lado dos vermelhos, que tinham uma panóplia muito mais vasta e atraente de recursos para usar (a sedução, a lisonja, a doutrinação, a exortação, a escuta, o debate, o compromisso político), enquanto do lado branco se usava apenas a coerção pura, a violência letal e o aviltamento, que incluía ancestrais instituições socializadoras como o bofetão e o chicote. Estes senhores nada aprenderam e nada esqueceram desde fevereiro de 1917. Muito pelo contrário, estavam possuídos de uma sanha revanchista avassaladora. Com respeito às nações periféricas, também nunca se mostraram disponíveis para qualquer diálogo senão nos termos do mais estrito imperialismo grão-russo. Perderam a guerra por serem burros [40], o que é uma excelente razão para esse efeito. Não há historiador consciencioso que não reconheça hoje que, naquelas circunstâncias, os vermelhos foram a escolha ponderada e esmagadoramente maioritária do povo russo. No que respeita às opções dos camponeses, assimilada toda a informação e atualidade política, a sua conclusão foi: bolcheviques sim, comunistas é que nem pensar.

O supremo-comando aliado em Paris reconhece Koltchak, mediante um acordo político, fornecendo-lhe abundantes armas e uniformes. O presidente Clemenceau e o secretário de estado da guerra Winston Churchill eram grandes apoiantes seus, enquanto os norte-americanos estavam um pouco mais céticos. Em março de 1919, o taciturno almirante conquista Ufa e prossegue marcha em direção ao Volga, espalhando um terror cego no seu caminho. Na sua retaguarda, dão-se numerosos levantamentos de milícias camponesas, tornando ilusório o seu aparentemente vasto domínio territorial. Em abril, Koltchak é travado pelo Exército Vermelho em Buzuluk e Buguruslan, sendo obrigado a recuar para lá dos Urais. Trotsky opôs-se à sua perseguição imediata, o que lhe causaria dissabores. De todo o modo, em novembro, a retirada de Koltchak transforma-se em debandada sobre Omsk e para além. O almirante acabaria por anunciar a sua renúncia, com transferência para Denikine do comando geral da causa dos voluntários brancos. Aprisionado finalmente em Irkutsk, seria fuzilado em fevereiro de 1920, contra ordens expressas emanadas de Moscovo. Cansados da caótica política russa, os checoslovacos concluem enfim a sua evacuação.

Na frente sul havia dois inimigos do poder soviético cuja coordenação não se revelou fácil. Os cossacos do Don eram dirigidos pelo general Krasnov, sucedido em fevereiro de 1919 pelo general Bogaevsky. Esta força estava mais interessada em firmar domínio sobre o seu território regional, não investindo muito em lutar contra os soviéticos para lá desse perímetro. O general Denikine, comandante das forças voluntárias brancas do sul, esse sim, estava apostado em conquistar Moscovo e chegou a estar relativamente perto. Trotsky foi derrotado politicamente na estratégia ofensiva que propunha para esta frente, que procurava tirar partido da desunião no campo inimigo. Os resultados militares daí resultantes vieram a dar-lhe razão. O avanço de Denikine sobre Orel, em outubro de 1919, conjugado com a simultânea investida do general Yudenich sobre Petrogrado, constituíram o momento de máximo perigo militar a que esteve sujeito o poder bolchevique. O trajeto do primeiro era sempre assinalado por grandes orgias de violência sobre a população civil e pilhagens descontroladas. Denikine notabilizou-se, em especial, por dar livre curso a horrorosos progroms, onde pereceram dezenas de milhares de judeus, como representantes da essência críptica maligna do bolchevismo.

Trotsky opôs-se à evacuação de Petrogrado – que Lenine já dava por assente – e deslocou-se aí para organizar a sua defesa, rua a rua, se necessário fosse. Apeou-se do comboio blindado com o seu olhar intensamente faiscante, a caixa torácica bem inchada, uma pesada continência militar. A cidade era uma sombra do que fora nos seus áureos tempos revolucionários, dois anos antes apenas. Entretanto, fora abandonada por mais de dois terços da sua população, que procurou assim escapar à fome e às epidemias. Os que ficaram eram espetros errantes, à procura de comida ou de lenha. Zinoviev presidia a este estertor urbano, tendo recebido por isso ásperos reparos. Trotsky discursou no soviete de Petrogrado, mobilizou energias civis e militares em toda a cidade. Corrigiu erros, retificou desleixos.

Yudenich arrancara da Estónia em inícios de outubro com 17.000 homens muito bem equipados, artilharia sortida e seis tanques britânicos, uma aparição fantástica e medonha que já havia espalhado o pânico em Tsaritsyn. Fez um compasso de espera que lhe seria fatal já nos subúrbios de Tsarkoe Selo e Pavlovsk. Os prometidos apoios finlandeses não compareceram e, pelo contrário, muitos dos seus próprios estonianos começaram a desertar. As tropas vermelhas foram alinhadas defensivamente, com mais reforços vindos de Moscovo a chegar pela linha férrea. Numa fábrica sob o alcance da artilharia de Yudenich fabricaram-se os primeiros tanques soviéticos. Trotsky percorreu a cavalo a linha de frente, trazendo desertores novamente ao combate. Partiu, enfim, a contraofensiva. O arrepiante brado coletivo que se soltou então era um risco de liberdade no horizonte gelado. Pesadamente derrotado, Yudenich recuou novamente para a Estónia, em novembro, sendo aí desarmado e preso pelas autoridades locais, a quem os soviéticos reconheceram de bom grado a independência.

Denikine foi derrotado em Orel e Kursk pelos 13.º e 14.º exércitos vermelhos sob o comando do general Aleksandr Yegorov, em outubro-novembro de 1919. Sob constante pressão desde então, perde o seu quartel-general em Rostov-no-Don a 8 de janeiro de 1920. A 16 de janeiro o supremo-comando aliado levanta o bloqueio imposto à Rússia soviética, depois de se ter concluído um armistício com os checoslovacos. Em finais de março Denikine foi forçado a resignar. Para o comando dos exércitos brancos na Crimeia foi reconvocado, do seu exílio em Constantinopla, o austero general Pyotr Wrangel. Este ainda conduziu uma última ofensiva mas nunca conseguiu prosseguir para além do rio Dniepr na Táurida do Norte. O Exército Vermelho estava agora muito mais preocupado com uma guerra que lhe foi imposta, entre maio e outubro, pela Polónia independente, sob a presidência do ex-socialista Jozef Pilsudski. Após idas e vindas, o conflito saldar-se-ia por um empate que desfez as ilusões de parte a parte. Sim, Lenine chegou a pensar que, com o apoio da classe trabalhadora polaca, poderia chegar a preponderar militarmente sobre a fronteira alemã e daí observar privilegiadamente, senão induzir, a sublevação geral do proletariado europeu. Rivalidades e desentendimentos no comando do Exército Vermelho – novamente com Trotsky e Estaline em polos opostos – tiveram o seu papel na desfeita sofrida às portas de Varsóvia, um evento traumático para as aspirações bolcheviques de expansionismo revolucionário.

Wrangel foi finalmente derrotado, recuando novamente para a Crimeia. Selvaticamente perseguido por Mikhail Frunze, teve de evacuar desta península a 14 de novembro de 1920, nos restos da marinha imperial, com os restos desamparados do último pessoal militar e civil ao serviço da velha Rússia, mais as suas excelsas famílias. Foi uma parada melancólica e crepuscular de fardas, fraques, vestidos e sotainas. Era o fim de um mundo que se revelou totalmente incapaz de dar o salto para a modernidade e a cidadania de massas. O coração popular bateu muito mais forte. Em vermelho.

Enquanto decorreu a guerra civil, foram cultivadas pelo poder soviético relações com diversas fações SR e mencheviques “leais”, que foram mantendo alguma presença e uma intervenção política esparsa nas capitais, nos intervalos do seu assediamento pela Cheka. Perante a guerra, a “democracia pequeno-burguesa” entendeu demarcar-se sobretudo do restauracionismo. Uma conferência menchevique em Moscovo denunciou a contrarrevolução e a intervenção estrangeira, tendo recebido uma resposta conciliatória de Lenine. Estes, pelo menos, são previsíveis. Martov, Dan e mesmo, de certo modo, o clandestino Chernov (que aderira ao Komuch), estiveram disponíveis para o diálogo, até perto do final da guerra civil. Mas não havia muito já que se lhes pudesse oferecer, nas circunstâncias dadas. Paradoxalmente, com o final da guerra civil, acabou-se este ambiente de relativa tolerância política. Todos acabariam por partir para o exílio.

Em fevereiro de 1922 a Cheka deu lugar ao Diretório Político Estatal (Gosudarstvennoe Politicheskoe Upravlenie – GPU), que era uma polícia mais clássica, já sem funções de tropa de choque. Começou a conduzir também operações de inteligência no estrangeiro de grande amplitude e complexidade. Ao ser transposto para a União Soviética, no ano seguinte, o GPU passou a OGPU. O seu dirigente continuou a ser o sempre incansável Dzerzhinsky, até à sua súbita morte em 1926.

Perante o colapso do controlo operário e da estratégia transicional baseada numa economia mista, face ao desafio da guerra civil, houve que tomar medidas de emergência. Isso só foi possível porque havia uma direção revolucionária numerosa, coesa, solidamente doutrinada e confiante nos ventos da história. Essa direção, por sua vez, foi capaz de seduzir ou de se impor, de forma credível, perante um suficiente número de altos quadros técnicos e administrativos, por forma a garantir o preenchimento de um mínimo de funções de coordenação social, ao nível de um estado já relativamente complexo e de enorme extensão territorial. De outro modo, sem dúvida, teria sido a debandada e a rendição.

O “comunismo de guerra” é melhor compreendido como um sistema integrado de medidas de emergência extrema, devidas ao colapso económico e à guerra civil. Nem todas estas medidas foram simultâneas e vigoraram da mesma maneira em todo o território soviético, que aliás foi sofrendo contrações e expansões ao sabor dos ventos da guerra. No entanto, a sua lógica sistémica é indiscutível, a ponto de ter sido julgado por muitos como a alvorada de um novo modo de produção histórico. Os seus principais elementos componentes foram:

– Nacionalização de todas as indústrias e a introdução de uma rigorosa gestão centralizada;

– Nacionalização dos bancos, da terra e das infraestruturas;

– Repartição igualitária das terras férteis pelos camponeses;

– Monopólio estatal sobre o comércio externo, de nível aliás insignificante e que praticamente cessou no ano de 1919;

– Monopólio estatal do abastecimento interno, para consumo e produção;

– Disciplina laboral equiparável à militar, sendo as greves proibidas;

– Trabalho obrigatório para todas as classes sociais;

– Requisição dos excedentes agrícolas (em excesso de um mínimo absoluto de subsistência) dos camponeses, para sua distribuição centralizada entre toda a população restante;

– Racionamento de alimentos e da maioria das mercadorias, com distribuição centralizada nos centros urbanos;

– Proibição do comércio privado;

– Controlo militarizado dos caminhos-de-ferro;

– Congelamento ou fixação administrativa de preços e salários até que, com o afundamento da circulação monetária, a maioria do abastecimento interno (todo o legal) passou a ser feito por troca direta, os serviços estatais eram doados e a remuneração laboral passa a ser feita por atribuição de bens em espécie;

Esta ordem de coisas foi em grande medida um resultado do afundamento da economia capitalista e da mobilização forçada para a guerra, ambas impostas pelo inimigo. No entanto, em condições de grande penúria, as suas caraterísticas de espartano igualitarismo permitiram a ilusão de que se ergueria a partir delas uma ordem conscientemente orientada por novos princípios. Começou-se a teorizar que o afundamento económico é uma inevitabilidade na transição entre modos de produção distintos (Bukharine, Trotsky). A desaparição súbita do dinheiro não era afinal a alvorada de um mundo novo, livre da escravatura mercantil? A remuneração dos trabalhadores em espécie não era já a aplicação estrita, ainda que em condições de extrema escassez, do princípio comunista “de cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades”? Em maio de 1919 começaram a organizar-se os sábados de trabalho voluntário comunista. Não estaríamos no limiar de uma nova era de dominação proletária, em que o trabalho se tornará obrigatório apenas como medida penal para burgueses e elementos associais? Campos de trabalho forçado (ainda muito incipientes) foram instalados em 1919 para condenados por atividades contrarrevolucionárias. Para os trabalhadores no poder, bastará em princípio a sua autodisciplina voluntária. Ou não?

A força de trabalho, claramente, deixara de ser uma mercadoria sujeita à lei da oferta e da procura, como no capitalismo. Agora que os trabalhadores estão no poder, é a sua própria auto-organização que procede à alocação da sua força laboral pelas diversas tarefas a cumprir, conforme a sua própria avaliação de prioridades. Mas como aumentar a produtividade, a partir dos níveis abismais em que ela tinha caído. Como substituir o chicote da compulsão económica capitalista? Por certo tempo, pensou-se em praticar retribuições diferenciadas, como incentivo material aos trabalhadores mais produtivos. Mas as eternas dificuldades de abastecimento foram um obstáculo intransponível. Por fim, não sendo o entusiasmo revolucionário (cuja mobilização contínua se tornava decrescentemente eficaz), só restava a nua compulsão. Não era, afinal, assim que se passavam também as coisas na frente de guerra? O estado proletário conta com o heroísmo e a abnegação de todos os seus, estando simultaneamente preparados para usar a coação e a força decisiva. Tudo isto para a prossecução dos fins supremos do poder soviético e dentro das relações de camaradagem entre trabalhadores. Por iniciativa sindical, foram criados nas fábricas tribunais disciplinares laborais.

Ao princípio a tarefa de mobilização de trabalhadores para o desempenho de tarefas extraordinárias foi confiada aos próprios sindicatos. No inverno de 1919-1920, porém, Lenine queixou-se amargamente da falha na transferência de 10.000 trabalhadores metalúrgicos para trabalhos urgentes de reparação ferroviária. A tarefa de mobilização de trabalhadores não especializados passou para o comissariado do povo do trabalho (Narkomtrud) ou seus órgãos locais. Camponeses e seus animais também podiam ser requisitados localmente para trabalhos especiais. Finalmente, um decreto do Sovnarkom de janeiro de 1920 estabeleceu que qualquer membro da população trabalhadora podia ser convocado, ocasional ou periodicamente, para o desempenho das mais variadas tarefas produtivas. Desertores eram perseguidos e trazidos de volta por soldados ao local de trabalho [41].

No 9.º congresso do Partido Comunista (Bolchevique), de 29 de março a 5 de abril de 1920, manifesta-se uma nova oposição, que é afinal um grupo residual da dissolvida esquerda comunista que se intitula de “centralista democrata” (Smirnov, Osinsky, Sapronov), protestando contra os excessos de centralismo e o abuso de métodos autoritários. Especialmente contestada era a prática de nomeação de responsáveis partidários locais pelo secretariado do comité central, em lugar da sua eleição pelos respetivos coletivos. É constituída pelo congresso uma comissão de controlo para vigiar estes desvios e patologias.

No começo do outono deste ano começa a agrupar-se a “oposição operária” em torno de Aleksandr Shliapnikov, a sua companheira Aleksandra Kollontai e o seu colega metalúrgico Sergei Medvedev, reclamando o controlo da produção industrial pelos sindicatos, o retorno ao princípio da eleição dos responsáveis e a depuração geral do partido de elementos carreiristas não-operários [42]. É que, entretanto, os gestores contratados (spetsys) haviam aderido em massa ao Partido Comunista, onde se tratavam por tu com a velha intelligentsia anticzarista e participavam com ela na tomada das decisões políticas. A “oposição operária” não era já uma mera fação entre os altos quadros dirigentes, era uma verdadeira organização de massas dentro do partido, hegemónica em várias secções regionais e sectoriais. Era capaz de impor a sua vontade localmente e conduzir verdadeiras campanhas nacionais. Os seus pronunciamentos podem, por vezes, ser caraterizadas por um certo anti-intelectualismo primário. Mas nada pode sofismar o facto de que esta “oposição” era, na verdade, a classe operária bolchevizada a cobrar efetivamente a sua emancipação, de facto e não apenas em proclamações. Começava a desenhar-se um conflito insanável entre autodeterminação operária e direção económica centralizada.

As cooperativas de produção e consumo foram por esta altura absorvidas pelo aparato estatal, ou seja, a Veshenka e o Narkomprod, respetivamente. Em paralelo com o “comunismo de guerra”, desenvolveu-se clandestinamente um mercado negro, que era relativamente tolerado, mas por vezes reprimido com violência. Ficaram emblemáticos os chamados “homens do saco” (meshochniks), pessoas que viajavam até à província para regressar às cidades com grandes sacos de produtos consumíveis para venda. Foi o antepassado próximo do futuro nepman. Com o afundamento da moeda, o mercado negro aderiu também à troca direta. O homem do saco encontrou-se então, muito naturalmente, com o trabalhador pago com peças de seu próprio fabrico. A praça de Sukharevsky em Moscovo era um dos pontos obrigatórios do roteiro. As estimativas existentes afirmam que mais de metade das necessidades alimentares dos russos foram então satisfeitas por estes canais, a designada sukhavekva.

Em fevereiro de 1919 surgiram as primeiras notas bancárias ostentando as armas da república soviética russa. Em maio seguinte houve permissão para emitir sem limites. Dirigia o Comissariado do Povo das Finanças (Narkomfin) o velho bolchevique Nikolai Krestinsky (1883-1938), simpatizante da esquerda comunista. As impressoras trabalharam sem descanso para garantir as necessidades estatais de investimento. Rublos e mais rublos. A espiral inflacionária foi imparável, com o abismo entre os preços fixos e os de mercado livre a crescer de forma cada vez mais acelerada. Apesar da enorme expansão da massa monetária, o seu poder aquisitivo total afundou-se. As notas soviéticas, com a foice e o martelo, foram naturalmente as primeiras a merecer a desdenhosa suspeição dos meshochniks, mas também as notas czaristas e as emitidas pelo governo provisório foram finalmente engolidas no turbilhão. Até que deixou completamente de fazer sentido cobrar preços em moeda. Todos os serviços e fornecimentos estatais ao público passaram a ser gratuitos.

O colapso monetário não foi, de forma alguma, intencional, mas foi lido retrospetivamente por muitos como um avanço em direção ao comunismo [43]. Preobrazhensky saudou a impressora como “essa metralhadora do comissariado das finanças, que despejou fogo nutrido no traseiro do sistema burguês, usando as leis monetárias desse regime para o destruir”. A opinião expressa pelo próprio comissário das finanças não dá a impressão de que tenha incorrido, de caso pensado, em tão temerária imprudência no gatilho, mas antes que houve um caminho que se foi tornando compulsivo por meio de um conjunto irresistível de circunstâncias. Disse Krestinsky ao jornalista inglês Arthur Ransome: “Pode razoavelmente dizer-se que a nossa ruína ou salvação depende de uma corrida entre o decrescente valor do dinheiro (com a consequente necessidade de imprimir notas em cada vez maior quantidade) e a nossa crescente capacidade para, pura e simplesmente, passar sem dinheiro” [44]. Ou seja, atiram-nos borda fora e vai ser preciso aprender a nadar.

O que ficou definitivamente sacrificado foi o papel do banco nacional como guarda-livros da construção socialista, tão caro a Lenine. Quem estava aos comandos da vida económica eram a Veshenka e o Narkomprod. Propostas foram feitas e debatidas para a passagem a uma contabilidade em “unidades de energia” de força de trabalho. A introdução da NEP pôs fim a essa discussão. Provado ficou, isso sim, que foi possível viver sem dinheiro e até vencer desse modo uma guerra civil e de intervenção estrangeira contra catorze potências, como as contou Winston Churchill, um dos seus principais instigadores. Victor Serge deixou-nos páginas inesquecíveis sobre o contraste vivido entre o negrume idealista da fome moscovita, onde se forjavam, em quartos escuros e frios, por entre resmas de papel e névoas de fumo, alvoradas vindouras de justiça e paz, e o conforto vislumbrado de passagem nas montras ocidentais – oh, senhor, aqueles chocolates em Bruxelas! – com toda a sua prosaica e aborrecida opulência [45].

A Internacional Comunista

Os dois núcleos embrionários da futura Internacional Comunista foram a crítica à falência da Internacional Socialista – sobretudo os cruciais documentos escritos em 1915 por Lenine e Rosa Luxemburgo (Junius) – e a ala esquerda do movimento socialista antiguerra. A “esquerda de Zimmerwald” manteve-se, contudo, uma tendência muito minoritária e dispersa do socialismo internacional durante toda a grande guerra. Dos oito zimmerwaldianos de esquerda originais, metade (Lenine, Zinoviev, o polaco Radek e o letão Janis Berzin) deixar-se-ia absorver diretamente na experiência da revolução soviética. Dos restantes, o suíço Fritz Platten, organizador da viagem no comboio blindado, acompanhou ocasionalmente Lenine na Rússia (inclusive banhando-se no seu sangue quando ele foi baleado) e continuou a desempenhar algumas missões internacionais; o alemão Julian Borchardt notabilizar-se-ia sobretudo por publicar um popular resumo de O Capital [46]; os dois suecos, Zeth Höglund e Ture Nerman, conseguiriam ainda fundar, antes do final da guerra, o embrião do futuro Partido Comunista Sueco.

As esperanças da esquerda revolucionária antiguerra estavam depositadas, acima de tudo, nos bolcheviques russos e no grupo alemão Spartakus, que tinham toda uma outra dimensão, pelo seu nível teórico e potencial de ligação às massas.Spartakistas e bolcheviques tinham, porém, importantes divergências, quanto à questão nacional, à política agrária e na relação entre partido e classe. Na Holanda havia também um importante núcleo socialista revolucionário, os “tribunistas”, com importantes influências anarco-sindicalistas, com destaque para Anton Pannekoek, Herman Gorter e Henriette Roland-Holst. Em França, havia alguns militantes antiguerra na SFIO – Fernand Loriot, Boris Souvarine – e bastantes mais entre os sindicalistas revolucionários da CGT, entre os quais Alfred Rosmer e Pierre Monnatte [47]. Em Itália, dentro do Partido Socialista, havia a fação abstencionista de Amadeo Bordiga e uma publicação da Federação Juvenil Piemontesa, La città futura, onde se destacava Antonio Gramsci.

Em Inglaterra não havia muito por onde escolher, para além da fação mais à esquerda do Independent Labour Party (com destaque para dois descendentes de indianos, Shapurji Saklatvala e Rajani Palme Dutt) e a Workers’ Socialist Federation da sufragista enragée Sylvia Pankhurst. Dos E.U.A., interessavam o Socialist Labor Party of America – onde exercera o seu magistério o já falecido Daniel de Leon – e a ala esquerda do Socialist Party of America de Eugene Debs. Em todo o mundo anglo-saxónico, as posições antiguerra eram sobretudo apanágio da internacional sindicalista revolucionária Industrial Workers of the World (os wobblies). Havia núcleos políticos potencialmente interessantes a formar-se em muitos outros países, com destaque para a Polónia, a Áustria, a Hungria, a Sérvia, a Bulgária e a Roménia. Do Japão, havia pouco mais que um contato pessoal com o expatriado Sen Katayama que, sorridente, já havia apertado a mão a Plekhanov no congresso da Internacional Socialista de Amsterdão (1904), enquanto decorria a guerra russo-japonesa. Quando Lenine, vivendo a grande guerra no exílio, procurou afanosamente um caminho de demarcação política clara com a ortodoxia da II Internacional – caminho esse que culminaria em O Estado e a Revolução – foi companheiro de estrada, político e intelectual, de muita gente que depois, já chefe de estado, apodaria de esquerdista.

A palavra de ordem da criação de uma III Internacional fez-se já ouvir nas manifestações do 1º de maio de 1917. Mas foi a revolução soviética de outubro, naturalmente, que ajudou a fixar uma grande parte das referências do novo movimento, sobretudo no que respeita à consagração de formas originais de democracia operária de base. A experiência russa de fevereiro a outubro pôs em relevo o soviete. Na agitação revolucionária do pós-guerra este, conceito foi traduzido em diversas línguas europeias, num fenómeno que podemos designar genericamente como conselhismo (arbeiterräte, consigli di fabbrica, shop stewards committees).

Em finais de dezembro de 1918, Lenine entregou ao comissário do povo dos assuntos exteriores, Georgy Chicherin, uma lista de vinte organizações que deviam ser convidadas para uma conferência socialista fundadora de uma nova internacional. Este propósito foi anunciado oficialmente numa emissão radiofónica de 24 de janeiro de 1919 [48]. Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht fundaram ainda, com base na Liga Spartakus, o Partido Comunista Alemão (Kommunistische Partei Deutschlands – KPD), a 31 de dezembro de 1918. Mas logo a 15 de janeiro seguinte foram ambos barbaramente assassinados, na sequência de um improvisado golpe de mão comunista em Berlim, que eles procuraram impedir mas se viram, por fim, constrangidos a acompanhar. Aprisionados, foram interrogados sob tortura e quase de imediato mortos a tiro por corpos militarizados, os freikorps, sob as ordens de um seu antigo correligionário, aliás de origem operária, o ministro socialdemocrata da defesa Gustav Noske. Rosa foi lançada a um canal com o crânio desfeito por coronhadas. Foi ainda sob o impacto deste golpe profundo que se reuniu, em Moscovo, o congresso fundador da Internacional Comunista (Comintern), de 2 a 6 de março de 1919.

O encontro deu-se numa pequena sala de tribunal no Kremlin, juntando 51 delegados de 35 organizações de 22 países. Pelos anfitriões estiveram presentes Lenine, Trotsky, Zinoviev, Bukharine, Chicherin, Vorovsky e Osinsky. Muitos dos convidados internacionais credenciados pelas suas organizações não conseguiram chegar, retidos pelo bloqueio. Alguns deles foram substituídos had hoc por militantes da sua nacionalidade já residentes na Rússia. Inicialmente decidiu-se fazer apenas uma conferência preparatória, mas por fim acabou mesmo por se proclamar ali constituída a Internacional Comunista. Os cinco delegados alemães, dirigidos por Hugo Eberlein (Albert), abstiveram-se, pois tinham instruções dadas ainda por Rosa Luxemburgo para considerar essa iniciativa prematura. O comité executivo eleito era presidido por Grigory Zinoviev e secretariado por Karl Radek, o qual, preso em Berlim, foi substituído temporariamente por Angelica Balabanov. A maioria dos lugares no comité executivo foi preenchida nessa altura por russos, embora também por lá tenham passado, entre outros, Otto Kuusinen (Finlândia), László Rudas (Hungria), Sebald Rutgers (Holanda), John Reed (E.U.A.) e Jacques Sadoul (França). Começou a publicar-se imediatamente a revista oficial Kommunisticheskii Internatsional. Por esta altura foram fundados partidos comunistas num grande número de países.

Nos debates e documentos conclusivos do congresso fundador da Internacional Comunista o acento foi posto na busca de novos institutos de democracia operária como expressão concreta da ditadura do proletariado. Em contraposição à “democracia pura” do parlamentarismo burguês, máscara hipócrita da mais absoluta dominação de classe capitalista, deveriam ser criadas novas instituições de uma democracia real, amplamente participada pelas classes não possidentes. Todo o aparelho repressivo, administrativo e judicial burguês deve ser desmantelado e substituído pelo povo trabalhador em armas, dirigido pela classe operária [49]. Uma luta de morte deveria ser devotada à Internacional Socialista “amarela” que se tentara ressuscitar das cinzas na conferência então acabada de realizar em Berna (fevereiro de 1919). Quanto à corrente oportunista do “centro” (que viriam a fundar depois a ironicamente denominada “Internacional 2 e ½”), deverá ser desmascarada, tentando-se desagregar dela todos os seus elementos consequentemente revolucionários.

Pensava-se então que o levantamento proletário internacional se iria dar de uma forma relativamente espontânea e multiforme, não se sentindo nesta altura a urgência de fazer precisões tático-estratégicas ou definir parâmetros organizativos para os partidos comunistas. Em novembro de 1918 foi proclamada uma revolução socialista na Holanda, pelo fundador e dirigente máximo do seu muito oficial partido socialdemocrata (o “erro de Troelstra”), o que deu origem a uma série de incidentes algo indefinidos que ficaram conhecidos como a “semana vermelha”. Em Bruxelas houve mesmo um levantamento operário efetivo, aqui com a assistência das tropas ocupantes alemãs sovietizadas. Constituiu-se uma república de conselhos operários na Alsácia-Lorena – logo esmagada pela ocupação francesa – e outra na cidade-estado portuária alemã de Bremen.

1919 começou com greves e motins operários, populares e militares, em diversos pontos da Grã-Bretanha (Glasgow, Liverpool, Luton, Londres), que se manteriam em crescendo ao longo de todo esse ano. Rebentou a guerra de libertação irlandesa e Limerick proclamou-se sob poder soviético em abril. Uma revolução sacudiu o domínio britânico no Egito e no Sudão. Rebentou a terceira guerra anglo-afegã. Na Índia começaram as grandes campanhas de desobediência civil inspiradas por Mohandas Gandhi. Expedições militares foram enviadas à Rússia. Havia já, no entanto, entre as tropas britânicas, um enorme cansaço de guerra. Calais chegou a estar completamente nas mãos de conselhos de soldados e marinheiros britânicos, em aliança com franceses. Tropas enviadas para reprimir o motim aí existente sistematicamente confraternizavam com os rebeldes.

A 18 de novembro de 1918 houve uma insurreição anarquista no Rio de Janeiro. Nesse mesmo dia fracassou a greve geral revolucionária convocada em Portugal pela União Operária Nacional. Em janeiro de 1919, ocorreu em Buenos Aires uma série de motins de inspiração anarco-comunista, incidentes que ficaram conhecidos como a “semana trágica”. Nos E.U.A., nesse ano de 1919 e no seguinte, uma vaga de greves, atentados terroristas e motins raciais criou o “grande pânico vermelho” (great red scare). Uma vaga nacional de revolta operária ocorreu no Canadá. O presidente norte-americano Woodrow Wilson declarou que “estamos a disputar uma corrida com o bolchevismo e o mundo está incendiado”. Revolução e contrarrevolução assolaram, entretanto, a Finlândia e os estados bálticos. A conferência aliada de Paris resolveu tomar providências excecionais para defender a Alemanha da revolução socialista, preocupação que já estivera aliás na base da aceitação do armistício. Não fosse o medo da revolução, a guerra teria certamente prosseguido imparável até Berlim. Quase imediatamente após o encerramento do desfalcado congresso moscovita fundador da Internacional Comunista, ocorreram duas importantes revoluções operárias conselhistas, na Hungria e na Baviera.

A queda da monarquia austro-húngara deu lugar em Budapeste à revolução dos crisântemos e à formação de uma república popular de direção socialdemocrata. Por meio de um novo Partido Socialista Unificado, os comunistas húngaros tomaram o poder a 21 de março de 1919, logo proclamando o estabelecimento de uma república soviética. No entanto, não foram criados quaisquer conselhos operários. O conselho de comissários do povo, formalmente dirigido por Sándor Garbai, tinha Béla Kun (negócios estrangeiros) como eminência parda, incluindo futuras estrelas como Matyás Rákosi (comércio, produção social), Georgy Lucáks (educação e cultura) e Eugen Varga (finanças). Kun estabeleceu contato rádio diário com Lenine mas a Rússia soviética assediada não estava nessa altura em condições de lhe fornecer qualquer relevante apoio político ou militar. Foram nacionalizadas empresas industriais e comerciais, bancos, residências, transportes e herdades agrícolas com mais de 40 hectares. Para grande irritação de Lenine, o governo de Kun coletivizou as grandes herdades agrícolas, em vez de redistribuir as terras pelos camponeses. Poderá assim ter perdido uma oportunidade de reunir em seu apoio o campesinato mais pobre, de acordo com o modelo bolchevique. O governo soviético húngaro nasceu ameaçado por um ultimato aliado e comprometido com o restabelecimento das fronteiras do país, tendo para isso empenhado o seu apressadamente formado Exército Vermelho em incursões militares na Eslováquia (onde se criou também, brevemente, uma república soviética) e na Roménia. Neste último caso os resultados foram desastrosos. O exército romeno acabou por entrar vitoriosamente em Budapeste a 6 de agosto de 1919, sem que o Exército Vermelho russo, retido por inimigos na Ucrânia, pudesse valer de algum modo aos seus aliados magiares. A república soviética húngara foi derrubada e dispersa, não tardando a erguer-se em seu lugar o regime ditatorial protofascista do almirante Miklós Horthy.

A culminar uma sequência de graves convulsões após a fuga do rei Ludwig III, foi proclamada em Munique, na noite de 6-7 de abril de 1919, uma república de conselhos operários, presidida pelo dramaturgo expressionista Ernst Toller. Na verdade, este foi um governo fugaz e um tanto extravagante que ficou conhecido como o regime dos cafés anarquistas. Passada uma semana o poder foi tomado pelo Partido Comunista, dirigido por Eugen Levine. Foi organizado um Exército Vermelho e tomaram-se medidas sociais radicais diretamente inspiradas pela revolução soviética russa, como o controlo operário fabril e as ocupações de residências senhoriais. A república conseguiu ainda derrotar golpes e repelir ofensivas militares dos seus adversários direitistas bávaros, mas em breve foi a vez do exército alemão e seus freikorps cercaram Munique. Foram feitos reféns no seio de algumas famílias proeminentes. Entre 1 e 6 de maio, a capital bávara foi violentamente bombardeada e assaltada, com largas centenas de vítimas mortais. A república conselhista bávara foi afogada em sangue, sendo fuzilados para cima de mil comunistas e anarquistas, entre os quais Eugen Levine e o filósofo anarcopacifista Gustav Landauer. Nem a Hungria nem a Baviera tinham nada que se aproximasse da profundidade territorial que permitiu a sobrevivência da revolução soviética russa.

Com a queda da monarquia de Habsburgo, formaram-se sovietes de soldados e operários também na Áustria germânica. Todavia estes mantiveram-se sempre muito disciplinados sob o controlo do Partido Socialdemocrata no poder. O chanceler da nova república era o imaginativo bibliotecário austromarxista Karl Renner, que logo introduziu reformas sociais apaziguadores como as oito horas, seguro de desemprego, férias pagas e a regulação das condições de trabalho de mineiros, mulheres e menores. Não tiveram acolhimento os apelos à radicalização trazidos das vizinhas repúblicas soviéticas da Hungria e da Baviera, a leste e oeste, respetivamente. O sopro insurrecional só chegaria aos bairros operários de Viena – em 1927 e novamente em 1934 – em resposta a ofensivas da sua própria direita reacionária.

Do mesmo modo, na Alemanha, a socialdemocracia sempre teve a situação completamente controlada, em particular no que respeita às camadas mais educadas e tecnicamente evoluídas da classe operária, aquelas precisamente que Lenine esperava viessem a dirigir e protagonizar uma mutação civilizacional revolucionária. A figura-chave foi aqui o chanceler e presidente Friedrich Ebert, que odiava a revolução “como ao pecado”. A Trotsky não escapou a ironia de, entre os impérios derrotados na guerra, a revolução soviética ter chegado precisamente apenas às suas nações (ou regiões) mais atrasadas. Seria assim ao longo de todo o século. Mas mesmo imaginando uma situação em que os impérios centrais europeus, no seu todo, se inclinassem para a revolução soviética, faltavam ainda as potências vencedoras da guerra. Estas eram as novas senhoras da situação geopolítica mundial. Era, aliás, a esse título, que exerciam uma certa tutela sobre a socialdemocracia germânica, confiando-lhe a estabilização da situação nesses países.

A 13 de março de 1920, a direita monárquica alemã tenta derrubar a república de Weimar por meio de um movimento militar. O golpe chegou a dominar Berlim e a nomear como chanceler o reacionário Wolfgang Kapp. Foi apenas derrotado pela forte mobilização popular e pela greve geral que se seguiu em todo o país, em resposta ao apelo do desalojado governo socialdemocrata. No entanto, englobado nesse mesmo contexto, um levantamento operário na bacia do Rhur seria depois fortemente reprimido, em flagrante contraste com a pusilanimidade respeitosa com que se lidou com os golpistas. Um Exército Vermelho do Rhur de 50.000 homens foi derrotado e disperso, com muitas execuções sumárias. Cidades como Düsseldorf e Eberfeld foram assim retomadas aos comunistas. Em maio de 1920, a CGT em França decreta uma greve geral. Logo de seguinte fracassa uma greve ferroviária pela nacionalização dos caminhos-de-ferro. O Exército Vermelho russo contratacava vitoriosamente sobre os arredores de Varsóvia quando a Internacional Comunista faz reunir o seu segundo congresso, entre 19 de julho e 7 de agosto de 1920.

Este segundo congresso foi muito mais formal e participado do que o primeiro. Compareceram 281 delegados, incluindo 30 de várias nacionalidades asiáticas. Entre os participantes, para além de todos os mais conhecidos dirigentes revolucionários russos, merecem uma referência especial Paul Levi, Ernst Meyer, Alfred Rosmer, Giacinto Serrati, Amadeo Bordiga, Eugen Varga, Peteris Stučka, Raya Dunayevskaya, Avetis Sultan-Zade ,Henk Sneevliet (Maring) e M. N. Roy. Os convidados foram recebidos em Petrogrado, onde cumpriram um largo programa de sessões públicas e festividades, partindo depois para Moscovo onde reuniram na sala do trono de Vladimir, no Kremlin.

Uma das mais marcantes decisões deste congresso foi a aprovação das famosas 21 condições para admissão à internacional. Procurou-se cercear muito apertadamente a admissão, de modo a excluir organizações reformistas e centristas. Na verdade, criou-se uma ortodoxia “bolchevique” demasiado centrada na experiência russa, como Lenine acabaria por reconhecer. Isso mesmo veio a ser ainda mais reforçado nos estatutos aprovados, que estabeleceram uma organização muito centralista e rigorosamente hierarquizada, a partir de um comité executivo instalado em Moscovo sob hegemonia russa. A perspetiva era criar um instrumento político acerado e militarmente disciplinado para uma ofensiva internacional que se previa iminente. Na verdade, não tardou que as perspetivas se redefinissem antes no sentido de que era necessário preparar-se para um longo período de impasse na revolução mundial.

Foi debatida a questão da participação comunista nos sindicatos e nos parlamentos burgueses, sendo aprovada a linha defendida por Lenine num célebre panfleto, distribuído então por todos os delegados [50]. A flexibilidade tática e a alternância pronta entre formas de intervenção política legais e ilegais são traços da experiência bolchevique vitoriosa que são propostos à imitação de todos os partidos comunistas. Também na questão agrária é aprovada, com alguma controvérsia, a perspetiva bolchevique de conciliação com o pequeno campesinato, onde este exista. Preparativos deviam ser encetados para a constituição de uma central sindical internacional vermelha. A questão colonial recebeu, pela primeira vez, um tratamento especial e detalhado neste congresso. Movimentos de libertação nacional deveriam ser apoiados incondicionalmente, em particular pelos partidos comunistas das potências coloniais. Deve ser conduzida sistemática agitação militar contra qualquer tipo operações de subjugação de outros povos. Nas colónias, deveria ser dado apoio aos movimentos nacionalistas revolucionários mesmo que estes sejam dominados por elementos não operários, burgueses ou camponeses.

Em setembro de 1920 reunir-se-ia em Baku, presidido por Zinoviev, o Congresso dos Povos do Oriente, com cerca de dois mil delegados, a maioria deles de povos caucasianos, turcófonos e do Médio Oriente. Gritou-se aí jihad contra a dominação colonial. A agitação comunista organizada chegava à Turquia, à Pérsia, ao mundo árabe, à China, à Índia, à Indonésia, ao Japão, à Coreia, à Indochina. Entre junho de 1920 e setembro de 1921 existiu, a sul de Baku, uma República Soviética Persa na província de Gilan.

Mirsaid Sultan-Galiev (1892–1940), um bolchevique tártaro que chegou a dirigir a secção muçulmana do Narkomnats, começou por então a conceber uma heresia que não deixa de prefigurar, de certa maneira, o que viria a ser a teoria da dependência e o terceiromundismo. Para Sultan-Galiev, uma revolução proletária num país colonizador não resolve, de forma alguma, o problema da dominação colonial, pois que o proletariado da metrópole alcandorado ao poder pode perfeitamente – e normalmente fá-lo-á – continuar a relação de exploração estabelecida pela sua burguesia com os povos dominados. Pugnou pela afirmação de uma completa autonomia política para o movimento comunista nas nações colonizadas, designadamente as de tradição muçulmana. Foi considerado culpado de desvios panislamistas e expulso do partido em 1923. Mais tarde pereceria, também ele, nas purgas de Estaline. Foi uma oportunidade perdida de saltar etapas na história revolucionária do século.

Em setembro de 1920 dá-se o apogeu do grande movimento grevista e de ocupações de fábrica no norte de Itália, abrangendo dois milhões de trabalhadores. Conselhos de fábrica são formados, sobretudo em Milão e Turim. Uns 500.000 trabalhadores ocupam as suas unidades industriais, formando-se milícias operárias armadas. É o momento culminante do biénio vermelho na Itália do pós-guerra. No vale do Pó, trabalhadores rurais fazem também greve. No sul, camponeses exigem uma reforma agrária. Mas não há sintetização e acumulação política de forças a partir destes movimentos, o que irá facilitar o triunfo da reação fascista nos anos vindouros. Em dezembro de 1920, falha uma greve geral na Checoslováquia.

Foi por esta altura que surgiu uma figura que haveria depois de se expandir e tornar lendária: o agente do Comintern. Um dos primeiros foi Willi Münzemberg, boémio, cativante, imaginativo, pleno de iniciativa e autoconfiança, era um exímio propagandista e criou com grande sucesso, no início dos anos 1920, várias organizações frentistas (Amigos da Rússia Soviética, Liga Mundial contra o Imperialismo, Fundo Internacional de Auxílio a Trabalhadores) em diversos países europeus. Jornais, editoras, cinemas e teatros faziam parte da rede por ele controlada. Círculos da intelectualidade burguesa europeia começam a deixar-se seduzir pelo comunismo.

O maior revés de todo este período foi, porventura, o fracasso da “ação de março” de 1921 na Alemanha. Não porque tivesse sido uma derrota mais pesada do que as anteriores, mas porque foi uma iniciativa da Internacional Comunista que se revelou um enorme fiasco, expondo claramente os seus limites. Primeiro, a IC, sob direta instigação de Zinoviev, promoveu a deposição de Paul Levi da liderança do KPD, substituindo-o por um grupo ultra-esquerdista inexperiente e maleável, encabeçado por Heinrich Brandler. Depois, a instâncias de Zinoviev e Bukharine, foi mandatada uma equipa cominterniana dirigida pelo já fracassado revolucionário húngaro Bela Kun para ir clandestinamente ao terreno organizar uma revolução num país completamente desconhecido. Sucederam-se as asneiras e os improvisos. A greve geral marcada para todo o país mal se fez sentir e o levantamento operário armado na Saxónia malogrou-se por completo. A revolução induzida (ou “galvanizada”, na expressão de Bukharine) por cadeia de comando a partir do exterior não funcionava.

Foi já sob um espírito completamente diverso do anterior que se reuniu o terceiro congresso da Internacional Comunista, em Moscovo, de 22 de junho a 12 de julho de 1921. Agora, “é preciso acabar com os assaltos e passar ao cerco”. Para isso, a nova palavra de ordem é ganhar a confiança das massas. Tudo isto, aliás, em linha com o recuo para a NEP na própria Rússia soviética. O diferimento da perspetiva da revolução levava a uma reconsideração tática das relações com os sindicatos e a socialdemocracia, centrista ou mesmo a mais oportunista. É a linha da frente única proletária. O objetivo já não era, no imediato, a instauração do poder soviético e da ditadura do proletariado, mas sim repelir a reação, ganhar o pão e a paz, acumulando forças para o futuro [51]. Começavam os ziguezagues táticos na IC e as controvérsias e desorientações daí resultantes.

De 2 a 5 de abril de 1922 realizou-se em Berlim uma conferência entre todas as três internacionais (II, II e ½ e III), da qual chegou a resultar a constituição de um comité de organização misto, de nove membros, tendo por missão a organização de novas conferências tripartidas. Era ir longe demais. Em Moscovo decretou-se que a conferência foi um fracasso e a III Internacional retirou de imediato os seus três membros do comité dos nove. As duas internacionais socialdemocratas entram, a partir daí, num processo de aproximação que culminaria, em maio de 1923, na sua fusão com a constituição da nova Internacional Socialista e Trabalhista [52].

O quarto congresso da Internacional Comunista reuniu, em Petrogrado e Moscovo, entre 5 de novembro e 5 de dezembro de 1922. Lenine estava demasiado doente para assistir às sessões e dirigiu um único discurso ao plenário. Mussolini tomara o poder para o seu Partido Nacional Fascista, na sequência da marcha sobre Roma, cujo significado não foi, aliás, imediatamente compreendido. Acabara o pós-guerra, gestava já a próxima. Reforçava-se a tendência para um refluxo da vaga revolucionária europeia, pelo que o congresso deliberou prolongar, precisar e institucionalizar a tática da frente única [53]. Na ofensiva, destacar-se da massa socialdemocrata, na defensiva, acolher-se no seu seio, procurando embora aí afirmar e propagar a identidade própria comunista. A estratégia de montagem de cerco parecia começar a transmutar-se numa de defesa perante o assédio inimigo. No outono de 1923 verificaram-se ainda mais dois levantamentos comunistas, na Bulgária e na Alemanha (Hamburgo e Schleswig-Holstein). Mas era já o canto do cisne da ansiada revolução proletária europeia em resposta à grande guerra imperialista.

Triunfo e agonia da revolução soviética

O terrível problema que o poder bolchevique tinha por resolver, à saída como à entrada para a guerra civil, é que, na vida industrial, como em grande parte da vida urbana, pura e simplesmente, as coisas não funcionavam. Nada estava a prestar serviços mais do que mínimos, tudo estava votado ao absentismo, ao desleixo, ao descaminho e ao furto. Era isto o poder dos trabalhadores? A ideia de uma transição gradual para relações de produção comunistas sempre em crescendo de produtividade revelava-se um tremendo fiasco, com custos sociais catastróficos. Não era suposto as relações de produção capitalista estarem já a constituir um freio ao livre desenvolvimento das forças produtivas? Se as forças produtivas estão maduras para o socialismo, expulsa a burguesia, porque não se erguem naturalmente as novas relações de produção cooperativas e solidárias? Hic Rhodus, hic salta. Porque tem o estado proletário de macaquear, à sua conta, com pessoal estipendiado, sempre de lealdade duvidosa, numa mera fração do parque industrial instalado, relações de produção exatamente tão despóticas como as capitalistas? Sem dúvida devido ao imenso atraso social e cultural russo. Mas quem vem então em nosso socorro? Porque tarda tanto a revolução proletária internacional? O povo russo tinha sacudido a velha ordem com unânime e determinada revulsão, mas ainda não encontrara uma nova. Que fazer?

Ainda no ano de 1919, Leon Trotsky propôs ao comité central um conjunto de teses visando a aplicação sistemática dos métodos militares à produção. A militarização da classe trabalhadora deveria ser entregue aos sindicatos, eles próprios estatizados e reestruturados ao estilo militar. Numa “fuga de informação”, o documento acaba por ser publicado inadvertidamente no Pravda, dirigido por Bukharine, causando uma certa comoção. A fação bolchevique nos sindicatos condena a proposta por uma maioria esmagadora. Numa reunião do comité central de fevereiro de 1920, Trotsky propõe então uma abordagem completamente diferente: o restabelecimento do mercado, substituindo as requisições forçadas por um imposto em natureza e o desenvolvimento de esforços para fornecer aos camponeses produtos industriais de qualidade aceitável. Era a NEP, mas um ano cedo de mais. Lenine está decididamente contra. A proposta é rejeitada por 11 votos contra 4.

A situação económica adquiria contornos alarmantes (“dez vezes pior do que a situação militar alguma vez esteve”) e Trotsky decide pôr em ação as suas propostas anteriores, por sua conta e risco, nas áreas sob a sua responsabilidade. Lenine dava-lhe cobertura, discretamente. Desde o fim da guerra civil o Exército Vermelho abraça a batalha da produção, primeiro nos Urais, depois na Ucrânia, no Cáucaso e no Turquestão, em trabalhos florestais, mineiros, ferroviários, agrícolas. Por todo o lado, estes destacamentos militares intimidavam as autoridades civis locais a seguirem-nos nos seus métodos. Constituem-se equipas de trabalho “de choque” (udarniki). Depois do trabalho militar, a próxima etapa lógica era a militarização do trabalho, para o que haveria de se proceder à necessária arregimentação dos sindicatos. O trabalhador era um soldado da produção. Aquele que desertasse desta frente teria, no mínimo, de ser internado compulsivamente em campo de concentração. Trotsky produzia, entretanto, uma expressiva literatura teórica em apoio das suas teses, na qual chegou a elogiar a produtividade da escravatura. Trabalho “livre” não passa de uma hipócrita contrafação ideológica do capitalismo. Historicamente, todo o trabalho social é compulsório, cabendo, pois, ao estado proletário, impô-lo sem rodeios e implacavelmente a todos os recalcitrantes [54].

A instâncias de Lenine, Trotsky aceita o encargo de dirigir uma nova administração dos transportes ferroviários (Glavpolitput) e fá-lo com determinação e sem olhar a meios. Consegue um milagre na reorganização dos caminhos-de-ferro, à custa da completa pulverização do sindicato ferroviário, cujo comité é destituído (ao que parece, pelo comité central do partido), sendo em seu lugar nomeado um novo comité, o Tsektran, já conformado com a nova panaceia militaro-sindicalista. Zinoviev, dirigente do soviete de Petrogrado, começa a fazer campanha pública contra o Tsektran, denunciando-o como um organismo ditatorial e burocrático. São confiadas a Trotsky novas tarefas de reorganização industrial, para cumprimento das quais ele ameaça “quebrar” outros sindicatos. Mikhail Tomsky, presidente do Conselho Central dos Sindicatos, leva ao comité central a questão de se saber se Trotsky pode destituir dirigentes sindicais eleitos pela respetiva classe.

A situação torna-se insustentável. Por oito votos contra seis, o comité central desautoriza Trotsky, encarregando uma comissão, presidida por Zinoviev, de estudar a questão das relações entre partido e sindicatos. As suas recomendações não são aceites e a discussão torna-se pública, com a formação de três plataformas: a oposição operária, com as posições mais extremadamente sindicalistas, uma fação resultante de um compromisso entre Trotsky e Bukharine, que diluiu um pouco as posições mais autoritárias do primeiro e, finalmente, o “grupo dos dez”, constituído à volta de Lenine, contando com a adesão, para além dos sindicalistas Tomsky e Lozovsky, dos influentes Zinoviev e Estaline [55]. Estes últimos organizavam a contenda e procediam à contagem de espingardas nos bastidores. O debate prolongou-se por três meses, de forma por vezes muito acrimoniosa, com publicação de artigos na imprensa do partido, circulação de documentos, panfletos e volumes coletivos, sessões públicas, intervenções em congressos, etc..

Lenine nega que a questão central da revolução seja a da produção, sendo sim a da consolidação do poder proletário, com o reforço da confiança das massas. O papel fundamental dos sindicatos na ditadura do proletariado é o de funcionarem como “escolas de comunismo”, educando e consciencializando os trabalhadores para as tarefas da produção, adaptando-os ainda, simultaneamente, para as tarefas que lhes cabem na construção de uma sociedade sem classes. Para a prossecução desses fins, não é essencial, neste momento, e seria um erro, transformar os sindicatos em órgãos estatais, pois que isso comprometeria a capacidade de eles influenciarem e mobilizarem as mais vastas massas sem partido. A defesa dos interesses específicos dos trabalhadores por meios associativos continua a ser indispensável, no estado soviético, porque este não é um estado apenas proletário, mas também camponês, para além de estar minado por todo o tipo de deformações burocráticas e pequeno-burguesas. O Partido Comunista, nas suas organizações centrais e locais, deve exercer uma direção política geral, abstendo-se, porém, de se imiscuir diretamente na vida dos sindicatos, em particular no exercício do direito democrático de eleição dos seus dirigentes.

Lenine ganha o debate e, de forma esmagadora, a votação sobre ele no 10.º congresso bolchevique. No entanto, de forma retrospetiva, criticou asperamente o partido por se ter dado ao “luxo” desta discussão pública. Cerrar fileiras e calar dissídios seria doravante o seu lema, quando nunca o fora antes. A verdade é que o “debate sobre os sindicatos” tocou uma corda muito sensível, bem no âmago do seu pensamento político. A indústria capitalista russa erguera-se e desenvolvera-se com determinadas relações de dominação de classe, bem específicas e marcadas. Seria possível mantê-la e expandi-la, prescindindo, superando, erradicando violentamente essas mesmas relações, como sempre fora a sua convicção? Uma expressão como “democracia industrial”, usada insistentemente por Bukharine, causava-lhe agora um enorme desconforto. E poderemos estar a ter este debate, entre nós, comunistas, às claras, bem em frente ao inimigo? Apoiantes que foram da plataforma Trostsky-Bukharine, demitem-se os três secretários do comité central: Nikolay Krestinsky, Evgeni Preobrazhensky e Leonid Serebryakov. O primeiro perdeu também os seus lugares no politburo e no orgburo, partindo como embaixador para Berlim. Em futuras lutas de fações, as consequências nem sempre serão tão benignas.

A 28 de fevereiro de 1921 Pyotr Kropotkine morre na pequena cidade de Dmitrov, 65 km a norte de Moscovo. Os seus funerais foram uma das últimas manifestações públicas anarquistas de vulto na Rússia revolucionária. Emma Goldman e Alexander Berkman estiveram presentes, mas abandonariam a Rússia ainda antes do final do ano, amargamente desiludidos com a revolução soviética.

O descontentamento larvar dos camponeses com a política de requisições deu lugar, em agosto de 1920, a uma verdadeira rebelião em larga escala, em torno da província de Tambov, 300 quilómetros a sudeste de Moscovo. O exército camponês insurreto chegou a contar com 70.000 recrutas, estando bem equipado e comandado para uma prolongada luta de guerrilha. O dirigente máximo da revolta foi Aleksandr Antonov, um jovem ativista SR de esquerda que desempenhara funções na milícia e lutara contra os checoslovacos. O levantamento expressava-se politicamente por uma autodenominada União dos Camponeses Trabalhadores, tendo como referência a dissolvida Assembleia Constituinte. Em janeiro de 1921 outras jacqueries surgiram em Samara, Saratov, Tsaritsyn, Astrakhan e na Sibéria. Havia muitos desmobilizados da guerra que não se habituavam à vida sem a vertigem da camaradagem de armas. Por outro lado, assegurada que estava em definitivo a posse das suas terras, os camponeses recusavam a prodrazvyorstka (entendida como um imposto de guerra) pronunciando-se como que por uma verdadeira secessão interna.

Cem mil soldados do Exército Vermelho, sob o comando de Mikhail Tukhachevsky, bem como unidades especiais de combate da Cheka, foram mobilizados para esmagar a rebelião de Tambov. Antonov-Ovseenko foi o comissário político da operação. Há alegações documentadas de que foram usadas armas químicas. Registaram-se, seguramente, muitas dezenas de milhares de vítimas mortais na população, sendo feitas detenções massivas em campos de concentração. A rebelião foi esmagada pelo outono de 1921, sendo Antonov morto, juntamente com um irmão, numa troca de tiros com a Cheka em agosto de 1922.

A 21 de janeiro, um decreto do Sovnarkom mandou reduzir em um terço as rações de pão em Moscovo, Petrogrado, Ivanovo-Voznesensk e Kronstadt. Devido a dificuldades de abastecimento de combustível, algumas fábricas em Petrogrado foram encerradas, com cortes adicionais na ração dos seus operários. Corriam, entretanto, rumores de regalias distribuídas entre membros do Partido Comunista. Depois de várias reuniões operárias proibidas, em finais de fevereiro estalou um grande movimento grevista em Petrogrado. Tropas bolcheviques confrontaram os grevistas disparando para o ar. A cavalaria dispersou manifestações. O movimento grevista continuou a alastrar, contudo, atingindo a fábrica Putilov. O soviete dirigido por Zinoviev impôs o estado de emergência e coordenou um verdadeiro lock-out público e privado. Foram feitas prisões em massa de grevistas, que agora exigiam eleições livres para os sovietes e para os sindicatos, o fim da Cheka, liberdade de imprensa, de comércio e a convocação da Assembleia Constituinte. Militantes mencheviques e SR’s estavam muito ativos entre eles.

As mesmas causas provocaram idênticas movimentações em Moscovo. Aqui os operários procuraram assediar amigavelmente os soldados em quartéis do Exército Vermelho, recebendo disparos que provocaram várias vítimas mortais. A agitação começou, ainda assim, a atingir várias unidades militares, em diversas cidades. Também em Petrogrado houve confraternização e manifestações conjuntas entre operários e militares rebelados. E depois, novamente, confrontos de que resultaram dezenas de vítimas mortais. Não era a primeira vez que havia greves de massas com os bolcheviques no poder. Mas estas adquiriram, claramente, um caráter insurrecional. Parecia estarmos a viver tudo de novo, desta feita contra o poder soviético. Zinoviev chegou a dar a situação de Petrogrado como desesperada, se não lhe chegassem rapidamente reforços de Novgorod. Lenine dispunha, naturalmente, de informações rigorosas sobre tudo o que se passava, fornecidas pessoalmente por Dzerzhinsky Finalmente, a Cheka fez umas duas mil detenções entre os elementos mais ativos, o que, juntamente com alguma distribuição extraordinária de víveres, fez com que o movimento em Petrogrado esmorecesse [56].

Finalmente, foi na esteira das greves insurrecionais de Moscovo e Petrogrado (e em contato e coordenação com esta última) que se deu a rebelião na ilha militar de Kronstadt, tradicional fortaleza bolchevique, “orgulho e glória da revolução” nas palavras de Trotsky. Também aqui as coisas se tinham alterado muito em poucos anos. Os marinheiros revolucionários mais destacados de 1917 tinham sido mobilizados para a frente na guerra civil, que se manteve sempre longe da ilha. Embora a matéria seja objeto de disputa, parece que os marinheiros de Kronstadt em 1921 eram sobretudo novos recrutas, maioritariamente camponeses, muitos deles ucranianos. Mas não é implausível que fossem, em grande parte, os mesmos. Os bolcheviques entre eles eram agora mais raros e em declínio. No espírito dominante por estas paragens, uma mescla de anticomunismo e antissemitismo vinha recobrir o ressentimento tipicamente camponês com a situação geral do país e as políticas do “comunismo de guerra”.

Delegados militares da ilha visitaram Petrogrado, em finais de fevereiro. Ouvidos os seus relatos, as tripulações reunidas dos navios Petropavlovsk e Sevastopolaprovaram uma lista de exigências ao poder soviético central, em quinze pontos. Eram sobretudo reclamações de libertação de presos políticos socialistas, liberdade de reunião, de associação, de eleição dos sovietes, de atividade económica, desmilitarização da economia, despartidarização do estado e das forças armadas. Numa reunião geral da guarnição, a 1 de março, os quinze pontos foram novamente aprovados, ignorando as solenes advertências de responsáveis políticos e militares soviéticos presentes. No dia seguinte, uma conferência de delegados marinheiros, soldados e operários declara-se em rebelião, constituindo um Comité Revolucionário Provisório presidido pelo furriel-chefe Stepan Petrichenko, um anarcossindicalista ucraniano relacionado com Makhno. É dada voz de prisão aos responsáveis soviéticos. Uma parte dos comunistas organizados na ilha adere à revolta e exprime-o em documentos.

A partir de 7 de março, 60.000 homens do Exército Vermelho comandados por Tukhachevsky preparam-se para assaltar a fortaleza e seus fortins satélites. Era preciso fazê-lo antes que ocorresse o muito próximo degelo da primavera nas águas circundantes da ilha. Senão, a ilha tornar-se-ia inexpugnável e os rebeldes poderiam fustigar Petrogrado com a sua marinha. Soaram os canhões. Há aviões também a assediar a fortaleza rebelde. O assalto sobre o gelo é muito exposto à artilharia insurreta, que provoca umas 10.000 vítimas mortais entre os atacantes. A 19 de março a fortaleza e a cidade estão completamente tomadas. Uns dois milhares de rebeldes são mortos e outros tantos capturados. A maioria fugiu para a Finlândia, onde seriam amnistiados anos depois [57].

Ganha a guerra civil, o projeto revolucionário bolchevique parecia a pontos de se desmoronar por completo, preso ainda por algumas costuras bem à vista. Pior ainda, parecia perder por completo os favores da plebe rural e, finalmente, também da citadina. Quer uma, quer a outra, verdadeiramente, nunca, senão forçadas pelas circunstâncias, deixaram de ansiar pela unidade de todo o campo democrático e socialista. Era claramente esse o seu norte magnético comum. Queriam uma vida melhor, em liberdade, nada sabendo nem desejando saber sobre revolução mundial e transição para um novo modo de produção histórico. Poder e povo seguiriam doravante cada um o seu próprio caminho. Nunca mais um dirigente comunista pôde dirigir-se a um popular qualquer, tratando-o confiada e fraternalmente por camarada. Esse encantamento perdera-se para sempre. A partir daqui o Partido Bolchevique prevalecer-se-ia sobretudo do facto, seu bem conhecido, de que, por diversas peculiaridades geográficas, sociais e culturais, o poder central na Rússia – respeitado mas sobretudo temido – ser muito difícil de desalojar.

O ambiente foi de grande tensão ao longo de todo o 10.º congresso do partido, realizado em Moscovo de 8 a 16 de março de 1921. Praticamente só os pontos de vista Lenine se fizeram aí ouvir, remetendo-se ao silêncio todas as restantes figuras cimeiras do partido. Os seus discursos formais são anormalmente prolixos e arredondados. As suas alocuções avulsas são ríspidas e crispadas, pontuadas de ameaças pouco claras. A Shliapnikov (um velho companheiro), para além de fazer uma alusão pouco elegante à sua ligação com Aleksandra Kollontai, Lenine disse abertamente que compreenderia melhor a sua posição vendo-o do outro lado de um confronto armado, fuzis contra fuzis, do que como “opositor” no seu próprio partido. Declarando que o Partido Bolchevique era agora um exército em retirada, enfrentando perigo de aniquilamento, exigiu o máximo de disciplina e castigos exemplares (levando a analogia até ao fim, seria a pena de morte) para todos os elementos semeadores de confusão, pânico e desmoralização. Acabe-se aqui mesmo com esses disparates liberais do debate aberto e do direito de tendência. A questão dos sindicatos foi decidida consagrando de forma esmagadora as teses de Lenine. A “oposição operária” é qualificada como uma heresia (erro, desvio) antimarxista, em última análise favorecedora da restauração capitalista, sendo a difusão das suas ideias considerada incompatível com a qualidade de membro do Partido Comunista.

Finalmente, no último dia do congresso, como num aparte secundário, sem qualquer discussão digna desse nome, fez-se aprovar, por unanimidade, a anunciada retirada política. Era a abolição das requisições forçadas e sua substituição pelo imposto em espécie, com liberdade parcial de comércio do sobreproduto agrícola, ou seja, a Novaia Ekonomitcheskaia Politika (NEP) [58]. Esta mudança fora já discutida e aprovada anteriormente, no comité central bolchevique, uns dias antes de proclamada a rebelião dos marinheiros. Congresso encerrado. Uns cento e quarenta delegados já se tinham aliás retirado, na véspera, para ir combater a “reação branca” de armas na mão, em Kronstadt. Muitos deles integravam a proscrita “oposição operária”, tendo alguns aí perecido sob os disparos dos rebeldes, porventura acometidos pelo seu próprio desespero.

Em pouco mais de três anos, a classe trabalhadora russa sofrera uma transformação brutal. Desde logo, declinou enormemente nos seus efetivos, até cerca de um terço. Com isso o seu peso relativo reduziu-se ainda mais, em termos demográficos e socioeconómicos. Por outro lado, a sua camada mais esclarecida, interventiva e politizada desapareceu por completo dos seus efetivos, em parte engolida na matança da guerra civil, noutra parte mobilizada para os destacamentos de requisição de grão ou cooptada para funções administrativas no estado e no partido. Só ficaram, em geral, os elementos mais amorfos e desinteressados, os mencheviques e sr’s,, os sem partido, enfim, os que sempre foram czaristas, patrioteiros, devotos e contrarrevolucionários, que também os havia. Haviam ainda aderido ao operariado algumas camadas empobrecidas da pequena burguesia, atraídas pelas rações.

Por outro lado, sobreveio um enorme desencanto e a nova situação dos trabalhadores não favorecia atitudes coletivistas e de solidariedade. Eles viviam do desenrasca, cada um por si, o que propiciava a formação de atitudes cínicas, individualistas e o culto de um certo “livre empreendedorismo” famélico. Por agudas necessidades de abastecimento, muitos trabalhadores estabeleceram contatos duradouros com o campo, sofrendo a influência ideológica camponesa. Por fim, o seu igualitarismo instintivo dirigia-se agora contra os spetsy e os dirigentes políticos privilegiados, em especial aqueles que, como em Petrogrado, se destacavam especialmente na sua ambição em ser “mais iguais que os outros” como diria mais tarde George Orwell. E nisso eram acompanhados pela “oposição operária” no Partido Comunista. Acusações de traição feitas à socapa por alguns dirigentes comunistas à classe trabalhadora, eram devolvidas pelos trabalhadores comunistas, que, eles sim, se consideravam traídos. Depois de todos os sacrifícios heroicos que fizeram, os trabalhadores viviam afinal pior, achando-se tão ou mais submetidos que antes.

Por todo um amplo conjunto de fatores, alterou-se muito sensivelmente a atitude do grosso dos trabalhadores no ativo para com o partido agora no poder. As coisas mudam. Percorrem um constante fluxo de mudança. Também a classe trabalhadora. Lenine começou então a teorizar sobre a ocorrência de uma “desclassificação” da classe trabalhadora. A ditadura do proletariado terá agora de prosseguir sem a massa, sem sequer uma vanguarda desse mesmo proletariado, entretanto desaparecido. No seu lugar ficará apenas uma sua pura representação abstrata, o partido comunista, fiel depositário que é in absentia da sua missão histórica. Era o substitucionismo absoluto. Mas pode uma classe social desaparecida em combate ter ainda uma missão histórica? Quando renascer, reconhecerá o legado da ditadura exercida, entretanto, em seu nome?

A desclassificação da classe trabalhadora é um tema recorrente na reflexão de Lenine a partir do 10.º congresso [59]. No 11.º congresso, em março de 1922, a questão deu origem a um incidente famoso. Lenine, já bastante doente, uma vez mais abordou o tema, no seu relatório inicial, de um modo particularmente infeliz, porque fez remontar a dissolução da classe operária russa à grande guerra, englobando assim a classe que fez a revolução de outubro e ganhou a guerra civil:

“Muito frequentemente, quando se diz «operários» pensa-se que isto significa o proletariado fabril. De modo nenhum. No nosso país, desde o tempo da guerra, vieram para as fábricas pessoas que nada têm de proletários, que vinham apenas para se ocultarem da guerra. E temos hoje condições sociais e económicas para que venham para as fábricas verdadeiros proletários? Isso não é exato. É justo segundo Marx, mas Marx não escrevia acerca da Rússia, mas acerca de todo o capitalismo no seu conjunto, começando desde o século XV. Durante seiscentos anos isso foi justo, mas para a Rússia de hoje não é exato. Muitas vezes aqueles que vêm para as fábricas não são proletários, mas toda a espécie de elementos acidentais” [60].

De seguida, foi confrontado por Shliapnikov, que o saudou ironicamente como “dirigente da vanguarda de uma classe inexistente”. Embora caído em desgraça, Shliapnikov conseguiu ainda, depois de afrontar Lenine desta maneira, levantar aplausos do congresso, ao dizer que, com todos os seus defeitos e incultura, nunca haveria uma outra classe operária russa senão a existente, sendo com ela que haveria de se contar sempre. Expulso do partido em 1933, foi executado em cativeiro, a 2 de setembro de 1937, sem denunciar ninguém nem fazer confissões esdrúxulas.

A partir do 12.º congresso – reunido em abril de 1923, já sem a presença de Lenine – decretou-se que a classe operária estava em franca recomposição e que a questão da “desclassificação” estava felizmente ultrapassada. A ironia é que essa recomposição se dava em resultado do investimento capitalista estrangeiro e da reanimação económica trazida pela liberalização do comércio interno, enquanto a dispersão “desclassificante” fora, em boa parte, causada pelos salários à peça ou o pagamento em espécie ordenados pela Veshenka. Há um preço a pagar por se decretar a classe trabalhadora ora falecida, ora ressuscitada, segundo a sua aparente quiescência àquilo que se proclama em seu nome. Esse preço é a suspeita de que, desde o início, a fusão operada entre o socialismo científico e o movimento operário russo pode ter sido forçada e a sua extraordinária confluência efetiva, na luta anticzarista e na revolução de outubro, sido meramente circunstancial.

Após duas colheitas fracassadas seguidas, nos anos 1921-22 grassou uma terrível vaga de fome em toda a Rússia, com particular agudeza nas suas regiões do Volga e Urais. Morreram uns cinco milhões de pessoas, segundo as estimativas soviéticas. Talvez o dobro, segundo outras fontes. Foi seguramente muito, muito pior do que o surto de fome de 1891-92, um evento formativo para toda a geração de Lenine. Tinha havido muitos anos seguidos de guerras, certamente, mas era impossível exonerar totalmente de responsabilidades a política agrária (ou falta dela) do poder bolchevique, do minifúndio individualista às requisições forçadas, com o retraimento produtivo e a escassez das reservas de grão daí resultantes. O estado deplorável dos transportes fez o resto.

Registaram-se numerosos episódios de antropofagia. Vagas de refugiados rurais invadiram as cidades para morrer nas suas ruas às centenas, diariamente. Grassava todo o tipo de epidemias. A ajuda internacional oferecida foi inicialmente recusada, por estar condicionada a total liberdade de movimentos na sua distribuição local. Passado pouco tempo essa posição era já completamente insustentável. Em julho de 1921, Maksim Gorky fez um dramático apelo mundial, juntamente com o patriarca Tikhon, que anatemizara os bolcheviques em 1918. Toque a reunir para todos os homens de boa vontade. Para captar apoios, foi constituído um apartidário Comité Público de Auxílio aos Famintos, reunindo figuras independentes da cultura, políticos liberais, até um ex-ministro czarista. Os seus membros seriam mais tarde perseguidos. A Cruz Vermelha Internacional assinou um acordo com o Comissariado do Povo dos Negócios Estrangeiros (Georgy Chicherin). Agências europeias e norte-americanas põem-se em campo para fazer chegar alimentos diariamente às populações esfaimadas.

O destaque maior vai, de longe, para a ação da American Relief Administration (ARA), dependente do congresso norte-americano e então dirigida pelo futuro presidente Herbert Hoover. A atuação desta agência ainda hoje se reveste de contornos enigmáticos, mas seguramente que tinha um intuito político oculto. Ela estivera presente na Polónia, ainda há pouco, e fora acusada de ter ajudado o seu exército na guerra contra os soviéticos. A aceitação da sua intervenção na Rússia foi uma considerável humilhação internacional para o poder soviético. Em lugar dos obuses, as potências imperialistas despejaram afinal sobre ele – com uma reprovação compungida e atarefada – milhões e milhões de alqueires de milho, milhares de toneladas de semente, tudo organizado com o mais impecável desembaraço e profissionalismo.

Trezentos norte-americanos e mais de 120.000 russos estiveram no terreno, empregues pela ARA, para fazer chegar diariamente alimentos, roupas, ferramentas, sementes, medicamentos e cuidados médicos às populações carenciadas. Para cima de 10 milhões de pessoas eram alimentadas diariamente pela ARA. “América”, diziam reconhecidamente anciãos desolados e ossudos, crianças de ventre inchado. Lenine ficou muito perturbado com a situação, oscilando incessantemente, um pouco descontroladamente, entre a abertura e a fúria repressora. A missão foi sempre cuidadosamente monitorizada e por vezes assediada pela Cheka, sem incidentes graves. A partir de 1922, o alívio da fome à população dá justificação para uma grande campanha soviética de confisco de bens à igreja ortodoxa. Gorky partiu então para o estrangeiro, para só voltar em 1932. Em junho de 1923, a American Relief Administration cancelou a sua operação da Rússia, alegadamente ao tomar conhecimento de queo governo soviético retomara a sua exportação de cereais. Mas a fome passara já, então, por completo. O governo soviético enviou uma nota seca e sumaríssima de agradecimento.

Foi por alturas do rebentamento da questão da fome, na segunda metade do ano de 1921, que Lenine começou a ter problemas de saúde extraordinariamente sérios. Queixava-se de hiperacusia, insónia, dores de cabeça, dores lombares. Sofreu uma série de pequenos ataques cardíacos. A concentração do trabalho era impossível e começou a ter obsessões compulsivas. Tinha momentos de prostração e apatia. Temeu enlouquecer. Os padecimentos físicos e morais tornaram-se de tal modo intensos que começou a contemplar a possibilidade do suicídio, a exemplo do casal Lafargue. Solicitou um pacto a Estaline (que lhe parecia ser o “durão” do comité central) para que este lhe ministrasse veneno, quando e se assim lho pedisse. Fez repouso na mansão que lhe fora atribuída, em Gorki, nos arredores de Moscovo, na companhia da mulher e da irmã Maria. As fotografias desta época que se conhecem de Nadezhda Krupskaya e seu marido correspondem a um casal pesadamente idoso, quando há muito pouco tinham entrado ambos na casa dos cinquenta anos. Há ali amor e cuidado extremos, mas também uma amargura profunda e irremediável.

Não havia acordo entre os médicos sobre a causa dos sintomas de Lenine, como ainda hoje não há. Tenho assim plena liberdade de fazer o meu próprio juízo. Dada a intensidade com que este homem vivia sempre os acontecimentos, em particular os diretamente relacionados com a missão histórica de que se julgou investido, tenho para mim que as causas da sua doença foram as taças de fel que lhe foram impostas, mais a angústia, a dúvida excruciante, o insuportável stress a que esteve sujeito durante todo este terrível ano de 1921. E, por fim, com a suspeita insistente do fracasso, o afloramento dessa lâmina cruel da culpa. Nada lhe foi poupado. Mesmo os gigantes são apenas humanos e a sua constituição nervosa era falível. Estranhamente, nunca li um autor – partidário, compreensivo ou hostil – que fizesse uma associação direta entre a agonia física de Lenine e os acontecimentos seus contemporâneos. É como se fosse suposto ele ser insensível. Mas não era (obstinado sim, o que é uma coisa completamente diversa). Nem o era, seguramente, Nadezhda Krupskaya, com quem ele viveu sempre em grande comunhão emocional. É este o Lenine em que quero acreditar e estou absolutamente convencido que corresponde ao real.

Lenine foi trucidado em carne viva pela marcha do seu próprio tempo, como, antes dele, muitos outros dirigentes da plebe o foram pela intervenção física direta dos seus inimigos. A tensão utópica e profética que reunia e animava toda a sua pessoa foi completamente desconjuntada. Naturalmente, nada compreenderá deste diagnóstico quem nunca desejou imensamente, quem nunca teve grandes esperanças, senão para a sua própria pessoa. Quando Lenine saiu decidido ao encontro de um particular momento na rebentação histórica, para aí dirigir uma luta de vanguarda com vista a uma transformação mundial rumo ao socialismo, pôs nisso todo o seu ser. Sabia bem que a sua integridade física estava em jogo e não hesitou um segundo. Foi esmagado pelas montanhas que tentou derrubar, exatamente como pressentiu Rosa Luxemburgo em 1907. Caiu em combate, de forma honrada, em luta contra inimigos que, naquela especial circunstância, se revelaram mais poderosos. A correlação de forças, potencialidades e aspirações sociais existente, na Rússia e no mundo, não deu suporte a uma transição revolucionária como a que ele tinha concebido. Houve ainda algum fragor de luta, mas o imperialismo ocidental teve sempre a situação basicamente controlada. Lenine, não foi, seguramente, o administrador da coisa pública mais eficaz que a Rússia já conheceu, porque o seu foco estratégico sempre esteve colocado alhures. Nem é esse o critério porque ele tem de ser julgado pela história. Como todos os bons comunistas, ele foi melhor pai para os filhos dos outros.

Após a sua morte, Lenine foi literalmente embalsamado e erigido em ícone supremo de um projeto que já não era o seu, embora exibisse ainda algumas das suas consignas libertadoras. Este projeto de “socialismo num só país” foi um brutal e extraordinário sucesso, nos seus termos e para o seu tempo, acabando por ruir, de forma diferida, passadas duas gerações. Antes disso, porém, contribuiu ainda para incendiar todo o século XX com o mero reflexo do brilho original da revolução soviética. E por isso, a nossa história vai prosseguir. Mas a experiência vivida no tempo de Lenine, de alguma forma, encapsula já tudo o que viria a ser a experiência revolucionária comunista posterior, até aos nossos dias, maxime, na China, na Jugoslávia, em Cuba ou no Vietname. Também em Moçambique, que é um caso que tenho em especial estima.

Lenine foi mais um que quis endireitar o mundo, sem dúvida. No entanto, houve aqui indiscutivelmente algo de novo. Malogrado embora, foi incomparavelmente mais longe do que qualquer outro. É uma experiência histórica sem quaisquer precedentes. Nunca um profeta anterior deixou no mundo um tal rasto de transformações materiais, que não de meras compunções espiritualizadas levando a nenhures. Nunca um só homem conseguiu algo que se assemelhasse ao impacto que teve no mundo a intervenção de Lenine, escorado em Marx e Engels. Foi uma bordoada extraordinária. Passados cem anos, estamos ainda a tentar iniciar um rescaldo, incapazes de encarar sequer uma reflexão séria sobre o significado do que aconteceu, para lá de alguns esconjuros e anátemas. Certo é que os conceitos marxistas agarraram mesmo a realidade e transformaram-na, embora, por esta vez, não exatamente onde e como o esperaríamos. Somos ainda como que aprendizes de feiticeiro na tomada do destino em nossas próprias mãos.

Nenhum homem ou mulher faz a história acontecer. Esta é o resultado do choque tumultuoso de ações humanas situadas em determinados condicionalismos transmitidos do passado. Como os sistemas complexos e dinâmicos tratados pela denominada teoria do caos determinístico, também a história humana tem uma alta sensibilidade às condições iniciais. O homem é um acidente vogando ao acaso no turbilhão das suas circunstâncias. Lenine era seguramente genial, mas não um homem em absoluto excecional. Já os houve melhores, bem mais completos. Pôde ser determinante porque, depois de bem formado, focou num único objetivo todas as suas consideráveis energias – com o seu proverbial denodo – e porque houve todo um conjunto de circunstâncias que se conjugaram para que a sua ação ressaltasse naquela conjuntura histórica específica. Escassamente mais maciço e calórico que a legendária borboleta, provocou um tufão mundial.

É-nos completamente impossível tentar saber o que seria hoje o mundo, não fora Lenine. Ásia e África estariam ainda submetidas ao colonialismo? Seria a democracia a forma dominante de legitimação do poder político? Haveria direitos sociais e consumo de massas como os conhecemos? Seguro é que a desigualdade económica no mundo contraíu-se a partir da revolução soviética, só tendo retomado a sua expansão já nos anos 1980. Entre a “belle époque” (para os seus contemplados) e a “globalização neoliberal”, estenderam-se os tempos em que se fez sentir o impacto imediato da intervenção de Lenine. Foram sessenta anos de história mundial em que os pobres progrediram globalmente e a cidadania se alargou correspondentemente. Nada mau. Ora, sem Lenine isso certamente não teria acontecido porque – podemos dizê-lo com grande segurança – sem ele não teria havido revolução soviética. Desde logo porque, quando ocorresse o derrube do czarismo, não haveria um partido bolchevique. Sem a ação teimosa, intratável de Lenine nos alvores do século, não se teria formado um partido revolucionário russo com aquelas caraterísticas. E havendo esse partido, foi ainda necessária a atuação de Lenine no seu seio para o conduzir a arrebatar o poder como tiro de partida para uma revolução socialista mundial.

E quanto ao futuro? Também ele, de toda a evidência, não será o que teria sido sem Lenine. Demasiadas coisas se alteraram para que a corrente retome o mesmo hipotético curso, torneando esta pedrada. Que trilhos foram então abertos pelo disparo de pólvora seca do cruzador Aurora? Ser-nos-á finalmente possível, um dia, apoiados em instrumentos críticos aperfeiçoados, transformar o mundo de uma forma inteiramente consciente? Depois de, pelo conhecimento das suas leis, ter dominado a natureza, será dado ao conjunto da espécie humana, um dia, dominar também a sua própria marcha histórica? Depois de “domesticada” a maior parte de si própria ao serviço de uma classe dominante [61], poderá a humanidade libertar-se por completo desse jugo? As estátuas de Lenine já foram apeadas, e bem, porque, pela sua maior parte, eram feíssimas. Mas sobre estes pontos, a história ainda não decidiu. Está tudo ainda em jogo.

Cercados por dentro

Estava largamente ultrapassado o último ponto até ao qual foi ainda possível esperar pela revolução proletária internacional. A situação interna tornava-se completamente insustentável, a menos que se renovasse a aliança com o campesinato, redefinindo por completo os seus termos. Para além disso era necessário tornar mais fluidos os circuitos de abastecimento, sempre perigosamente próximos da embolia. A NEP foi uma retirada política calculada, ditada pela necessidade imperiosa de ganhar tempo, correndo conscientemente alguns riscos restauracionistas.

A colheita de 1922 revelou-se boa e isso teve um efeito imediato muito favorável. Os agricultores tinham agora uma certa margem de liberdade de comércio para o produto excedente às suas necessidades familiares e às exigências fixas e previsíveis do fisco. Souberam sempre forçar essa margem até ao limite, ou mesmo um pouco para além dele. Os termos de troca eram-lhes favoráveis. Mais terras foram cultivadas. Ao arrepio da lei, alguns campos foram arrendados, alguns conheceram novamente o emprego de trabalho assalariado. A circulação monetária retomou com grande animação. Verificou-se de imediato o enriquecimento de uma minoria e uma maior diferenciação social entre o campesinato. Toda a velha história. Mas com ela, como por milagre, houve de imediato um enorme alívio na situação alimentar, por todo o país. Quem quer justiça passa fome, parecia ser a lição. Neste mundo, assim são as coisas. Fair is foul, and foul is fair, como cantam em coro as três bruxas na primeira cena do Macbeth de Shakespeare. E assim pareciam elas cantar agora, insistentemente, ao ouvido de Lenine: Fair is foul, and foul is fair. Fair is foul, and foul is fair. Hover through the fog and filthy air. Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!

Uma produção agrícola reanimada tinha de se articular, de algum modo, com uma retoma na produção industrial, para encetar um círculo económico virtuoso que tonificasse com alguma alegria e otimismo a vida social do país. A única maneira de começar era partindo da pequena para a grande indústria, assim decidiu uma conferência do Partido Bolchevique em finais de maio de 1921 [62]. O plano nacional de eletrificação unificará e redimensionará tudo, respondeu Lenine aos críticos [63]. Pequenas indústrias nacionalizadas foram adjudicadas a cooperativas e particulares, muitas vezes aos seus antigos donos. Novas foram criadas, encerrando-se as que não encontraram interessados. Foi autorizada a contratação privada de trabalho. Depois, foi também adjudicada uma parte das grandes unidades industriais nacionalizadas, enquanto a parte que permaneceu sob o controlo da Veshenkapassou a atuar também sob princípios mercantis com uma contabilidade económica independente. A 21 de maio de 1922 o próprio abastecimento de combustíveis passou a operar segundo princípios comerciais.

A recuperação produtiva começou de imediato, mais rápida na pequena indústria (em especial a de base rural), mais lenta na grande indústria. No início a recuperação industrial foi atrasada por uma marcada deterioração nos termos de troca a favor dos produtos agrícolas. Foi preciso um movimento de cartelização por ramos industriais, a partir de maio de 1922, para estancar a sangria favorável aos camponeses, que assim se vingaram de três anos de requisições forçadas sem qualquer equivalente. Nesse ponto, a tendência inverteu-se, começando a degradar-se relativamente os preços agrícolas, desembocando na denominada “crise das tesouras”, nos inícios de 1923. Ao longo de tudo isto, os operários tiveram de continuar ainda e sempre a apertar o cinto. Acabaram-se as mobilizações de trabalho forçado nas cidades. Com as liberdades de empresa e de movimentação dos trabalhadores, regressou a mercantilização da força de trabalho. Houve despedimentos em massa. Voltou a constituir-se um exército industrial de reserva, embora muitos dos despedidos tenham sido absorvidos pelo mundo rural.

Foi vigorosamente reforçado o controlo do partido sobre o Conselho Central Panrusso dos Sindicatos e deste sobre o conjunto dos sindicatos. Mikhail Tomsky foi corrido da direção da central sindical e objeto de um castigo exemplar, sendo substituído por um anterior defensor das teses sindicais de Trotsky. Depois regressou, já reeducado por uma missão em Tashkent. Os sindicatos foram completamente afastados da gestão das empresas (tanto públicas como privadas) e da própria segurança social. O direito à greve foi severamente condicionado e suprimido nos caminhos-de-ferro. Os sindicatos passaram a financiar-se exclusivamente das quotizações obrigatórias dos seus associados. Quem fosse expulso do sindicato perdia automaticamente o emprego. As principais tarefas sindicais eram agora a contratação coletiva, incentivar a produtividade e reprimir as greves espontâneas. Administrações públicas e privadas atrasavam sistematicamente o pagamento de salários para se beneficiaram da depreciação da moeda, sem que os sindicatos se ocupassem minimamente com isso. Retirar, sim, e a passo apressado. Até as teses leninistas sobre os sindicatos aprovadas, dois meses atrás, no 10.º congresso, já eram, em grande parte, letra morta. Insistir nelas contra as disposições atuais do comité central podia causar dissabores graves. Escolas de comunismo? Por agora, nada há de mais urgente do que fazer esses malditos trabalhadores baixar a cabeça e trabalhar. Ou estamos todos fodidos. Nós e eles. Percebeste agora?

Muito rapidamente se perdeu a ilusão inicial de que a vida económica do país se poderia bastar com operações locais de “troca socialista”, em espécie, dos produtos agrícolas pelos industriais. Havia que começar a comprar e vender, a bom ritmo, no âmbito de um mercado nacional. Foi dada prioridade às cooperativas, mas estas não bastavam. Um decreto de julho de 1921 tornou possível que qualquer maior de dezasseis anos pudesse obter uma licença para praticar comércio em lojas, locais públicos, mercados e bazares. Era a consagração legal do “homem do saco”. Foram organizadas feiras e cadeias estatais de comércio de retalho (GUM) e por grosso. As organizações industriais e comerciais do estado soviético muito rapidamente ficaram dependentes destes agentes comerciais privados, que são a figura emblemática desta época: os nepmani. Eles viajavam para todo o lado munidos de credenciais oficiais, obtinham facilidades e privilégios, subornando aqui, bajulando mais adiante. Infiltraram-se nas cooperativas instrumentalizando-as ao seu serviço. Os comunistas devem aprender a comerciar, pronunciou Lenine no 9.º congresso dos sovietes, em dezembro de 1921. Foram publicados novos códigos legais: civil, agrário e de trabalho. As tentativas do Narkomfin – agora dirigido por Grigori Sokolnikov – de regular os preços das mercadorias revelaram-se completamente infrutíferas. Limitou-se, a partir daí, a tentar manter a moeda estável e um orçamento equilibrado.

Estabilidade monetária e equilíbrio orçamental eram impossíveis sem atirar borda fora uma grande parte dos encargos económicos que o estado soviético assumira no “comunismo de guerra”. Além de recorrer àquilo a que hoje chamaríamos privatizações e encerramentos, o estado soviético começou a cobrar taxas pelos seus bens e serviços. Os orçamentos locais foram separados do estatal. Em novembro de 1921 foi criado um novo banco nacional, o Gosbank. Passou a ser aí muito influente Nikolai Kutler, um antigo financeiro e industrial que já servira sob os governos do conde Witte. A moeda pareceu dar alguns sinais de estabilização, mas logo se colocou a questão do seu suporte firme em reservas de ouro. Em fevereiro de 1923 abriram bancos estatais de depósitos de poupanças privadas, em Moscovo e Petrogrado, multiplicando-se de seguida por todo o país.

Logo a partir de 1922, o rasto ostentatório do luxo dos novos-ricos começou a ser conspícuo em todas as cidades russas. O inesperado e a precariedade desta súbita prosperidade conferiram-lhe uma euforia irreprimível. Surgiram do nada restaurantes caros, casas de espetáculos duvidosos, lojas de artigos exóticos, de prazer, elegância e exibição. Reapareceram as prostitutas de rua. Pândegos de ambos os sexos passeavam-se de automóvel a alta velocidade, bebendo champagne, cantando e rindo muito alto. Alguns dos representantes das grandes firmas estrangeiros convidadas juntavam-se à festa, acrescentando-lhe línguas até aí raramente ouvidas. O tratamento por barin (senhor) era novamente comum, empregue por taxistas e outros serviçais. As novelas soviéticas desta época estão cheias de histórias dramáticas de desilusão cruel dos heróis da luta popular perante estes novos tempos. Ilya Ehrenburg escreveu que:

 “Os franceses escreveram «Liberdade – Igualdade – Fraternidade» nas paredes das suas prisões; aqui, nas obrigações de 10.000 rublos com que os especuladores e contratantes enchem os seus bolsos, o slogan revolucionário é «Proletários de todos os países, uni-vos!” [64]

Na primavera de 1922, a Rússia soviética consegue o seu primeiro grande triunfo diplomático internacional, que é simultaneamente um importante marco na via para a sua integração normalizada na economia europeia e mundial. De 10 de abril a 19 de maio reuniu-se em Génova um conclave de 34 nações europeias dedicado à reconstrução económica no pós-guerra. A República Federativa Russa é admitida, apesar de alguns participantes (sobretudo a França) ainda terem graves reclamações pendentes relativas ao repúdio unilateral da dívida czarista. Não se conseguiu aí ainda nada de concreto – reconhecimento de jure, investimentos, créditos, acordos de liquidação – mas avançaram-se alguns princípios de entendimento a isso conducentes no futuro. Em paralelo, na estância vizinha de Rapallo, a Rússia celebra, aí sim, um importante tratado com a Alemanha, que acrescia a um tratado comercial já celebrado no ano anterior com a Grã-Bretanha. Quebrava-se o isolamento, exploravam-se fissuras e rivalidades entre as grandes potências [65]. Mas o poder condicionante do conjunto das grandes potências capitalistas sobre a Rússia Soviética era, claramente, muito superior ao que a ameaça da Internacional Comunista podia exercer sobre elas.

Lenine, cujo estado de saúde se deteriorava constantemente, dava sinais desencontrados sobre se a “retirada”, a NEP, se manteria por muito tempo ainda. Manter-se-ia a longo prazo, até ao completo restabelecimento e fortalecimento da grande indústria russa soviética, dizia ele por vezes. Está quase a terminar, estamos agora já em condições de suster esta retirada, retomando a construção do socialismo, dizia ele noutras ocasiões [66], certamente para grande alarme dos capitalistas, nacionais e estrangeiros. Não surpreenderia que eles procurassem garantias junto de outros dirigentes soviéticos. Por esta altura, Lenine tinha perdido, por completo, o controlo estratégico da situação. O 11º congresso do partido consagra, no essencial, o prosseguimento da mesma política, por detrás de uma retórica de ofensiva contra o capitalismo e de reforço dos sindicatos. O comité central daqui saído elege Estaline para secretário-geral e promove ao politburo dois firmes defendores da NEP, Rykov e Bukharine. Este último cruzara, entretanto, da esquerda para a direita do partido, onde se manteria até ao final da sua vida.

A partir do seu exílio, Nikolai Ustrialov, um kadet eslavófilo que servira os brancos às ordens de Koltchak, começou a tecer rasgados elogios à NEP e a aconselhar aos expatriados uma adesão à Rússia Soviética e ao seu nacional-bolchevismo. Trata-se de uma via original para um capitalismo independente e especificamente russo. Esta nova política económica bolchevique não era tática, mas uma evolução ditada por absoluta necessidade, que desembocará forçosamente num novo estado burguês. A revolução servira para limpar o terreno de parasitas senhoriais enfeudados ao grande capital estrangeiro. Agora, sim, começava a vicejar naturalmente um capitalismo autónomo de cores verdadeiramente nacionais. A história segue, por vezes, por caminhos sinuosos. Estas ideias eram propagadas numa revista intitulada Smena vekh (Mudança de marcos), publicada em Praga a partir de 1921. Consequente com as suas ideias, Ustrialov regressaria mesmo a Moscovo, em 1935, sendo fuzilado passados dois anos.

Este tipo de elogios provocava um arrepio em profundidade na espinha de Lenine. Sabia bem que o que Ustrialov dizia fazia perfeito sentido. A retirada dos bravos combatentes do bolchevismo podia reverter-se, ou não. Era uma nova luta, agora muito mais difícil porque em grande parte dissimulada. Passava pelo interior de toda as instituições soviéticas, jogava-se na mente de cada um dos seus responsáveis. A sua insegurança aumentava com a debilidade física. Os lobos imperialistas continuavam à espreita, por todas as estremas da vasta terra russa. Cá dentro também, agora. Cada pequeno ou médio agricultor era um novo inimigo do poder soviético, a crescer incessantemente, de ano para ano, em autoconfiança e insolência. O mesmo para os inúmeros burocratas e carreiristas – os mesmos de sempre, com o mesmo sorriso escarninho e deslavado na cara – que pululam por todas essas repartições e escritórios. Com toda a facilidade comem as papas na cabeça aos escassos comunistas destacados para os superintender, que na verdade são os superintendidos. A corrupção é a sua respiração, o seu metabolismo espontâneo. Mais essa corja imunda dos popes, os spetsys manhosos, os nepmani, os kulaks, os sabotadores e aproveitadores de todos os géneros e feitios, tantos deles já infiltrados em profundidade dentro do partido.

A 25 de maio de 1922 Lenine tem um primeiro acidente vascular cerebral. Perdeu temporariamente a capacidade de falar e ficou paralisado do lado direito. Entra em funções o triunvirato Estaline-Kamenev-Zinoviev. O presidente do Sovnarkom fica convalescente durante todo o verão, só retomando a sua atividade política normal no Kremlin em outubro. Mas logo a 13 de dezembro tem um segundo ataque e regressa a Gorki, para não mais voltar a Moscovo em condições normais de trabalho. Continua, contudo, a tentar intervir politicamente em diversas questões, a partir de Gorki, embora em condições físicas desesperadas [67].

A sua primeira batalha, nestas difíceis circunstâncias, é uma tentativa de estancar um pouco a enxurrada capitalista, mantendo intocado, pelo menos, o monopólio estatal do comércio externo. Estaline está cético e começa a propagar a noção de que é preciso começar a aprender a resistir a Lenine. De seguida é a questão da autonomia nacional dentro da projetada união, com destaque para as resistências manifestadas pelos bolcheviques georgianos aos planos arquitetados por Estaline. Lenine procura uma aliança com Trotsky nestas duas matérias, a que acresceria depois a luta contra a burocracia nas instituições soviéticas e no partido. Obteve ainda algumas vitórias, que lhe deram grande satisfação. Estaline – que estava mandatado pelo comité central para superintender a saúde e os tratamentos de Lenine – dá uma forte reprimenda por telefone a Nadzheida Krupskaia, por esta aceitar escrever cartas ditadas por Lenine para Trotsky.

Em finais de dezembro, Lenine dita uma carta ao congresso do partido contendo a sua apreciação pessoal sobre os mais destacados dirigentes soviéticos e sugerindo formas de procurar conciliar as suas caraterísticas numa futura direção coletiva. O documento ficaria mais tarde conhecido como o seu “testamento”. Em janeiro-fevereiro de 1923 Lenine dita o que seriam os seus últimos artigos políticos [68]. Em princípios de março, começava a esboçar uma séria campanha contra Estaline. Acrescentou uma adenda à sua carta ao congresso recomendando a substituição do secretário-geral. Exigiu-lhe desculpas pessoais pela sua grosseria para com Nadzheida Krupskaia, sob pena de corte de relações. Estaline pede desculpas, de uma forma um tanto evasiva, para não dizer escarninha.

Por esta altura, Lenine mandou um dia chamar Estaline à sua presença solicitando-lhe novamente veneno. Não está claro se se tratou de um genuíno ato de desespero, uma tentativa de cilada política ou um misto dos dois intentos. Estaline recusou polida e cogitadamente, tendo de imediato dado conhecimento do sucedido a um círculo informal do Politburo, incluindo Zinoviev, Kamenev e Trotsky. Muito mais tarde, no seu “processo de Moscovo” (1938), Bukharine seria acusado, entre muitas outras coisas, de uma tentativa de atentado contra a vida de Lenine. Trotsky sugere que uma acusação tão disparatada só terá explicação admitindo que, no OGPU, se tenha tido notícia de que Bukharine, em alguma ocasião, levantou essa mesma suspeita sobre Estaline. Foi uma retribuição em espécie [69]. Camaradas que fomos. Na verdade, não existem hoje elementos que possam levar a concluir que Lenine possa ter sido envenenado, em qualquer ocasião.

Um terceiro ataque, a 6 de março de 1923, incapacitou Lenine para sempre, deixando-o praticamente sem quaisquer meios de comunicação. Em abril realizou-se o 12.º congresso do partido, no qual Estaline triunfou em toda a linha, mantendo-se secretário-geral. O “testamento” de Lenine é revelado e discutido em círculos restritos, mas não lido ao congresso. Trotsky manteve-se calado. Os comunistas georgianos são completamente derrotados. Preobrazhensky visitou Lenine em julho, decidido a manter sempre um tom alegre e jovial. Abraçou-o, mas a grande custo pôde evitar romper em lágrimas:

“Na sua face havia tanto sofrimento, mas não apenas os sofrimentos do momento presente. Era como se na sua face estivessem fotografados e congelados os sofrimentos por que ele tinha passado durante todo este período” [70].

Verificando-se algumas melhoras, foi autorizado a caminhar um pouco, ler e praticar a escrita com a mão esquerda. A 18 de outubro, insistiu em ir de automóvel fazer uma visita ao Kremlin. – Não tens salvo-conduto, não te vão deixar entrar, avisou-o Nadzheida Krupskaia. Mas deixaram. Foram até todos extremamente corteses com o ancião revolucionário, cuja incapacidade era sabidamente permanente. Visitou de cadeira de rodas o seu escritório, onde esteve silencioso durante muito tempo. Retirou alguns livros e foi-se embora. Andou também um pouco pelas ruas de Moscovo e ainda visitou uma exposição agrícola.

Nesse outono, Trotsky fez publicar a sua série de artigos O novo rumo, criticando a degenerescência burocrática do partido e deficiências no controlo da economia pelo estado soviético. Seguiu-se a declaração dos quarenta e seis bolcheviques enviada ao Politburo, que este leva à assembleia do comité central para aí ser condenada. Zinoviev queria logo mandar prender Trotsky, tendo Estaline intervindo aqui como a voz da moderação. Formava-se no partido uma “oposição de esquerda”, muito minoritária e sem poder esperar qualquer apoio de Lenine. O próprio Trotsky caiu então gravemente doente e teve de se retirar para convalescer junto ao Mar Negro. A unidade do partido estava comprometida, voltando as lutas de fações.

Durante os vários meses que lhe restariam de vida, Lenine passeou ou repousou, totalmente entregue si próprio, aos cruéis estremeções da sua doença, aos seus pensamentos solitários. A quem acha que ele mereceu pesado castigo – pela sua soberba intelectual e prontidão no recurso à violência – prestou todas as contas possíveis. E ainda teve tempo, seguramente, para refletir sóbria e maduramente, como um homem a despedir-se da vida, postado no fio do tempo histórico.

Oh, Illitch, Illitch! Que fizeste da vida que te proveram com tamanha abundância? Um balázio no czar não te satisfaria. O partido de vanguarda. Muito relapso terás sido com a classe trabalhadora. Que será de nós que te amamos e seguimos sempre com tamanha fé, entre gritos e lágrimas, inúmeras as vezes e os reveses. Tamanho orgulho, vã obstinação, torrentes de sangue, esperança tão pouca. Que fizeste da tua vida? Que é da terra de promissão para a humanidade livre? Que é da tua cozinheira ao leme do Estado, com as faces coradas, com toda a sua prazenteira bonomia russa? Que será de nós? O homem pode bem continuar para sempre a ser o lobo do homem. Entredevorar-se entre si e ao seu meio ambiente até à irrisão e ao olvido, na solidão das esferas siderais. Illitch! Que fizeste? Como pudeste? O que te deu tamanha certeza, tamanha força? De que massa, em que forja são moldadas essas tuas visões? Como elas nos transportaram um dia, até à suprema maravilha de nós mesmos. Como nos entram agora pela carne, feitas gumes celerados. Como nos vão rasgando por dentro, sem conta, sem sentido, sem perdão. Tentaste romper pelo lado fechado? A classe trabalhadora russa foi traída pela ocidental? É isto marxismo? A Rosa e o Karl nunca iam ter unhas para segurar a Alemanha. Dos outros nem é bom falar. Porque não fizeste só a revolução democrática? Porque tinhas de oferecer a flor do proletariado russo em sacrifício a uma revolução mundial socialista que quase ninguém mais sentiu? De onde saíram todas essas crianças vagabundas e famélicas? Que parte ao certo é que tomou nisso a tua própria jactância pessoal? Mas poderias tu, na posição em que te encontraste, ter deixado de tentar? Tratava-se de rasgar o horizonte para um futuro de liberdade, paz e autorrealização para toda a humanidade. Quem poderia ter virado as costas a um desafio destes? Mesmo com hipóteses escassas, mínimas. Quando, como, quem é que poderá, algum dia, deixar de ver essa linha de paisagem distante e tentar chegar lá? De onde sopram agora, enfim, os ventos da história? Silentes e irónicos sopram eles de novo, nesta excessiva manhã. Dos povos orientais, sem dúvida, bestas de carga do imperialismo. Da Ásia, de África, da América do Sul? Poderá um desejo intenso e consciente enformá-los, dirigi-los, a esses ventos emergentes? Poderá ainda alguém, depois de ti, voltar a tentar e falhar nesse mesmo caminho rumo à comunhão em nossa comum humanidade? Falhar já melhor, talvez. Falhar mais perto. Que será de nós? Que será de nós? Que será de nós?

Lenine sofreu um quarto ataque no final da tarde de 21 de janeiro de 1924, perdendo logo a consciência. Bukharine estava lá e pôde descrever como o observou. Revolvia-se na cama com febre e suores, gritando com dores. Depois, subitamente, o seu rosto caiu para trás empalidecido, soltou um arquejo e as suas mãos tombaram.

[*] Ângelo Novo (n. 1961) é um pesquisador e ensaísta independente português, editor da revista eletrónica ‘O Comuneiro’. Foi advogado, jornalista, cineclubista e tradutor. Foi ainda redator ou colaborador permanente em diversas revistas culturais, literárias e de intervenção política, designadamente ‘Vértice’, ‘Última Geração’ e ‘Política Operária’. É autor de O estranho caso da morte de Karl Marx, Edições Mortas, Porto, 2000, para além de outras obras publicadas em poesia e ficção. Os seus escritos principais podem ler-se em linha na sua página pessoal na rede.


[2] Cf. Vladimir Bontch-Bruévitch, “Como Lenine redigiu o decreto sobre a Terra”, in AAVV, Da tempestade nasceram… Relatos da revolução de outubro, Avante, Lisboa, 1979.

[3] Cf. Segundo Congresso dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados de toda a Rússia, in V. I. Lénine, A Grande Revolução Socialista de Outubro, Avante, Lisboa, 2017, pp. 20-33.

[4] Cf. Nadezhda Krupskaya, Reminiscences of Lenin. Part III – From the October Revolution to the Peace of Brest.

[5] Cf. Tony Cliff, The revolution besieged: Lenin 1917-1923, Haymarket Books, Chicago, 2012, pp. 22-29.

[6] Cf. Pierre Broué, Le parti bolchevique. Histoire du P.C. de l’U.R.S.S., 2.ª edição aumentada, Les Éditions de Minuit, Paris, 1977, p. 103.

[7] Sobre esta histórica e caótica batalha, leia-se John Reed, Dez dias que abalaram o mundo, Avante, Lisboa, 1997 (6ª edição), pp. 208-225. Pelo meio da confusão de idas e vindas na frente, Reed chegou a ser encostado a uma parede para ser fuzilado por tropas bolcheviques desconfiadas, que não conseguiam decifrar o seu salvo-conduto.

[8] Cf. Victor Serge, Ano um da revolução russa, Delfos, Lisboa, 1975, pp. 97-106 ou Jean-Paul Olivier, 1917: história de uma revolução, Moraes, Lisboa, 1968, pp. 399-405 e 425-429.

[9] Sobre trajetórias e polémicas da arte no tempo da revolução soviética, leia-se Jean Michel Palmier, Lénine, a arte e a revolução. Ensaio sobre a estética marxista, 3º Volume, Moraes, Lisboa, 1976.

[10] As propostas teóricas essenciais do Proletkult podem ser apreciadas em Boris Arvatov, Arte, produção e revolução proletária, Moraes, Lisboa, 1977. Contra, leia-se, p. ex., Leon Trotsky, Literatura e Revolução, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1969, capítulo VI. A Cultura e a Arte Proletárias, pp. 171-184. Tradução de Moniz Bandeira.

[11] Cf. Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, Livro Terceiro, capítulos 69 a 81, “Rebelião em Córcira”, e capítulos 82 a 85, “Digressão sobre as perturbações políticas na Hélade”, pp. 192-201.

[12] Cf. Orlando Figes, A Tragédia de um Povo. A revolução russa 1891-1924, Dom Quixote, Lisboa, 2017, capítulo “Saqueando os saqueadores”, pp. 581 e ss.. Esta obra indiscutivelmente valiosa proporciona um enquadramento sociológico geral e criteriosos flagrantes anedóticos que captam muito da essência da revolução russa. Quem for capaz de suportar a sua insuportável sentenciosidade demoliberal, retira daqui muita informação útil, paciente e metodicamente recolhida em fontes originais.

[13] Cf. Alexandra Kollontai, “Luta de classes e revolução sexual”, in Vladimir Lenine, Leon Trotsky e Alexandra Kollontai, Revolução sexual na União Soviética 1917-1944, Primeiro Volume, Eros e Política, Porto, 1975, p. 121-276. Ou ainda Alexandra Kollontaï, Marxismo e revolução sexual, Estampa, Lisboa, 1981, com uma introdução de Judith Stora-Sandor como a edição original da Maspero. A dissolução espontânea da família burguesa avançou enormemente, desde então, induzida pela aceleração dos ciclos de acumulação capitalista, mas a leitura de Kollontai continua muito recompensadora. As suas propostas desafiantes parecem ter pulado jovialmente cem anos bem preenchidos (com o “maio de 68” no exato meio do caminho) para nos interpelar diretamente em face. Já o seu estilo, é claro, será talvez um pouco empoladamente sentimental para os gostos de hoje. Nesse tempo não era possível a uma mulher expressar a radicalidade do seu desejo sem uma certa estridência barroca.

[14] Cf. Georgy Manaev e Daniel Chalyan, “How sexual revolution exploded (and imploded) across 1920’s Russia”.

[15] Cf. John Bellamy Foster, “Late soviet ecology and the planetary crisis”.

[16] Cf. Gérard Walter, Lénine, Marabout Université, Verviers, 1950, pp. 387-400.

[17] Cf. V. I. Lenine, “Teses sobre a Assembleia Constituinte”, in Obras Escolhidas em Três Tomos, Edições Avante!, Lisboa / Edições Progresso, Moscovo, 1978, Tomo 2, pp. 431-434.

[18] Cf. The Russian Constitution em separata da época da revista norte-americana The Nation, exemplar da biblioteca pessoal de Eugene Debs. O processo decisório e os dilemas desta primeira constituição soviética são tratados circunstanciadamente em E. H. Carr, A revolução bolchevique, 1.º Vol., Afrontamento, Porto, 1977, pp. 146-174. Tradução de António Sousa Ribeiro.

[19] Cf. Karl Kautsky, The Dictatorship of the Proletariat e V. I. Lenine, “A revolução proletária e o renegado Kautsky”, in Obras Escolhidas em Três Tomos, Edições Avante!, Lisboa / Edições Progresso, Moscovo, 1977, Tomo III, pp. 1-75.

[20] Cf. Albert Rhys Williams, Lenine e a revolução de outubro, Avante, Lisboa, 1977, pp. 42-43.

[21] Cf. Pierre Broué, ob. cit., p. 119.

[22] Sobre a paz de Brest-Litovsk e as suas controvérsias leia-se Isaac Deutscher, Trotsky, o profeta armado 1879-1921, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1984 (2ª edição), pp. 369-429.

[23] Cf. V. I. Lenine, “Sobre a Fome (Carta aos Operários de Petrogrado)”, in Obras Escolhidas em Três Tomos, Edições Avante!, Lisboa / Edições Progresso, Moscovo, 1978, Tomo 2, pp. 618-623.

[24] Cf. E. H. Carr, A revolução bolchevique, ob. cit., p. 423-454. As obras deste autor fundamental são sempre muito fiáveis e minuciosas em questões políticas, doutrinais e institucionais para as quais haja suporte documental.

[25] Cf. Paul Le Blanc, October Song, Haymarket Books, Chicago, 2017, p. 28 e ss.

[26] Cf. Maurice Brinton, Os bolcheviques e o controlo operário, Afrontamento, Porto, 1975.

[27] Cf. V. I. Lenine, “As Tarefas Imediatas do Poder Soviético”, in Obras Escolhidas em Três Tomos, Edições Avante!, Lisboa / Edições Progresso, Moscovo, 1978, Tomo II, pp. 557-587.

[28] Cf. Paul Le Blanc, ob. cit., pp 131-180.

[29] Cf. V. I. Lenine, “Acerca do infantilismo ‘de esquerda’ e do espírito pequeno-burguês”, in Obras Escolhidas em Três Tomos, Edições Avante!, Lisboa / Edições Progresso, Moscovo, 1978, Tomo 2, pp. 592-613.

[30] Cf. Stephen S. Cohen, Bukharin and the bolshevik revolution, Oxford University Press, Oxford, 1980, p. 75-76.

[31] Cf. Charles Bettelheim, Les luttes de classes en URSS – 1.ère période 1917-1923, Seuil-Maspero, Paris, 1974, pp. 115-138.

[32] Cf. Edward Hallett Carr, The Bolshevik Revolution, Vol. II, W. W. Norton & Company, New York – London, 1980, p. 195.

[33] Uma das obras clássicas deste período, expoente máximo da teorização do comunismo de guerra é Nikolai Bukharin, The Politics and Economics of the Transition Period. Leia-se também Boukharine e Preobrajenski, ABC do Comunismo, 2 volumes, Centelha, Coimbra, 1974 e 1975. O caráter irrealista e utópico de muito do pensamento bolchevique do tempo da guerra civil é justamente salientado em Sheila Fitzpatrick, A revolução russa, Tinta da China, Lisboa, 2017, p. 151 e ss.. Na opinião desta autora, o romance distópico Nós, de Evgueni Zamiatine, escrito em 1920, é uma sátira a este pensamento.

[34] Cf. Karl Kautsky, Terrorism and Communism. A Contribution to the Natural History of Revolution e Leon Trotsky, Terrorism and Communism: A reply to Karl Kautsky. Este último ensaio foi publicado em língua portuguesa como Leon Trotsky, Comunismo e terrorismo, Centelha, Coimbra, 1975.

[35] Telegrama de 11 de agosto de 1918, conforme citado em Lars T. Lih, Lenin, Reaktion Books, London, 2011, p. 144-145. Tradução minha a partir da confiável tradução inglesa deste autor. Este documento, libertado dos arquivos após a queda da União Soviética, tem sido citado em várias outras obras, com ligeiras variações.

[36] Cf. Orlando Figes, A Tragédia de um Povo, ob. cit., p. 806-807.

[37] Sobre este episódio, ler-se-á, com muito proveito, Orlando Figes, A Tragédia de um Povo, ob. cit., pp. 638 e ss..

[38] Já com Estaline no poder, Tsaritsyn seria aliás crismada de Estalinegrado, para assinalar alegadas ações de mérito militar por ele aí protagonizadas durante a guerra civil. A cidade chama-se hoje Volgogrado. Sobre a guerra civil e a intervenção estrangeira nesse período leia-se Pierre Durand, Les sans-culottes du bout du monde 1917-1921, Éditions du Progrès, Moscovo, 1977. Para recolher uma ideia geral sobre a vida quotidiana no jovem Exército Vermelho em campanha, é indispensável a leitura dos preciosos contos reunidos em Isaac Babel, A cavalaria vermelha, Oficina do Livro, São Paulo, 1989. Malevitch tem um quadro com o mesmo título que ainda hoje uso como ilustração na minha página pessoal .

[39] Cf. Robert Service, Trotsky, Aletheia, Lisboa, 2011, p. 293.

[40] Essa é também a opinião expressa em Marc Ferro, A revolução russa de 1917, Dom Quixote, Lisboa, 1975, p. 89. Tradução de Ruy Belo.

[41] Cf. Edward Hallett Carr, The Bolshevik Revolution, Vol. II, ob. cit., p. 209.

[42] Cf. Alexandra Kollontaï, A oposição operária 1920-1921 (2ª edição), Afrontamento, Porto, 1977.

[43] Cf., p. ex., Boukharine e Preobrajenski, ABC do Comunismo – 2º vol., Centelha, Coimbra, 1975, capítulo “O dinheiro e o desaparecimento do sistema monetário”, p. 252-256.

[44] Apud Edward Hallett Carr, The Bolshevik Revolution, Vol. II, ob. cit., p. 261 e 262. Disse ainda Preobrazhensky, no 10º congresso do partido, que, enquanto os assignatsna revolução francesa se depreciaram apenas 500 vezes, o rublo se depreciou 20.000 vezes, pelo que ganhamos à revolução francesa por quarenta a um. Idem, Ibidem, p. 261.

[45] Ler-se-á sempre com proveito e supremo deleite essa obra prima memorialística que é Victor Serge, O ofício de revolucionário, Moraes, Lisboa, 1968.

[46] Karl Marx, O Capital (edição popular), Edições 70, Lisboa, 1976.

[47] Cf. Annie Kriegel, Nas origens do comunismo francês, Assírio & Alvim, Lisboa, 1975.

[48] Cf. Aldo Agosti, “As correntes constitutivas do movimento comunista internacional”, in Eric J. Hobsbawn, História do Marxismo, Volume 6, Paz e Terra, São Paulo, 1988 (2ª edição), pp. 46-47.

[49] Cf. esse belo documento político (escrito por Trotsky, ao que parece) que é o “Manifesto da Internacional Comunista aos proletários de todo o mundo”, inManifestos, teses e resoluções dos quatro primeiros congressos da Internacional Comunista (1919-1923), I Volume, SLEMES, Lisboa, 1976, pp. 75-82. Todos os documentos do primeiro congresso em língua portuguesa podem ser lidos em linha aqui .

[50] Cf. Vladimir Ilitch Lénine, Esquerdismo: Doença Infantil do Comunismo (Portal Vermelho).

[51] Todos os materiais – relatórios, depoimentos, discursos, resoluções – relativos ao 3.º congresso da Internacional Comunista e à reunião preparatória do seu comité executivo estão disponíveis em linha aqui, em traduções para a língua inglesa feitas por uma equipa dirigida por John Riddell.

[52] Annie Kriegel, “A III Internacional”, in Jacques Droz (direção), História Geral do Socialismo, Vol. 7, Livros Horizonte, Lisboa, 1983, p. 91-95.

[53] Cf. Speeches at the Fourth Congress of the Communist International.

[54] Cf. Leon Trotsky, Comunismo e terrorismo, Centelha, Coimbra, 1975, capítulo VIII “As questões de organização do trabalho”, pp. 203-280. Há uma nova edição em português, que segue a reedição inglesa organizada e prefaciada por Slavoj Zizek: Leon Trotsky, Terrorismo e Comunismo: Resposta a Karl Kautsky, Bookbuilders, 2018. Uma versão em língua inglesa deste capítulo (que compacta diversas intervenções de Trotsky no debate sobre os sindicatos) pode ser lida  aqui.

[55] As posições assumidas pelo presidente do Sovnarkom nesta polémica estão reunidas em Lénine, A questão dos sindicatos, Centelha, Coimbra, 1975. A sua primeira intervenção foi “Sobre os sindicatos, o momento atual e os erros de Trotski”.

[56] Cf. Nicolas Werth, “Um estado contra o seu povo” in Courtois, Stéphane et allii, O livro negro do comunismo, Quetzal, Lisboa, 1999 (4.ª edição), p. 135-138. Esta “fonte”, naturalmente, tem de ser consultada com todas as devidas cautelas. Mas os factos aqui referidos são relativamente incontroversos, estando bem documentados. Como bem dizia Lenine “só a verdade é revolucionária”.

[57] Para uma perspetiva anarquista sobre estes eventos, da autoria de uma companheira de exílio de Makhno, leia-se Ida Mett, Cronstadt 1921: último soviete livre, Afrontamento, Porto, 1974.

[58] V. I. Lenine, “Sobre o Imposto em Espécie”, in Obras Escolhidas em Três Tomos, Edições Avante!, Lisboa / Edições Progresso, Moscovo, 1977, Tomo III, pp. 492-520. Este é um dos últimos escritos de Lenine em que o seu caraterístico sopro profético ainda se formula de uma forma estrategicamente coerente. É novamente a via do capitalismo de estado.

[59] Cf. Neil Harding, Lenin’s Political Thought, Haymarket Books, Chicago, 2009, Vol. 2, capítulo 13 “The declassing of the proletariat”, pp. 275-282, com várias citações recolhidas nas Collected Works.

[60] V. I. Lenine, “XI Congresso do PCR (b). Relatório Político do Comité Central”, in Obras Escolhidas em Três Tomos, Edições Avante!, Lisboa / Edições Progresso, Moscovo, 1977, Tomo III, pp. 596-597. Todo este longo discurso de Lenine é penosamente prolixo e incoerente, com algumas preciosidades inestimáveis lá perdidas pelo meio. Por exemplo esta:

“Durante séculos construíram-se os Estados segundo o tipo burguês, e pela primeira vez foi encontrada a forma de um Estado não burguês. O nosso aparelho é talvez muito mau, mas diz-se que a primeira máquina a vapor que foi inventada também era má, e não se sabe mesmo se trabalhava. Não é aí que está a questão, mas em que a invenção foi feita. Pouco importa que a primeira máquina a vapor, pela sua forma, fosse inutilizável. Mas em contrapartida, agora temos a locomotiva a vapor” (p. 598).

Esta reflexão metafórica indicia que Lenine, nos seus passeios solitários de doente, encarava já a hipótese do fracasso final da revolução soviética, confiando, contudo, em que ela abriria o trilho para revoluções proletárias futuras muito mais aperfeiçoadas.

[61] Cf. James C. Scott, The Domestication of Fire, Animals, Grains and… Us.

[62] Sobre a estruturação institucional da NEP, leia-se Edward Hallett Carr, The Bolshevik Revolution, Vol. II, ob. cit., pp. 280-359.

[63] Sobre as ilusões tecnocráticas no pensamento de Lenine, leia-se Robert Linhart, Lenine, os camponeses e Taylor, Iniciativas Editoriais, Lisboa, 1977. Lenine sempre pensou que o desenvolvimento espontâneo das forças produtivas (o seu último fetiche foi, como é sabido, a eletrificação) traria, por fim, relações de produção paritárias e o fim da divisão entre trabalho intelectual e manual. Entretanto, o proletariado deveria suportar confiadamente o despotismo da presente organização industrial, dirigindo a sua intervenção revolucionária exclusivamente para a esfera estatal.

[64] Do romance histórico-satírico Julio Jurenito, conforme citado por Tony Cliff, The revolution besieged: Lenin 1917-1923, ob. cit., p. 361.

[65] Cf. Edward Hallett Carr, The Bolshevik Revolution, Vol. III, W. W. Norton & Company, New York – London, 1985, pp. 339-382.

[66] Por exemplo, no já atrás citado “Relatório Político do Comité Central” ao 11.º congresso do PCR (b), em março de 1922, diz-se que o período de recuo “está a terminar ou terminou já”. V. Obras Escolhidas em Três Tomos, Edições Avante!, Lisboa / Edições Progresso, Moscovo, 1977, Tomo III, p. 583.

[67] Cf. Moshe Lewin, Lenin’s last struggle, Random House, New York, 1968.

[68] “Sobre a cooperação”, “Sobre a nossa revolução (a propósito das notas de N. Sukhanov)”, “Como devemos reorganizar a Inspeção Operária e Camponesa” e “É melhor menos, mas melhor” in Obras Escolhidas em Três Tomos, Edições Avante!, Lisboa / Edições Progresso, Moscovo, 1977, Tomo III, pp. 657-681.

[69] Cf. Leon Trotsky, Staline, tome 2, Union Générale d’Éditions, Paris, 1979, pp. 264-272. Um pouco mais adiante também Trotsky levanta a suspeita de envenenamento de Lenine por artes farmacológicas de Iagoda, às ordens de Estaline.

[70] Carta a Bukharine, citada em Lars T. Lih, Lenin, ob. cit., p. 190-191.

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- 17/11/2018