Continuidade da estagnação econômica com aumento da exploração do trabalho: a economia brasileira em 2019
Cem Flores
09.03.2020
“Aspecto de princípio a ressaltar na nossa análise de conjuntura nacional – aspecto fundamental para a análise marxista – é que um “sucesso econômico” (no caso, apenas uma retomada parcial e gradual) do ponto de vista da burguesia e das classes dominantes representa, em geral, uma derrota para o proletariado e as classes dominadas”.
Cem Flores. Teses sobre a Conjuntura, 10.01.2020.
O IBGE acaba de divulgar o crescimento de 2019: 1,1%. Foi o terceiro ano seguido na casa de 1% – conseguiu a proeza de ficar abaixo até mesmo dos pífios 1,3% de 2017 e de 2018 – e isso após a histórica recessão de 2015 (-3,5%) e 2016 (-3,3%). O PIB atual está mais ou menos no mesmo nível de 2012. Se descontar o crescimento populacional, só aumentou 0,3% no ano. Em 2019, o PIB per capita ainda ficou abaixo do de 2010.
A taxa de desemprego média do ano ficou em 11,9% (12,6 milhões de trabalhadores/as), mantendo o ritmo de quedas anuais muito pequenas: 12,3% em 2018 e 12,7% de 2017. Essa pequena queda do desemprego só foi possível pelo aumento da informalidade, a maior desde 2016, atingindo 38,4 milhões de trabalhadoras/es. Na medida mais ampla do desemprego do IBGE, a chamada “taxa composta de subocupação da força de trabalho”, não houve nem mesmo essas pequenas quedas! A subocupação atingiu 24,2% dos trabalhadores/as (27,6 milhões), igual à de 2018 (24,3%), as maiores taxas desde que o IBGE passou a adotar esse conceito mais abrangente. Os rendimentos médios também ficaram praticamente estagnados em 2019 (pequeno aumento de 0,4%), e ainda estão nos mesmos níveis que eram em 2014.
A análise ideológica dos mercados financeiros e dos empresários, da imprensa e do governo, sobre o PIB e o desemprego é que ambos passam por uma recuperação lenta, porém constante. Guedes ratificou essa visão em entrevista na qual declarou que estava “tudo dentro do previsto”. Para toda essa corja burguesa, a solução para sair do 1% é uma só: “prosseguindo com as reformas”. A Folha de São Paulo, o jornal burguês que mais faz críticas ao governo, publicou o editorial “Em prol do PIB” defendendo enfaticamente a política econômica de Guedes, as “reformas”, e cobrando do governo e do congresso seu andamento acelerado.
A “esquerda” (sic!) reformista e institucional, tirando as críticas eleitorais, também não fica muito atrás nesse mesmo discurso. Abraçada à burguesia com suas teses “desenvolvimentistas”, propõe, no máximo, ajustes tópicos, correções, na política econômica – algo que já criticamos anteriormente, chamando de “capitalismo utópico”. Não é à toa que essa “esquerda” (sic!) anda chamando Guedes de “inteligente”, defendendo a reforma administrativa e a tributária ou, pior ainda, aprovando reformas da previdência, iguais às do governo federal, nos estados que governa, como o Piauí e o Ceará – ambos governados pelo PT.
Do ponto de vista do proletariado e das classes dominadas, em sua posição própria, independente, na luta de classes contra a burguesia, o que importa é constatar que, por cima dessas diferenças pontuais, tópicas, há uma unidade fundamental. Os governos anteriores (Lula, Dilma, Temer) e o atual têm uma unidade fundamental de objetivos: serem os melhores gestores possíveis do capitalismo brasileiro, buscando contribuir para a economia crescer, isto é, e sendo mais preciso, para os lucros aumentarem (e, com eles, aumentar também a exploração das trabalhadoras/es).
Essa unidade fundamental também passa por uma unidade em relação aos meios para alcançar seus objetivos: a realização de reformas pró-capital e anti-trabalho. Não por outra razão, FHC fez uma reforma da previdência, o governo Lula começou com aprovação da sua, idem para Dilma, Temer tentou e não conseguiu e Bolsonaro aprovou a da vez. E todos eles se empenharam e se empenham na aprovação da pauta de “reformas” que o programa hegemônico do capital propõe em cada conjuntura. A disputa entre a extrema-direita no poder, essa “esquerda” (sic!), e os demais partidos, é uma disputa no campo da burguesia, no campo do inimigo de classe, sobre quais são as melhores políticas econômicas para atender aos patrões.
* * *
Contra tudo isso, nós temos que buscar outro caminho. O caminho próprio e independente que expressa o ponto de vista e os interesses do proletariado e das classes dominadas na luta de classes contra a burguesia. O caminho da análise marxista-leninista da nossa conjuntura concreta.
Como afirmamos nas nossas Teses de Conjuntura, burguesia e proletariado têm interesses antagônicos, o sucesso de um representa, na maioria das vezes, uma derrota para o outro. Traduzindo essa tese para a análise concreta dos resultados da economia brasileira em 2019, afirmamos que a economia permaneceu estagnada no ano passado, como nos dois anos anteriores, mas com aumentos tanto nos lucros da burguesia e quanto na exploração da classe operária e demais trabalhadores/as.
Apenas do ponto de vista da economia e da política econômica burguesas, e do reformismo, essa afirmação contraditória pode constituir um paradoxo. Não do ponto de vista marxista-leninista! Desde Marx sabemos que o capitalismo constitui um sistema contraditório, fundado sobre classes antagônicas. Que o capitalismo não visa a produção de uma imensa quantidade de mercadorias enquanto meros valores de uso, mas visa a produção de valor e, em especial, de mais-valia, aquele valor que o capitalista rouba do operário e transforma em lucro. O capitalismo é, portanto, o sistema de acumulação de riqueza pelas suas classes possuidoras, dominantes, ao mesmo tempo que acumula miséria, exploração, sofrimentos e necessidades nas classes despossuídas.
Com esse ponto de partida, podemos analisar os fatos empíricos da realidade para entender que a economia brasileira está estagnada desde 2017, após sua histórica recessão, num cenário de desaceleração das principais potências imperialistas do mundo (de acordo com dados do FMI). Para uma economia dominada no sistema imperialista mundial, como é o caso do Brasil, a capacidade de “nadar contra a corrente” (crescer mais na desaceleração) é muito limitada.
Essa capacidade de “nadar contra a corrente” parece ainda mais limitada em função das transformações da divisão internacional do trabalho neste século e de seus impactos na estrutura econômica do país, com desindustrialização, reprimarização, maior especialização na produção de commodities para exportação, e queda da produtividade.
A desindustrialização continuou na recessão industrial de 2019, -1,1%, conforme o IBGE. Se, por um lado, o resultado da indústria no ano passado está influenciado pelo crime ambiental e pelos homicídios da Vale em Brumadinho, por outro, na indústria de transformação essa queda é tanto maior quanto maior a intensidade tecnológica da indústria, afirma o IEDI. O fluxo dos novos investimentos, que chegou a representar 20% do PIB antes da recessão, chegou em 2019 a 15,4%, já que o nível de utilização da capacidade instalada da indústria não passa de 75%. A produtividade industrial caiu 0,7% no ano, segundo a FGV. Ou seja, a indústria brasileira encolhe de forma contínua, já que é incapaz de enfrentar a concorrência manufatureira internacional e seu “nicho” de produção é cada vez mais restrito (produtos de baixa tecnologia, atividades de montagem, exportações para a estagnada, também em crise, América Latina) devido à divisão do mundo pelos monopólios transnacionais e suas cadeias globais de valor.
A reprimarização se expressa na sustentação do agronegócio tanto ao PIB brasileiro – o chamado “PIB do agronegócio”representa mais de 20% do PIB total e cresceu 2,4% em 2019, até novembro – quanto às exportações, cujo volume cresceu 2,7% no ano, representando 43,2% do total exportado pelo país. Na produção, as safras recordes se sucedem, com a soja já representando metade de todos os grãos produzidos no país, a partir de intenso (e violento!) processo de reorganização fundiária, produtiva e do trabalho, com impactos ambientais destrutivos. A produtividade agropecuária(maior intensidade de capital, inovações tecnológicas) cresceu 1,4% em 2019, após 2,3% no ano anterior. Assim, o capital aplicado no Brasil continua aproveitando as oportunidades que a divisão internacional do trabalho do sistema imperialista apresenta, com a estrutura produtiva cada vez mais se especializando na produção de commoditiesagropecuárias e minerais para a exportação, para a demanda chinesa principalmente.
A esses fatores se soma a imposição do ajuste fiscal, traduzido em congelamento dos salários dos servidores públicos; negação de conquistas estabelecidas em lei à população pobre, como é o caso do Bolsa Família, com corte de 972 mil famílias, além de mais de 1 milhão de famílias na fila de espera; ou os cerca de 2 milhões de pedidos na fila do INSS para obter aposentadorias e outros benefícios. Em suma, uma deterioração ampla e generalizada dos serviços públicos. Por um lado, cada real poupado com essas despesas faz a alegria dos credores da dívida pública e dos investidores da bolsa. Por outro, só confirma a serviço de quem estão esses governantes e seu total descaso com os demais.
Para completar essa análise, é preciso detalhar mais a situação do mercado de trabalho. Já vimos os 12,6 milhões de trabalhadoras/es desempregados no ano passado (taxa de desemprego de 11,9%). A esses, é preciso acrescentar outros 7,0 milhões em tempo parcial involuntário e mais 8,0 milhões que nem se dão ao trabalho de procurar emprego, pela certeza de não encontrar (que o IBGE chama de “força de trabalho potencial”), somando os 27,6 milhões de subocupados (24,2% do total). E isso sem contar os 4,7 milhões de desalentados (número que só cresce nos últimos anos). Esse imenso exército industrial de reserva é um dos instrumentos usados pelos patrões para conter a pressão por aumentos salariais, para possibilitar o aumento da intensidade e da jornada de trabalho, e, com isso, transformar o aumento da exploração da força de trabalho em maiores lucros para os patrões.
Do total de “ocupados”, continua a crescer o número dos “conta própria”, 4,1% em 2019, atingindo o recorde de 24,2 milhões, dos quais 19,3 milhões (79,8%) sem carteira. Na parcela dos empregados assalariados, os sem carteira cresceram 4,0% no ano passado, e já somam 11,6 milhões, outro número recorde. Da mesma forma que é recorde as 6,2 milhões de trabalhadoras/es domésticas.
Completam esse cenário de precarização crescente, as novas relações de trabalho criadas pela reforma trabalhista, que buscam dar status “formal” à informalidade. Em 2019 foram criadas 85,7 mil vagas de trabalho “formal intermitente” – essa sim, uma contradição nos seus próprios termos – 13,3% do total das vagas com carteira assinada. Outros 20,4 mil postos foram criados no “regime de tempo parcial”. Essa informalidade majoritária no mercado de trabalho brasileiro representa trabalhadoras/es com menores salários, sem garantias trabalhistas mínimas.
* * *
Do nosso ponto de vista, essas são as condições concretas do capitalismo brasileiro: empregos de baixa qualificação e baixa remuneração, informalidade e precarização crescentes, aumentos na intensidade e na jornada de trabalho, levando a maior exploração da força de trabalho (com taxa de sindicalização em queda). Esse cenário é completado com a deterioração acelerada dos serviços públicos e dos programas de minimização da miséria e com violência e repressão crescentes. Tudo isso levando à piora das condições de vida da classe operária e todas as classes dominadas.
Essas condições de vida da absoluta maioria da população são determinadas pelas condições de acumulação de capital em um país dominado, com baixa produtividade, cada vez mais especializado no fornecimento de matérias-primas e insumos para a produção e o consumo nos principais países imperialistas, que atravessam uma marcada desaceleração econômica, podendo se encontrar às portas de uma nova recessão.
De fato, ao invés de um paradoxo, há lógica (capitalista) e funcionalidade entre esse crescimento econômico (ainda que muito pequeno) e a maior exploração da força do trabalho e a piora das condições dos trabalhadores/as.
A crise do sistema imperialista recolocou, em piores condições, tanto as condições de acumulação e lucro da burguesia brasileira (com a maior concorrência internacional), quanto as condições de exploração das classes dominadas em todos os países. Logo, uma maior exploração do proletariado no país passou a ser uma necessidade da burguesia local. Portanto, as crises do capitalismo, mundial e nacional, estão por trás da ofensiva da burguesia em todas as frentes (econômica, política, ideológica, repressiva).
No Brasil, essa ofensiva tem, atualmente, a face de um governo de extrema-direita, fascista, inimigo jurado da classe operária e de todas as trabalhadoras/es, continuador das “reformas” pró-capital e estimulador de toda a forma de violência contra a população trabalhadora, pobre, negra, feminina, LGBT, etc. A implantação concreta desse programa, no entanto, tem visto avanços e recuos, desde o ano passado, em função de grave crise política que as eleições de 2018 não conseguiram resolver (e será assunto de um próximo texto).
Essas condições concretas do capitalismo brasileiro só mudam com a força organizada dessa massa operária e dominada lutando por melhores salários e melhores condições de vida. Travando a luta econômica cotidiana contra os patrões e seus asseclas reformistas. Vendo em cada luta diária, em cada vitória ou derrota, quem são nossos inimigos de classe. Ligando a sua miséria e seu sofrimento à riqueza e ao luxo dos patrões. E se convencendo, na prática da luta, que essa é também uma luta política, contra o governo dos patrões, pelo governo dos trabalhadores/as.
Só a luta pode barrar a ofensiva das classes dominantes!