O Brasil e a nova crise mundial do capital
Cem Flores
07.05.2020
A pandemia mundial de coronavírus, as medidas adotadas pelos diversos países na tentativa de sua contenção e o nível em que se encontram acumuladas as contradições do capitalismo atual, em sua fase imperialista, estão provocando na economia mundial e no Brasil uma crise de magnitude poucas vezes vista, superando em vários aspectos a crise de 2008/9 (ainda não inteiramente superada) e se comparando com a Grande Depressão iniciada em 1929.
No artigo “A nova crise mundial do capital: a conjuntura internacional nos tempos de pandemia” tratamos da economia global no presente momento de crise, com destaque para a situação da China (origem da pandemia e primeiro país afetado, mas também o primeiro no relaxamento das medidas de contenção) e dos EUA (centro mundial da pandemia no momento, com os maiores impactos em termos de número de contaminados e mortos e também no desemprego).
Neste artigo, analisamos a conjuntura da luta de classes no Brasil, mostrando 1) as primeiras evidências já disponíveis da magnitude da crise econômica que afeta a classe operária e as massas trabalhadoras e dominadas no país, 2) as ações do aparelho de estado capitalista na defesa da burguesia e de seu capital, e como essas medidas “emergenciais” se articulam com o programa hegemônico da ofensiva burguesa em curso e 3) as perspectivas de resistência de classe nessa conjuntura.
A recessão/estagnação e o alto desemprego com informalidade no Brasil antes da crise atual
Antes de analisar os dados atuais, no entanto, é necessário resgatar os principais aspectos da conjuntura do país pré-pandemia. Como afirmamos no texto “A Pandemia, a Recessão, as Medidas Burguesas e a Reação dos Trabalhadores no Mundo e no Brasil”:
“No caso brasileiro, a histórica recessão de 2014-16 foi seguida de uma estagnação, com crescimento de 1% de 2017 a 2019. Como resultado, o PIB per capita de 2019 ainda era menor que o de 2010. O desemprego, que dobrou durante a recessão, só se reduz muito lentamente e ainda foi de quase 12% em 2019. E as novas vagas criadas são principalmente informais, de trabalho intermitente e precárias”.
Ou seja, a conjuntura econômica de 2014 a 2019, no Brasil, tem características depressivas, com semelhanças com o desempenho da economia mundial. Portanto, a reprodução ampliada do capital em geral se reduziu no país nesse período (embora isso não seja verdade para todos os setores econômicos e frações do capital), como pode ser visto no gráfico abaixo.
Essa crise do capital se traduziu em piora ainda maior das condições do mercado de trabalho. A taxa de desemprego explodiu, chegando a 12,7% em 2017 e nos dois últimos anos sua redução foi ínfima. Essa pequena criação de novos postos de trabalho, porém, foi fundamentalmente trabalho informal, precário, em tempo parcial ou intermitente. Quando olhamos o conceito mais amplo de desemprego (a “taxa composta de subutilização da força de trabalho”), não há nenhuma melhora até 2019!
Ou seja, para o proletariado, as massas trabalhadoras e a população pobre, a recessão ainda não acabou e o quadro de desigualdade, miséria, fome e sofrimento trazido pelo capitalismo brasileiro só piora. E agora estamos diante de uma nova crise, com potencial para superar a anterior!
Para o capital, a recessão/estagnação dos últimos seis anos representou: 1) queda na acumulação (até 2016) e nos lucros (até 2015), 2) recuperação modesta das taxas de acumulação e da lucratividade nos anos seguintes e 3) o que é tão importante quanto os lucros, a ocasião para desencadear uma ofensiva burguesa contra o proletariado em todas as frentes (econômica, política, repressiva, ideológica, etc.). 4) Mas também um cenário de crise política que permanece sem solução, embora alternando momentos de alguma distensão com os de agravamento, como o atual.
Em 2019, o crescimento econômico limitou-se a 1,1% e as estimativas preliminares indicam estabilidade na lucratividade das empresas não-financeiras.
Para uma análise mais detalhada da conjuntura e da ofensiva burguesa pré-crise atual, recomendamos a leitura do nosso livro digital “O Governo Bolsonaro: Ofensiva Burguesa e Resistência Proletária”.
O avanço da pandemia e da crise do capital no Brasil
Os casos de contágio pelo novo coronavírus no Brasil, pelo registro oficial, se iniciaram em março, tiveram um crescimento exponencial em abril e devem continuar avançando aceleradamente em maio. Até o dia 30 de abril, havia 85.380 casos e 5.901 mortes. Há estimativas de que esse número pode ser de 12 a 15 vezes maior, devido à subnotificação.
Embora os dados oficiais soneguem informações detalhadas, pode-se afirmar que os mais afetados serão os/as trabalhadores/as, os/as negros/as e as mulheres, e a parcela mais pobre da população. Isso porque pandemias agravam as desigualdades do capitalismo, tanto em termos de mercado de trabalho quanto de saúde.
Em relação ao mercado de trabalho, a pandemia e a crise tendem a agravar as desigualdades, a pobreza e a misériaque, de resto, só fazem aumentar desde a recessão iniciada em 2014. Seus efeitos afetam mais fortemente aqueles informais e com trabalho precário, que são a maioria dentre os/as trabalhadores/as brasileiros. Dentre esses, a participação de mulheres negras é 64% maior que no restante da força de trabalho. Mulheres que também serão mais atingidas por constituírem a maioria dos trabalhadores em serviços como educação e saúde – além de arcarem com a maior carga do trabalho doméstico, ainda mais com as escolas e creches fechadas. Há, também, evidências claras de aumento da violência doméstica contra a mulher nesse período de isolamento domiciliar.
Os/as operários/as e demais classes dominadas também são os que habitam em condições mais precárias de moradia, de acesso a saneamento básico, em regiões mais densamente povoadas, e têm menores índices de acompanhamento e de tratamento de saúde. Por essas razões sociais, que são inerentes ao sistema capitalista, também têm maior índice de comorbidades como diabetes, hipertensão e demais doenças cardíacas, que agravam os casos de coronavírus.
Por outro lado, crescem os relatos do esgotamento do sistema público de saúde, de Manaus a São Paulo, que já vinha sendo fortemente atacado e sucateado pelas medidas de “ajuste” (sic!) dos sucessivos governos burgueses. Já estamos vendo enterro em massa das vítimas em valas comuns, como em Nova Iorque, nos EUA, só falta o abandono de corpos pelas ruas, a espera de serem recolhidos, como em Guayaquil, no Equador.
Diante dessa situação caótica, o governo federal resumiu bem a importância que a burguesia dá para as vidas dos explorados pelo capital: “E daí?”
Esse deve ser mais um exemplo para fortalecer na classe operária e nas demais classes dominadas a “sua coragem, sua autoconfiança, seu orgulho e seu sentido de independência” (Karl Marx), além, é claro, do ódio de classe aos seus opressores.
Ódio de classe que “aqui, agora, significa demarcar a cada momento os dois campos opostos, excitar o seu antagonismo, desacreditar os conciliadores, ativar o alinhamento de cada indivíduo num ou noutro campo, acirrar a sua resolução de se bater por um lado ou pelo outro, aproximar com cada ação o choque necessário entre duas forças, dois objetivos – manter o sistema caduco a todo o preço, como eles pretendem, ou instalar um novo sistema, um novo modo de viver, como nós exigimos” (Francisco Martins Rodrigues).
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Em termos econômicos, os impactos da crise do capital no Brasil não são menos intensos que nos demais países. Embora com muito poucas estatísticas já disponíveis relativas ao período da crise, o aumento do desemprego, os cortes salariais, o crescimento da exploração e da miséria são avassaladores.
Os primeiros impactos foram observados no mercado financeiro, com queda vertiginosa da bolsa de valores, desvalorização cambial e fuga de capitais. Em todos esses casos, resultado da ação defensiva dos capitalistas na crise, de transformar seu investimento em capital dinheiro, de preferência em moeda forte (dólar) no exterior.
Indicador | Final de 2019 | Última informação | Variação percentual (%) |
Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) | 115.645 pontos (30.12.2019) | 80.506 pontos (30.04.2020) | -30,4% |
Taxa de câmbio (R$/US$) | 4,03 (30.12.2019) | 5,43 (30.04.2020) | +34,7% |
Os percentuais de queda da bolsa e de desvalorização cambial chegaram a ser ainda maiores que os da tabela acima, tendo sido atenuados em alguma medida pelas inúmeras ações do governo e do banco central em defesa do capital. O mesmo não se pode dizer das fugas de capitais do país, que desde 2019 só fazem aumentar.
Em relação ao capital produtivo, o primeiro indicador disponível foi o “índice de gerentes de compras” (purchasing managers index, PMI) composto (indústria e serviços), divulgado em 3 de abril. Esse PMI composto é calculado a partir de entrevistas feitas com aproximadamente 400 empresas. Seu objetivo é saber a perspectiva das empresas para produção, encomendas, emprego, custos, preços de venda, exportações, fornecedores, estoques. Pela construção do índice, valores abaixo de 50 indicam recessão.
A queda vertical do indicador foi atribuída, entre outras razões, a “preocupações de que a economia doméstica levará muito tempo para se recuperar do grave choque nas operações de negócios”. Para a indústria, especificamente, as principais razões foram a queda da demanda por exportações e as graves interrupções das cadeias globais de fornecimento, além da queda dos novos pedidos.
Esse cenário recessivo para a indústria foi confirmado pela Sondagem Industrial de março, divulgada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI). Por essa pesquisa, houve uma “redução sem precedentes da atividade industrial”, com “queda em uma intensidade e disseminação nunca registrada na série mensal”, e com a utilização da capacidade instalada no menor nível em dez anos (gráfico abaixo), em função da demanda insuficiente. A CNI registrou, também, “piora significativa das condições financeiras das empresas” e redução do emprego.
A magnitude dessa crise também pode ser vista na queda das projeções para o PIB deste ano, atualmente em -3,34% (com tendência de continuar piorando) – se aproximando dos resultados dos piores anos da recessão, 2015 e 2016.
As projeções para o crescimento do desemprego parecem ainda piores. Neste caso, vale lembrar que o governo federal interrompeu a divulgação das estatísticas de emprego formal, feitas a partir dos dados do Caged informados pelas empresas. De acordo com a FGV, a taxa de desemprego deste ano pode ficar entre 20% e 25%. E essa é a taxa “restrita”, e não a “ampliada” (subutilização)!
O Estado capitalista sai em defesa de seus patrões, da burguesia
Com a economia entrando em acelerada recessão, todas as esferas do aparelho de estado capitalista se apressaram em anunciar medidas para combater a crise e, é claro, principalmente salvar os capitais mediante transferências de dinheiro da dívida pública. Em 16 de março, o Ministério da Economia anuncia R$147 bilhões em “medidas emergenciais”. Três dias depois, o valor já havia passado para R$180 bilhões.
Nessas primeiras propostas de Guedes, fica clara a prioridade de manter sua política de ajuste fiscal e gastar o menos possível na crise. Mais além da pretensa contradição entre “neoliberalismo” e “intervencionismo”, tão ao gosto da “esquerda” (sic!) reformista e institucional, o que ocorreu foi que a fidelidade canina de Guedes à sua tarefa de gestor do capital, de implantar o programa hegemônico da burguesia (reformas, privatizações, etc.), foi tanta que ele não percebeu que a conjuntura havia mudado e que a própria burguesia passou a demandar um “programa emergencial”. Voltaremos a esse ponto mais à frente.
Essas propostas iniciais do Ministério da Economia quase não previam desembolsos de “dinheiro novo” (buscando conter o aumento da dívida púbica). As propostas eram basicamente adiamentos de impostos e contribuições (FGTS, Simples, Sistema S) e antecipações de pagamentos (13º, PIS/Pasep, Abono salarial), durante este ano. O “dinheiro novo” de Guedes era o “coronavoucher” e o auxílio aos Estados.
A proposta de Guedes era “coronavoucher” de R$200. Essa medida se deve à especificidade desta crise e tem o objetivo de buscar manter minimamente a demanda e tentar aplacar possíveis revoltas populares (saques, marchas de fome etc.). O valor inicial foi triplicado na Câmara dos Deputados – para ainda insuficientes R$600 por três meses, e tem apresentado inúmeros problemas para sua implementação. Sucessivas votações no Congresso aumentaram a quantidade de pessoas elegíveis a esse benefício. Dos 15 milhões de beneficiados na proposta inicial, passou-se, nas últimas estimativas, a 70 milhões de pessoas (um terço da população brasileira).
Processo similar de disputa de protagonismo entre governo e Congresso, envolvendo até o STF, ocorreu com o auxílio financeiro da União para Estados e Municípios. Em 23 de março, o governo divulgou sua proposta de R$26 bilhões (além de R$62 bilhões em adiamento de dívidas). Para isso, Guedes exigia como contrapartida a imposição de suas medidas de ajustes em todos esses entes federativos. Novamente, “o tempo passou na janela, e só Carolina Guedes não viu”. Por um lado, o STF disparou liminares em série para que os Estados não pagassem mais sua dívida com a União, adiantando, na prática, os efeitos do projeto. Por outro, a Câmara o reformulou inteiramente, propondo gastos entre R$ 90 bilhões e R$ 200 bilhões, a depender da queda da arrecadação – e sem as contrapartidas. A última notícia nessa luta encarniçada entre os diferentes representantes da burguesia por protagonismo é uma decisão salomônica do presidente do Senado: aumenta o proposto por Guedes, reduz o proposto por Maia, e crava o valor médio: R$ 60 bilhões (e mais os R$60 bilhões de adiamento de dívida) – com a obrigação de congelamento dos salários dos servidores.
Esses dois episódios ilustram bem a reação do “superministro” da Economia na sua condição de gestor do capital: ele foi indicado para uma tarefa (ajustes, reformas, privatizações) e permanece abraçado a ela, não importa o que aconteça. Nem mesmo agravar a briga intestina no governo contra investimentos públicos do Pró-Brasil. Essa indiferença, esse desprezo, pela realidade, pela crise, pelo desemprego, não deixa de ser igual à do seu chefe em relação às mortes pelo coronavírus: “E daí?”
No entanto, os principais formuladores do que chamamos de “programa hegemônico” da ofensiva burguesa – ArmínioFraga, Marcos Lisboa, Samuel Pessôa, Pérsio Arida, Marcos Mendes, etc. – rapidamente viram a necessidade de socorrer o capital de forma não limitada pela agenda anterior.
Esse “programa emergencial” para o capital na crise tem as seguintes características:
1) criação de capital fictício pelo Tesouro Nacional (dívida pública) e pelo Banco Central (expansão monetária) no montante necessário (“whatever it takes” [tudo o que for necessário], como dizia o Presidente do Banco Central Europeu na crise de 2008): adiamento de impostos (em especial sobre folha de pagamentos), garantia de demanda para empresas, pagamento direto de salários (no lugar das empresas!), transferência de renda, sustentação dos mercados financeiros, empréstimos a bancos e empresas não financeiras, empréstimos a estados e municípios (com contrapartida em ajuste fiscal no presente e no futuro), eliminação de restrições orçamentárias para a União (já pensando no ajuste fiscal futuro), etc.
2) identificação dos setores prioritários para receber recursos estatais e continuar funcionando na crise: visto como tarefa fundamental dos gestores do capital na crise, pensando na reprodução do capital em geral, inclusive para evitar desabastecimentos, racionamentos e as consequentes revoltas das massas populares.
3) redução dos salários, tanto de assalariados do setor privado como dos funcionários públicos: forma “clássica” de acelerar a saída da crise do capital, principalmente pela redução do custo e preservação/aumento dos lucros, mas também pela diminuição do impacto do conjunto de medidas na dívida pública. Funciona como ligação entre a crise atual e o pós-crise, conforme o item abaixo.
4) ligação explícita com o “programa hegemônico” da ofensiva burguesa: se os formuladores burgueses explicitamente reconhecem que a crise adia as novas rodadas de implantação do seu programa hegemônico, o “programa emergencial” é desenhado para minimizar os efeitos da crise, para não contradizer e possibilitar a implementação futura das etapas do programa hegemônico, mas também para adiantar, na medida do possível, essas etapas, especialmente as ligadas ao mercado de trabalho (diminuição salarial, redução de encargos trabalhistas, flexibilização de contratos de trabalho, negociação individual, etc.).
Esse “programa emergencial” passou a dirigir (não sem contradições) as propostas legislativas (como a PEC do Orçamento de Guerra) e as ações do Ministério da Economia e do Banco Central. Um mês depois do anúncio inicial, em 17 de abril, as resistências de Guedes já haviam sido dobradas e o aparelho de estado capitalista brasileiro mostrou sua nova pauta burguesa: o total máximo previsto para as ações do Ministério da Economia passou para R$ 1,169 trilhão, valor que se apequena diante dos anunciados pelo Banco Central: R$ 1,2 trilhão de liberação de liquidez para os mercados financeiros e R$ 3,2 trilhões de liberação de capital para os bancos.
Claro está que esse total de R$ 5,6 trilhões (aproximadamente 75% do PIB brasileiro) é para inglês ver. Nas projeções do Secretário do Tesouro Nacional, o montante do déficit primário neste ano deve ser de um quinto daquele valor, R$ 600 bilhões. Somado aos juros, deve levar a dívida pública a mais de 90% do PIB.
E é nesse cenário que o “programa emergencial” se liga com e leva ao retorno do “programa hegemônico” em 2021 (ou quando a recessão atual acabar): uma situação fiscal pior será “traduzida” como uma “necessidade” redobrada da burguesia para implementar mais reformas (aprofundar a trabalhista e a previdenciária, aprovar a administrativa), mais privatização, mais ajustes e mais deterioração no mercado de trabalho (salários, jornada, contratos, acordos individuais, etc.).
Nesse sentido de tornar permanentes as medidas do “programa emergencial”, as associações de classe burguesas já têm se pronunciado e feito seu lobby com o governo e o Congresso. Para a indústria (CNI), a suspensão de impostos é um modelo para tornar-se permanente na futura reforma tributária. O conjunto dessas associações têm se manifestado, com especial ênfase, em defesa de uma “revisão mais ampla na legislação trabalhista com base na atual experiência de exceção”. Como sintetizou o representante da agricultura (CNA): “Na crise, muitas coisas são teste para discutir lá na frente como permanente”.
Por fim, não podemos esquecer que o que chamamos “programa hegemônico” faz parte da ofensiva burguesa em todas as frentes em sua luta de classes contra o proletariado e demais classes dominadas. Ou seja, esse programa não é apenas econômico. A pandemia tem possibilitado, em vários países do mundo, e no Brasil também, a adoção de medidas de estado de exceção e de reforço do aparelho repressivo. Sobre o pretexto de combater uma crise sanitária, são experimentados novos modelos de vigilância e controle, cada vez mais aprimorados e personalizados, que passam a ser vistos como necessários pelo capital e seu estado. Dessa forma, o aparelho repressivo busca naturalizar essas medidas de exceção, para reduzir a resistência a elas, com o objetivo de torná-las permanentes.
A classe operária e as demais classes dominadas na crise atual
Acabamos de ver que o “programa emergencial” do capital reserva para a burguesia um sem número de medidas e benefícios, em montantes que o governo anuncia como multi-trilionários. Agora é preciso detalhar um pouco mais a outra face desse mesmo programa, a imposição dos custos da crise às classes dominadas para que, como em toda a crise capitalista, “a redução dos salários abaixo do seu valor” seja um dos mais efetivos fatores contrarrestantes à queda da taxa de lucro.
O centro da ação do governo e da burguesia em relação aos/às trabalhadores/as está colocado em três medidas: 1) estabelecimento de acordo individual flexibilizando todas as conquistas trabalhistas ao sabor do patrão (MP 927), 2) suspensão e redução dos contratos de trabalho e dos salários (MP 936), com o governo bancando uma parte desse custo das empresas (MP 944), e 3) emprego verde e amarelo, aprofundando a reforma trabalhista para igualar mais trabalho formal e informal.
As duas primeiras medidas foram analisadas com detalhe no texto “Traduzindo o ‘pacote’ da burguesia e do governo Bolsonaro: Matar os trabalhadores de coronavírus, de fome e de exploração!”. A terceira, mais antiga, no texto: “Aumentar a informalidade para aumentar a exploração do trabalho: a reforma trabalhista e sindical de Bolsonaro”.
Vejamos os impactos concretos já sentido pelos trabalhadores em função dessas medidas pró-capital adotadas pelo governo. Segundo levantamento da Fipe-USP, as principais ações das empresas na crise são, de longe, as possibilitadas pelos novos instrumentos legais das duas primeiras medidas: redução de jornada, redução de salário e suspensão do contrato de trabalho (ver gráfico abaixo). Somadas, já são mais da metade das cláusulas das mudanças dos contratos de trabalho, na falsa solução de manutenção formal do emprego com redução de salários.
Na prática, essas medidas representam um empobrecimento do trabalhador – com o consequente enriquecimento do patrão. Fora todas as demissões, os atrasos de pagamentos, as horas-extras não pagas, o salário na carteira menor que o real (porta aberta para reduções salariais), o não pagamento das obrigações trabalhistas, e uma longa lista de fraudes que na prática já são o dia a dia da luta entre patrões e operários, agora os patrões ganharam meios legais para isso. De acordo com a nova regra, para quem ganha até 1,5 salário-mínimo, perda de 20% do salário. Para salários na faixa de 4 salários-mínimos, essa perda chega a 56%.
O avanço da burguesia possibilitado por essa nova regra tem sido tão forte e acelerado que até o dia 30 de abril já haviam sido fechados “acordos” (sic!) desse tipo envolvendo mais de 4,8 milhões de trabalhadores, que o site oficial do governo chama de “empregos preservados”. Na prática, esses quase 5 milhões de trabalhadores/as devem ser somados ao 1 milhão que já buscou o auxílio-desemprego. Ou seja, nesse primeiro mês e meio de crise já são pelo menos 6 milhões de trabalhadores formais os atingidos diretamente pelo desemprego e redução de salários.
Quanto à terceira medida, a infame redução de quase todas as obrigações trabalhistas dos patrões com a chamada carteira de trabalho verde e amarela, o governo a propôs pela primeira vez em 2019, como uma espécie de segunda etapa, de radicalização, da reforma trabalhista de Temer (2017). A proposta retornou de maneira um pouco mais restrita com esta crise, foi aprovada na Câmara dos Deputados do desafeto de Bolsonaro e Guedes, Rodrigo Maia – mostrando que a disputa entre representantes da burguesia é apenas por protagonismo nas medidas contra o proletariado e a favor do capital – mas não foi aprovada pelo Senado, no contexto da atual crise política. Não obstante, para mostrar sua disposição de atender aos patrões, o presidente do Senado se apressou em dizer que a medida deveria ser reeditada.
O que vemos até aqui, nas principais medidas anti-crise da burguesia em relação aos trabalhadores do mercado formal, são reduções de salário, eliminações de conquistas trabalhistas, e pioras nas condições de trabalho e de vida. Na verdade, são auxílios às empresas e não aos/às trabalhadores/as. A crise pode ser específica, mas a natureza do capitalismo é a mesma.
Quanto à massa trabalhadora majoritária, que sofre para ganhar seu mínimo sustento no trabalho informal, em bicos, se virando como pode, a única proposta do governo foi três meses de pagamento de R$200, mais tarde aumentados para R$600. A estimativa de que 70 milhões de trabalhadores/as estejam aptos para esse benefício, só comprova a extrema desigualdade do capitalismo no Brasil e a extensão da miséria cotidiana das massas populares. A experiência concreta dessa massa é de extrema dificuldade para receber esses minguados e insuficientes recursos – erros do aplicativo, interminável período “em análise”, filas enormes para (não) receber, etc.
Dessa análise, chega à conclusão que, nesta crise, os gestores do capital propuseram um “programa emergencial” de sustentação aos patrões, seus lucros, na tentativa de assegurar ao máximo possível a reprodução do capital. Ao fazer isso, buscam tanto adiantar as medidas do seu “programa hegemônico” contra a classe operária e demais trabalhadores, tornando-as permanentes, quanto possibilitar/justificar novas ofensivas futuras.
Resistência de classe nesta crise e ofensiva burguesa
A atual crise econômica, associada a uma pandemia, ocorre em cenário de recuo muito grande da luta operária e popular, com redução das greves nos últimos anos, falência do sindicalismo pelego de subordinação à burguesia (inclusive falência econômica), desemprego muito elevado e informalidade majoritária no mercado de trabalho brasileiro. Todos esses fatores dificultam a resistência organizada da classe contra a ofensiva burguesa.
Adicionalmente, e muito importante, contribui para essa menor luta da classe operária a falta de uma posição comunista, revolucionária, com força de massa entre os/as operários/as, as massas trabalhadoras e populares no país. Essa falta de uma posição política própria, independente, do proletariado na luta de classes, e de seu instrumento, o partido comunista, é um dos entraves ao avanço da luta que devem ser superados no país.
No entanto, nada disso quer dizer que não haja resistência nem luta! Trabalhador(a), teu nome é luta!
Como temos buscado destacar em diversos materiais, especialmente nos textos “A luta dos trabalhadores em tempos de crise e pandemia no Brasil” e “A resistência das favelas e periferias em tempos de pandemia: solidariedade, reforço da organização popular e redes de ajuda mútua”, são inúmeras as lutas e paralisações nos locais de trabalho, os protestos pela vida, por salários e por condições de trabalho, as formas concretas de resistência, de auto-organização, de auxílio mútuo e de solidariedade que estão sendo criadas ou reforçadas pelos/as trabalhadores/as e pela população pobre no país na crise atual. Fatos que vem acontecendo também em vários outros países.
Essa dura luta, em momento tão adverso, está a acontecer cotidianamente no país. A experiência e a organização geradas por ela são essenciais hoje, e serão também amanhã, para se impor limites e revidar à odiosa ofensiva burguesa em curso no país. Ofensiva que, como vimos, está a arrancar não só o suor, mas as lágrimas e o sangue das massas trabalhadoras e populares na pandemia, tudo em nome dos lucros dos patrões, de seu infame luxo em meio à barbárie.
Não há outro caminho para o/a trabalhador/a que não seja o da resistência e da luta cotidianas. E cabe aos/às comunistas, militantes e lutadores participar e estimular essas lutas e mostrar a ligação entre os problemas concretos e as pautas específicas com sua causa mais geral: o sistema capitalista, o lucro e a riqueza dos patrões, a miséria e a exploração dos/as trabalhadores/as. Como clamava o ainda atual Hino da Internacional Comunista às vítimas da fome:
De pé, De pé! Não mais senhores!
Esse texto faz parte do livro A Luta de Classes no Brasil em Contexto de Crise e Pandemia