Repensar o Socialismo: O Que é a Transição Socialista de Pao-Yu Ching e Deng-Yuan Hsu.
70 Anos da Revolução Comunista na China e 41 Anos do Início da Restauração Capitalista.
Cem Flores
22.05.2020
O Coletivo Cem Flores vem publicando, desde o final do ano passado, como parte da celebração dos 70 anos da revolução chinesa, uma série de artigos com o objetivo de mostrar aos nossos camaradas e leitores que a China hoje é um país capitalista, país que ocupa um lugar dominante no sistema capitalista mundial, o sistema imperialista. Ou seja, que a China hoje também é um país imperialista.
Abordamos esse problema por vários aspectos:
- Na análise atual da formação econômica chinesa. Iniciamos esse série de artigos com o texto A Restauração Capitalista na China: textos de Francisco Martins Rodrigues. Esse artigo gerou alguns comentários críticos à nossa posição e desenvolvemos o argumento, com dados e informações atuais, em um novo artigo: Debate sobre a Restauração Capitalista na China. Além desses dois artigos publicamos ainda o texto Imperialismo Chinês na África, por Ana Barradas.
- Na compreensão teórica sobre a transição para o comunismo e a caracterização de uma formação em transição socialista. Sobre essa questão teórica central para a compreensão da crise que se abateu sobre o marxismo apresentamos, em duas publicações, O Debate Bettelheim-Sweezy Sobre a Transição Para o Socialismo, 1ª parte e 2ª parte.
- Na análise concreta dos fatos ocorridos na luta de classes na China. Para avançar na compreensão dos fatos ocorridos na Grande Revolução Cultural Proletária na China traduzimos e publicamos o texto Sobre a Luta de Classes na Construção do Socialismo e a Ameaça de Retorno ao Capitalismo: um documento da Revolução Cultural na China.
Prosseguindo nesse tema, agora com o objetivo de analisar mais a fundo, tanto teoricamente como na análise dos fatos ocorridos na China no período posterior à revolução (1949) até a vitória da retomada da via capitalista (1978), reproduzimos nessa publicação o artigo Repensar o Socialismo: O Que é a Transição Socialista, de Pao-Yu Ching e Deng-Yuan Hsu.
O texto foi traduzido e publicado originalmente pelos camaradas do blog Luta Contínua que o apresentam indicando que “traduzimos o texto que segue, até onde sabemos inédito em português. “Repensar o socialismo” é um dos textos fundamentais em economia política do campo do marxismo-leninismo-maoismo, seguindo, portanto, como um dos materiais mais urgentes para a prática teórica das lutas de classes na era atual, especialmente nos países coloniais e semicoloniais“. Concordamos totalmente com os camaradas do Luta Contínua sobre a importância desse texto.
O artigo está dividido em 3 capítulos:
I- Repensar o Socialismo: O Que é a Transição Socialista (1. Reavaliar os conceitos de propriedade estatal e de planejamento econômico, 2. A direção da transição e a questão do revisionismo).
II- As experiências concretas da China durante a transição socialista (1. A implementação de projetos socialistas e/ou capitalistas, 2. As características duplas dos projetos capitalistas e socialistas durante a transição socialista, 3. Competição entre os projetos socialistas e os projetos capitalistas, 4. Produção de mercadorias e lei do valor durante a transição socialista, 5. O Partido Comunista da China).
III- Conclusão.
Como os títulos e subtítulos de cada capítulo já indicam, o texto possibilita aprofundar-se na compreensão teórica da transição socialista aliado ao estudo das experiências concretas da China durante seu processo de construção e avanço na via do socialismo (e posterior regresso à via capitalista).
Para avançarmos em nossa compreensão do processo revolucionário chinês e das causas de sua derrota não há como fugir da necessidade da “análise concreta da realidade concreta” (Lenin). Esse artigo que apresentamos aos camaradas e leitores do Cem Flores é fundamental para essa compreensão.
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REPENSAR O SOCIALISMO: O QUE É A TRANSIÇÃO SOCIALISTA?
por Pao-Yu Ching & Deng-Yuan Hsu
I. Repensar o socialismo: o que é a transição socialista?
A transição socialista é o período de tempo que transforma uma sociedade não comunista em uma sociedade comunista. Durante a transição socialista não existe um caminho certo pré- determinado pelo qual as políticas e acontecimentos podem ser julgados para determinar se esse é ou não o caminho a ser seguido. Assim, um acontecimento único e isolado não pode determinar se o processo de transição é capitalista ou socialista. Não temos nenhum caminho pré- determinado em mente e, assim, não temos parâmetros específicos com os quais medir a nossa avaliação. Como Lênin disse, “Não afirmamos que Marx ou os marxistas conhecem o caminho para o socialismo completamente. Isso não faz sentido. Sabemos a direção desse caminho, sabemos quais forças de classes dirigem ao longo do caminho, mas de maneira concreta e prática, isso será aprendido com as experiências dos milhões de pessoas que assumirem essa tarefa”[1].
Existem, no entanto, certas linhas amplas e gerais que apontam a direção para a transição ao comunismo. A maior parte geralmente aceita que o socialismo (ou o que Marx chamou a fase inferior do comunismo) é uma fase de desenvolvimento em que os produtores diretos conquistam o controle dos meios de produção e a distribuição é feita “a cada um de acordo com seu trabalho”. No capitalismo, os capitalistas detêm os meios de produção e os produtores diretos não têm controle sobre eles. Uma vez que o objetivo da produção no capitalismo é a valorização do valor, os capitalistas devem extrair de maneira implacável tanto mais-valor quanto puderem dos trabalhadores. O objetivo da produção no socialismo, por outro lado, é produzir produtos com valores de uso para satisfazer as necessidades do povo. Assim, o socialismo representa uma mudança fundamental nas relações de produção capitalistas: ele é a antítese do capitalismo. Essas linhas gerais dão uma direção que é um processo de desenvolvimento da transformação das relações de produção de uma produção de mercadorias para uma produção não-mercantil. De maneira correspondente, têm que ocorrer mudanças fundamentais nos aspectos políticos, sociais e culturais da sociedade. A transição socialista não é de modo algum tranquila: ela é marcada por muitas reviravoltas e viradas. Recuos e obstáculos acontecem. No entanto, a direção geral é sempre clara. Por conta de certas circunstâncias, recuos às vezes são necessários antes de avanços. Nesses casos, as razões por trás dos recuos devem ser claramente explicadas.
1. Reavaliar os conceitos de propriedade estatal e de planejamento econômico
A. A propriedade estatal dos meios de produção não é o mesmo que relações de produção socialistas
Em países que tentaram estabelecer o socialismo, como regra o Estado primeiro deu o passo de nacionalizar as indústrias. Assim, a transferência legal dos meios de produção ao Estado foi frequentemente assumida como o início do socialismo. Em outras palavras, a análise convencional normalmente idêntica a propriedade estatal dos meios de produção com o socialismo. Discordamos dessa análise, porque quando essa transferência legal aconteceu, não havia maneira de avaliar a natureza da transição, se era socialista ou capitalista. Assim, não vemos a transferência legal dos meios de produção ao Estado como o ponto de partida na fundação do socialismo. A mudança jurídica de propriedade era apenas um ponto de referência, era simplesmente um indicador que marcava o desenvolvimento histórico até aquele momento. A mudança jurídica de propriedade oferecia possibilidade para mudanças futuras, mas se a transição seria socialista ou capitalista dependeria dos acontecimentos concretos depois das transferências jurídicas.
Em primeiro lugar, precisamos esclarecer o significado da propriedade estatal. A propriedade estatal existe tanto no sistema capitalista quanto no período de transição ao comunismo. A propriedade estatal quer dizer simplesmente que o Estado tem o controle efetivo dos meios de produção. Durante a transição, a propriedade estatal de maneira alguma implica uma mudança nas relações de produção. No capitalismo, o aparelho de Estado pode assumir o controle efetivo dos meios de produção de algumas empresas e fazer delas propriedade do Estado. Existem muitas razões para que o Estado assuma propriedade dos meios de produção de algumas empresas em um país capitalista. A mais importante é provavelmente que a propriedade estatal torna possível que o Estado conduza, de maneira limitada, a direção do desenvolvimento e assim atue para complementar e melhorar a acumulação de capital tanto no setor estatal quanto no setor privado. Por exemplo, o Estado pode ser o proprietário de grandes empresas de serviços, transporte, comunicação, bancos, etc. Outra razão para a propriedade estatal no capitalismo nos países de Terceiro Mundo é defender certas empresas contra o controle estrangeiro. Quando um país de Terceiro Mundo tenta desenvolver sua economia de maneira independente e o capital privado doméstico é muito fraco, a propriedade estatal é normalmente a única maneira de limitar o capital estrangeiro.
Para a nossa análise do período de transição entre o capitalismo e o comunismo, fazer a distinção entre a transferência legal da propriedade dos meios de produção para o Estado e o início da transição socialista é muito importante para esclarecer a questão do revisionismo. Em muitos países, a China incluída, o Partido Comunista afirmou e continua a afirmar que ele praticava o socialismo porque a maior parte de suas indústrias eram (ou são) propriedade do Estado, quando de fato a transição já havia se invertido do socialismo ao capitalismo. No atual momento, o Partido Comunista da China usa a propriedade estatal como um indicador de que está praticando o socialismo para legitimar o seu governo. Como explicamos anteriormente, a propriedade estatal existe tanto no sistema capitalista quanto no período de transição e, assim, a propriedade estatal de maneira alguma indica ou exprime as relações de produção.
Marx distinguia a mudança jurídica da mudança real nas relações de produção. Marx criticou Proudhon porque Proudhon considerava o aspecto legal, não a forma real, como sendo as relações de produção[2]. Pela mesma razão, recusamos o uso chinês tradicional desse termo. Depois que o Partido Comunista derrotou os Nacionalistas e estabeleceu o governo popular em 1949, o novo governo confiscou todo o capital burocrático e o capital estrangeiro. Ele nacionalizou todos os principais recursos de transporte, comunicação e manufatura. Então, em 1952, ele completou a reforma agrária. Depois de 1952, o governo deu vários passos para nacionalizar o capital privado que ainda existia e também deu vários passos com os movimentos cooperativos na agricultura. Em 1956, ele completou tanto a nacionalização da indústria quanto a coletivização da agricultura. O governo legalmente transferiu a propriedade dos meios de produção para o Estado e para as cooperativas. A China chamou (e ainda chama) o período entre 1952 e 1956 de transição ao socialismo e o período depois de 1956 de socialismo. De acordo com nossa análise, durante o período de 1949-1978, o Estado instituiu políticas que indicavam claramente que a direção da transição era para o comunismo e, portanto, a transição era socialista. Por outro lado, as políticas das reformas de Deng desde 1979 indicam claramente que a direção foi invertida no sentido do capitalismo, e que a transição desde 1979 é capitalista.
A análise acima não deve ser mal-entendida como querendo dizer que a propriedade estatal dos meios de produção não é necessária durante a transição socialista, justificando com isso a privatização massiva que aconteceu na China com as reformas de Deng. Explicaremos mais esse ponto em nossas análises que seguem, assim como explicaremos a diferença entre a propriedade jurídica e a propriedade econômica.
B. Participação estatal no planejamento não significa economia socialista
“Planejamento versus mercado” é outra medida usada pela análise convencional para distinguir a transição capitalista da transição socialista. Esse tipo de análise frequentemente identifica planejamento com socialismo e mercado com capitalismo. Como a propriedade estatal, o Estado no sistema capitalista também usa o planejamento como um instrumento para conduzir a direção da economia. Em muitos países capitalistas, o Estado participa do planejamento que pode acontecer com ou sem a transferência jurídica da propriedade para o Estado. Ainda que ele varie nos países capitalistas, o aparelho de Estado nos países capitalistas teve um papel importante tanto na direção da produção (através da propriedade) quanto no planejamento. A questão da extensão da participação estatal nessas atividades foi debatida pelos economistas burgueses (nos EUA entre os conservadores e os liberais) nos países capitalistas por muitas décadas.
A contradição básica do capitalismo é entre a socialização da produção e a apropriação privada dos meios de produção. Enquanto o sistema capitalista existir essa contradição intrínseca irá se manifestar através de crises periódicas e cada vez mais profundas. Desde a Grande Depressão, o Estado nos países capitalistas tentou lidar com os problemas que resultavam dessa contradição básica. O Estado usou o poder investido nele para regular os ciclos de negócios através de políticas fiscais e monetárias keynesianas. Para lidar com o problema da flutuação econômica e da estagnação de longo prazo, o Estado também participou ativamente na construção da infraestrutura pública e na administração da força de trabalho (o emprego, a educação, os programas de treinamento, e os programas de bem-estar e contra o desemprego). Com políticas de crédito (juros baixos e garantia de empréstimos), o governo federal dos EUA ajudou a expansão da indústria de construção civil. A aceleração militar impulsiona a indústria de defesa. O Estado também ajuda a regular os mercados financeiros para facilitar o vínculo entre o capital financeiro e o capital produtivo. Na esfera da circulação, o Estado regula e promove o comércio doméstico e internacional. Para impulsionar a competitividade das empresas dos EUA no mercado internacional, o governo estadunidense garante subsídios de exportação e exporta créditos para corporações. Os governos locais também se juntaram ao processo oferecendo às corporações “o ambiente de investimentos mais favorável” que incluiu dar às corporações áreas para construção, estradas, energias e isenção de impostos. O objetivo do envolvimento do Estado em todas essas atividades é facilitar a acumulação de capital, mas os gastos envolvidos são pagos pelos contribuintes, a maioria dos quais são trabalhadores.
Em outros países capitalistas avançados, a participação do Estado no planejamento é ainda maior. No Japão, por exemplo, o Estado tem tanto planos de curto prazo quanto planos de longo prazo para a economia que dão indicações das taxas de crescimento alvo, do uso de energia, da necessidade de força de trabalho, etc. Nos países em desenvolvimento, o planejamento estatal também tem um papel importante. Em Taiwan, por exemplo, o Estado ativamente promoveu uma economia movida a exportações. Ele projeta a necessidade de infraestruturas públicas para facilitar o transporte de bens de exportação. O Estado também esteve diretamente envolvido no planejamento do uso de energia, na produção de matéria-prima para exportação industrial (aço, plástico, etc.). Assim é um mito que nos países capitalistas há um “livre sistema empresarial” que conta apenas com os mecanismos de mercado para funcionar. O planejamento não é o oposto do mercado, os dois se complementam no sistema capitalista.
A intervenção estatal pela propriedade e pelo planejamento não pode, no entanto, mudar a natureza fundamental do capitalismo. Muitos economistas liberais nos países capitalistas têm um pensamento tendencioso de que o Estado pode ter um papel grande na alteração do objetivo da produção da acumulação de capital para a satisfação das necessidades do povo. Eles não conseguem perceber que a acumulação de capital é o fundamental no sistema capitalista; ela não pode ser alterada arbitrariamente. Pelo contrário, o Estado tem um papel importante na facilitação da acumulação de capital. No máximo, o Estado pode inquenciar, em uma medida muito limitada, a apropriação dos produtos entre o capital e o trabalho para manter a estabilidade da sociedade, e isso só é feito quanto o trabalho consegue pressionar para isso.
Para concluir, velhos conceitos como a propriedade estatal dos meios de produção e o planejamento econômico estatal não nos ajudam de maneira alguma a esclarecer a questão do que é o socialismo, pelo contrário, eles causam ainda mais confusão. É, assim, necessário que busquemos novos conceitos para a análise.
2. A direção da transição e a questão do revisionismo
Acreditamos que a questão do revisionismo deve ser determinada pela direção da transição, e não pelo fato de o Estado ainda ser proprietário dos meios de produção ou ainda praticar o planejamento estatal. A transição capitalista, i.e., o revisionismo começa quando a máquina de Estado inverte a direção da transição do socialismo/comunismo para o capitalismo. Isso não quer dizer que, nesse ponto, os revisionistas consigam completar a transformação das relações de produção de socialistas para capitalistas. A transformação mesma leva tempo, como vimos na antiga União Soviética, nos países da Europa oriental e na China. Além disso, não podemos avaliar a direção da transição examinando apenas uma política ou um acontecimento isolado. Ao contrário, as políticas têm que ser avaliadas em sua totalidade. Introduziremos alguns novos conceitos – projeto capitalista e projeto socialista – como ferramentas para a nossa análise.
O objetivo dos projetos capitalistas leva na direção do capitalismo. Os projetos capitalistas são maneiras concretas de estabelecer, manter ou expandir relações de produção capitalistas, e de estabelecer, manter ou reforçar as relações de dominantes e dominados entre os proprietários dos meios de produção e os produtores diretos. O objetivo da produção nos projetos capitalistas é a valorização do valor. Se o Estado conseguir continuar a implementar projetos capitalistas de maneira consistente durante a transição, ele eventualmente irá afastar os produtores diretos de qualquer controle sobre os meios de produção ou o produto de seu trabalho. Expandindo os projetos capitalistas, o Estado (ou o capital privado) está em uma posição de acelerar a sua acumulação de capital extraindo cada vez mais mais-valor dos trabalhadores. A distribuição do projeto capitalista é baseada no tamanho do capital (constante e variável) e não na quantidade de trabalho com que se contribui.
Diametralmente opostos aos projetos capitalistas, temos os projetos socialistas, cuja direção é no sentido do comunismo, quando os produtores diretos terão controle dos meios de produção e do produto de seu trabalho. Nos projetos socialistas, a distribuição será, primeiramente, de acordo com a quantidade de trabalho com que se contribui e com uma preocupação séria em satisfazer as necessidades básicas do povo. Mais tarde, quando as forças produtivas estiverem completamente desenvolvidas, a distribuição será feita de acordo com as necessidades. Os projetos socialistas são projetos elaborados para implementar os interesses de longo prazo do proletariado e não são o mesmo que os chamados programas de bem-estar social nos países capitalistas avançados. Os projetos socialistas são políticas econômicas (programas) que resultam de decisões políticas; esse é o significado do que Mao dizia sobre “a política no comando”. Os projetos socialistas são elaborados para restringir, conter ou interromper a acumulação do capital do Estado e/ou privado.
Temos que enfatizar aqui que um projeto socialista não é simplesmente um programa econômico, ele inclui aspectos sociais, políticos e ideológicos. Além disso, o projeto socialista não é uma coisa com certas características fixas e imutáveis, pelo contrário, o próprio projeto socialista tem que passar por mudanças fundamentais durante a transição ao socialismo/comunismo. Iremos utilizar exemplos concretos para elaborar esse ponto abaixo.
Durante a transição, tanto projetos socialistas quanto os projetos capitalistas são necessários e, portanto, não podemos avaliar a direção da transição por uma única política ou acontecimento. Precisamos, ao invés disso, olhar para o desenvolvimento geral para determinar a direção da transição. Na análise que segue da transição chinesa, iremos usar exemplos concretos para mostrar como foi necessário que projetos capitalistas e projetos socialistas coexistissem durante a transição socialista, e que ao mesmo tempo os projetos socialistas competiam com e substituíram os projetos capitalistas no avanço da sociedade. Além disso, usaremos exemplos concretos para mostrar como foi possível que os revisionistas invertessem a direção da transição implementando um conjunto de projetos capitalistas bem coordenados.
II. As experiências concretas da China durante a transição socialista
Como explicamos anteriormente, existem algumas indicações amplas e gerais sobre a direção da transição ao comunismo. Durante o que Marx chama de fase inferior do comunismo, o desenvolvimento chega a um estágio em que os produtores diretos conquistam o controle dos meios de produção e a distribuição é feita “a cada um segundo seu trabalho”. Com essa indicação geral em mente, podemos aprender muito com as experiências da China ao estudar os acontecimentos históricos concretos nos últimos quarenta anos. Encarados em sua totalidade, a análise concreta dos acontecimentos históricos e das políticas na China durante o período entre 1949 e 1978 claramente indicam que a direção da transição era no sentido do comunismo. Portanto, esse era um período de transição socialista. A reforma de Deng em 1979 repentinamente acabou com a transição socialista e inverteu a direção no sentido do capitalismo. Políticas concretas das reformas de Deng nos últimos 16 anos claramente indicam que a sua direção é no sentido do capitalismo. Assim, o período de 1979 até agora é uma transição para o capitalismo.
Em nossa análise apresentamos exemplos concretos para demonstrar porque a transição entre 1949 e 1978 era socialista e como a direção da transição foi invertida pelas reformas de Deng desde 1979. As políticas de diferentes períodos são examinadas para ver se essas políticas deveriam instituir projetos capitalistas ou socialistas.
1. A implementação de projetos socialistas e/ou capitalistas
A. Da reforma agrária às Comunas Populares no setor coletivizado[3]
Durante o período da transição ao socialismo, tanto os projetos socialistas quanto os projetos capitalistas coexistiram. Por exemplo, durante a transição socialista na China (1949-1978), a reforma agrária, vista em si mesma, era um projeto capitalista. No entanto, a reforma agrária era uma parte necessária da estratégia socialista de longo prazo. Entre 1949 e 1952, a reforma agrária foi completada nas áreas recém liberadas no campo da China. Pela primeira vez em suas vidas, centenas de milhões de camponeses eram donos de um pedaço de terra, de em média apenas 0,2 hectares per capita. Eles cultivavam a sua terra com grande entusiasmo. A produção de grãos e algodão aumentou rapidamente durante o período de três anos entre 1949 e 1952. No entanto, em 1953 e 1954 a produção de grãos estagnou e a produção de algodão na verdade diminuiu drasticamente em ambos os anos[4].
Depois de cem anos de destruição por guerras e ainda mais anos de total negligenciamento pelos senhores de terras, o ambiente natural da China para agricultura era muito frágil, e a sua terra arável extremamente escassa era infértil. Além de possuir pedaços muito pequenos de terras esgotadas, a maioria dos camponeses tinha muito poucas ferramentas de trabalho. Entre as unidades domésticas de camponeses pobres e médios, que eram entre 60 e 70% do campesinato chinês, muitos não tinham nem mesmo um arado, ainda menos utensílios agrícolas ou animais de trabalho. Sem utensílios agrícolas, o entusiasmo não poderia continuar sozinho a aumentar a produção. Além disso, em 1953 e 1954, enchentes e secas afetaram grandes áreas de cultivo. Camponeses individuais que contavam só consigo mesmos ficaram sem defesas contra desastres naturais como esses. Além disso, acidentes pessoais, como doenças ou a morte de um membro familiar forçavam famílias camponesas a contrair dívidas. Quando as dívidas começaram a subir com a usura, muitos camponeses foram forçados a vender suas terras. Antes que o movimento de cooperativas começasse, as atividades de venda de terras e empréstimos começaram a subir, assim como o número de camponeses que procuravam emprego como mão de obra agrária[5]. Se não tivesse acontecido o movimento de cooperativas, a tendência seria polarizar ainda mais e reconcentrar a propriedade da terra.
Por volta de 1954, quando os camponeses se organizaram em equipes de ajuda mútua, eles estavam tentando encontrar uma maneira de resolver sua situação difícil. Nas equipes de ajuda mútua, os membros compartilhavam suas ferramentas de trabalho (animais de trabalho, enxadas, carrinhos, etc.) e sua força de trabalho uns com os outros para aumentar a produção. Eles trocavam força de trabalho humana pelo uso de animais de trabalho. Então, em 1955, os camponeses deram um passo adiante e organizaram cooperativas básicas. Nas cooperativas básicas, os membros que tinham ferramentas de trabalho as emprestavam para a cooperativa e recebiam uma parcela dos produtos em troca. Tanto equipes de ajuda mútua quanto cooperativas básicas eram projetos capitalistas. No entanto, ambos foram passos necessários para a organização de cooperativas avançadas e das comunas populares, e assim foram parte da estratégia socialista geral. As cooperativas avançadas foram organizadas em 1958 com o movimento do Grande Salto Adiante. No nível das cooperativas avançadas, os camponeses que tinham ferramentas de trabalho as vendiam para as cooperativas. A distribuição nesse nível era feita de acordo com o trabalho contribuído: os membros não recebiam mais uma parte dos produtos de acordo com a quantidade de capital (trabalho morto) que possuíam. Antes da distribuição, os impostos eram pagos primeiro e então uma porção do lucro bruto era colocada de lado, nos fundos de acumulação para investimentos. O resto era distribuído aos membros da equipe de acordo com a quantidade de trabalho que contribuído durante o ano. Assim, no que dizia respeito à distribuição, as cooperativas avançadas eram um projeto socialista.
Foi precisamente porque a reforma agrária, as equipes de ajuda mútua e as cooperativas básicas eram projetos capitalistas, que Mao acreditava que o Partido Comunista da China deveria liderar a organização das cooperativas avançadas e das comunas populares. Caso contrário, um desenvolvimento capitalista, e não socialista, aconteceria. Foi nesse ponto que os opositores de Mao no Partido Comunista da China lutaram fortemente contra o avanço para o próximo passo. É importante notar que a reforma agrária apenas destrói o sistema de latifúndio, quando a terra étomada da velha classe de proprietários de terras e distribuída entre os camponeses. Em muitos casos, a China incluída, a situação depois da reforma agrária não foi estável, porque as unidades domésticas que tinham uma pequena área de terra e poucos instrumentos de produção não poderiam se sustentar. Na China, logo depois da reforma agrária, alguns camponeses começaram a vender suas terras por problemas pessoais e/ou desastres naturais. Em muitos países de terceiro mundo, a situação foi semelhante: depois da reforma agrária, os camponeses não conseguem se sustentar e eventualmente tiveram que vender suas terras para proprietários de grandes fazendas comerciais. Nesses casos, a reforma agrária apenas transferiu a terra da velha classe de proprietários de terras para a nova classe de capitalistas e assim ajudou o desenvolvimento capitalista.
O sistema de comunas, estabelecido em 1958, era a unidade política e administrativa que incorporava a organização econômica das cooperativas avançadas. No sistema de comunas, haviam três níveis de propriedade dos meios de produção – a comuna, a brigada e a equipe. As comunas tinham grandes instrumentos produtivos, incluindo os sistemas de irrigação e drenagem e estações de geração de energia elétrica, disponíveis para todos os membros das comunas. No próximo nível, a brigada de produção era dona dos instrumentos que todas as equipes poderiam usar, incluindo unidades de moagem, de serragem, etc. Além disso, começando em meado da década de 1960, ambas as comunas e as brigadas começaram a construir suas próprias unidades industriais que produziam uma variedade de produtos manufaturados. A equipe era a unidade administrativa básica em que o trabalho era distribuído aos membros e os seus pontos de trabalho (gong fen) eram registrados e pagos depois da dedução dos impostos, fundos de acumulação, fundos de bem-estar e cota de grãos. O fundo de acumulação era para o investimento em ferramentas agrícolas, maquinaria e equipamentos, o fundo de bem-estar era usado para ajudar as famílias que não tinham nenhum trabalho produtivo e cada membro da equipe (jovens ou velhos, produtivos ou improdutivos) tinha direito a certa quantidade de grãos, daí o termo cota de grãos. Durante o período entre 1958 e 1978, sob a liderança de Mao Zedong até a sua morte em 1976, as forças de classes que apoiavam a comuna (como um projeto socialista) promoviam políticas que favoreciam mais controle pelos produtores diretos e políticas que solidificavam a aliança entre operários e camponeses.
Sob o sistema de comunas, um membro jovem e forte da equipe, que fazia o trabalho mais cansativo e/ou o trabalho que exigia mais experiência e habilidades, ganharia no máximo 10 pontos de trabalho para cada dia trabalhado (um membro de equipe só poderia ganhar 10 pontos por dia se ela/ele também tivesse uma boa atitude de trabalho e fosse cooperativo com outros). Se trabalhasse 300 dias por ano, ganharia 3000 pontos de trabalho durante o ano. Outro membro mais velho e/ou mais fraco que fizesse trabalho menos cansativo ou que exigisse menos experiência e/ou habilidade, poderia ganhar apenas, digamos, seis pontos de trabalho por dia trabalhado; se essa pessoa trabalhasse 200 dias por ano, ele ou ela ganharia 1200 pontos de trabalho no ano. O número de pontos de trabalho por dia que cada membro ganhava era discutido e decidido por todos os membros da equipe durante seus encontros. Com esses pontos de trabalho, cada um tomava uma parte do lucro líquido (depois da dedução do fundo de acumulação, do fundo de bem-estar e da cota de grãos) da equipe. A proporção de um ponto de trabalho em dinheiro é calculada pelo lucro líquido (depois das deduções) da equipe dividido pelo número total de pontos de trabalho recebido por todos os membros da equipe. Membros da equipe recebiam parte dos seus pontos de trabalho em grãos e parte em dinheiro. A diferença no lucro recebido pelo trabalho do membro mais forte e do membro mais fraco da equipe era limitada a menos do que uma razão de três para um. Além disso, os membros jovens, velhos e fracos também eram apoiados pela equipe recebendo sua cota em grãos não relacionados ao trabalho. O projeto socialista eliminou os ganhos do trabalho não-produtivo e colocou um limite às desigualdades de renda. Em outras palavras, a quantidade de trabalho realizada e a intensidade do trabalho e/ou a experiência, habilidade e atitude dos trabalhadores determinavam a maior parte da distribuição dos produtos.
Os membros de equipe da comuna também tinham suas porções de terra privadas (um elemento capitalista) em que plantavam alguns vegetais, criavam algumas galinhas e um ou dois porcos para suplementar sua dieta ou vender esses produtos por dinheiro. O tamanho desses lotes privados era limitado e o pouco lucro que as famílias tinham de seus lotes privados vinha principalmente de seu próprio trabalho. No entanto, se o lote privado se expandisse sem limites (ver a discussão sobre “Três liberdade e um contrato” adiante), as vendas maiores dos lotes maiores davam às famílias dinheiro para comprar novos instrumentos de produção e assim a chance de ganhar um lucro maior no futuro com o aumento de suas vendas. Por outro lado, enquanto os camponeses pudessem ganhar mais com um dia de trabalho em seus lotes privados do que o equivalente em pontos de trabalho com um dia de trabalho em equipe, convencer eles a abrir mão dos seus lotes privados era difícil. Na altura de 1970, os lotes privados em algumas comunas bastante ricas começaram a desaparecer, porque as oficinas industriais construídas pelas brigadas e comunas durante o meio de 1960 começaram a prosperar e o valor proporcional dos pontos de trabalho aumentou como resultado. Esse aumento dos pontos de trabalho que os membros da equipe poderiam ganhar tornou trabalhar em seus lotes privados menos atrativo.
O sistema de comunas, um projeto socialista, beneficiou a maioria dos camponeses. Pela primeira vez em milhares de anos, a maior parte dos camponeses chineses tinha vidas seguras. Da cota de grãos garantida, eles tinham o suficiente para comer. Do dinheiro que ganhavam com os pontos de trabalho, compraram roupas, sapatos, toalhas, sabão, garrafas de água e outras necessidades da vida. Os seus filhos iam para a escola e tinham educação. Médicos rurais cuidavam das pequenas necessidades médicas, e haviam os hospitais da comuna ou regionais para as doenças mais sérias. Ainda que eles tivessem que pagar por alguns dos custos médicos das doenças mais sérias, esses custos eram baixos. Durante a semeadura da primavera, não tinham que se preocupar em comprar sementes e fertilizantes. O fundo de acumulação se responsabilizava pela substituição das ferramentas antigas por novas. No período da colheita, eles não tinham que se preocupar com a venda de suas plantações ou com preços de mercado flutuantes. As famílias que não tinham trabalho produtivo recebiam as cinco garantias mínimas, que eram comida, habitação, saúde, cuidados com os idosos e custos de funeral para os mortos. Durante os meses de inverno, quanto o trabalho de cultivo era pouco, as comunas organizavam seus membros para construir infraestrutura, como sistemas de irrigação e drenagem, estradas e estações de eletricidade. Eles também investiam o trabalho pesado na terra fazendo terraços, aterrando riachos, juntando pequenos lotes de terra para prepará-los para as máquinas agrícolas. Durante os anos 1970, as comunas respondiam ao chamado “aprender com o modelo de Dazhai”, e 80 milhões de camponeses participaram na construção de capital agrícola todo ano, acumulando um total de 8 bilhões de dias de trabalho na terra. Estimava-se que durante o início e o meado da década de 1970, 30% da força de trabalho rural total se dedicava ao investimento da terra e à construção de infraestrutura[6].
A renda que os camponeses recebiam no sistema de distribuição das comunas era basicamente para cobrir seu custo de vida: o fundo de acumulação já era deduzido do lucro total antes que fosse distribuído aos camponeses. O fundo de acumulação cuidava do investimento para o desenvolvimento em longo prazo. Quando os camponeses tinham mais lucro do que precisavam para os gastos diários, eles o usavam tanto como um fundo de emergência quanto para comprar objetos como bicicletas, máquinas de serra, relógios e rádios. No sistema de comunas, os camponeses tinham pouca ou nenhuma oportunidade de transformar suas poupanças em capital. Ainda que a maioria das comunas se mantivesse muito bem, havia um número significativo de comunas pobres. Essas comunas pobres tinham terras inférteis e estavam em áreas que tinham uma grande incidência de inundações ou secas. Havia pouco excedente a cada ano, então se podia investir pouco para expandir a produção. Essas comunas frequentemente tinham que contar com a ajuda do Estado, mas a ajuda do Estado era limitada. Na propriedade coletiva, a distribuição em uma equipe ou em uma brigada era igualitária, mas ao mesmo tempo as brigadas/comunas ricas ficavam mais ricas e as brigadas/comunas pobres ficavam mais pobres. As diferenças de renda se tornaram maiores depois do meado dos anos 1960, quando brigadas e comunas começaram a desenvolver suas próprias indústrias. As brigadas/comunas que tinham mais excedente conseguiam investi-lo em indústrias e com isso acumular ainda mais capital.
Essas brigadas/comunas também tinham a vantagem de uma boa localização em que haviam grandes estradas ou estradas de ferro. Assim, elas conseguiam vender os produtos industriais que produziam fora de suas zonas próximas. As comunas pobres normalmente tinham terra infértil e estavam localizadas em áreas em que o sistema de transporte era inadequado. Essa é a limitação da propriedade coletiva. Quando uma brigada prospera com a expansão de suas indústrias, os benefícios só alcançam os membros da brigada. A troca entre brigadas eram baseadas em trocas de valores iguais. Com isso, mesmo em uma comuna, havia brigadas ricas e pobres. A lei da troca igual também se aplicava à troca entre comunas. No fim de 1970, a proporção da renda entre comunas ricas e pobres podia ser até de dez para um. A propriedade coletiva não poderia resolver o problema de diferenças de renda cada vez maiores no interior. O Estado tentava moderar as desigualdades de renda com a ajuda estatal, mas a ajuda estatal às regiões pobres era limitada. A não ser que as unidades produtivas se expandissem, o desenvolvimento desigual se tornaria pior. Mao estava preocupado com a coexistência entre dois tipos de propriedade – a propriedade estatal e a propriedade coletiva, e ele estava bastante consciente da necessidade de resolver essa contradição antes que ela se tornasse pior.
B. Projetos socialistas no setor estatal[7]
Como explicamos anteriormente, a transferência legal dos meios de produção ao Estado em 1956 não pode ser usada para indicar o ponto de partida do socialismo. São as políticas depois da transferência legal que determinam se a transição é socialista ou capitalista. Baseado em políticas concretas, as empresas estatais entre 1956 e 1978 eram projetos socialistas. Durante esse período, o Estado tinha controle efetivo dessas empresas. Empresas individuais tinham a posse dos meios de produção, mas o estado efetivamente limitava essa posse pelo controle político. O Estado proibia certas empresas individuais de comprar e vender no mercado. O Estado, ao elaborar o planejamento econômico, determinava o que cada empresa produzia, incluindo as categorias de produtos e as quantidades de cada categoria. No planejamento econômico, o Estado determinava os “preços” dos produtos “vendidos” pela empresa ao Estado, assim como os “preços” das matérias-primas e da maquinaria que as empresas “compravam” do Estado. As empresas também recebiam fundos salariais do Estado, o que ia diretamente para o pagamento de salários e benefícios dos trabalhadores. No fim de cada ano, as empresas entregavam os “lucros” (“ganhos” menos “custos que excluem depreciação”). O Estado subsidiava as empresas que tinham “perdas”. Então, de acordo com o planejamento econômico, o Estado distribuía fundos para diferentes empresas para a compra de novas máquinas e equipamentos e/ou para a construção de novas instalações e fábricas para expandir a reprodução. Na China, o Estado podia impor essas limitações legais a empresas individuais; o Estado, de fato, dominava o uso da propriedade das empresas. Em outras palavras, o Estado tinha tanto a propriedade jurídica quanto o controle econômico dos meios de produção (a distinção entre propriedade jurídica e propriedade econômica é importante). Ainda assim, haviam elementos de capital privado nas empresas estatais. Até a Revolução Cultural, os capitalistas ainda recebiam dividendos fixados e ainda estavam envolvidos na administração das empresas estatais. No entanto, eles estavam sob um rígido controle estatal e com a expansão das empresas de propriedade estatal, a parte relativa do capital privado diminuiu significativamente.
As empresas estatais são projetos socialistas e a direção das empresas estatais era no sentido da superação da produção de mercadorias e do trabalho assalariado. Durante o período entre 1956 e 1978, a realidade econômica correspondia à limitação legal imposta às empresas. O Estado assumia das empresas (unidades de produção) a responsabilidade por seus “lucros” ou “perdas”. As empresas vendiam todos os seus produtos para o Estado a preços pré-estabelecidos, deixando assim pouco espaço para que os administradores em uma empresa estatal individual se envolvessem no processo de acumulação de valor. Quando projetos socialistas eram incorporados ao planejamento, se tornava possível mudar o propósito da produção, da acumulação de valor para a satisfação das necessidades populares. Ao mesmo tempo, o planejamento tornava possível desenvolver políticas econômicas que focalizavam no desenvolvimento geral de longo prazo. Em cada empresa individual os operários tinham direito a certos salários e benefícios. Os administradores nessas empresas recebiam o fundo salarial do Estado para cobrir suas despesas salariais totais mais os custos dos benefícios dos trabalhadores. A transferência de fundos salariais para os trabalhadores pelas empresas removia dos administradores de empresas a responsabilidade para suprir o pagamento de salários e benefícios com a sua renda, assim como o poder de extrair mais-valor dos trabalhadores. Os “preços” dos produtos e/ou investimentos não eram aplicados de acordo com seus valores e o sucesso ou fracasso de uma empresa não era julgado por seus “lucros” ou “perdas”. Ao contrário, padrões diferentes eram usados para medir o desempenho das empresas: esses padrões eram “quantidade, velocidade de produção, qualidade e economia de matéria-prima e trabalho”. A maioria das empresas estatais não apenas atingia os objetivos estabelecidos para esses padrões, mas tentavam exceder os objetivos e seus próprios recordes anteriores.
A propriedade estatal e a intervenção política tornaram possível para os administradores das empresas estatais se dissociarem da função de agentes do capital, e assim se tomou um passo no sentido da superação do trabalho assalariado. Os trabalhadores em empresas estatais tinham empregos permanentes, oito horas de trabalho diárias e uma escala salarial de oito níveis. Eles recebiam benefícios médicos, comida subsidiada, moradia e cuidados com suas crianças. Os trabalhadores também tinham direito a licenças de maternidade e doença pagas, pensões e outros benefícios com de aposentadoria. Para os trabalhadores de países capitalistas, custou muitos anos de uma luta frequentemente sangrenta conquistar direitos e benefícios semelhantes. Os trabalhadores chineses os conseguiram rapidamente pelo poder político do Estado.
No entanto, haviam contradições entre os trabalhadores e o Estado e os burocratas do partido. Os administradores de empresas estatais que tinham o poder e as responsabilidades de conduzir as operações diárias das empresas não podiam transformar seu poder em riquezas materiais para eles mesmos. Mais importante, os burocratas do Estado e do partido de nível superior que deveriam controlar os administradores das empresas estatais também estavam em posição de usar seu poder para beneficiar a si mesmos. Durante a transição socialista na China, essa contradição foi resolvida a cada vez pelos movimentos de massas. Antes que a reforma começasse em 1979, aqueles que estavam em posições de poder estavam bastante conscientes de que estavam sob os olhares vigilantes das massas.
Como dissemos antes, um projeto socialista não é algo com certas características fixas e imutáveis, pelo contrário, o projeto socialista tem que passar por mudanças básicas durante a transição para o socialismo/comunismo. Um projeto socialista como as empresas estatais instituídas em 1965 na China tinha o risco de se tornar uma instituição estabelecida se mudanças contínuas não fossem feitas no processo de produção (incluindo muitas regras de trabalho) no interior das empresas estatais. Em outras palavras, essas mudanças contínuas eram necessárias para alterar as relações de dominantes e dominados entre os administradores e os produtores diretos nas empresas estatais. É por isso que Mao Zedong considerava a implementação da Constituição de Anshan nas empresas estatais como especialmente importante (ver a discussão abaixo).
2. As características duplas dos projetos capitalistas e socialistas durante a transição socialista
Durante a transição socialista, pode ser necessário instituir projetos mais capitalistas em certas circunstâncias. A Nova Política Econômica (NEP) na União Soviética foi um bom exemplo. A NEP era um recuo necessário e deve ser reconhecido como tal. Assim, não se pode usar um único acontecimento ou política para determinar a direção geral da transição. De fato, durante a transição socialista, projetos capitalistas e projetos socialistas coexistem, e ao mesmo tempo os projetos capitalistas competem com os projetos socialistas.
Durante a transição socialista, pode ser necessário instituir alguns projetos capitalistas. Um exemplo, mencionado anteriormente, foi a reforma agrária. A reforma agrária era necessária antes da coletivização da agricultura. Desse modo, a reforma agrária foi um projeto capitalista com características duplas. Chamar um projeto de capitalista apenas indica o aspecto principal desse caráter duplo. Houve outros projetos capitalistas com características duplas. Mao fez um comentário sobre o capitalismo de Estado em julho de 1953. Mao disse que “a atual economia capitalista na China é uma economia capitalista que, na sua maior parte, está sob o controle do Governo Popular conectado com a economia socialista de propriedade do Estado e supervisionado pelos trabalhadores. Ela é não é um tipo normal, mas um tipo específico de economia capitalista, precisamente uma economia capitalista de Estado de novo tipo. Ela não existe principalmente para obter lucros para os capitalistas, mas para satisfazer as necessidades do povo e do Estado. É verdade que uma parte dos lucros produzidos pelos operários vai para os capitalistas, mas essa é apenas uma pequena parte, mais ou menos um quarto do total. Os três quartos restantes são produzidos para os operários (na forma de um fundo de bem-estar), para o Estado (na forma de impostos sobre o lucro) e para expandir a capacidade produtiva (uma pequena parte da qual produz lucro para os capitalistas). Assim, essa economia capitalista de Estado de um novo tipo assume um caráter socialista em grande parte e beneficia os operários e o Estado” [8].
O período entre o início da República Popular e 1978 foi um período de transição socialista durante o qual projetos socialistas competiam com projetos capitalistas. Como os projetos capitalistas, os projetos socialistas também tinham características duplas. O projeto socialista contém tanto elementos capitalistas quanto elementos comunistas. Dizer que um projeto é socialista apenas indica o aspecto principal dessas características duplas. Por exemplo, uma empresa estatal como um projeto socialista que ainda contém relações entre dominantes e dominados entre os administradores e produtores diretos, o que é um elemento capitalista. Durante a transição socialista, as mudanças têm que acontecer de maneira a superar esses elementos capitalistas. Além disso, até o fim do período de transição socialista a China ainda tinha dois tipos de propriedade, estatal e coletiva, e não era possível ainda ter uma distribuição de acordo com o trabalho em escala nacional. Era óbvio que o que um operário no setor estatal ganhava por uma hora de trabalho era muito mais do que um camponês ganhava com uma hora de trabalho. Os trabalhadores de estatais também recebiam muitos benefícios (médicos, educacionais, de férias, assistência infantil, pensões e outros) enquanto os camponeses não recebiam. Também haviam diferenças entre os camponeses de diferentes comunas. O valor de um ponto de trabalho (gong fen) em uma comunica rica (equipe, brigada) poderia ser muitas vezes o de uma comuna pobre (time, brigada). Havia também oito graus diferentes de escala salarial para os trabalhadores de estatais. Se a transição socialista tivesse continuado, os dois tipos de propriedade teriam que ser superados eventualmente para formar um único tipo de propriedade. Levaria muitos anos mais para distribuir os produtos de acordo com o trabalho em escala nacional. Quando a distribuição finalmente pudesse ser feita de acordo com o trabalho, ainda haveria o direito burguês – um elemento não comunista.
No entanto, já em 1958, os trabalhadores na China estavam ignorando o princípio da troca equivalente. Durante o Grande Salto Adiante, o povo chinês estava tão entusiasmado com as tarefas da construção de uma China socialista que trabalharam longas horas noite adentro e nunca questionavam se estavam recebendo o equivalente a seu trabalho. Com isso, foi possível haver elementos comunistas mesmo na fase inicial da transição socialista. Os camponeses em Dazhai e os operários em Daqing eram tidos como exemplos heróicos para que a nação aprendesse com eles. Sob a liderança de Chen Yung-Kuei, os camponeses de Dazhai superaram as condições mais difíceis e trabalharam longas horas sem descanso em um clima muito frio, planificando a terra e construindo irrigações para evitar enchentes e secas. A preocupação de calcular cuidadosamente quanto cada um ganharia por uma hora do seu trabalho não passava pelas suas cabeças. Os camponeses só se preocupavam em saber se o que faziam iria beneficiar a todos em Dazhai no longo prazo. Da mesma maneira, na Refinaria de Óleo de Daqing, os operários trabalhavam horas longas e pesadas para completar seus projetos e criaram o que pode ser considerado um milagre industrial. Eles estavam motivados por um objetivo maior e muito mais alto do que receber um pagamento equivalente para o seu trabalho. Mao considerava esses elementos comunistas possíveis através da transição socialista. Mao diminuía a importância do incentivo material ao trabalho. Liu e Deng, por outro lado, tratavam as duas fases (inicial e avançada) da transição como fases distintamente separadas uma da outra. Liu e Deng encaravam os eventos presentes na transição socialista como sendo prematuros para a fase inicial do comunismo. Em contraste com Mao, eles supervalorizavam o incentivo material ao trabalho e insistiam que os operários deveriam trabalhar duro apenas se fossem recompensados com bônus. Eles desconsideravam a possibilidade de qualquer elemento comunista durante a transição socialista.
Marx de fato dizia que haveria uma fase inicial e uma fase superior na transição do capitalismo ao comunismo. Cada fase tem certas características. No entanto, não pensamos que ele quis dizer que deveria haver uma divisão entre as fases como se elas fossem coisas diferentes. Por isso, existem tanto elementos capitalistas quanto elementos comunistas durante a transição socialista. Mao acreditava que tanto projetos capitalistas quanto projetos socialistas tinham características duplas. Por outro lado, Liu e Deng diziam que qualquer elemento comunista durante a fase inicial seria prematuro. Hoje se torna mais claro que o que Deng e seus apoiadores fizeram foi usar a “fase inicial do socialismo” e a ênfase que colocavam nos incentivos materiais como desculpas para expandir a produção de mercadorias e para instituir seus projetos capitalistas de modo a inverter a direção da transição.
3. Competição entre os projetos socialistas e os projetos capitalistas
A. Competição no setor coletivizado
Podemos usar a competição entre os projetos capitalistas e socialistas para analisar a situação do campo depois da revolução. A reforma agrária, como explicamos anteriormente, era um projeto capitalista, mas da perspectiva de Mao e dos que apoiavam a transição para o comunismo ela era também parte de uma estratégia socialista geral. No entanto, para Liu e Deng a reforma agrária era parte de sua estratégia capitalista geral. Isso explica porque desde o início alguns membros do Partido Comunista da China se opuseram fortemente à coletivização da agricultura e sua oposição continuou depois da formação das comunas populares. Seguindo essa linha de raciocínio, é fácil explicar porque o atual regime na China aplaude Mao como um herói nacional durante a guerra revolucionária e o retrata como um vilão desde o Grande Salto Adiante.
Ainda que a reforma agrária fosse um projeto capitalista, e maneira como ela foi executada fez diferença no desenvolvimento posterior. A reforma agrária na China não foi simplesmente uma política econômica de distribuição da terra, tomando os títulos de propriedade dos latifundiários e os distribuindo entre os camponeses. Pelo contrário, ela foi um movimento de massas por mudanças econômicas e ideológicas impulsionado pelo Partido Comunista da China. O PCCh mobilizou os camponeses pobres e médio-baixos e os organizou para tomar a terra dos latifundiários e expor seus crimes. O entusiasmo dos camponeses se espalhou por todo o campo – eles eram os atores principais da reforma agrária. A reforma agrária transformou camponeses passivos em participantes ativos, e em sua ação eles foram para além da reforma agrária na direção do movimento de cooperativas que se seguiu a ela. No movimento de massas da reforma agrária, como em qualquer outro movimento de massas, as massas tinham que ter clareza do que era o adversário. O adversário no movimento de reforma agrária organizado pelo Partido Comunista da China eram os latifundiários e alguns camponeses ricos. Ao longo da reforma agrária uma nova ideologia foi apropriada pelos camponeses. Ainda que os camponeses sempre tivessem experimentado a exploração e o sofrimento, a ideologia feudal – como a ideologia de qualquer sociedade de exploração – justificava essa exploração. O movimento de massas virou a antiga ideologia de cabeça para baixo e ao mesmo tempo se articulou e se apropriou de sua própria ideologia. A nova ideologia afirmava que era errado que os latifundiários e camponeses ricos tomassem os produtos do trabalho dos camponeses pobres e médio-baixos, e era errado que uns poucos privilegiados que tinham o poder escravizassem e abusassem da maioria desprivilegiada. Foi a tendência e a atmosfera que foram criados com a reforma agrária que encorajaram os camponeses pobres e médio-baixos a se expressarem pela primeira vez em suas vidas. Quando esses camponeses finalmente ousaram falar o que pensavam crimes graves cometidos pelos latifundiários foram expostos. A apropriação das terras mudou a relação dominantes/dominados entre os latifundiários e os camponeses, a nova ideologia transformou a relação senhor/servo entre os latifundiários e os camponeses. A participação de massas na reforma agrária deu aos camponeses sem terra o direito de corrigir erros antigos, acendeu seu entusiasmo e deu forças para que efetivassem a reforma agrária e muito mais. Por essa razão, concluímos que mesmo que a reforma agrária chinesa (1949-1952) tenha sido um projeto capitalista, a posição de classe do Partido Comunista da China era muito clara, assim como a direção da transição nesse momento histórico.
A coletivização da agricultura – das cooperativas básicas às comunas populares – possibilitou que os operários formassem e solidificassem sua aliança com os camponeses. Uma vez que a maioria da força de trabalho chinesa era camponesa, a aliança entre os operários e os camponeses era o fator decisivo para conquistar a vitória na luta contra a burguesia. Depois da reforma agrária ainda havia camponeses ricos, médio-altos, médios, médio-baixos e camponeses pobres. Sem o movimento de coletivização, com quem o proletariado poderia formar uma aliança? A polarização do campesinato depois da reforma agrária, se ela tivesse continuado, teria dado à burguesia uma chance excelente para formar a sua própria aliança com os camponeses ricos que tinham grãos excedentes e outros produtos para vender. Quanto o Estado assumiu o controle completo da compra e da venda de grãos e outras matérias-primas ao implementar o sistema de compras unificado em 1953, ele deu um passo importante para cortar a conexão entre os comerciantes de grãos nas cidades e os camponeses ricos no campo. Depois de 1953 os camponeses ricos no campo não tinham outra opção a não ser vender seus grãos excedentes e outras matérias-primas para o Estado em preços estabelecidos pelo próprio Estado. Essa política tornou impossível que os comerciantes e os camponeses ricos usassem o comércio de grãos e a especulação para enriquecer.
A reforma agrária foi uma revolução de tamanho impressionante, envolvendo centena de milhões de pessoas. Posto que a reforma agrária transformou a ordem social que existia por mais de três mil anos, ela se deparou com forte resistência daqueles que haviam perdido seus privilégios econômicos e políticos durante o processo[9]. Era uma luta política desde o início, e que só se tornava cada vez mais intensa na medida em que o movimento avançava. Quando os camponeses começaram a organizar equipes de ajuda mútua e depois cooperativas, era visível que os camponeses ricos e médio-altos que tinham (comparativamente) quantidades substanciais de terra e capital não teriam benefícios em se juntar às equipes ou cooperativas. Por outro lado, os camponeses pobres e médio-baixos, que eram a maioria da população rural chinesa, tinham poucos ou nenhum instrumento e apenas uma quantidade muito pequena de terra. Eles tinham muitas dificuldades na reprodução, e ainda mais em uma reprodução expandida. Em muitos casos esses camponeses tinham ou perdido suas terras ou poderiam perdê-las em caso de acidentes pessoais ou desastres naturais. Eles estavam ansiosos para encontrar uma alternativa. Tanto as equipes de ajuda mútua quanto as cooperativas básicas provaram que quando juntavam seus recursos, eles aumentavam a produção. Os camponeses médios que poderiam tomar qualquer uma das duas posições eram elementos cruciais para a organização das cooperativas. Os camponeses médios tinham um pouco de terra, alguns instrumentos produtivos e um ou dois trabalhadores fortes na família, de modo que poderiam se virar bem por si mesmos. Eles eram inspirados pela expectativa de se tornarem camponeses ricos. Ainda que os camponeses pobres e médio-baixos estivessem entusiasmados com a formação de coletivos, com seus poucos recursos eles enfrentaram dificuldades reais e poderiam não conseguir se estabelecer sozinhos. Eventualmente os camponeses médios foram ganhos quando viram os resultados da cooperação. Depois que os camponeses médios se juntaram às cooperativas, os camponeses ricos e médio-altos ficaram isolados. Ainda que os camponeses ricos e médio-altos tivessem mais terras e mais instrumentos de produção, com todos nas cooperativas eles não conseguiam ninguém para trabalhar para eles. Eles foram “forçados” a se juntar ao movimento. A formação das cooperativas foi a única maneira de bloquear o caminho para que os camponeses ricos e médio-altos se enriquecessem explorando o trabalho de outros.
Durante o movimento das cooperativas, Mao repetidamente lembrava os quadros que trabalhavam com a sua organização de se assegurarem que a direção das cooperativas permanecesse nas mãos dos camponeses pobres e médio-baixos que apoiavam o movimento de maneira mais forte[10]. Os camponeses ricos, que preferiam que o movimento de cooperativas entrasse em colapso, frequentemente trabalhavam para sabotá-lo, sempre que tinham a chance. Na verdade, é bastante notável que um movimento de cooperativas desse tipo e desse tamanho tenha sido levado adiante com tão pouco caos e tão pouco conflito. Além do fato de que esse movimento beneficiava tanto a maioria dos camponeses que ele tinha um apoio amplo, o crédito pelo sucesso deve ser dado à liderança do Partido Comunista da China e as centenas de milhares de quadros do partido nos níveis de base, nível de quadros que tinha acabado de lutar uma guerra revolucionária e não sabia quase nada sobre a organização de cooperativas (exceto por alguma experiência nas áreas liberadas anteriormente), mas que estavam muito afinados com as necessidades de seus companheiros camponeses. No entanto, a alta liderança do Partido Comunista da China estava profundamente dividida sobre a direção do desenvolvimento não só da agricultura chinesa, como do desenvolvimento geral.
No nível das cooperativas básicas, os camponeses ricos e médio-altos ainda tinham direito a uma parte do excedente produzido baseado nos instrumentos produtivos que possuíam. Quando as cooperativas progrediram para o nível avançado, elas compraram os instrumentos produtivos dos camponeses ricos e médio-altos. Como explicamos anteriormente, esse projeto socialista deu fim à distribuição dos produtos para as unidades domésticas que eram donas de capital. A distribuição nas cooperativas avançadas era feita apenas de acordo com o trabalho que se contribuía. Ao longo do processo de coletivização, as forças de classe que apoiavam esse projeto socialista liderado por Mao venceram. A estratégia de Mao era se apoiar nos camponeses pobres e médio-baixos e unir os camponeses médios. Sob a liderança de Mao, a linha de classe do Partido Comunista da China estava evidente.
Quando um projeto socialista, como as cooperativas avançadas ou as comunas, era instituído, era contra os interesses de certos elementos na sociedade. Quando o movimento de cooperativas progrediu para a fase avançada, aqueles que perderam foram claramente aqueles que tiveram que vender sua propriedade para as cooperativas. Esses camponeses mais abastados teriam ficado em melhor posição se tivesse sido permitido que ganhassem continuamente dividendos das suas propriedades, ao invés de serem pagos com uma soma total baseada em um preço “negociado” com a qual só concordaram de maneira relutante. Os que haviam ganhado com a progressão do movimento de cooperativas eram claramente a maioria dos camponeses que nunca tinham possuído nada além de um pequeno pedaço de terra e seu próprio trabalho. Incluída nessa maioria estavam aquelas famílias que não tinham nem mesmo nenhum trabalho produtivo. Esses eram os camponeses idosos sem filhos e viúvas com filhos jovens. Muitos deles haviam perdido seus entes queridos na guerra revolucionária. Mao estava muito preocupado com o nível de vida dessas pessoas, porque o Estado não estava em condições de auxiliar. Mao disse que cada cooperativa deveria poder “carregar” algumas dessas famílias[11]. Essas famílias não podiam contribuir para a “reserva”, mas tinham que comer da “reserva”. De um ponto de vista puramente egoísta, nenhuma cooperativa gostaria de “carregar” esse peso. De fato, elas tinham que ser, no espírito da cooperação, persuadidas a fazê-lo.
Pela análise acima, podemos ver que certas forças de classe ganharam e que outras forças de classe perderam durante o processo de coletivização. As forças de classe que perderam seus interesses não estavam preparadas para se render tranquilamente. Elas tinham que buscar seus próprios representantes e porta-vozes fosse no interior ou no exterior da estrutura de poder. Sobre a questão da coletivização, os oponentes de Mao no Partido Comunista reqetiam essas forças de classe e continuaram a lutar por seus projetos capitalistas mesmo depois do estabelecimento das comunas.
O esquema de “Três Liberdades e Um Contrato” foi um exemplo de um projeto capitalista no setor coletivizado. Liu e Deng apoiaram enfaticamente esse projeto capitalista desde o início das cooperativas avançadas e continuaram a defender esse projeto mesmo depois da formação das comunas. As três liberdades eram a liberdade: 1) de aumentar os lotes privados de terra, 2) de promover o livre mercado, 3) de cada unidade doméstica individual ser responsável por seus lucros e perdas. O “um contrato” era para que cada unidade doméstica assinasse um contrato com o Estado para a produção de uma quantidade pré-determinada de grãos. Depois que a quantidade pré-determinada fosse atingida, os camponeses estariam livres para vender todo o resto no mercado. Já em 1956, Liu e seus apoiadores defendiam fortemente as “três liberdades e um contrato” e, às vezes, as colocavam em prática à força. Aumentar os lotes privados encorajava os camponeses a dedicar mais trabalho e esforço às suas próprias terras. A promoção dos mercados facilitava a venda dos produtos dos lotes privados dos camponeses. Se as unidades domésticas individuais se tornassem responsáveis por suas próprias perdas e lucros, a unidade responsável passaria da equipe para a família. Esse incentivo material, de acordo com os defensores das “três liberdades e um contrato”, iria encorajar os camponeses a produzirem mais.
Sob o sistema de comunas, como mostramos anteriormente, as poupanças privadas não podiam ser convertidas em capital. A acumulação de capital era feita de maneira coletiva e não privada. O fundo de acumulação pertencia à equipe para que ela comprasse novos instrumentos produtivos que beneficiavam todos os membros da equipe. Se tivesse sido permitido que um projeto capitalista como “três liberdades e um contrato” fosse implementado e expandido, então, ao invés da equipe, cada família privada teria que se tornar a nova unidade de produção. Se uma família conseguisse ter lucros com a venda de seus produtos no livre mercado, ela poderia investi-los em novos instrumentos produtivos com os quais ela poderia ter ainda mais lucros. O projeto de “três liberdades e um contrato” promove a acumulação do capital privado que participa na distribuição dos produtos. Ao mesmo tempo, com esse projeto, as unidades domésticas com prejuízos iriam enfrentar o risco de perder tudo o que tinham. No que dizia respeito aos defensores desse projeto, essa seria uma boa maneira de se livrarem daqueles que não podiam produzir de maneira eficiente. A distribuição com as “três liberdades e um contrato” retornava ao estágio das cooperativas básicas, em que os proprietários do capital recebiam partes cada vez maiores dos produtos. Quando Liu e Deng avançaram para implementar as “três liberdades e um contrato”, eles apresentaram o projeto como se ele fosse apenas para aumentar a produção ao oferecer incentivos materiais às famílias camponesas individuais. O objetivo oculto desse projeto capitalista era inverter a direção do processo de transição do comunismo para o capitalismo.
Desde o início da coletivização da agricultura, os projetos capitalistas como “três liberdades e um contrato” competiam com a propriedade coletiva do sistema de comunas. Se os projetos capitalistas tivessem conseguido se desenvolver e se expandir durante os anos de 1950 e 1960, o sistema de comunas teria colapsado. Com a competição entre os projetos capitalista e socialista, os interesses de diferentes elementos de classe da sociedade foram revelados e articulados. O movimento de massas liderado por Mao e por aqueles a favor do desenvolvimento socialista defendiam os projetos socialistas. Durante cada um dos movimentos de massas, os interesses de forças de classe opostas eram revelados e articulados. Com a implementação de projetos socialistas ou capitalistas, certas forças de classe eram fortalecidas e outras classes se enfraqueciam. Ao mesmo tempo, as diferentes forças de classes se reproduziam.
O que Liu não conseguiu fazer anteriormente, Deng fez com sua reforma no campo duas décadas depois e foi muito além do projeto original. Entre 1979 e 1984, Deng deu vários passos para redistribuir terras para unidades domésticas camponesas individuais. Como na reforma agrária de 1949-1952, a redistribuição de terras de Deng era um projeto capitalista. O argumento que Deng e seus apoiadores deram para desfazer as comunas foi “comer de um pote grande aumenta a preguiça”. Enquanto pode ser que isso fosse verdade em um número pequeno de casos, Deng desfez todas as comunas com um golpe só, apesar do fato de que a maioria das comunas estava indo bem. A descoletivização no campo rompeu a aliança operária e camponesa que tinha sido a mais importante estratégia durante a transição. A redistribuição de terras de Deng foi executada junto de outros projetos capitalistas que ele e seus apoiadores instituíram como o desmonte do sistema de compras unificado, a privatização das fábricas rurais, a redução do apoio estatal à produção de maquinaria agrícola e outros insumos agrícolas, e eventualmente a privatização de empresas estatais e a substituição de trabalhadores públicos estáveis por trabalhadores contratados – todos são projetos capitalistas em uma estratégia capitalista geral. Esses projetos capitalistas deixaram absolutamente claro em que direção a reforma apontava. A estratégia capitalista de Deng revela a linha de classe de suas reformas. Suas reformas romperam deliberadamente a aliança operária e camponesa, e fortaleceram a aliança entre os capitalistas burocráticos e os “empreendedores” que eram ou oficiais do partido ou tinham uma ligação próxima com oficiais em altos cargos.
Precisamos dar um passo a mais para identificar os elementos de classe que apoiavam Deng quando ele começou suas reformas. Ainda que a maioria dos camponeses tivesse sido beneficiada com o sistema de comunas e tivessem condições de vida e segurança social melhores, uma minoria significativa não estava contente. Havia várias razões para o descontentamento. Em primeiro lugar, nas comunas muito pobres, os camponeses enfrentavam muitas dificuldades para aumentar a produção. A sua produção de grãos frequentemente era apenas o suficiente, ou nem tanto, para alimentar a todos, então muito pouco ou nada era deixado depois de entregar a cota de grãos. Nessas comunas, a distribuição não podia ser feita a cada um “de acordo com seu trabalho” (as comunas mais pobres normalmente dependiam de ajuda do Estado). Os membros fortes nessas comunas trabalhavam mais duro, mas não eram recompensados adequadamente. Isso criou um problema de incentivo para os membros mais fortes da equipe e da brigada.
Em segundo lugar, e mais importante, o apoio de Deng vinha das comunas mais prósperas em que havia excedentes substanciais e reprodução expandida. No fim dos anos 1960, muitas comunas e brigadas que tinham produzido excedentes na produção agrícola investiram em indústrias de manufatura. Em meados dos anos 1970, essas indústrias rurais prosperaram e essas brigadas e comunas conseguiram acelerar sua acumulação de capital. No entanto, naquele momento a regulação estatal restringia a acumulação de capital. Com a regulação estatal, as brigadas/comunas tinham que deixar de lado uma parte (mais ou menos um terço) de seus lucros com o desenvolvimento agrário e outra parte para o desenvolvimento da seguridade social antes que ela pudesse investir o lucro restante em indústrias. Além disso, as indústrias rurais não eram livres para competir com as indústrias estatais para adquirir matérias primas ou vender seus produtos. Essas contradições eram resultado da expansão das forças produtivas e não da sua estagnação, como disseram os que apoiavam as reformas. Como Mao havia advertido antes, novas contradições surgiriam se a coexistência dos dois tipos de propriedade – estatal e coletiva – durassem por muito tempo. As comunas que se tornaram prósperas com o desenvolvimento de suas indústrias também eram comunas que eram ricas na agricultura e tinham excedentes em grãos e outros produtos. A China precisava desses excedentes para as áreas mais pobres que não eram autossuficientes. Assim, no interesse do país como um todo, as comunas ricas não podiam abandonar sua agricultura. No entanto, para as comunas ricas, o seu retorno com o investimento em indústrias era muito maior do que o investimento na agricultura, e uma vez que as comunas eram propriedade coletiva, não era sempre fácil persuadi-las a sacrificar seus próprios interesses em favor dos interesses de todo o país.
Em terceiro lugar, quando a produção agrícola aumentou e as indústrias rurais se desenvolveram, os lucros das famílias em brigadas/comunas ricas aumentaram. Muitas dessas unidades domésticas camponesas tinham uma quantidade substancial de lucros, mas com as comunas essas famílias tinham poucas ou nenhuma oportunidade de transformar suas poupanças em capital. Essas famílias mais ricas lucrariam mais se pudessem colocar seus rendimentos em investimentos e ganhar mais com o capital. Além disso, camponeses que eram fisicamente mais fortes e/ou espertos em seus negócios sentiam que o sistema de pontos de trabalho os impedia de realizar todo o seu potencial. Em todos os casos acima, os membros mais fortes podiam ver como um projeto capitalista como “três liberdades e um contrato”, os beneficiaria.
Por último, o projeto capitalista beneficiaria especialmente aqueles que estavam em posições de poder para usarem seu poder em vantagem própria. Depois da Revolução Cultural, os camponeses vigiavam os quadros e os oficiais dos governos locais com muito cuidado. As massas avaliavam os que estavam no poder e os responsabilizavam por suas ações, fazendo com que fosse difícil que abusassem de seu poder. O desenvolvimento depois que Deng instituiu suas reformas mostra que os oficiais do governo e os quadros do partido de fato conseguiram transformar o poder que tinham em ganhos materiais para eles mesmos.
Quando Deng e seus apoiadores introduziram os projetos capitalistas eles apelaram para esses grupos e pediram seu apoio. Quando Deng implementou sua reforma depois de 1979, projetos capitalistas que não tinham conseguido ganhar força nas décadas anteriores foram revividos. Deng buscou seus apoiadores e, com a sua ajuda, implementou seus projetos capitalistas em grande escala, invertendo a direção da transição.
B. Competição no setor estatal
No setor estatal, o projeto socialista mais importante é a empresa estatal. O objetivo desse projeto socialista é proceder no sentido do comunismo, quando toda produção de mercadorias deixará de existir e quando os produtores diretos tiverem controle dos meios de produção. Assim, durante a transição socialista, políticas na empresa estatal devem promover cada vez mais a participação dos operários da produção na gestão da empresa e políticas de superação gradual da produção de mercadorias e do trabalho assalariado. Na empresa estatal o papel da gestão e o papel dos operários deve se tornar menos separado. O sistema de salários em empresas estatais deve refletir a quantidade de trabalho fornecida, e não o tamanho do capital. Por outro lado, a apropriação estatal não necessariamente significa relações de produção socialistas. Sob a propriedade estatal, projetos capitalistas podem se instituídos para promover relações de produção capitalistas. O projeto capitalista teria que expandir a produção de mercadorias e assim reforçar as relações de dominantes e dominados na produção. O propósito do projeto de produção capitalista seria a valorização e não a satisfação das necessidades populares. A produção de mercadorias sob o projeto capitalista deveria reproduzir o trabalho assalariado e a distribuição dos produtos de acordo com o tamanho do capital (constante e variável).
As experiências concretas da China mostraram que no interior da empresa estatal houve luta contínua entre os projetos socialistas e capitalistas. Os projetos socialistas e os projetos capitalistas competiam em questões como a autonomia das empresas, o estatuto do emprego dos trabalhadores do Estado, o sistema de salários e outras questões a respeito do controle operário. Essas questões refletem a natureza capitalista ou socialista da empresa estatal.
Se as empresas estatais ganhassem autonomia para administrar seus próprios negócios e seu desempenho e o pagamento do gestor estivessem ligados aos lucros ou prejuízos dessas empresas, essas empresas eventualmente acabariam funcionando de maneira muito parecida com as corporações capitalistas. Sobre a questão do emprego estável, ainda que o estatuto de emprego estável nas empresas estatais não garanta aos operários mais controle sobre os meios de produção, o contrário dessa política, o sistema de trabalho contratual, efetivamente negaria aos operários a oportunidade de conquistar qualquer controle dos meios de produção. Um sistema salarial que enfatizasse os incentivos materiais e a competição entre os operários por bônus extras provavelmente dividiria os operários e também daria aos gestores mais controle sobre os operários.
Antes do início das reformas em 1979, a escala salarial de oito graus para os operários estatais diferenciava o trabalho fornecido pelos trabalhadores apenas por sua experiência, anos de serviço e habilidades. Operários que faziam contribuições mais significativas para o aumento da produtividade por seu trabalho intenso, espírito de equipe e/ou inovações técnicas eram selecionados como operários modelo que recebiam prêmios e elogios, mas eles não recebiam nenhuma recompensa material direta, como salários maiores, bonificações ou promoções. Essa escala salarial limitava o grau de diferenças de renda. A eliminação do pagamento por peças e das bonificações retirou o poder dos gestores de usar incentivos materiais como uma ferramenta de divisão para induzir os operários a trabalharem mais e competir entre si. Quando o Estado subsidia comida, moradia, saúde, educação, transporte e outras necessidades básicas da vida, como ele fazia na China, os operários que recebiam o salário mais baixo na escala salarial conseguiam manter um padrão de vida satisfatório. De fato, quando as principais necessidades básicas eram subsidiadas a distribuição deu um passo além da distribuição “a cada um conforme seu trabalho”. A distribuição no setor estatal de 1958 a 1978 indicava que a reprodução da força de trabalho, a manutenção básica do trabalho e sua reprodução, tinha uma prioridade maior na produção e nas decisões de investimento no planejamento.
Durante o período de transição, os projetos capitalistas competiram com os projetos socialistas no setor estatal. Desde o início, a burguesia tinha seu próprio plano para instituir projetos capitalistas no setor estatal. Os projetos capitalistas, incluindo um sistema de trabalho contratual, implementados desde o início das reformas, não tiveram origem com os reformadores atuais. Já em 1950, Liu Shaoqi tinha começado a defender as vantagens de um sistema de trabalho contratual. Um ensaio do recentemente publicado Manual do Sistema de Trabalho Contratual revelou a história das tentativas de Liu para instituir contratos de trabalho temporários para os operários em fábricas estatais. O ensaio afirmava que em 1956 Liu enviou uma equipe para a União Soviética com o objetivo de estudar seu sistema de trabalho. Em seu retorno, a equipe propôs a adoção do sistema de trabalho contratual baseado no modelo que a União Soviética havia adotado. No entanto, quando as mudanças estavam para acontecer o Grande Salto Adiante começou, interrompendo a sua implementação. O ensaio continuava afirmando que no início dos anos 1960 Liu tentou novamente mudar o estatuto do emprego estável, adotando um “sistema de duas faixas”. No “sistema de duas faixas” as empresas poderiam empregar mais operários temporários e menos operários estáveis, e as minas poderiam empregar camponeses como operários temporários. Então, em 1956, o Conselho de estado anunciou uma nova regulação para o emprego de operários temporários, indicando que, ao invés de operários estáveis, mais operários temporários deveriam ser contratados. A regulação também dava às empresas individuais a autoridade de usar fundos salariais alocados para substituir operários estáveis por operários temporários. Mais uma vez, de acordo com o autor desse ensaio, a Revolução Cultural interrompeu o esforço de Liu para reformar o sistema trabalhista e, em 1971, grandes números de operários temporários ganharam a estabilidade[12]. Ainda que Liu não pudesse implementar completamente sua reforma trabalhista, ele tinha “projetos experimentais” aqui e ali e, antes do início da Revolução Cultural, empresas estatais já haviam contratado grandes números de operários temporários.
Em oposição às tentativas de Liu de instituir um sistema contratual, a Constituição de Anshan foi a tentativa mais séria feita para mudar a organização do trabalho e os processos de trabalho nos locais de trabalho. Os operários no Conglomerado Metalúrgico de Anshan assumiram a iniciativa de estabelecer novas regras para mudar as operações em seu local de trabalho. Em 22 de março de 1960, Mao afirmou que essas novas regras deveriam ser usadas como guias gerais para a operação das empresas estatais, e as chamou de Constituição de Anshan. A Constituição de Anshan contém os elementos mais básicos assim como os passos concretos para revolucionarizar a organização e o processo de trabalho das empresas estatais. A Constituição de Anshan tem cinco princípios: (1) colocar a política no comando; (2) fortalecer a liderança do partido; (3) lançar fortes movimentos de massas; (4) sistematicamente promover a participação dos quadros no trabalho produtivo e dos operários na gestão; e (5) reformar regras irracionais, garantir a cooperação entre operários, quadros e técnicos, e promover energicamente uma revolução técnica[13]. Os princípios da Constituição de Anshan representam um espírito que tende na direção de uma eventual supressão do trabalho assalariado.
No entanto, antes do início da Revolução Cultural, as fábricas só aderiam à Constituição de Anshan da boca para fora. Enquanto os gestores tinham um controle firme do processo de tomada de decisões na fábrica, eles não viam nenhuma necessidade de mudar. Por outro lado, os operários, que estavam satisfeitos em ter privilégios e benefícios garantidos pelo estado, assumiam que as condições de seu emprego e os benefícios estabelecidos estavam lá para ficar. A luta política no Partido Comunista da China pela direção da transição se refletia nas transformações nas fábricas e nas políticas de salário e emprego. Em vários momentos, políticas adotadas de cima para baixo pressionavam pela implementação do salário por peça e aumentavam o emprego de operários temporários. Então, normalmente durante os movimentos de massas, essas políticas eram criticadas e revertidas. Antes da Revolução Cultural, no entanto, os operários não compreendiam as razões para essas inversões na política. Eles não tinham consciência de que Liu havia feito várias tentativas para abolir o estatuto do emprego estável. Sem o Grande Salto Adiante e a Revolução Cultural, Liu e seus apoiadores poderiam ter tido sucesso em suas tentativas de revogar as leis que protegiam os empregados estatais. Se isso tivesse acontecido, o estatuto do emprego estável e outros benefícios oferecidos aos empregados teriam se tornado história há décadas. Quando os operários participaram dos movimentos de massas nos anos 1950 e 1960, a sua consciência de classe aumentou gradualmente; mas os operários não perceberam, até a Revolução Cultural – um período de intensa luta política nas fábricas e na sociedade em geral – que muitos problemas cruciais foram levantados. Os operários e quadros nas fábricas discutiam abertamente e debatiam muitas questões importantes como os incentivos materiais, a participação dos quadros no trabalho produtivo, a participação dos operários na gestão e as regras e regulasses das fábricas. Pela primeira vez, os operários nas empresas estatais chinesas compreenderam o significado de colocar a política no posto de comando e outros princípios da Constituição de Anshan.
O objetivo dos projetos capitalistas é o oposto do objetivo dos projetos socialistas e o método de implementação dos projetos capitalistas também é drasticamente diferente do método dos projetos socialistas. A implementação dos projetos capitalistas na reforma de Deng envolveu primeiramente estabelecer medidas jurídicas e então empurrar essas medidas de cima para baixo às unidades de produção individuais. Durante cada período da reforma, da descoletivização da agricultura à reforma das empresas estatais e trabalhista, uma legislação era aprovada pelo alto e então forçada à unidade de produção para que ela implementasse estes projetos capitalistas. Por outro lado, a implementação dos projetos socialistas entre 1949 e 1978 aconteceu através de movimentos de massas em que a vontade das massas era testada, verificada e articulada. Os movimentos de massas no passado criaram uma nova ideologia apropriada pelas massas. A implementação da reforma agrária que descrevemos acima é um bom exemplo. Enquanto é verdade que em ambos os períodos a implementação dos projetos enfatizava o papel da ideologia na transformação das relações de produção e, como tática, usava propaganda nos meios de comunicação, existem, no entanto, diferenças fundamentais. Durante o período anterior (antes do limite final) a expressão das massas era encorajada, enquanto a reforma de Deng impediu essa forma de expressão. Antes de 1978, os Quatro Da – Da min, Da fang, Da bianlun e Da zibao, ou seja, grande voz, grande abertura, grandes debates e grandes cartazes – eram formas concretas para essa expressão. Quando o grupo de Deng assumiu o aparelho de Estado e mudou a constituição em 1979, eles retiraram a garantia constitucional do direito das massas aos Quatro Da, assim como o direito dos operários à greve.
Depois que os reformadores instituíram políticas para descoletivizar a agricultura, eles avançaram para instituir mudanças fundamentais nas empresas estatais. Em 10 de maio de 1984, o Conselho de Estado instituiu uma regulação temporária para a ampliação da autonomia de empresas estatais individuais. Em 20 de outubro de 1985, o XII Congresso do Comitê Central do Partido Comunista da China aprovou uma legislação chamada Reforma da Estrutura Econômica. Essa legislação reafirma a regulação temporária anterior que garante aos gestores em empresas estatais a autonomia para administrar seus próprios negócios e permite que empresas individuais retenham parte dos seus lucros e possam reinvesti-los como acharem melhor. Os gestores também podem dispor de instalações produtivas não utilizadas para o aluguel, o empréstimo ou a venda. A gestão tem o direito de disciplinar (e inclusive de demitir) e promover operários e de escolher seu próprio sistema salarial. Essa legislação ainda afirmava que o Estado não interviria mais diretamente nos negócios de empresas individuais. Ao invés disso, o Estado (como o Estado capitalista no ocidente) apenas influenciaria a produção através de políticas indiretas, como políticas de preços, impostos, créditos e empréstimos[14]. O efeito dessa nova política significa que o Estado deu o primeiro passo no sentido de abolir sua apropriação legal e econômica dos meios de produção.
Sob a direção de Deng, os atuais reformadores primeiro começaram sua reforma trabalhista introduzindo incentivos materiais diretos no sistema salarial dos empregados estatais. Em 1950 o pagamento salarial por peça era bastante comum, mas foi abandonado durante o Grande Salto Adiante. O salário por peça foi novamente implementado no início dos anos 1960 e então totalmente abolido durante a Revolução Cultural. Como dissemos antes, de 1966 a 1979, os operários em empresas estatais eram pagos em um sistema salarial de oito níveis. A reforma salarial de Deng começou acrescentando bonificações aos salários regulares dos operários como incentivos materiais diretos, e em 1979-80 o pagamento de salários por peça foi reintroduzido[15]. Os reformadores acreditavam que esses incentivos iriam encorajar os trabalhadores a competir uns com os outros, aumentando, assim, a sua produtividade. Ainda que antes da reforma salarial, quadros e operários fossem pagos de acordo com diferentes níveis, a reforma salarial adicionou um novo elemento que liga a quantidade paga à posição que o indivíduo tem. Antes da reforma, os salários dos quadros só subiam quando eles progrediam de um nível inferior para um nível superior. Atualmente, a gestão de cada empresa estabeleceu posições como o presidente, o vice-presidente, o engenheiro sênior, etc., de acordo com o modelo das corporações capitalistas modernas, e cada posição dá direito a quem a ocupa a ter uma quantidade adicional de pagamentos adicionada ao seu salário regular. Essa mudança criou diferenças internas maiores nas empresas. Então, a Reforma da Estrutura Econômica em 1985 deu aos gestores a autonomia para estabelecer fundos para eles mesmos. O fundo discricionário funciona de maneira muito parecida como as contas de gastos no ocidente. Os operários repudiam o fundo discricionário dos gestores e o chamam de “pequena mina de ouro da administração”. A Reforma da Estrutura Econômica também deu aos gestores a autoridade de pagar a eles mesmos e/ou aos operários maiores salários com os lucros da empresa. Essa mudança na política destruiu a escala salarial de oito níveis inicial que garantia que os operários no mesmo grau recebessem o mesmo salário (com pequenas diferenças que refletiam as diferenças regionais no custo de vida) em todas as empresas estatais. Assim, a distribuição de acordo com o trabalho fornecido poderia ser implementada nacionalmente. A nova política permite que um operário em uma empresa lucrativa receba muitas vezes a renda de outro operário do mesmo nível em uma empresa que sofre prejuízo. No entanto, com cinco ou seis anos de reforma salarial, os reformadores perceberam que o incentivo material no novo sistema salarial não funcionou para aumentar a produtividade do trabalho. Muito pelo contrário, os aumentos de salário iniciais sem produtividade do trabalho correspondente eram parcialmente responsáveis pelo nível de inflação acelerado em meados dos anos 1980. Ao invés de competir pelas bonificações, os operários simplesmente dividiam as bonificações como pagamento extra para compensar pelos preços mais altos.
No fim de 1986, a Lei do Contrato de Trabalho foi aprovada. Essa nova lei fortalecia o poder jurídico dos gestores nas empresas estatais. Desde a aprovação da lei, todos os operários recém contratados devem assinar contratos com as empresas que os empregam. Os termos dos contratos são normalmente limitados há um ano. No fim do contrato, qualquer parte tem o direito de encerrá-lo de maneira unilateral (não renovável por mais um ano). Os reformadores esperavam que o reforço da nova lei fosse reduzir e eventualmente eliminar o estatuto do emprego estável para os empregados do Estado.
Então, em 13 de abril de 1988, a Lei Empresarial para Indústrias de Todo o Povo foi aprovada. Ela entrou em vigor em agosto desse mesmo ano. Na superfície, a Lei Empresarial é uma separação entre a propriedade e a gestão, mas a essência da reforma era uma transferência jurídica da propriedade do Estado para as empresas. A primeira seção da lei afirma: “As empresas têm garantidos os direitos de administração da propriedade estatal, tais direitos incluindo os direitos de posse, uso e disposição da propriedade. A empresa se torna uma entidade (pessoa) jurídica independente[16]. Com a aprovação da nova lei, antigas empresas estatais legalmente separadas do Estado se tornaram entidades independentes. A Lei Empresarial dá aos gestores de cada empresa a autonomia de tomar decisões importantes a respeito da produção, incluindo disciplinar e demitir trabalhadores. O direito de uso na legislação implica o direito de apropriação das empresas individuais, incluindo o desembolso de salários[17]. Quando o Estado entrega seus próprios direitos de propriedade em empresas individuais, ele não emprega mais os operários nessas empresas. Depois da aprovação da Lei Empresarial, os operários das antigas empresas estatais perderam a proteção jurídica do Estado: eles não têm mais os direitos e benefícios que eram legalmente garantidos.
4. Produção de mercadorias e lei do valor durante a transição socialista
A transição socialista é um período de tempo em que a produção de mercadorias irá gradualmente desaparecer junto com o trabalho assalariado e o capital. Isso quer dizer que durante a transição socialista a produção de mercadorias ainda existe e a lei do valor ainda funciona. Em um país como a China, o baixo nível de desenvolvimento, especialmente no campo, apresentava problemas e desafios especiais durante a transição da produção de mercadorias para uma produção não-mercantil. Com o avanço das forças produtivas nos anos 1960 e 1970, novas contradições se desenvolveram. Iremos explicar essas contradições no que segue.
No setor estatal, era muito mais fácil aplicar restrições à produção de mercadorias e implementar políticas que iam contra à lei do valor. Anteriormente, explicamos que a implementação dos projetos socialistas no setor estatal tornou possível que cada unidade de produção (uma empresa) mudasse o objetivo da produção da valorização do valor para a produção de produtos úteis de modo a satisfazer as necessidades do povo. No projeto socialista, o Estado (e não a unidade de produção) era proprietário dos meios de produção, e isso queria dizer que a troca entre diferentes unidades de produção não era mais baseada em uma troca de valores equivalentes. Por exemplo, quanto o Estado decidiu industrializar as províncias do Oeste, ele realocou engenheiros e operários assim como maquinaria e equipamentos das fábricas tecnologicamente avançadas de Shanghai para as fábricas novas no Oeste. O Estado não teve que compensar as fábricas de Shanghai por sua perda de recursos. Quando o Estado transferiu tecnologia e outros recursos produtivos de uma empresa estatal para outra, ele conseguiu dispersar a tecnologia de uma área como Shanghai para áreas tecnologicamente atrasadas em toda a China. Isso foi na realidade descrito pelas pessoas como “ter uma velha galinha dando ovos em todos os lugares.
A transferência de recursos de áreas mais desenvolvidas para áreas menos desenvolvidas beneficiou o país como um todo, e foi contrária à lei do valor. Essas transferências de recursos não poderiam ter sido feitas em um desenvolvimento capitalista, porque seguindo a lei do valor os recursos se destinam apenas às áreas que podem render altas taxas de lucro. No entanto, quando operários e engenheiros foram transferidos de uma área de alto padrão de vida como Shanghai para uma área de um padrão de vida inferior como Xian, isso envolvia sacrifícios pessoais. Durante o tempo da maré alta revolucionária, as pessoas davam um apoio entusiástico no espírito de construir uma nova China socialista. Isso exemplifica o que dissemos antes sobre elementos comunistas existirem durante a transição socialista. No entanto, quando a maré baixou, a resistência às transferências também aumentou. Assim, os diferentes níveis de desenvolvimento apresentaram desafios para o desenvolvimento socialista. O desenvolvimento capitalista, por outro lado, só poderia aumentar essas diferenças, como o desenvolvimento nos últimos dezesseis anos mostrou.
Durante a transição socialista, houve outras contradições no setor estatal. Nós explicamos antes que havia a contradição entre os gestores e os geridos e a entre os especialistas técnicos, como engenheiros, e os operários comuns. A Constituição de Anshan foi uma maneira concreta de resolver essas contradições que resultavam da divisão do trabalho no interior das empresas estatais. No entanto, a divisão do trabalho nessas empresas refletia a divisão existente na sociedade como um todo. Posteriormente, explicaremos como a reforma educacional durante a Revolução Cultural tentou resolver essas contradições.
Em certa medida, durante a transição socialista, também foi possível que o Estado influenciasse o desenvolvimento no setor coletivizado pelos preços, investimentos e políticas fiscais. A experiência da China mostrou que a troca entre o setor estatal e o setor coletivizado não tinha que seguir estritamente a lei do valor. Na verdade, as políticas de preços, investimentos e impostos foram usadas deliberadamente para ajudar o desenvolvimento das forças produtivas na agricultura, solidificando, assim, a aliança operária e camponesa. Quando Mao escreveu “Sobre as Dez Grandes Relações” em abril de 1956, ele colocava “a relação entre a indústria pesada, por um lado, e a indústria leve e a agricultura, por outro” como a primeira dessas dez. Na discussão, Mao enfatizava a importância da agricultura e da indústria leve, e ele citava os problemas graves tanto na União Soviética quanto nos países do leste europeu que resultaram de sua ênfase unilateral na indústria pesada e de sua negligência em relação à indústria leve e a agricultura. Mao foi muito claro ao escrever as “Dez Grandes Relações”, dizendo que para realizar um maior desenvolvimento da indústria leve e da agricultura o investimento nelas em relação ao total deveria ser ajustado para cima[18]. Do Segundo Plano Quinquenal (começando em 1957) até 1978, o investimento foi ajustado de maneira que o investimento agrícola como porcentual do investimento total fosse aumentado. O Estado também expandiu a produção de insumos agrícolas alocando mais investimentos nas indústrias que produziam fertilizantes, pesticidas e máquinas para a agricultura. Além disso, o Estado reduziu sua dependência orçamentária na agricultura ao reduzir os impostos agrários como porcentual da receita total do Estado. Durante o mesmo período, o Estado também aumentou gradualmente seus gastos na agricultura, tanto em quantidade absoluta quanto em relação a seus gastos totais. O Estado também fez ajustes para melhorar os termos do comércio para os produtos agrícolas reduzindo os preços dos produtos industriais vendidos para as comunas e ao mesmo tempo aumentando os preços dos produtos agrícolas comprados delas. O preço dos insumos agrários, assim como os preços dos bens de consumo que os camponeses pagavam (em quantidades de trigo), baixaram regularmente durante as duas décadas entre 1958 e 1978. Como resultado dessas políticas, o setor agrícola foi capaz de mecanizar sua produção e se expandir rapidamente (ver as estatísticas nas Tabelas 1 e 2 no Apêndice).
No entanto, uma vez que a produção de mercadorias ainda existia e a lei do valor ainda operava, o Estado não podia ter influências ilimitadas. Na troca entre os dois setores, o Estado precisava reconhecer a existência da lei do valor e fazer uso dela através dos preços mencionados acima, mas ele não podia ignorá-la completamente. Mao disse que ao invés de seguir a lei do valor cegamente em um sistema capitalista, o Estado poderia usar a lei do valor em sua vantagem[19]. Mao usou o exemplo da produção de porcos para ilustrar esse ponto. Ele disse que a produção de porcos na China não era regulada pela alta ou baixa dos preços do mercado (ou pela oferta e demanda) – ao contrário, ela era decidida de acordo com um plano econômico. Em outras palavras, o plano econômico, e não a lei do valor regulava a produção de porcos. No entanto, para que o povo na cidade tivesse carne de porco para comer, os camponeses tinham que criar certo número de porcos todo ano. Quando o Estado estabelecia o preço que pagava aos camponeses pelos porcos e o preço da comida que ele vendia para os camponeses, ele devia ajustar os preços de ambos para fazer com que fosse vantajoso para os camponeses criar porcos. Se o preço dos porcos fosse colocado muito baixo e/ou o preço dos alimentos fosse muito alto, os camponeses simplesmente se recusariam a criar porcos.
Durante os anos iniciais das comunas, grande parte da produção (depois de pagos os impostos para o Estado) era consumida pelos membros da comuna, e os excedentes eram então vendidos ao Estado. Com os lucros recebidos com as vendas, as equipes/brigadas/comunas compravam de empresas estatais os produtos industriais de que precisavam para a produção e o consumo. Uma vez que não muito do que produziam era para a venda, a produção de mercadoria no setor coletivizado era bastante limitada. Na medida em que as forças produtivas se desenvolviam, no entanto, a produção de mercadorias no setor coletivizado aumentou tanto em termos absolutos quanto relativos. A expansão da produção de mercadorias no setor coletivizado apresentava novos problemas e novos desafios. Como nossas análises anteriores mostraram as brigadas e comunas que conseguiram construir indústrias estavam ansiosas para aumentar sua produção industrial e para vender seus produtos em troca de lucros. Essas brigadas e comunas eram produtoras de mercadorias, e assim a sua produção era regulada pela lei do valor. Isso queria dizer que essas brigadas e comunas queriam acelerar sua acumulação de capital aumentando seus investimentos nas indústrias mais lucrativas. Elas não receberam bem as restrições colocadas em seus investimentos pelo Estado.
Pela análise acima, podemos ver que havia muitas contradições na sociedade chinesa durante a transição socialista. Contradições existiam tanto no setor coletivizado quanto no estatal, e elas existiam entre o setor coletivizado e o setor estatal. No entanto, de acordo com Mao, não devemos olhar apenas para os aspectos negativos das contradições, porque as contradições são também as forças que movem as sociedades adiante[20]. Podemos entender inteiramente o que Mao disse quando estudamos o desenvolvimento da sociedade chinesa. As contradições existiam em cada fase do desenvolvimento, e quando as contradições foram resolvidas de maneira adequada, o desenvolvimento se moveu para uma nova fase. Apesar disso, em meados dos anos 1970, o rápido desenvolvimento das forças produtivas no campo e a expansão da produção de mercadorias no setor coletivizado criaram novas contradições. Essas contradições não eram de natureza antagônica e poderiam ter sido resolvidas adequadamente, se não tivesse havido uma luta dura entre forças de classe pró-socialistas e pró-capitalistas. No entanto, quando a saúde de Mao mudou para pior nos anos 1970, as forças de classe pró-socialistas ficaram sem liderança em sua luta contra as forças pró-capitalistas e na implementação apropriada de políticas para resolver as contradições mencionadas. Essas contradições mais tarde se transformaram de não antagônicas em antagônicas. Essa transformação ajudou Deng na implementação de seus projetos capitalistas.
Quando examinamos as contradições no interior e entre os setores estatal e coletivizado, podemos ver que essas contradições refletiam as diferenças nos níveis de desenvolvimento no interior e entre esses setores. Durante a transição socialista, houve várias políticas importantes que foram elaboradas para resolver essas contradições. Não entraremos em uma discussão detalhada de todas essas políticas, mas queremos apenas mencionar brevemente algumas. Por exemplo, as políticas de preços, investimento e tarifação mencionadas acima foram políticas que tinham o objetivo de resolver as contradições entre o setor estatal e o setor coletivizado. Se a transição socialista tivesse continuado, essas políticas teriam ajudado a avançar ainda mais a mecanização da agricultura. Se esse tivesse sido o caso, teria sido possível elevar a unidade administrativa das equipes para as brigadas e depois para a comuna. Já que a brigada tinha cada vez mais maquinaria agrícola de grande porte para que todas as equipes usassem, cada equipe na brigada estaria mais disposta a abrir mão de sua unidade administrativa mais restrita. Quando a produtividade do trabalho coletivo tivesse se tornado alta o suficiente (uma quantidade maior por cada ponto de trabalho) pela mecanização, um projeto capitalista como as “três liberdades e um contrato” se tornaria menos atraente para as famílias camponesas.
Isso não quer dizer que apenas esses elementos capitalistas tiveram grande influência na China durante a transição socialista. Pelo contrário, elementos comunistas como o que aconteceu em Dazhai e em muitos outros lugares tiveram uma tremenda influência no desenvolvimento chinês. Sob a direção de Chen Yung-Kuei, o povo em Dazhai subordinou seus próprios interesses individuais de curto prazo e trabalhou junto como uma brigada para superar as maiores adversidades naturais e aumentar a produção (no início) apenas com ferramentas bastante primitivas. Nos anos 1970, durante o movimento de “aprender com Dazhai”, muitas outras brigadas e comunas no espírito da cooperação e do trabalho duro realizaram trabalhos de preparação da terra e de construção de infraestrutura massivos. Seu trabalho duro praticamente transformou a paisagem rural da China e abriu o caminho para mais uma fase de mecanização. Como dissemos anteriormente, durante a transição socialista tanto elementos comunistas (como Dazhai, Daqing e dezenas de milhares de outros exemplos) e elementos capitalistas (a produção de mercadorias e a lei do valor) existiam ao mesmo tempo.
A reforma educacional durante a Revolução Cultural foi outro exemplo de políticas elaboradas para resolver as contradições na sociedade chinesa. O sistema educacional na China tinha uma longa tradição em educar uma pequena elite intelectual que subestimava o trabalho manual. Depois da revolução, ainda que fosse verdade que muitos jovens de famílias operárias e camponesas conseguiram ter mais educação e que muitos conseguiram até mesmo a oportunidade de chegar à universidade, a estrutura educacional básica permanecia mais ou menos a mesma. Antes da Revolução Cultural, as universidades continuaram a selecionar estudantes com base na pontuação nos exames de admissão e os graduados universitários continuaram a ser um pequeno (comparado com a população total) grupo de elite que deveria fazer o trabalho intelectual para os operários e camponeses. A divisão do trabalho nas fábricas refletia o resultado desse velho sistema educacional. Durante a Revolução Cultural a reforma educacional, por um lado, mudou os critérios de escolha para a admissão nas faculdades de maneira que apenas os jovens que tivessem trabalhado em fábricas ou em campos poderiam ser admitidos. Por outro lado, ela aumentou o nível da educação no campo quando escolas fundamentais foram estabelecidas nas comunas e escolas de ensino médio nas províncias. Além disso, os jovens nas cidades eram mandados para o campo para trabalhar com os camponeses, de modo que poderiam experimentar a vida dura dos outros 80% da população chinesa. A reforma educacional ajudou a superar as lacunas educacionais entre a juventude chinesa. Haviam muitos outros aspectos da reforma educacional que não podemos abordar nesse momento.
Outras políticas importantes durante a transição socialista na China incluíram a política que enfatizavam contar com as próprias forças e objetivos de desenvolvimento em longo prazo. Esses objetivos só poderiam ser buscados com a implementação de projetos socialistas. Em oposição a esses objetivos, os programas da reforma de Deng se focavam apenas em maximização dos lucros em curto prazo e negligenciavam totalmente as consequências negativas do desenvolvimento capitalista e da dominação do capital estrangeiro em longo prazo.
5. O Partido Comunista da China
Durante a transição socialista anterior a 1978, as forças de classe que favoreciam a transição capitalista nunca deixaram de tentar impor projetos capitalistas. Essas forças de classe normalmente encontravam seus representantes em posições de poder no Partido Comunista da China. Como aconteceu na China, os elementos pró-capitalistas no Partido Comunista da China eventualmente assumiram o controle do partido e do aparelho de Estado. Na China, a luta de classes que aconteceu desde o início da República Popular até o momento atual é revelada pela competição entre os projetos socialistas e capitalistas. Foram os elementos pró-capitalistas no Partido Comunista da China que impulsionaram os projetos capitalistas. Os elementos de classe do PCCh desde sua formação merecem ser cuidadosamente estudados em outro lugar. Nós apenas tentaremos apresentar aqui algumas de nossas observações; assim, o que segue não é um estudo amplo do PCCh.
A. A direção no Partido Comunista da China e a Revolução de Nova Democracia
Em primeiro lugar, a revolução chinesa dirigida pelo Partido Comunista da China incluía tanto uma revolução democrática quanto uma revolução socialista. Quando Mao escreveu sobre a Revolução de Nova Democracia em 1940, ele explicou a diferença entre a nova e a velha revolução democrática. A diferença era que ainda que ambas tivessem o objetivo de derrubar o antigo sistema feudal e seu sistema de propriedade fundiária, o objetivo final da nova revolução democrática era atingir o comunismo. Portanto, só o Partido Comunista da China, como a vanguarda do proletariado, poderia levar a revolução ao seu sucesso.
A reforma agrária era o principal programa da revolução democrática de 1911 dirigida por Sun Yat-Sen do Partido Nacionalista (KMT-Kuomintang). O objetivo dessa (velha) revolução democrática era apenas destruir o feudalismo, mas eventualmente ela deu errado. Uma grande razão para esse fracasso era que a China tinha uma burguesia muito fraca que não poderia fornecer a liderança necessária para a revolução democrática. O Partido Nacionalista, mais tarde dirigido por Chiang Kai-Shek, traiu a revolução ao se aliar com a classe de senhores de terras e o capital estrangeiro. A capitulação de Chiang para os senhores de terras e o capital estrangeiro, assim como a corrupção no interior do KMT, não deixaram esperança para muitos jovens intelectuais que queriam sinceramente reformar a China. A única alternativa restante para essa juventude patriótica era o Partido Comunista. Muitos deles se juntaram ao PCCh. Durante a guerra conta o Japão, grandes números desses jovens foram para Yenan demonstrar seu apoio ao PCCh.
Muitos membros do Partido Comunista da China no nível de direção não compreendiam totalmente ou concordavam com a análise de Mao da nova revolução democrática. Eles pensavam que a revolução na China era dividida em duas fases distintas: a fase democrática e a fase socialista. Alguns membros do PCCh (liderados por Liu Shaoqi e Deng Xiaoping) apoiaram a primeira fase da revolução, mas eram contra a segunda. Então, quando a reforma agrária foi concluída, esses membros do partido comunista claramente viram a oportunidade para um maior desenvolvimento no sentido do capitalismo. Assim, eles apoiaram a reforma agrária, mas se opuseram fortemente à progressão da reforma agrária para a coletivização da agricultura. Para disfarçar a sua oposição a esse projeto socialista, eles afirmavam que a coletivização estava colocando a transformação das relações de produção muito à frente do desenvolvimento das forças produtivas. Eles argumentavam que as forças produtivas tinham que ser desenvolvidas primeiro, para que a mecanização viesse antes da coletivização (mas explicamos anteriormente que depois da reforma agrária, a maior parte dos camponeses teve problemas em levar adiante até mesmo uma reprodução simples, ainda mais qualquer reprodução expandida). Esses membros do partido continuaram a se opor aos projetos socialistas tanto nos setores estatais quanto coletivizados impulsionando seus projetos capitalistas (como explicamos antes).
De acordo com Mao, no entanto, essas duas fases (a democrática e a socialista) da revolução não poderiam e não deveriam ser separadas de maneira tão clara. Essa foi a razão para que ela fosse chamada de nova revolução democrática. O objetivo da nova democracia era no sentido do comunismo e assim ela deveria ser dirigida pelo proletariado, enquanto objetivo da velha revolução democrática era estabelecer o capitalismo. De acordo com Mao, ainda que houvessem duas fases na nova revolução democrática, as duas fases não deveriam ser tratadas como se fosse duas entidades separadas. O desenvolvimento na primeira fase deveria preparar o desenvolvimento da segunda fase. O objetivo da luta durante a primeira fase não deveria se limitar apenas à realização da revolução democrática, mas deveria também levar adiante a luta pela revolução socialista. Mao explicou isso claramente quando discordou da interpretação da Revolução Chinesa no Economia Política: um manual dos soviéticos. O manual dizia que a natureza da Revolução Chinesa logo depois do estabelecimento da República Popular era democrática. Mao respondia, “Durante a Guerra de Libertação, a China resolveu as tarefas da revolução democrática […]. Levou mais três anos (depois de 1949) para concluir a reforma agrária, mas no momento em que a República foi fundada, nós imediatamente expropriamos as empresas do capitalismo burocrático – 80% dos investimentos fixos de nossa indústria e transporte – e os convertemos em propriedades de todo o povo”. Ele continuava afirmando, “Mas seria errado pensar que depois da libertação de todo o país a revolução em sua fase inicial tem apenas o caráter de uma revolução democrático-burguesa e que só depois ela gradualmente se desenvolveria em uma revolução socialista[21]. Apesar disso, alguns líderes do PCCh discordavam de Mao. Desde o início, Liu e Deng tinham seus próprios planos para um desenvolvimento capitalista.
B. O papel do Partido Comunista em uma sociedade pós-revolucionária
A história mostra que os partidos marxistas-leninistas conquistaram muitas vitórias na tomada do poder de Estado durante os últimos 80 anos. Um exemplo após o outro demonstraram o partido comunista como vanguarda do proletariado, efetivamente organizando a classe trabalhadora e as massas no desenvolvimento da luta armada e da tomada do poder de Estado. No momento da revolução, o objetivo desses partidos comunistas era desenvolver primeiro uma sociedade socialista e eventualmente comunista. No entanto, a história também mostra que um caso depois do outro, em certo momento depois que o partido comunista tomou o poder, o partido se voltou contra o interesse de classe do proletariado e mudou a direção da transição, se invertendo do comunismo para o capitalismo. O Partido Comunista da China não foi uma exceção. Não estamos tentando oferecer uma análise completa da transformação do PCCh depois da revolução aqui; ao invés disso, esperamos esclarecer alguns pontos importantes.
Para cada uma das revoluções passadas, depois que o partido comunista tomou o poder, ele teve dois papéis: 1) permanecer no poder e administrar os aparelhos de Estado, e 2) agir como vanguarda do proletariado. Esses são os dois lados de uma contradição. O partido comunista tem que se manter no poder para agir como vanguarda do proletariado, mas para agir como vanguarda do proletariado o partido comunista também tem que continuar a ceder o seu poder. Por muitas razões que ainda devem ser exploradas, nos países que fizeram revoluções, um após o outro, em algum momento se manter no poder se tornou o único objetivo do partido comunista. Quando o partido comunista não agia mais como o agente da mudança, a ligação entre o proletariado e o partido comunista era rompida. Quando isso acontecia, o partido comunista começava a usar a ditadura do proletariado para justificar a ditadura do partido comunista. No entanto, era necessário um processo de desenvolvimento para chegar a este ponto. A experiência concreta da China pode lançar alguma luz nessa discussão.
Ao longo desse texto, tentamos identificar as razões para o revisionismo na China. Acreditamos que por causa da direção de Mao Zedong na defesa da teoria de prática revolucionárias, a China subiu alguns degraus a mais em sua luta contra o revisionismo. Desde o início, Mao tinha uma perspectiva sobre a sociedade chinesa pós-revolucionária e o papel do Partido Comunista da China nela era muito diferente do defendido por seu principal oponente, Liu Shaoqi. Depois da nacionalização dos meios de produção, Liu pensava que a principal contradição era a luta entre o “sistema social avançado” (ou seja, a propriedade estatal dos meios de produção) e as “forças produtivas sociais atrasadas” [22]. Liu acreditava que depois da transferência jurídica da propriedade dos meios de produção ao Estado, a mudança nas relações de produção estava completa e que a principal tarefa do PCCh era desenvolver as forças produtivas. Mao, por outro lado, acreditava que mesmo que os meios de produção tivessem sido transferidos ao Estado, as transformações nas relações de produção estavam longe de estarem completas. Além disso, havia também os problemas na superestrutura. Essas duas análises fundamentalmente diferentes da sociedade chinesa se refletiam em como Mao e Liu encaravam o papel do Partido Comunista da China.
Da perspectiva de Liu, a principal tarefa do PCCh era o desenvolvimento das forças produtivas. Ele acreditava que o PCCh deveria criar um ambiente estável para o crescimento econômico e deveria se apoiar na experiência do pequeno número de tecnocratas chineses para cumprir a tarefa. Para garantir o espírito do comunismo, no entanto, os membros do PCCh precisavam se purificar seguindo os mesmos códigos morais de comportamento, tal como foram estabelecidos pelo livro de Liu Como ser um bom comunista. Mao, por outro lado, encarava o entusiasmo das massas como a principal força motora por trás das transformações reais nas relações de produção e na superestrutura. Novas mudanças nas relações de produção e na superestrutura libertariam as forças potenciais das massas. O entusiasmo das massas, e não o conhecimento técnico de um pequeno grupo de elite era a chave para o avanço das forças produtivas. A história prova que Mao estava certo. Mao também viu que a credibilidade do PCCh dependia de sua ligação próxima com as massas, e que os membros do PCCh não deveriam ser um grupo de elite e se colocarem acima das massas. Ao invés disso, eles tinham que se submeter às críticas das massas.
Dessas claras diferenças nos dois pontos de vista, podemos compreender que Mao via o papel do Partido Comunista da China como o de um agente para novas transformações fundamentais na sociedade chinesa, mas Liu via a construção de uma China forte como a principal tarefa do Partido Comunista da China. É claro que não havia nenhuma dúvida de que a China deveria ser forte tanto militar quanto economicamente para se defender dos imperialistas, mas a discussão era sobre como conseguir isso e se a construção de uma China forte era o único objetivo. Para retornar ao que acabamos de dizer, Mao nunca viu o papel do PCCh como a perpetuação de seu próprio poder; pelo contrário, o PCCh deveria continuar a dirigir na transição para o comunismo e apenas na medida em que fizesse isso poderia afirmar ser a vanguarda do proletariado.
C. A base material da burocracia
Além disso, há a questão da burocracia. Qualquer um que esteja familiarizado com o desenvolvimento da China desde a revolução compreende que a burocracia se tornou um contrapeso para a mudança. Para se fazer qualquer coisa, se tem que atravessar níveis e mais níveis burocráticos para conseguir aprovação. Assim, a questão da burocracia e a sua relação com o PCCh exigem nossa atenção. Muitos culparam o longo passado feudal da China pelo problema. Nós, é claro, também vemos a influência da ideologia feudal nos oficiais do governo e no povo em geral, mas essa ideologia atrasada foi sustentada por uma nova base material depois que o Partido Comunista da China tomou o poder. Há uma diferença entre a atitude e o estilo de trabalho feudais dos líderes e a rede burocrática construída com as novas bases materiais do poder. Podemos ver a diferença ao comparar a situação antes e depois que o PCCh tomou o poder.
Durante a guerra revolucionária, quando o PCCh dirigia os camponeses e operários para combater o KMT e os japoneses, Mao escrevia artigos para criticar o estilo de liderança dos quadros. Mao viu a influência da velha ideologia, dos velhos costumes e hábitos sobre os quadros e o problema da burocracia. Ele também viu que a nova liderança do PCCh precisava passar por algumas mudanças básicas e drásticas para compreender as massas. Mao repetidamente reforçou que era importante que os quadros compreendessem as massas, aprendessem com elas e se preocupassem com o seu bem-estar. Durante as décadas da guerra revolucionária, assistimos ao nascimento de um novo tipo de quadros completamente diferentes dos antigos oficiais corruptos do KMT. Esses quadros tinham princípios muito sólidos e eram disciplinados. Muitos deles vinham das fileiras de operários e camponeses e mantinham ligações próximas com o povo trabalhador e os dirigiram durante a revolução. A velha ideologia, os hábitos e costumes feudais tinham influências sobre esses quadros, mas eles eram capazes de mudar seu modo de pensar e sua visão de mundo pela crítica e autocrítica.
Durante a guerra revolucionária, a sobrevivência e a expansão do PCCh dependia de sua relação próxima com as massas. Mao disse que os soldados revolucionários eram como peixes e as massas eram como a água de que os peixes precisavam para nadar e sobreviver. De fato, os camponeses protegeram os soldados da Oitava Divisão dos ataques do KMT e abasteceram os soldados com grãos e outras necessidades. Os camponeses sabiam que esses soldados vinham do mesmo lugar que eles e estavam lutando por sua libertação. Só com o apoio das massas foi possível para os comunistas avançar na guerra de guerrilhas e vencer a revolução.
Depois de tomar o poder em 1949, o PCCh estabeleceu a República Popular da China, que confiscou o capital burocrático do KMT e nacionalizou 80% dos insumos produtivos na indústria, mineração, transportes e comunicação. O novo governo tinha que contar apenas com as dezenas de milhares de burocratas para garantir a operação diária de administrar um país. A rede administrativa incluía os diferentes níveis da burocracia estatal, os ministérios, as secretarias, os departamentos, etc. Sob a liderança dos quadros do partido, as unidades administrativas tiveram que usar muitos ex-oficiais de governo do KMT que eram notórios por sua corrupção e abuso de poder. As massas conheciam há muito tempo a sua corrupção e tinham uma forte indignação com esses oficiais. Além disso, no início dos anos 1950 houve casos relatados de corrupção e desperdício entre oficiais de nível superior do partido. Mao estava bastante preocupado, porque ele via que, se isso continuasse os oficiais do partido que tinham acabado de provar o poder real poderiam facilmente se tornar novos burocratas que abusariam de seu poder. O PCCh tinha um prestígio tão alto que seus membros poderiam ter tantos privilégios quanto aqueles que tinham tomado o poder e estabelecido novas dinastias na longa história feudal da China. Foi então que o PCCh, sob a direção de Mao, iniciou a campanha dos movimentos dos três-anti e depois dos cinco-anti (explicaremos mais sobre esses movimentos na seção D, adiante). Os movimentos dos três-anti e dos cinco-anti foram importantes não apenas porque uma limpeza total era necessária, mas também porque esses movimentos foram tentativas de criar laços entre o PCCh e as massas.
Durante a revolução, a maioria esmagadora das pessoas que escolheram se juntar ao PCCh não estavam motivadas por interesses próprios. Não havia nenhuma vantagem pessoal em se juntar ao partido, e quanto maior a sua posição, mais responsabilidades e sacrifícios você teria que suportar. A situação depois de 1949 mudou completamente. A posição de alguém no partido determinava o poder real da posição que essa mesma pessoa tinha nos aparelhos de Estado. A maquinaria do Estado tinha o poder político, econômico e militar. O poder econômico do Estado em uma economia planificada significa um controle quase total dos recursos econômicos pelos administradores estatais. A Comissão de Planejamento do Estado tinha o poder de dirigir os recursos materiais e humanos aos diferentes setores da economia assim como no interior de um mesmo setor. A comissão de planejamento estava encarregada dos fundos de acumulação, o que de fato era mais-valor. A autoridade de se apropriar de mais-valor significava o poder de determinar onde os investimentos e a reprodução expandida deveriam acontecer. Os gestores das empresas tinham o controle dos recursos em uma escala menor, mas também substancia. Ligados ao poder econômico estavam o poder político e o poder militar.
Além disso, a concentração de poder foi reforçada por um processo de seleção de modo que os burocratas nos níveis superiores eram ao mesmo tempo quadros do partido de nível superior. O PCCh usou esse sistema de quadros para preencher posições nos aparelhos de Estado. Esse sistema conectado tinha a habilidade se reproduzir a si mesmo. De fato, os aparelhos de Estado, o PCCh e o sistema de quadros formaram essa relação de dependência e sustentação mútua entre eles.
Ainda que os quadros do PCCh antes e depois de 1949 fossem influenciados pela velha ideologia, os velhos costumes do passado feudal, a diferença era que depois de 1949 os quadros do partido e os administradores do Estado estavam em posições de poder. Com isso, eles tinham novas bases materiais para construir um novo sistema de burocracia. Portanto, não podemos simplesmente culpar o passado feudal pelo problema da burocracia. Depois de 1949, o Partido Comunista da China não dependia mais (pelo menos não no curto prazo) do apoio das massas; ao invés disso, ele tinha o poder de controlar as massas. Queremos reforçar aqui que não queremos dizer que o PCCh não usou bem esse poder durante o período da transição socialista entre 1949 e 1978. Pelo contrário, o PCCh usou esse bem esse poder e liderou a China em sua transição ao socialismo. Os registros mostram que apenas uma minoria muito pequena dos oficiais do partido (e do governo) abusaram de seu poder. No entanto, a ligação entre o PCCh e a base de poder existia objetivamente, mesmo que a maioria dos quadros ainda tivesse princípios corretos e fosse disciplinada. Assim, o perigo potencial estava definitivamente lá, a não ser que o poder pudesse ser questionado. Isso mostra porque os movimentos de massas defendidos e dirigidos por Mao foram tão importantes.
D. Os movimentos de massas – A estratégia de Mao para a transformação
Sob a direção de Mao Zedong, a China teve uma experiência única durante a transição socialista: o PCCh impulsionou uma série de movimentos de massas durante o período entre 1949 e 1978. Todas as principais mudanças durante esse período foram acompanhadas de movimentos de massas. Cada movimento de massas refletia a contradição principal daquele momento na sociedade chinesa, e cada movimento foi um processo para resolver essa contradição. Quando o PCCh mobilizou os movimentos de massas para resolver essas contradições, ele agiu como o agente para uma mudança contínua na transformação da sociedade.
Anteriormente explicamos o movimento de massas durante a reforma agrária e como o movimento transformou a população camponesa da China. Na última seção, explicamos a significação dos movimentos dos três-anti e dos cinco-anti (de novembro de 1951 a março de 1952). O movimento dos três-anti atacou a corrupção, o desperdício e a burocracia. O movimento mobilizou todos os níveis do pessoal de governo e amplas massas em muitas cidades para expor o suborno e outras formas de corrupção. Aqueles que tinham cometido crimes foram devidamente punidos de acordo com a gravidade de seus crimes. Entre os que foram punidos estavam dois oficiais do partido de nível superior que desviaram grandes quantidades de dinheiro público ganhando grandes propinas com contratos de construção pública e outros acordos. Apesar de suas altas posições e contribuições anterior durante a revolução, eles não receberam proteção do governo e foram ambos executados[23].
Uma vez que a corrupção pública não podia ser cometida sem a participação de capitalistas privados, o movimento dos três-anti também expôs a colaboração entre oficiais do governo e o setor privado no roubo de propriedade pública e outros crimes econômicos. Alguns capitalistas privados aproveitaram a oportunidade da Guerra da Coréia para fazer lucros ilegais fraudando contratos públicos; eles conseguiram subornar oficiais do governo e conseguir o que queriam. Imediatamente depois do movimento dos três-anti, o partido lançou o movimento dos cinco-anti e atacou o suborno, a evasão fiscal, o roubo de propriedade estatal, a fraude nos contratos do governo e o roubo de informação econômica[24]. Essas campanhas eram necessárias e oportunas para estabelecer uma clara ruptura com o passado na medida em que o capital privado logo deveria se juntar às empresas estatais, demandando uma cooperação mais próxima entre os burocratas do Estado e os capitalistas privados. Nesse ponto, a contradição entre o povo chinês e os oficiais corruptos e capitalistas que não seguiam as leis do Estado era a contradição principal. Não era possível prosseguir com a nacionalização até que essa contradição fosse resolvida.
Além do movimento de massas, Mao também via a comunicação da linha de massas como uma maneira de manter uma relação entre o partido e as massas. A linha de massas reforçava a importância das opiniões expressas pelas massas quando as políticas a respeito delas estavam sendo implementadas. Ela também reforçava a participação das massas na construção dessas políticas. Na China, através da prática da linha de massas, novos modos de comunicação entre as autoridades e as massas foram criados. Por exemplo, esses modos de comunicação incluíam métodos como “três acima e três abaixo” e “das massas, para as massas”. Esses métodos enfatizavam a importância de ideias e opiniões vindas das massas. Eles eram maneiras práticas de solicitar e articular as opiniões e ideias através de uma comunicação recíproca entre as autoridades e as massas. Outro método envolvia a implementação de projetos experimentais para testar a viabilidade de certas políticas. Os projetos experimentais eram também maneiras de testar o que as massas queriam e quais os problemas que elas experimentavam. Para se manter em contato com as massas, os quadros também eram encorajados a permanecer em contato com elas por diferentes períodos de tempo. Isso era chamado de Dun Dian. Durante o Dun Dian os quadros poderiam fazer observações locais e de primeira mão e conduzir pesquisas profundas. Os resultados obtidos assim ajudariam o PCCh nas suas análises da sociedade e na determinação da contradição principal no momento. As políticas para resolvê-las poderiam, assim, ser formuladas. Com esses modos de comunicação era possível descobrir se uma política determinada tinha o apoio das massas e, assim, as bases materiais para o sucesso. Na realidade, no entanto, a prática da linha de massas de maneira nenhuma era sempre ideal como se descrevia. Ao invés de solicitar ideias e opiniões das massas, os quadros às vezes se viam como implementando ideias superiores. Esse tipo de atitude e de prática dos quadros colocava barreiras de comunicação entre as autoridades e as massas e reforçava o mandonismo e a burocracia.
Se os quadros seguiam a linha de massas ou não poderia ser verificado durante os movimentos de massas. Os movimentos de massas forneciam um espaço de discussão aberto em que as massas poderiam expressar suas opiniões e seus descontentamentos, criticando os membros do partido por qualquer tipo de erro ou abuso de poder. A participação nos movimentos de massas aumentava a consciência dos operários e camponeses e gerava uma nova ideologia. As principais políticas implementadas durante a transição socialista foram acompanhadas de movimentos de massas em que novas ideias eram difundidas e questões importantes debatidas. Se tais políticas de fato promoviam os interesses das massas, as massas eventualmente iriam adotá-las. Os movimentos de massas no passado ofereceram a oportunidade para que o governo buscasse a aprovação de suas políticas pelas massas. As políticas aprovadas dessa maneira tinham chances melhores de ter sucesso. Os movimentos de massas também mobilizavam o entusiasmo das massas e fortaleciam os que eram a favor da política.
Pensamos que movimentos de massas impulsionados pelo partido no poder são uma coisa incomum, porque as autoridades normalmente temem não apenas que esses movimentos podem acabar em caos, mas também que as massas em ação podem atacar as próprias autoridades. Além disso, pensamos que os movimentos de massas no passado foram apenas forças de oposição que desafiaram a concentração de poder nos aparelhos de Estado (e no partido) assim como a rigidez estrutural do sistema burocrático chinês. Durante os movimentos de massas, os quadros eram expostos a críticas das massas e eram forçados a corrigir seu estilo burocrático de direção. Em grande medida, o abuso de poder foi contido. No entanto, antes da Revolução Cultural, todos os movimentos de massas foram impulsionados e organizados pelo PCCh. Foi apenas durante a Revolução Cultural que jovens estudantes e as massas começaram a se organizar por si mesmos. Ao invés de esperar que o PCCh desse a direção ao movimento, muitas iniciativas vieram de baixo, do nível da base. Foi durante a Revolução Cultural que a “tomada do poder” foi mencionada pela primeira vez. Palavras de ordem como “a revolução não é crime, rebelar-se é justo” foram amplamente publicizadas. Essa mudança no foco foi muito importante, porque ela era uma admissão aberta, pela primeira vez, de que as massas tinham o direito de contestar aqueles que estavam no poder. Era verdade que esse fermento revolucionário criou certa quantidade de caos e algumas pessoas foram punidas injustamente. No entanto, o mais importante era que as massas aprendessem com essa experiência que elas poderiam desafiar não apenas alguns oficiais corruptos no governo, como no passado, mas também as decisões tomadas pelo Comitê central do PCCh. A imagem divina do PCCh, que não poderia cometer erro nenhum, foi destruída dessa maneira. Durante a Revolução Cultural, foram feitas tentativas de buscar uma alternativa à estrutura de poder existente. Um exemplo foi o estabelecimento de Comitês Revolucionários para gerir as fábricas e outras funções administrativas. Por razões que ainda devem ser analisadas, essas tentativas falharam. Quando abordamos a Revolução Cultural do ponto de vista do proletariado, o que a Revolução Cultural conquistou é muito maior do que o que ela não conseguiu conquistar. Como Mao disse, “serão necessárias muitas Revoluções Culturais mais para terminar a tarefa”. Assim, a revolução continua.
Quando Deng e seus apoiadores tomaram o poder em 1979, eles decididamente pressionaram pela implementação de um conjunto de projetos que se encaixava melhor na estrutura geral da reforma. Esses projetos, todos de natureza capitalista, foram executados pelos reformadores com o decreto de leis e a declaração de decretos e ordens administrativas. Em 1979, os reformadores emendaram a constituição e aboliram o direito dos trabalhadores à greve e o direito à liberdade de expressão (ver a discussão anterior). Antes, os reformadores passaram a Lei do Contrato de Trabalho para abolir legalmente o sistema de emprego estável nas empresas estatais[25]. Todos os programas da reforma de Deng foram executados pela imposição de uma ação legal (ou ilegal) às massas de cima para baixo. Os reformadores proibiram os movimentos de massas de qualquer tipo. A reforma de Deng criou muitas novas contradições na sociedade chinesa. Acima de tudo, a contradição entre os burocratas do partido e as massas se apresentava como a principal. Sem um movimento de massas, essas contradições não tinham meios de expressão e muito menos de resolução. Na primavera de 1989, essas contradições atingiram um nível tal em que os estudantes começaram a se manifestar nas maiores cidades da China. Muitos milhões de moradores das cidades também se juntaram para expressar seu descontentamento e manifestar suas demandas. O povo na China estava seguindo sua longa tradição de usar movimentos de massas para exprimir seu descontentamento, a única diferença desse momento sendo que eles fizeram isso de maneira espontânea e sem o impulsionamento do partido. Quando o então regime chinês decidiu que uma confrontação direta com essas não poderia mais ser tolerada, ele mobilizou as tropas e acabou com tudo com o massacre de Tiananmen em 4 de junho. Hoje, sete anos depois do massacre, o abuso de poder e os privilégios dos burocratas, que foram os principais alvos das manifestações, não apenas continuaram como se tornaram ainda maiores. Ainda que a propaganda nos jornais tenha anunciado repetidamente que aqueles que cometeram crimes econômicos seriam devidamente punidos pela lei, o povo da China sabe bem que apenas os que cometeram crimes menores foram processados, porque nesses casos os culpados não tinham apoio dos níveis superiores. Por outro lado, muitos casos de corrupção envolvendo o desvio de bilhões (de Renminbi) em fundos públicos foram acobertados, porque os culpados nesses casos tinham relações com oficiais superiores do PCCh. Sem um movimento de massas, não há meio de expor os crimes cometidos por esses oficiais superiores.
Pensamos que aqueles que possuem poder têm oportunidades de se enriquecer seguindo o atual regime. Essa oportunidade existia objetivamente no passado, apesar de muitos quadros aceitarem a ideologia de “servir ao povo” ou de “servir a seu país” e não gostarem da ideia de “enriquecerem a si mesmos”. No fim, a posição social objetiva foi mais importante do que a crença social. Antes que a reforma começasse, a tendência a converter essa concentração de poder em algo útil para aqueles que a possuíam já existia. A reforma de Deng deu aos que detinham o poder a luz verde. A sua reforma jurídica legitimou a conversão de propriedade estatal em capital burocrático. Depois da reforma, os burocratas nos níveis nacional e provinciais estavam apenas mais no controle do mais-valor; eles usaram o excedente para expandir seu capital burocrático. Assim, esses burocratas se tornaram, de fato, a classe exploradora. Olhando para trás, quando Mao designou um pequeno número de membros superiores do partido como inimigos durante a Revolução Cultural, ele pode ter feito isso deliberadamente como uma tática para isolar os líderes maiores do campo Liu-Deng.
E. Novas forças revolucionárias poderiam ser revividas no Partido Comunista da China?
Antes de abordarmos essa questão, temos que fazer um breve resumo das quatro observações que fizemos acima sobre o PCCh e relacioná-las com as análises gerais desse texto. Parece claro que com o término da reforma agrária, a alta liderança do PCCh se dividiu em relação a que direção a China deveria tomar no desenvolvimento de sua sociedade. No interior do PCCh, Mao e seus seguidores escolheram o socialismo como objetivo da transição chinesa, enquanto Liu e Deng e seus seguidores escolheram o capitalismo como o objetivo da transição chinesa. Olhando em retrospectiva, parece claro agora que a maioria dos líderes superiores do PCCh não compreendeu integralmente o sentido da transição socialista ou o que deveria ser feito para chegar ao comunismo. Quando Liu e Deng tentaram implementar seus projetos capitalistas, eles os disfarçaram como uma maneira melhor de chegar ao socialismo, porque afirmaram que esses projetos desenvolveriam mais rapidamente as forças produtivas. No interior da sua lógica, o desenvolvimento das forças produtivas iria ajudar a construir uma China forte para defender o socialismo. Como dissemos antes, muitos dirigentes comunistas se juntaram à revolução porque viam o PCCh como a única esperança para a sobrevivência da China. Assim, construir uma China forte tinha um grande apelo para eles. A maioria dos membros na base do partido confiava na liderança de Mao e seguiu as políticas do PCCh na reforma agrária e no movimento de coletivização que a seguiu.
Ao longo de toda a grande e dura luta da guerra revolucionária, os operários e camponeses passaram a confiar no PCCh e em seu dirigente, Mao Zedong. A sua confiança era dupla: em primeiro lugar, o PCCh estava do seu lado; em segundo, o PCCh tinha a estratégia correta para liderá-los em sua libertação. Essa confiança continuou depois do estabelecimento do governo popular em 1949. Eles escolheram seguir a liderança do PCCh na construção de um país socialista. Eles não tinham percebido, no entanto, até a Revolução Cultural que a alta direção do PCCh estava dividida.
Durante a transição socialista, os projetos socialistas beneficiaram os operários e a maioria dos camponeses, e foram implementados com seu apoio. O PCCh sob a direção de Mao impulsionou movimentos de massas para solicitar apoio aos operários e camponeses. A estratégia de Mao para a aliança operária e camponesa ajudou a consolidar seu apoio à linha proletária. Pensamos que a linha proletária dominou de 1949 a 1978 não porque a maioria dos oficiais do partido nos níveis superiores do PCCh a apoiava, mas porque Mao, um grupo pequeno, mas forte que o apoiava na direção do PCCh e a maioria dos membros na base do partido continuaram a chamar as massas em seu apoio para os projetos socialistas. Se isso está correto, então é discutível que possamos dizer que durante a transição socialista havia uma ditadura do proletariado. Em todo esse período, em muitas vezes Liu e Deng conseguiram fazer avançar seus projetos capitalistas com seus apoiadores no PCCh (também uma minoria), mas apenas para ver seus projetos destruídos durante todos os movimentos de massas.
Em nossa análise anterior do desenvolvimento da burocracia na China, discutimos a nova base material da burocracia depois que o PCCh tomou o poder. Os membros superiores do partido que eram também quadros superiores e gestores superiores na maquinaria do Estado tiveram uma imensa quantidade de poder desde o início da República Popular. Até 1978, o seu poder era limitado, em grande medida, pelos movimentos de massas recorrentes. A maioria desses líderes partidários não abusava de seu poder. Eles, como um grupo, com a ajuda dos quadros médios e inferiores, contribuíram em grande medida para a administração do país e da produção. No entanto, sua posição como funcionários do Estado que tinham o poder à sua disposição limitou sua visão de mundo. Eles viam a administração tranquila do país, a manutenção de altos níveis na produção das empresas estatais e garantir o abastecimento de alimentos e outras necessidades como o seu dever para com o socialismo. A sua ideia do socialismo era de que uma vez que os meios de produção fossem transferidos para o Estado e para os coletivos, a transição ao socialismo estava completa. Eles normalmente não compreendiam a necessidade de continuar a transformação. Assim, eles tiveram um papel importante na manutenção da estabilidade e na perpetuação da hierarquia de funcionários nos diferentes níveis do governo. Além disso, eles normalmente se opunham a mudanças, como se pensassem que essas mudanças ameaçavam sua base de poder. Durante a Revolução Cultural, alguns deles estavam sendo criticados por sua falta de cooperação na implementação das novas políticas. Foi dito que eles “se deitavam e se fingiam de mortos” quando resistiam à implementação de políticas de que não gostavam. Mao também criticou os oficiais superiores no Departamento de Saúde Pública por se transformarem nos mandarins dos velhos tempos que não tinham mais contato com os problemas da saúde pública da população em geral.
Foi a Revolução Cultural que colocou a linha proletária e a linha burguesa em uma oposição evidente. A maioria dos operários e camponeses e dos membros de base do partido tinha acabado de começar a compreender a diferença entre os projetos socialistas defendidos por Mao com os movimentos de massas e os projetos capitalistas defendidos por Liu e Deng de cima para baixo. Durante os 16 anos da reforma de Deng, a maioria dos operários e camponeses, com suas lutas contínuas contra os projetos capitalistas que eram impostos pelos reformadores, chegaram a compreender muito mais a verdadeira natureza da reforma de Deng e a apreciar o que tinham perdido. Isso é evidente pelo amor e pelo respeito que têm expressado por Mao nos anos recentes.
Hoje parece claro, em retrospectiva, que durante a Revolução Cultural Mao era a minoria na direção do PCCh. Como dissemos antes, a Revolução Cultural fez tentativas de encontrar uma alternativa para a estrutura de poder que existia no PCCh e na maquinaria do Estado, mas ela não conseguiu. Na medida em que a Revolução Cultural progrediu, a maioria dos membros superiores do partido viu sua base de poder ameaçada, e assim não a apoiou. Também parece claro, agora, que a reforma de Deng desde1979 teve o apoio da elite superior do PCCh. No início da reforma de Deng, membros superiores do partido que eram comprometidos com a linha proletária (Chen Yung-Kuei foi um exemplo) foram expulsos do PCCh. O apoio de Deng veio de uma aliança de diferentes grupos que encontraram um interesse comum nos projetos capitalistas da reforma de Deng. Apenas com seu apoio a reforma de Deng, claramente contrária aos interesses dos operários e camponeses, conseguiu ir tão longe. Essa coalizão tirou vantagem das contradições que havia se desenvolvido em meados dos anos 1970 (ver a explicação anterior) e pediram o apoio daqueles que poderiam ganhar com a implementação de projetos capitalistas. Durante os 16 anos da reforma de Deng, as contradições na sociedade chinesa se tornaram maiores. A principal contradição hoje é entre as amplas massas e os oficiais superiores corruptos do partido/governo que se enriqueceram roubando do povo e vendendo os interesses da China ao capital monopolista estrangeiro. No processo de implementar a reforma de Deng, diferenças se desenvolveram no interior da aliança que apoiou Deng. À direita de Deng estavam aqueles que pensavam que a reforma não era profunda ou rápida o suficiente para transformar a China em um país capitalista. Eles usaram a insatisfação dos estudantes e das massas para exprimir suas próprias exigências em 1989, mas sem sucesso. Durante os últimos anos, quando a reforma de Deng encontrou dificuldades insuperáveis, elites do partido à esquerda de Deng começaram a exprimir suas preocupações; essas elites do partido veem o perigo de uma deterioração contínua da reputação e da influência do PCCh. Por um lado, eles percebem que o PCCh perdeu o apoio das massas; por outro lado, eles veem que a propriedade privada e os empreendimentos conjuntos com o capital estrangeiro continuam a aumentar que a nova classe capitalista emergente começa a exigir representação política. Assim, eles temem que o PCCh possa ter o mesmo destino que o antigo Partido Comunista da União Soviética e eventualmente desaparecer. Parece provável que depois da morte de Deng esse grupo venha a controlar o PCCh. Se ele o fizer, ele pode instituir políticas que irão fazer recuar algumas das reformas de Deng e combater parte da corrupção. No entanto, é questionável que esse grupo de elites partidárias inverta a transição do capitalismo para o socialismo e confie o suficiente nas massas para envolvê-las nessa mudança fundamental.
Isso não é negar que no PCCh ainda existem muitos membros que ainda acreditam no socialismo e veem o dano que a reforma de Deng causou à China. No entanto, esses membros do partido não conseguiram se opor à reforma de Deng. O que eles poderão fazer no futuro nós ainda veremos. Por outro lado, durante os últimos dezesseis anos o PCCh recrutou um grande número de novos membros que não têm compromisso com o socialismo, e só veem a entrada no PCCh como uma maneira de defender seus próprios interesses. Esses membros do PCCh também terão um papel no seu desenvolvimento futuro.
III. Conclusão
Nesse texto, apresentamos nossa análise da transição socialista na China e de sua inversão do socialismo ao capitalismo. A análise é baseada nas experiências concretas da China nos últimos mais de quarenta anos. Citamos o que Lênin dizia sobre a via ao socialismo no início deste texto. Ele disse: “Não afirmamos que Marx ou os marxistas conhecem o caminho para o socialismo completamente. Isso não faz sentido. Sabemos a direção desse caminho, sabemos quais forças de classes dirigem ao longo do cainho, mas de maneira concreta e prática, isso será aprendido com as experiências dos milhões de pessoas que assumirem essa tarefa”. Durante os últimos oitenta anos, milhares de milhões assumiram a tarefa de fazer suas sociedades avançarem para o socialismo. Infelizmente, a primeira rodada de tentativas de construir o socialismo falhou. Precisamos aprender com suas valiosas experiências, porque milhares de milhões assumirão novamente a tarefa no futuro. O socialismo não deu errado, porque ainda não chegamos ao seu limite.
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[1] “Peasants and Workers” in Collected Works, vol. 21, p. 133, New York: International Publishers, 1932.
[2] Ver Karl Marx, Letter to P. V. Annenkov, 28 de dezembro de 1846 in Karl Marx and Frederick Engels, Selected Works, vol. 2, quinta edição, Foreign Languages Publishing House, Moscow, 1962, pp. 441-452. Ver também Karl Marx, On Proudhon, carta a J. B. Schweitzer, 24 de janeiro de 1865, in Karl Marx, The Poverty of Philosophy, Peking, Foreign Languages Press, 1978, p. 215.
[3] Os exemplos que usamos para explicar os projetos socialistas e capitalistas no setor coletivizado são todos relacionados à agricultura. No entanto, também haviam indústrias no setor coletivizado. Além disso, haviam muitas cooperativas nas cidades, quando em 1970 os bairros se organizaram para produzir pequenos produtos industriais.
[4] Ver Su Xing, “The Two Line Struggle, Socialist vs. Capitalist, after the Land Reform,” Jing Jin Yan Jiu, 1965, no. 7, p. 24.
[5] Ibid.
[6] Thomas G. Rawski, Economic Growth and Employment in China (publicado para o Banco Mundial, Oxford University Press, 1979), pp. 7-8
[7] Para a visão de Mao sobre as cooperativas agrícolas, ver “On Agricultural Cooperative,” (31 de julho de 1955), “Agricultural Cooperative Movement Must Rely on Party Members and Poor and Lower Middle Peasants,” (7 de setembro de 1955), “Debates on Agricultural Cooperative and the Current Class Struggle,” (11 de outubro de 1955), e “Introduction to Socialist High Tide in China’s Countryside,” (setembro e outubro de 1955) em Selected Works of Mao Tsetung, volume 5, Beijing, China, 1977, pp. 168-259.
[8] Mao Tsetung, “On State Capitalism,” 9 de julho de 19523 em Selected Works of Mao Tsetung, Peking: Foreign Language Press, 1977, Vol. V, p. 101
[9] Ver William Hinton, Fanshen, A Documentary of Revolution in a Chinese Village, Vintage Books, 1966.
[10] Ver nota 4.
[11] Para a perspectiva de Mao quanto à cooperativa agrícola, ver “On Agricultural Cooperative,” (July 31, 1955), “Agricultural Cooperative Movement Must Rely on Party Members and Poor and Lower Middle Peasants,” (September 7, 1955), “Debates on Agricultural Cooperative and the Current Class Struggle,” (October 11, 1955), and “Introduction to Socialist High Tide in China’s Countryside,” (September and October 1955) in Selected Works of Mao Tsetung, the 5th volume, Beijing, China, 1977, pp. 168-259.
[12] “The History of Our Contract Labor System” em Labor Contract System Handbook, editado por Liu Chiang-tan, Science Publisher, 1987, pp. 1-18.
[13] Ver Charles Bettelheim, Cultural Revolution and Industrial Organization in China, Monthly Review Press, 1974.
[14] Ver Important Documents since the Eleventh Congress, 2nd vol., pp. 747-750.
[15] “Durante a maior parte dos anos 1950, o salário por peça foi usado extensivamente na indústria estatal chinesa; a sua cobertura entre os operários industriais subiu de 32 para 42% durante esse período. O pagamento por peça aumentou de 1% dos empregados em 1981 para 11% e, 1984 e 1986”. David Grainick, “Multiple Labor Markets in the Industrial State Enterprise Sector,” The China Quarterly, junho de 1991, p. 283.
[16] People’s Daily, 6 de maio de 1988, p. 2.
[17] Ibid.
[18] Selected Works of Mao Tsetung, Peking: Foreign Languages Press, 1977, Vol. V, pp. 268-269.
[19] Mao Tsetung Si Shang Wen Sui (Long Live Mao Tsetung’s Thought) publicado no Japão em 1967, p. 117
[20] Ibid., p. 198.
[21] Mao Tsetung, A Critique of Soviet Economics, New York: Monthly Review Press, 1977, translated by Moss Roberts, p. 40.
[22] Resolução do VIII Congresso Nacional do Partido Comunista da China em 1966.
[23] Po Yi-po, My Memoirs of Many Important Policy Decisions, Vol. I (em chinês), Chinese Communist Party School Publisher, 1991, pp. 148-151.
[24] Ibid.
[25] Ver Deng Yuan Hsu and Pao-yu Ching, “Labor Reform — Mao vs. Liu-Deng,” in Mao Zedong Thought Lives, Vol. I, pp. 183-213, Center for Social Studies and New Road Publications, 19.