A reunião ministerial e o programa hegemônico da burguesia no Brasil
Cem Flores
26.05.2020
Os trabalhadores e as trabalhadoras do país – que neste momento padecem de desemprego, corte nos salários, adoecimento e chacina das polícias – tiveram na semana passada a oportunidade de ver mais de perto um pouco do show de horrores que é a política no Estado burguês, pelo breve vislumbre de suas entranhas podres. Em meio a xingamentos variados, descontrole quase absoluto e despreparo geral, os atuais representantes da burguesia destilaram seu ódio de classe por horas a fio e se mostraram dispostos a fazer qualquer coisa para avançar na ofensiva burguesa contra a classe operária e demais classes dominadas na crise atual.
A gravação de uma reunião ordinária (nos dois sentidos!) de ministros do governo Bolsonaro, em 22 de abril, teve seu sigilo quebrado pelo STF em decorrência da investigação das acusações feitas pelo ex-ministro Moro contra o seu ex-chefe. O vídeo, divulgado quase na íntegra em 22 de maio, vem tendo ampla repercussão na imprensa e nas redes sociais. Oposição e base aliada do governo interpretaram cada um de acordo com seus próprios interesses políticos imediatos o conteúdo da reunião, em mais um episódio da disputa fratricida entre esses representantes das classes dominantes pela gerência do Estado burguês no Brasil.
Para além das tentativas de proteção e acobertamento aos crimes do presidente, sua família e seus aliados com a busca de um maior controle da Polícia Federal, o que há nessa reunião é uma verdadeira disputa entre os ministros para ver quem presta a maior e mais efetiva subserviência aos patrões, os verdadeiros donos do Estado capitalista. A reunião mostra, sem disfarces, a sanha desses atuais representantes por mais poder e pela sua permanência na direção do Estado para implementar integralmente sua agenda burguesa. Tudo isso regado com muito escárnio e todo o tipo de baixeza moral. São esses os “digníssimos” (sic!) gestores do Estado capitalista burguês, em sua completa podridão!
A “esquerda” reformista e oportunista, eleitoreira como de costume, se limita à ideologia jurídica, burguesa, e à denúncia aos crimes e ilegalidades presentes na reunião, buscando mais munição para fomentar suas “frentes amplíssimas”, em busca da volta à gerência desse Estado.
Para a posição proletária e sua luta de classes interessa muito mais ver o que seus algozes (dos quais nada esperamos, nem “legalidade”, nem “moralidade”, pelo contrário!) revelam sobre a atual ofensiva burguesa, da qual o governo Bolsonaro é o continuador e o responsável atual por sua implantação.
A ofensiva de classe burguesa e o seu programa hegemônico
No Brasil, a atual ofensiva de classe burguesa está ocorrendo ao menos desde o estourar da última crise econômica, em 2014, e das eleições daquele ano (veja nossas análises das eleições de 2014 e de 2018) e tem se radicalizado mais recentemente (conforme analisamos no e-book sobre o governo Bolsonaro). Ela ocorre nas mais variadas frentes (econômica, política, ideológica, repressiva) sob um programa hegemônico entre as frações burguesas no país.
Do ponto de vista da acumulação de capital e da retomada da taxa de lucro, o núcleo fundamental desse programa hegemônico é um conjunto de reformas econômicas (previdência, trabalhista-sindical, fiscal e tributária, administrativa, privatizações etc.) que a burguesia entende necessárias para a redução do valor da força de trabalho e dos custos salariais das empresas, para a maior “flexibilização” (precarização, informalidade, etc.) do mercado de trabalho, para a ampliação das esferas de acumulação de capital, etc. Para a classe operária e demais classes dominadas, esse programa significa um conjunto de ataques das classes dominantes que visam aumentar sua exploração.
Nos últimos anos, as diversas facções políticas burguesas (PSDB, PT, PMDB, extrema-direita…) têm se alternado/disputado entre si a aplicação desse programa, com mais ou menos sucesso – em meio e também através de uma grave crise política. Dilma, Temer e agora Bolsonaro: todos representam momentos dessa aplicação e ofensiva. Vários pontos extremamente importantes do núcleo desse programa, que precisam diretamente do Estado e de alteração na legislação, avançaram: reformas da previdência (Dilma-Bolsonaro), trabalhista-sindical (Temer-Bolsonaro), teto de gastos (Temer), privatizações (Bolsonaro), “liberdade econômica” (Bolsonaro). Todas com o virtual consenso da burguesia e seus representantes, sejam eles as diversas frações das classes dominantes, sua grande imprensa, os três poderes, os partidos, etc. E ainda assim, os resultados efetivos em termos de crescimento econômico a aumento da taxa de lucro foram muito limitados.
A crise econômica atual ocorre em meio a uma pandemia e exigiu uma modificação parcial nesse programa hegemônico, sua adaptação às novas condições conjunturais. A esse novo conjunto de medidas estamos chamando de “programa emergencial”: para bancos e empresas, um pacote trilionário de socorro, mediante empréstimos baratos, adiamento de impostos, e o que mais for necessário; para os trabalhadores, cortes de salários e de jornada mediante acordos individuais. E ainda um auxílio emergencial, temporário e limitado, aos trabalhadores informais e os sem renda, que se multiplicaram, visando a manutenção da demanda.
Mas essas novas medidas não significam, de nenhuma forma, o abandono do programa hegemônico da burguesia, nem pelo governo nem pelas classes dominantes! Pelo contrário, em muitos pontos, e não por acaso, ambos são complementares: na redução de salários e em mais exploração, por exemplo. Ainda, algumas reformas continuam mesmo com a pandemia e a nova crise – a exemplo da proposta de retomar a carteira verde-amarela. Além disso, a crescente dívida pública já está sendo justificativa para a retomada ainda mais violenta das reformas do programa hegemônico no pós-crise.
A reunião ministerial de Bolsonaro escancara o programa hegemônico da burguesia
A divulgação da reunião ministerial reforça ainda mais as teses acima: de que vivenciamos uma ofensiva burguesa na busca da implantação de seu programa hegemônico, exigida pelo capital para qualquer ocupante do (seu) Estado. Esse é a principal bandeira dos representantes políticos da burguesia, seja qual for o cenário.
Dois ministros foram bastante explícitos e “didáticos” nesse ponto, durante a reunião. Primeiro Guedes, capitão da ofensiva no nível econômico. Depois, Nero Salles (acompanhado do presidente do BNDES, do time de Guedes, Gustavo Montezano, que substituiu o ex-Posto Ipiranga de Dilma, Joaquim Levy).
Guedes, nos trechos a seguir, deixa nítida a centralidade da aplicação do programa para a manutenção e reeleição do governo atual. Essa aplicação deve continuar e se aprofundar mesmo que isso seja maquiado com ideologias mais palatáveis (como “combate a desigualdades regionais”, citada na propaganda do Pró-Brasil), ou pontos do programa emergencial desviem momentaneamente do “norte” das principais reformas. E esses pontos correspondem às necessidades emergentes do capital, que são abraçadas sem o menor pudor pelo Chicago Old.
Guedes: Então, eu acho um discurso bom, mas nós temos que tomar cuidado e reequilibrar as coisas. Não pode ministro pra querer ter um papel preponderante esse ano destruir a candidatura do presidente, que vai ser reeleito se nós seguirmos o plano das reformas estruturantes originais.
[…]
Aprovamos a reforma da previdência o ano passado, enquanto os franceses fizeram passeatas contra a reforma da previdência. Agora, a mesma coisa, eu tô dizendo: nós vamos continuar aprofundando as reformas, nós vamos seguir.
[…]
Então pra mim não tem música, não tem dogma, não tem blá-blá-blá. Tem estudo sobre todas essas ocasiões. E nós demos uma demonstração disso quando nós távamos indo numa direção norte, com as reformas estruturantes e, de repente, em três semanas e meia, nós fomos pro sul. E nós somos elogiados hoje lá fora – semana passada todo mundo elogiando, fazendo referência – que o Brasil tá à frente de todos os emergentes e pari passu ali, só tá atrás um pouquinho dos Estados Unidos, porque o Estados Unidos está naquele caso que é o cara que tem a moeda forte, emitiu um trilhão pra cada problema que ele tem e ninguém reclama. Fizemos vários programas antes dos alemães, vários programas antes dos ingleses. Vários programas. De todo tipo. Então, se não existe algo aqui é dogma. Existe capacidade de trabalho com um grupo extraordinário que eu tenho.
[…]
A gente cai, levanta e sabe pra onde nós temos que ir. Nós não vamos perder a bússola. Nós sabemos dos valores, sabemos dos princípios, sabemos que que nós tamo defendendo. Nós tamo defendendo liberdade: liberdade econômica, liberdade política. É… nós sabemos o que nós tamo defendendo.
[…]
As torres do inimigo que a gente tinha que derrubar: uma era o excesso de gasto na previdência, derrubamos assim que entramos. A segunda torre era o juros. Os juros tão descendo e vão descer mais ainda. O Campos tem o mapa já. Nós tamo descendo. Né? Sem juros. De juros a menos. Então nós sabemos e é nessa confusão toda, todo mundo tá achando que tão distraído, abraçaram a gente, enrolaram com a gente. Nós já botamo a granada no bolso do inimigo. Dois anos sem aumento de salário. Era a terceira torre que nós pedimos pra derrubar. Nós vamos derrubar agora, também. Isso vai nos dar tranquilidade de ir até o final. Não tem jeito de fazer um impeachment se a gente tiver com as contas arrumadas, tudo em dia. Acabou! Não tem jeito. Não tem jeito.
[…]
Bota peruca loura, batom vermelho, faz uma porção de coisa que for necessário politicamente, mas não vamo perder o rumo econômico não. Nós sabemos onde nós tamo indo.
Esse foco no programa hegemônico da burguesia ficou bem exemplificado no rápido diálogo sobre a pretendida privatização do Banco do Brasil:
Guedes: Banco do Brasil a gente não consegue fazer nada e tem um liberal lá. Então tem que vender essa porra logo.
Rubem (presidente do BB): Em relação à privatização, eu acho que fica claro que com o BNDES cuidando do desenvolvimento e com a Caixa cuidando do fim… da área social, o Banco do Brasil… estaria pronto… para um programa de privatização, né?
Bolsonaro: Isso aí… isso aí só se discute, só se fala isso em vinte e três, tá?
Em outro trecho Bolsonaro deixa claro que quer intervir nos ministérios se não estiverem coesos com suas “bandeiras” (“família, Deus, Brasil, armamento, liberdade de expressão, livre mercado… Quem não aceitar isso, está no governo errado”). Mas claro que essa “firmeza” toda não se aplica ao capital:
Bolsonaro: E eu tenho o poder e vou interferir em todos os ministérios, sem exceção. Nos bancos eu falo com o Paulo Guedes, se tiver que interferir. Nunca tive problema com ele, zero problema com Paulo Guedes. Agora os demais, vou!
Antes de citar as falas de Nero Salles e seu escudeiro, é preciso contextualizar do que eles estavam falando. Para isso, passamos a palavra para um dos “formuladores” do programa hegemônico: Marcos Lisboa, presidente do Insper, ex-Itaú-Unibanco e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda do governo Lula. Em debate promovido pela BTG Pactual, realizado em agosto de 2019, junto com Marcos Mendes, ex-assessor especial do ministro da Fazenda de Temer, Meirelles, ele diz o seguinte:
Na minha experiência em tempos de governo [Lula] … a gente aprovou um conjunto razoavelmente grande de reformas. Têm duas componentes que ajudaram e que eu estou sentindo falta (em Bolsonaro). Primeiro, não tinha grande anúncio. São todas medidas pequenininhas. O consignado ficou grande depois. Mas depois de vários anos… Então, começar a fazer várias coisinhas em uma direção. [… E] tem muita coisa boa que é pra fazer que tá na caneta dos secretários. Eu não entendo porque essa parte da agenda não tá aí. Tem a questão da grande reforma tributária, bacana. Agora, a estrutura tributária virou um caos na última década por instruções normativas… Você tem muita coisa na mão dos secretários, muita coisa pequena miúda. Mas é como nas empresas, no fim do dia, no geral, é isso que faz a diferença.
Ou seja, para a burguesia não há apenas as grandes reformas. Trata-se de eliminar todas as conquistas dos/as trabalhadores/as e liberar dos entraves a acumulação de capital, por menores que esses sejam. E essas inúmeras pequenas alterações infralegais inclusive não chamam tanta “atenção”. Tais reformas facilitam o ambiente de reprodução do capital, tiram amarras legais (exemplo: limitação para exploração de terras indígenas ou de proteção ambiental etc.).
Nesse espírito de aprendizes do banqueiro ex-secretário de Lula, Nero Salles e Montezano encontraram na pandemia o momento oportuno para “passar a boiada” das reformas “menores”:
Salles: Nós temos a possibilidade nesse momento que a atenção da imprensa tá voltada exclusiva, quase que exclusivamente pro COVID […]. A oportunidade que nós temos, que a imprensa tá nos dando um pouco de alívio nos outros temas, é passar as reformas infralegais de desregulamentação, simplificação, todas as reformas que o mundo inteiro nessas viagens que se referiu o Onyx certamente cobrou dele, cobrou do Paulo, cobrou da Teresa, cobrou do Tarcísio, cobrou de todo mundo, da segurança jurídica, da previsibilidade, da simplificação, essa grande parte dessa matéria ela se dá em portarias e norma dos ministérios que aqui estão, inclusive o de Meio Ambiente. […] Então pra isso precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de COVID e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De IPHAN, de ministério da Agricultura, de ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo. […] Não precisamos de Congresso, porque coisa que precisa de Congresso também, nesse fuzuê que está aí, nós não vamos conseguir aprovar. Agora, tem um monte de coisa que é só parecer e caneta”.
Montezano: Eu subscrevo as palavras do ministro Salles. É o que a gente tem observado nos projetos e concessões e etc. Uma parte crítica é essa legislação, ou funcionamento da máquina pública. É um momento muito oportuno pra gente aproveitar isso, e isso faz uma baita diferença no preço de um projeto, na velocidade, faz muita diferença. Então eu subscrevo aqui as palavras do ministro Salles.
Sem ilusões com a democracia burguesa, organizar a luta e a resistência contra a ofensiva de classe e o programa burguês
Essa reunião ministerial nos dá mais uma comprovação adicional – como se necessário fosse! – de que o que interessa aos governos da burguesia é a acumulação de capital e os lucros dos capitalistas, e o consequente aumento da exploração da classe operária e demais classes dominadas. Nada devemos esperar dos governos burgueses senão maior exploração e repressão, no máximo recebendo as migalhas para poder retornar ao batente no próximo dia. O que os/as trabalhadores/as precisamos, temos que conquistar nós mesmos, com nossas próprias mãos.
Nossa solução para esta crise (e para todas as outras) não está com o “hemorroida” (Bolsonaro), nem com o “bosta” (Dória), ou com o “estrume” (Witzel), tampouco com o “poste” (Haddad). Todos esses só buscam a implementação do programa da burguesia, na tentativa de se qualificar com os patrões para permanecer, chegar ou voltar ao poder nas próximas eleições.
O que as classes operária e dominadas precisam é de sua auto-organização, da confiança em si mesmas, de sua luta e da construção dos seus instrumentos para derrubar toda essa corja exploradora imunda.
Lutar pela sobrevivência no presente. Organizar e mobilizar a solidariedade de classe para superar a crise atual. Fortalecer essa luta pelos interesses próprios do proletariado e da população pobre. Recriar as organizações de luta econômica e política independentes da classe operária. E partir para o assalto aos céus. Esse é o único caminho para a verdadeira libertação dos explorados e oprimidos!