É justo se rebelar: a revolta popular nos EUA e o retorno dos protestos no Brasil
Cem Flores
05.06.2020
“Estou cansada. Estou farta. Já basta.”
Chavon Allen, mãe negra na manifestação em Houston, Texas (EUA).
“Temos que sair às ruas! Não podemos ficar em casa como pedem a Organização Mundial da Saúde e o governador. Sabe por quê?
Porque o Estado não para de nos assassinar, mesmo na pandemia do coronavírus.
A vida dos meus filhos, a vida do meu povo, importam!
Eu não aguento mais chorar! (…) É inadmissível!
O meu povo precisa continuar a viver.
Povo negro vivo! Jovens negros vivos! Mulheres negras vivas!”
Mônica Cunha, do Movimento Moleque, na manifestação do Rio de Janeiro.
A recente revolta popular contra o racismo e a opressão nos EUA
Há mais de uma semana os EUA são palco de uma imensa revolta popular, cujo estopim foi o assassinato do homem negro George Floyd, no dia 25 de maio em Minneapolis, por um policial branco, que o asfixiou até a morte com seu joelho. George estava desarmado e não ofereceu resistência.
Tal tortura e assassinato ocorreu em plena luz do dia, no meio da rua, sob olhar indiferente de outros policiais. As imagens circularam nas redes sociais e chocaram o mundo todo. Assim como Eric Garner, outro negro assassinado pela polícia norte-americana, em 2014, George repetiu as palavras “I can’t breathe” (eu não consigo respirar) antes de morrer.
O martírio de George foi mais um dentre os vários assassinatos de negros pela mão do Estado naquela potência capitalista de forte tradição racista. Os americanos negros são mortos a tiros pela polícia a uma taxa duas vezes maior do que os americanos brancos. Desde 2015, foram mais de mil negros assassinados pela polícia. Sem falar que são encarcerados a uma taxa seis vezes maior do que os brancos.
A população negra, trabalhadora e pobre de Minneapolis não se calou. Levantou-se em enorme fúria, protestando mais uma vez pelas suas vidas, contra a supremacia branca e a brutalidade policial que a oprimem há séculos. Trouxe consigo a juventude das classes dominadas, trabalhadores/as e moradores/as de periferia, negros, brancos e hispânicos que também sentem na pele a injustiça, a exploração e a opressão daquele Estado capitalista.
Rapidamente a revolta se espalhou por centenas de cidades, alcançando todo o país. Marchas gigantescas continuam a acontecer dia e noite, mesmo em cenário de pandemia e diante do risco sanitário. Afinal de contas, para as classes dominadas e oprimidas, só a luta garante a vida de fato! Não há como abrir mão do protesto.
Essa onda de revolta popular extrapolou as fronteiras nacionais dos EUA. Protestos em solidariedade também estão acontecendo em outros países, como França, Inglaterra, Alemanha, Nova Zelândia, Holanda, Irlanda e Quênia, além do Brasil.
A revolta popular – como nunca deixa de ser numa sociedade de classes como o capitalismo – foi respondida com ainda mais repressão policial. Toques de recolher, prisões arbitrárias, feridos e novos mortos. Mas essa violência do Estado tem sido respondida pelas massas trabalhadoras e populares, que têm mostrado extrema coragem e garra, mantendo suas manifestações e sua insubordinação, desafiando o maior aparato repressivo do mundo e todas as ameaças de Trump, presidente apoiado abertamente por grupos fascistas e supremacistas brancos. Em desespero e numa demonstração de impotência, Trump ameaçou utilizar as forças armadas contra os/as manifestantes, que continuaram nas ruas, ignorando as ameaças do opressor. Sem justiça, sem paz! É uma das palavras de ordem mais ouvidas pelas ruas.
Não podemos esquecer que essas mesmas massas têm sofrido brutalmente com a atual crise do capital e com a pandemia. O desemprego já atingiu, como uma avalanche, 40 milhões de trabalhadores nos últimos meses, elevando ainda mais a miséria e o sofrimento.
Junto ao desemprego, a Covid-19 já matou mais de 100 mil pessoas nos EUA, atingindo mais fatalmente a população trabalhadora, pobre e negra. Como dissemos recentemente:
Nos EUA, epicentro atual da pandemia, as comunidades negras têm sido as mais afetadas pelo vírus: representam cerca de 30% das contaminações e das mortes, mesmo sendo por volta de 15% da população do país. As razões são bem conhecidas: habitação mais precária, piores condições de saneamento, menor acesso a serviços de saúde, comorbidades, e a maior exploração em empregos informais e precários. Em suma: a dominação capitalista!
Ou seja, são muitas as razões para se rebelar. Rebelar-se é justo!
A volta dos protestos de rua no Brasil
No Brasil, nas últimas semanas, temos visto a volta de protestos de ruas contra o fascista governo Bolsonaro e seus apoiadores de extrema-direita. Assim como nos EUA, as classes dominadas daqui têm sofrido brutalmente os impactos da nova crise e da pandemia. Milhões de trabalhadores/as já perderam seus empregos, tiveram seus contratos suspensos ou sofreram com cortes salariais. Ao mesmo tempo, já ultrapassamos o patamar de 30 mil mortos pela Covid-19, cuja letalidade é muito maior na população pobre e negra.
Tais atos não foram convocados pela pelegada da esquerda institucional, mais ocupada formando uma nova frente com a burguesia e setores assumidamente de direita e sabotando ativamente ou às escondidas esses protestos populares, mas sim por torcidas organizadas de futebol, como a do Corinthians em São Paulo e a do Flamengo no Rio de janeiro, e grupos de juventude antifascista, como em Porto Alegre. A composição desses protestos está rapidamente se ampliando, como mostrou a última manifestação em Curitiba.
Com ou sem pandemia, a polícia continua a entrar nas favelas e periferias para matar a população trabalhadora, negra e pobre. Por isso, os ecos da revolta contra o racismo e a violência policial nos EUA também chegaram aqui. Afinal, o assassinato de George Floyd foi feito pelo mesmo sistema opressor burguês que matou também, nos últimos dias, e com tiros de fuzil, o adolescente João Pedro enquanto brincava com os primos dentro de casa; o jovem João Vitor passeando em sua comunidade, a Cidade de Deus; e, ano passado, a pequena Ágatha, em seu transporte escolar no Complexo do Alemão. O mesmo sistema racista que soltou os assassinos do exército brasileiro que fuzilaram o músico Evandro.
O movimento negro, junto a coletivos de periferia e favelas que possuem hoje um importante papel na luta contra a pandemia e pela sobrevivência nas comunidades, já realizaram os primeiros atos pelas vidas negras, como o que aconteceu no último domingo em frente à sede do governo do Rio de Janeiro. E a pauta pelas vidas negras e periféricas também tem se incorporado aos atos contra o governo, como em Curitiba.
Para desespero de Bolsonaro, cada vez mais isolado e perdendo popularidade, as faixas contra esse governo fascista, de extrema-direita, e pela vida do povo negro e das favelas estão de volta às ruas!
Diante disso, a repressão mostra novamente sua face “seletiva”. Enquanto a burguesia, os governos, o parlamento, a justiça e as polícias toleram atos abertamente fascistas do bolsonarismo – em defesa de intervenção militar, da ditadura e do AI-5 – foi só a bandeira antifascista e contra o governo se levantar nas ruas que as bombas, os tiros, as prisões, as críticas da imprensa e da esquerda institucional, as ameaças e os projetos de lei absurdos voltaram à ordem do dia. Essa é a real face da democracia burguesia: no fundo, é sempre uma ditadura de classe.
Nada disso está fazendo recuar os atos, como vemos na imagem abaixo do protesto em Manaus dias atrás. Como nos EUA, não faltam razões para retomar as ruas.
Avançar nas ruas e estimular as lutas nos locais de trabalho e moradia
Diante dos levantes populares que explodiram em vários países (Equador, Chile, Haiti, Honduras, Líbano, Iraque, Irã, Argélia, Catalunha, França…) no ano passado, afirmamos:
Só a luta pode parar os atuais ataques das classes dominantes (as ditas “reformas”, os tarifaços, o aumento da exploração, da violência). As inúmeras vitórias, mesmo que parciais, desses levantes, os vários recuos dos governos, são provas cabais dessa lição primordial. Somos nós que arrancaremos, com nossas mãos, um futuro melhor para nós e nossos filhos!
Cabe a nós, comunistas, lutadores e trabalhadores, em primeiro lugar, continuar acompanhando atentamente os fatos e apoiar de todas as formas as lutas de nossos irmãos de classe nesses outros países, sentir sua revolta, recolher e estudar suas lições. […] Mas nos cabe também, sobretudo, preparar e fomentar, em nossos locais de atuação, o nosso novo levante.
No novo contexto de crise e pandemia, no qual as condições de vida e trabalho dessas classes pioraram violentamente, a necessidade da luta é ainda maior.
E, com a retomada das manifestações no Brasil, é fundamental organizar e participar ativamente dos protestos, agitando e organizando as massas trabalhadoras, a juventude, seus coletivos, para darem um passo a mais em suas lutas locais. Ir construindo uma unidade na luta, a partir dos problemas de cada bairro ou local de trabalho, que também são uma forma de expressão dos problemas gerais dos/as trabalhadores/as, e, dessa maneira, ir mostrando na luta a vinculação entre as pautas concretas e imediatas da classe às suas causas maiores anticapitalistas.
Obviamente, esse retorno às ruas deve ocorrer com o máximo de cuidado possível para a não ampliação do contágio do coronavírus. Porém, deixando bem claro às classes dominantes que não mais morreremos em silêncio nos locais de trabalho, ou pela polícia ou pelo o vírus que invadem nossas casas. Reagiremos cada vez mais. E os poderosos têm toda razão em temer!
Viva as revoltas populares!
Basta! Sem justiça! Sem paz!