CEM FLORES

QUE CEM FLORES DESABROCHEM! QUE CEM ESCOLAS RIVALIZEM!

Cem Flores, Conjuntura, Destaque, Nacional, Teoria

Pandemia e saúde no Brasil: dezenas de milhares de mortes de trabalhadores/as provocadas pelo capital e seu Estado!

A pandemia tem exposto e aprofundado as desigualdades de classe do capitalismo. As massas trabalhadoras das periferias e favelas do país, que trabalham e moram em lugares mais insalubres, não têm condições de se isolar e não possuem plano de saúde, são as que apresentam maior taxa de letalidade nessa pandemia. Não à toa precisam se organizar em suas comunidades para combater o vírus por elas próprias.

Cem Flores 
19.06.2020

Vivemos hoje a mais violenta pandemia em muitas décadas. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), desde o final de 2019, o novo coronavírus já infectou mais de 8,5 milhões de pessoas e matou mais de 450 mil em todo o mundo apesar das medidas de contenção adotadas pela maioria dos países.

Os impactos dessa pandemia nas relações capitalistas são diversos, assim como o capitalismo age de formas distintas nos efeitos da pandemia nas diferentes classes sociais.

De um lado, as mortes causadas pela pandemia e a necessidade de impor as medidas de contenção ao contágio, que envolvem paralisação da produção e circulação de mercadorias e pessoas, aumento dos gastos e endividamento estatal, engatilharam mais uma devastadora crise mundial do capital. A pandemia, assim, acelerou contradições já presentes na conjuntura global e de certa forma antecipou uma imensa queima de capital (mercadorias, fábricas paradas, parcela da força de trabalho parada, adoecendo ou morrendo). 

Agora todo o sistema capitalista busca a resolução desse problema sanitário para que a reprodução do capital volte ao “normal” o mais rápido possível, mesmo que isso resulte na morte de uma parcela ainda maior da população – ao mesmo tempo em que precisa evitar um caos sanitário e um descontrole completo da pandemia. 

De outro lado, a pandemia evidenciou as desigualdades entre as classes sociais, que também são muito evidentes na saúde (taxa de mortalidade, acesso a tratamento, a médicos e a hospitais, condições de se cuidar etc.), fazendo com que, mais uma vez, uma mesma doença tivesse efeitos diversos a depender da classe social. Em vários países, os dados são claros sobre em quais populações o vírus é mais letal: nas pobres e trabalhadoras. E a depender do país, dentro dessas populações trabalhadoras e pobres, algumas raças e etnias específicas são mais atingidas, também oprimidas pelo racismo.

Os próprios organismos internacionais do capital têm destacado esse fato. Comentando sobre o impacto “desproporcional” que a pandemia tem gerado em algumas populações, raças e etnias (pessoas não brancas tem cerca de 60% mais de chance de morrer de Covid-19 do que brancas), a Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, diz:

“Desigualdade econômica, habitação superlotada, riscos ambientais, disponibilidade limitada de cuidados de saúde e preconceito na prestação de cuidados podem todos desempenhar um papel […] Pessoas de minorias raciais e étnicas também são encontradas em maior número em alguns trabalhos que comportam maior risco, inclusive nos setores de transporte, saúde e limpeza”.

Neste artigo, visamos analisar um pouco mais a relação entre saúde e capitalismo, a partir do contexto da pandemia no Brasil. Analisaremos algumas características do sistema de saúde no Brasil e como as desigualdades de classe e as imposições do capital se refletem nele. Depois, veremos como a pandemia tem gerado impactos desiguais entre as classes, e como a quarentena tem também seu viés de classe. Por fim, veremos algumas consequências desse quadro para nossa luta.

Sistema de saúde no Brasil: público e privado, desigualdades regional e de classe

No Brasil, menos de um quarto da população dispõe de planos privados de saúde de assistência médica por conta de seus altos preços ou por não terem emprego fixo com esse benefício. A esmagadora maioria da população, mais de 75%, dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde, o SUS. E a parcela minoritária tem diminuído. Segundo os dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), desde o início da recessão de 2014, houve uma queda de 7% na quantidade de beneficiários de planos privados de saúde de assistência médica, equivalente a uma redução de 3,5 milhões de pessoas, como podemos ver no gráfico abaixo. 

Esses dados expressam a recente piora nas condições materiais das classes dominadas, a corrosão do padrão de vida que atinge inclusive setores das camadas médias com o crescente índice de desemprego e subutilização e a diminuição dos salários a partir das sucessivas “reformas” (trabalhista, previdência etc.) que vem sendo implementadas pelos governos burgueses um após o outro. Todas essas famílias que perderam ou precisaram cancelar seus planos de saúde caem na rede pública, há muito esgotada.

Como é sabido por todo/a trabalhador/a que um dia precisou ir a um hospital público, o SUS sofre de deficiências crônicas derivadas de seu subfinanciamento desde sua criação, passando pelas Desvinculações de Receitas Orçamentárias (DRU), dos governos FHC e Lula, até o atual teto de gastos, de Temer e Bolsonaro. Além disso, também é corroído pelo avanço da privatização e das terceirizações no seu interior. Dessa forma, temos a combinação trágica de falta de profissionais e de estrutura e insumos, baixos salários, piora das condições de trabalho, com aumento da pressão e insegurança do emprego, além da corrupção e má gestão pelos governantes e seus gestores. O número de leitos hospitalares já vinha caindo de 2009 a 2017, de 1,87 por cada mil habitantes para 1,72 por mil habitantes, sendo o mínimo recomendado pelo Ministério da Saúde 2,5 a 3,0 leitos por mil habitantes. 

Segundo a Demografia Médica no Brasil 2018, realizada pela FM-USP, há três vezes mais médicos atendendo em clínicas particulares e planos de saúde que no SUS, o que evidencia também a falta de recursos humanos disponíveis para a população mais pobre, além dos reduzidos leitos. 

Além do atendimento precário e insuficiente para a maioria da população, o sistema de saúde do Brasil também apresenta forte desigualdade regional. Segundo a mesma Demografia Médica no Brasil 2018, o número de médicos por mil habitantes no Brasil tem crescido nos últimos anos, mas continua altamente concentrado no Sudeste e nas regiões urbanas, modificando pouco a estrutura desigual de atendimento e de acesso às populações trabalhadoras, pobres e periféricas. Em 2018 a média de médicos no Sudeste avançou para 2,81 médicos por mil habitantes, mas a região Norte ficou com apenas 1,16. 

Quanto mais longe dos centros urbanos, mais escassa a assistência em saúde. Quanto mais periférica e pobre a região, menos o capital, a burguesia e seu Estado veem necessidade de construir redes de saúde, e a estrutura necessária. A reprodução da vida é diretamente vinculada à reprodução da produção capitalista e de classe! 

Com a explosão da pandemia em 2020, todos os problemas que já são cotidianos para as massas foram multiplicados. O povo se vê refém de uma saúde sucateada, e mesmo aqueles que podem pagar planos de saúde privados se encontraram sem atendimento, pois os leitos (somando enfermaria e UTI) tanto de rede privada quanto pública colapsaram rapidamente, sobretudo nas regiões mais pobres e periféricas. 

Desigualdade de classe na pandemia: o genocídio feito pelo capital e seu Estado

Não à toa, a pandemia tem sido tão vasta e letal por aqui. Mesmo com nossos dados subnotificados, os infectados pelo novo coronavírus já chegam a quase 1 milhão e subindo, com mais de 46 mil óbitos, chegando ao segundo lugar mundial de vítimas. E isso não apenas por conta do precário e desigual sistema de saúde para as massas, mas também porque as próprias medidas sanitárias necessárias para a contenção aqui pouco se efetivaram: o lucro falou mais alto!

A partir de março, com o avanço da pandemia e as projeções de esgotamento do sistema de saúde, quarentenas foram decretadas ao redor do país, fechando escolas, indústria e comércio não essencial e outros setores de serviços nas áreas urbanas. Isso sem preocupação de fato com a parcela da população que não conseguiria fazer a quarentena, tanto por questões de moradia e saneamento, quando por situação informal no mercado de trabalho. 

Aproveitando-se dessa situação, vários empresários incentivaram manifestações contra o isolamento, apoiados na posição de reabertura de Bolsonaro. Ao mesmo tempo, setores ligados à exportação como as mineradorasportos e outros continuaram funcionando a todo vapor. Setores essenciais (para o capital), como foram classificados, não podem parar, mesmo com a contaminação em massa de seus trabalhadores. Já são inúmeros os casos em que as empresas se tornam foco de disseminação da doença entre seus trabalhadores.

Os gestores do estado burguês (prefeitos e governadores) que em parte optaram inicialmente por defender o isolamento, agora são cada vez mais pressionados pelos patrões, reabrem todos os setores da economia, mesmo com o pico da pandemia longe de chegar. Quando a reprodução do capital está em risco, o Estado e seus representantes correm em seu socorro. 

Como falamos no início do texto, a letalidade do vírus é seletiva, e são razões sociais que explicam isso. A grande maioria das vítimas do vírus são pobres, negros e trabalhadores informais. Segundo o boletim epidemiológico da prefeitura de SP do dia 30 de abril, verificou-se que a população negra (em sua maioria trabalhadora e pobre) tem 62% a mais de risco de morte, por conta de suas condições materiais de vida e de trabalho (longas e extenuantes jornadas, com sobrecarga de trabalho e muita exploração), saneamento básico precário, insegurança alimentar e difícil acesso a tratamento médico, situação estabelecida por sua condição socioeconômica, de classe. Estudo do site Medida SP mostrou que quase 66% das vítimas da Covid-19 viviam em bairros com salários médios abaixo de R$ 3 mil.

O avanço da pandemia para o interior do país promete aumentar ainda mais o número de mortos, com as populações indígenas e quilombolas sendo vitimadas tanto pelo vírus quanto pelo avanço do agronegócio. 

A situação dos profissionais da saúde também é calamitosa. Em meio ao descalabro total, os/as trabalhadores/as da saúde (em sua maioria mulheres) seguem trabalhando nas piores condições possíveis, em muitos casos tendo que acumular dois ou três empregos em função dos baixos salários, cumprindo jornadas intermináveis. A falta de EPI adequado se soma à redução das equipes e ao ritmo intenso (e cada vez mais!), refletindo alto índice de contaminação. Segundo os dados subnotificados do Ministério da Saúde, mais de 80 mil profissionais saúde já foram diagnosticados e dos mais de 400 mil testados, mais de 40% dos testes não tiveram seus resultados notificados. Atualmente, o Brasil é o país com mais casos de mortes desses profissionais pela Covid-19 no mundo.  

Todas as evidências apontam para as verdadeiras vítimas da pandemia, e a postura das autoridades em priorizar os lucros no lugar das vidas das classes trabalhadoras expõe quem pagará por essa crise sanitária

Para o capital e seu Estado hoje, essas vidas são descartáveis. Comprova-se pela total ausência de políticas de proteção à contaminação pelo coronavírus nos bairros pobres e periféricos do país; pela tentativa Governo Federal em camuflar ou diminuir o número de vítimas da pandemia (números já subnotificados); pelas várias formas de dificultar o acesso da população aos “auxílios” ou “benefícios” definidos legalmente, criando pela ação deliberada do governo a necessidade de enormes concentrações populares na Receita Federal ou na agências da Caixa Econômica Federal; pela manutenção da concentração de trabalhadores nas unidades produtivas que não podem parar de gerar lucros aos patrões; pelos transportes lotados que a população é obrigada a usar para tentar garantir sua sobrevivência; pelo aumento das ações policiais com vítimas fatais nos morros e favelas, mesmo em período de pandemia.

Conclusão

Em suma, a pandemia está longe de terminar no Brasil, forçando o já precário sistema de saúde para as massas ao limite enquanto atinge fortemente as populações oprimidas e dominadas pelo capital. Sem contar a possibilidade de uma segunda onda da contaminação. O aprofundamento da crise econômica tem sido usado como motivo para reabrir os setores não essenciais e os governadores e prefeitos cedem sem muito esforço, colocando um alvo nas costas das massas trabalhadoras e do povo pobre sem assistência, empurrando-os para a contaminação em massa e o aumento exponencial no número de mortes, enquanto profissionais de saúde trabalham incessantemente para mitigar esse quadro, sem as mínimas condições de segurança.

Com isso aprendemos que para o capital, as vidas do povo só servem na medida em que podem ser exploradas, e num cenário de crise econômica como estamos vivendo, onde grande parte dessa força de trabalho não pode ser absorvida, ela é descartada sem a menor cerimônia, com a chancela do estado burguês e seus gestores. Isso não é nenhuma novidade. A epígrafe de nosso livro A Luta de Classes no Brasil em Contexto de Crise e Pandemia, escrita por Engels há mais de 170 anos, já deixava claro:

Quando a epidemia deu seus primeiros sinais, uma onda de pavor envolveu a burguesia da cidade. De súbito, ela se recordou da insalubridade dos bairros pobres – e tremeu com a certeza de que cada um desses bairros miseráveis iria se constituir num foco da epidemia, a partir do qual a cólera estenderia seus tentáculos na direção das residências da classe proprietária. Rapidamente se designou uma comissão de higiene para inspecionar aqueles bairros e preparar um relatório rigoroso de suas condições ao Conselho Municipal.

(…)

Dadas tais [péssimas] condições [de vida], como esperar que a classe mais pobre possa ser sadia e viva mais tempo? Que mais esperar, senão uma enorme mortalidade, epidemias permanentes e um progressivo enfraquecimento físico da população operária?

A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, 1845.

Sendo assim, o que nos resta é nos organizar em cada local de trabalho, estudo e moradia, e nos apoiar em nossas próprias forças para lutar e arrancar dos exploradores melhores condições de saneamento, organizar a saúde que precisamos, e as condições de vida que sonhamos

Não há outro caminho a não ser a organização das classes dominadas e do proletariado, por seus próprios objetivos, de forma independente do estado e seus representantes. É isso o que muitas comunidades e periferias têm feito pelo país.

A luta também tem sido a via encontrada pelos profissionais da saúde que, durante o mês de abril e maio fizeram vários manifestações e protestos em diversas partes do país reivindicando melhores condições de trabalho e equipamentos de proteção. 

Lutar contra o vírus, contra o capital e seus governos e por nossas vidas!

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- 19/06/2020