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Carlos Marighella: Rejeitar a Subordinação do Proletariado à Burguesia

À esquerda, Orlando Silva (PCdoB-SP) celebra a eleição de Rodrigo Maia (DEM-RJ) à presidência da Câmara dos Deputados, em 2019. Maia é chave na implantação do programa hegemônico da burguesia, via aprovação das “reformas” trabalhista e previdenciária. À direita, o indefectível Orlando Silva no novo apoio ao DEM/MDB/PSL/PSDB/PT e outros. No programa do blocão para 2021 as “reformas” tributária e administrativa, entre outras.  

Cem Flores

21.12.2020

Publicamos, a seguir, trechos do capítulo “Rejeição da Tática que Subordina o Proletariado à Burguesia”, do livro A Crise Brasileira, de 1966, de Carlos Marighella. Todos os negritos no texto de Marighella são do Cem Flores.

Escrito em pleno processo de crítica de Marighella ao PCB, que culminaria com sua demissão da executiva no final desse ano e a posterior criação da Ação Libertadora Nacional (ALN), o capítulo faz uma crítica feroz à tática do PCB de subordinação ideológica e política do proletariado à burguesia. Esse abandono da posição de classe proletária leva ao reboquismo e ao reformismo, a confiar na burguesia e a subestimar o trabalho de base com o proletariado, os camponeses e as demais classes dominadas. Dessa maneira, leva à perda da confiança da classe operária, à passividade política e à desistência de qualquer luta revolucionária.

A longa história dessa influência burguesa na luta dos comunistas brasileiros deve servir de alerta para a necessidade de darmos um combate sem tréguas ao reformismo, de defendermos vivamente a independência do proletariado e de participarmos de todas as suas lutas, ganhando assim o respeito da classe e a capacidade de estimulá-la para lutas políticas revolucionárias.

Alguns aspectos do texto de Marighella, como a caracterização do processo revolucionário, hoje parecem datados. Dessa caracterização decorre uma proposta de frente, inclusive com a participação da burguesia. Mas Marighella explicitamente defende a luta pela hegemonia do proletariado, junto ao campesinato, nessa frente.

No texto a seguir, retiramos apenas alguns trechos que dizem respeito exclusivamente a táticas específicas no contexto da luta contra a ditadura militar inaugurada em 1964. Mesmo assim, recomendamos vivamente a leitura do livro inteiro, divulgado pelo site marxists.org em https://www.marxists.org/portugues/marighella/1966/mes/crise.htm.

Carlos Marighella

A Crise Brasileira (1966)

Rejeição da Tática que Subordina o Proletariado à Burguesia

O proletariado não pode seguir uma tática qualquer. A tática que não convier à conquista dos objetivos estratégicos da revolução antimperialista e antifeudal, nacional e democrática, deve ser repelida.

Toda tática que, na nova situação do país, pretender prosseguir subordinando ideologicamente o proletariado à burguesia é uma tática condenável.

Que essa tática existe não é novidade para ninguém. Ela é o resultado da influência ideológica da burguesia no seio do proletariado.

Torna-se necessário conhecer suas características, para combater sua penetração no meio revolucionário.

Trata-se da tática que se limita a ver a aliança do proletariado com o centro da frente única, e permanece indefinidamente nestes marcos estreitos.

Sua maneira de ser é fruto de uma concepção reboquista, por falta de confiança no proletariado. Seu ponto de partida está em reconhecer que, objetivamente, o processo político brasileiro se desenvolve sob a direção da burguesia. E disso não se liberta.

É a tática que busca uma saída moderada, teme as lutas radicais e uma solução revolucionária, para não desgostar a burguesia e manter com ela uma colaboração duradoura.

A tática a que nos referimos segue religiosamente os cânones teóricos do passado, e não vê possibilidade para o desencadeamento da revolução, a não ser quando existam as condições pré-revolucionárias clássicas. A revolução cubana já pôs por terra este conceito tradicional, mas a citada tática ignora os fatos novos.

No que diz respeito à autocrítica, essa tática não parte de um ponto de vista de classe. Rejeita a ideia de que a causa principal do erro dos comunistas, anteriormente, foi a ilusão na liderança da burguesia. Recusa-se a admitir que ficamos basicamente sob a liderança da burguesia e a seu reboque, e perdemos a autoridade sobre as massas, dando-lhes a falsa ideia de que estávamos no poder e éramos a mesma coisa que João Goulart.

Em consequência da subordinação ideológica à burguesia, acabamos caindo na política de apoio aos atos positivos de Goulart e de combate aos seus atos negativos. Isto é errôneo. E o erro consiste — nesse caso — em esperar pelas iniciativas da burguesia. Consiste em nada fazer para sair do conformismo.

Não se trata de recusar a frente única com a burguesia. Mas uma das condições típicas dessa aliança é — de nossa parte — lutar para que a hegemonia seja do proletariado e este não fique a reboque da burguesia.

A tática que combatemos não se preocupa com tais coisas. Seu grande empenho — inspirado na ideia de que somos uma força moderadora — tem outro sentido, visa significativamente a chamar a atenção para o desvio esquerdista.

Na verdade, o esquerdismo foi fruto extemporâneo da ilusão de classe, que não permitia ver a impossibilidade da conquista de um programa avançado, confiando na burguesia, em vez de confiar na luta pela base.

Atribuindo ao esquerdismo a responsabilidade principal por nosso erro, a tática em causa não deixa de desferir alguns ataques ao desvio direitista — pelo menos para guardar as aparências.

O único resultado que consegue — por esse caminho — é dividir as fileiras do proletariado em duas facções — esquerda e direita. Mas não convence ninguém. E o pior de tudo é a fuga ao exame da causa principal de nosso erro, que foi a perda do sentido de classe.

Desistindo de reconhecer que nosso mal maior é tentar prosseguir com o cordão umbilical atado à burguesia, a tática referida teme aceitar como perspectiva básica a derrubada da ditadura pela força.

{…]

Essa tática aceita uma tal saída porque continua alimentando ilusões na burguesia, e espera que, das contradições entre as classes dominantes, surja um desfecho favorável ao povo, sem o apelo a lutas radicais.

[…]

Estamos aqui no pleno reinado das ilusões de classe, para não falar num reinado do Dr. Pangloss. Tal ilusão só se explica em virtude da tática que apreciamos acreditar que uma das facções das classes dominantes acabará buscando, ela própria, a ajuda do proletariado, para livrar-se da oposição ou da ameaça de outras facções, também em luta pela supremacia política.

A derrota da ditadura seria, assim, o resultado da luta e da liderança da própria burguesia ou de um setor burguês, que acabaria apoiando-se no proletariado, e evitando o derramamento de sangue ou a luta violenta.

[…]

A questão está no caminho tático, e este caminho consiste em saber qual o elo que levará à derrubada da ditadura, com o emprego da ação de massas e o reforçamento da posição independente do proletariado.

O elo só pode ser o trabalho de campo, a penetração profunda no meio rural brasileiro, a preparação e o desencadeamento das lutas camponesas, com todas as consequências decorrentes das ações que contrariam o imperialismo e o latifúndio.

A tática a que nos reportamos despreza o papel do camponês na luta contra a ditadura, exatamente pelo temor da radicalização do processo político.

Daí porque — ao tratar do programa de lutas — só apresenta reivindicações relacionadas com o nacionalismo, com as liberdades democráticas e os interesses do proletariado. As reivindicações camponesas são omitidas. A luta pela terra é relegada para o momento da luta pelo poder estatal revolucionário.

Esta maneira de proceder indica que a tática em alusão só acredita em lutas urbanas, e isto implica em persistir na ideia de lançar o proletariado à luta sem o apoio do campesinato, como tem acontecido até agora no movimento revolucionário brasileiro. A tática aqui exposta não vê que o camponês é o fiel da balança no Brasil, como em toda a América Latina.

Quanto ao problema das eleições, a tática referida avalia-o mal e erroneamente, porque não confia no proletariado e prosterna-se ante a burguesia e sua liderança.

Todos veem que o caminho da derrubada da ditadura não pode ser por via eleitoral. E esta é uma tese provada pela experiência, eis que a ditadura — valendo-se da força, isto é, dos atos institucionais e complementares — transformou as eleições numa comédia, para não falar em pantomima.

A tática em causa quer, entretanto, que pelas eleições sejam infligidas derrotas parciais que debilitem o regime, apressando sua derrocada. O meio para isto seria o apoio às forças contrárias à ditadura e que mereçam a confiança do povo. Não sendo possível, tratar-se-ia de votar em branco e desmascarar a farsa eleitoral.

Depreende-se daí algo de curioso: a tática que citamos ainda não considera suficientes os instrumentos já adotados pela ditadura que invalidam as eleições e fecham as possibilidades de uma saída eleitoral, com a participação e a vitória de candidatos da confiança do povo. E isto é evidente, desde que — como tal — não podem ser classificados senão os candidatos aceitos pela ditadura ou com ela comprometidos. São estes, aliás, os únicos aptos a escapar das cassações e de outras leis e métodos fascistas.

Esperar que das eleições convocadas pela ditadura surja a possibilidade de infligir-lhe derrotas parciais, debilitar o regime, apressar sua derrocada e retomar o processo democrático — sem o persistente trabalho para desencadear lutas e chegar assim ao efetivo desmascaramento do atual governo — significa impelir o povo para o beco sem saída das ilusões eleitorais. O que levará o proletariado e as massas a navegarem ingloriamente nas águas dos candidatos da ditadura, ou dos que pretendem salvar a quartelada de abril, depois que sentiram na própria carne a repulsa do povo ao governo e sua política.

A tática que mencionamos não oferece melhor solução em face do problema sucessório, e levará o movimento revolucionário a outra estrondosa ilusão ou à estagnação no charco da pusilanimidade burguesa.

Em referência às crises de governo, a tática em pauta firma posição partindo do fato que novos golpes podem ocorrer.

A possibilidade de novos golpes é real. Mas a tática citada quer — nesse caso — a intervenção das forças populares para impedir uma “solução reacionária” com o fortalecimento de Castelo, ou a substituição de golpistas.

Tal posição demonstra que essa tática não julga Castelo suficientemente reacionário nem bastante forte, o que, entretanto, poderia vir a acontecer com o golpe. A outra alternativa para uma “solução reacionária” — ainda segundo a mesma tática — seria a subida de novos golpistas ao poder.

O fundamento ideológico dessa posição tática é norteado pela ilusão na situação atual e pela esperança na sobrevivência de uma reviravolta da própria burguesia, reviravolta destinada a pôr em ordem a situação política e ensejar uma escalada democrática.

Em resumo, as características e os aspectos da tática a que aludimos mostram que o proletariado nada tem a fazer com ela e que — se porventura viesse a cometer o equívoco de adotá-la — continuaria perplexo e vagueando por aqui e por ali, sem orientação em face dos constantes atos institucionais e complementares dos militares empoleirados no poder.

Eis porque o combate à subordinação ideológica do proletariado à burguesia e, em consequência, a rejeição de uma tática baseada nesse princípio constitui um elemento fundamental para levar-se a bom termo a luta pela derrubada da atual ditadura.

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- 22/12/2020