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Louis Althusser: Conferência sobre a ditadura do proletariado – Excertos (1976)

Soviete de Deputados Operários e Soldados de Petrogrado, 1917

Cem Flores
24.07.2020

Reproduzimos para os camaradas leitores trechos da Conferência sobre a ditadura do proletariado, realizada pelo comunista Louis Althusser em Barcelona no ano de 1976. A tradução, de Danilo Enrico Martuscelli, foi originalmente publicada na revista Lutas Sociais, em 2014.

Nessa conferência, há importantes reflexões sobre conceitos fundamentais do materialismo histórico. Tal retomada teórica foi uma ação fundamental que o autor empenhou, junto a outras comunistas de sua geração, para uma (re)orientação política do movimento comunista internacional, que, há época, sofria fortes reveses  – derrota da revolução cultural na China, décadas de revisionismo soviético, abandono do termo ditadura do proletariado por parte dos partidos comunistas. 

Obviamente, décadas depois, hoje estamos em um patamar muito mais recuado, em uma crise muito mais grave do marxismo, em quase completo abandono. A nosso ver, isso apenas reforça a relevância da reflexão proposta por Althusser, tendo em vista a necessidade imperiosa de reconstrução do movimento comunista. 

Abaixo, preservamos os trechos cujo conteúdo melhor esclarece o conceito científico de ditadura do proletariado, que nos coloca, invariavelmente, sob a perspectiva e a estratégia do comunismo, como diz o autor.

***

Conferência sobre a ditadura do proletariado

Barcelona, 6 de julho de 1976.

[…]

Volto, agora, ao meu tema, a ditadura do proletariado, e, para começar, faço essa simples pergunta: qual é o estatuto teórico da expressão “ditadura do proletariado”?

E eu respondo: essa expressão possui o estatuto de um conceito científico no sentido forte, no sentido mais forte que possa existir, no sentido de uma verdade científica demonstrada, provada e continuamente verificada na prática. E acrescento: esse conceito científico pertence, como conceito científico, à ciência fundada por Marx, não a que denominam de filosofia marxista, que, a meu ver, não existe, ou seja, de modo mais preciso, não existe sob a forma clássica do que se denomina – na divisão intelectual do trabalho burguês – como “a filosofia”, portanto, não pertence ao que se chama de filosofia marxista, mas à ciência que Marx fundou e que é geralmente designada pela expressão “materialismo histórico”. Qual é o objeto dessa ciência (posto que, à diferença da filosofia, que não tem objeto, toda ciência tem objeto)? O objeto desta ciência são as leis da luta de classes. Isso não é, como acreditava o próprio Engels e como acreditam muitos marxistas, a Economia Política.

Karl Marx demonstrou – repito: demonstrou – no sentido mais forte que existe no mundo de uma demonstração científica, que o que chamam de Economia Política e o que existe sob esse nome nas sociedades imperialistas e infelizmente também na União Soviética e nos países socialistas, não é uma ciência, mas uma formação teórica da ideologia burguesa, portanto uma formação teórica produzida pela luta de classe ideológica burguesa contra o proletariado, uma formação teórica da ideologia burguesa que tem naturalmente, se nós somos materialistas, consequências práticas na luta de classe burguesa contra o proletariado; ou melhor, uma formação teórica da ideologia burguesa produzida para produzir esses efeitos da luta de classe contra a luta de classe do proletariado.

Assim, o objeto da ciência fundada por Marx são, e são unicamente, as leis da luta de classes nas diferentes formações sociais que derivam do que Marx denominava os diferentes modos de produção.

 […]

Aqui se coloca inevitavelmente a questão: não há um problema de vocabulário? A palavra ditadura não engendra efetivamente dificuldades?

Certamente, há um problema de palavras. Pois todo conceito deve se manifestar, ou seja, se fixar na linguagem, e, portanto, se identificar com palavras definidas, nos dois sentidos do termo: se reconhecer nelas e fazer corpo com elas.

O constrangimento objetivo absoluto de ter que se identificar com as palavras e a relativa independência do sentido do conceito em relação às palavras que o exprimem fazem com que, em tese, nada se oponha à mudança das palavras, caso seja preciso ou se encontrem outras melhores. Sabe-se que Gramsci, por exemplo, praticamente nunca empregou a expressão “ditadura do proletariado” nos seus Cadernos do cárcere. Era talvez para contornar a censura, como vimos acima. Mas o fato é: ele se serve de várias palavras, mas sem abandonar o conceito. São melhores? É possível: é algo a examinar em detalhes.

Portanto, pode-se, em tese, mudar as palavras. Mas sempre há a necessidade das palavras e a margem de liberdade não é, de fato, tão grande: pois é necessário passar pelos constrangimentos da linguagem estabelecida, que é sempre conservadora, porque registra as coisas e os sentidos reconhecidos pela ideologia dominante. E quando se quer lhe fazer dizer, em uma fórmula breve e compreensível, como foi o caso de Marx, alguma coisa de inacreditável, que a incomoda de fato em seus hábitos, é necessário lhe violentar.

Violentar na linguagem: todos os poetas, filósofos e sábios sabem disso, todos os militantes revolucionários também.

Pois, enfim, se Marx forjou, em 1852, depois de ter chamado no Manifesto (1848) o proletariado a se erigir “em classe dominante”, a expressão “ditadura do proletariado”, foi evidentemente para forçar que se visse, sob a enorme camada das “evidências” da ideologia burguesa, uma realidade que ninguém havia antes descoberto. E pela força das coisas, não havia evidentemente nenhum nome na linguagem existente para designar essa realidade. Marx fez como todo mundo. Pegou as palavras que lhe eram necessárias, lá onde elas se encontravam. Pegou uma palavra da linguagem política: ditadura. Pegou uma palavra na linguagem do socialismo: proletariado. E as forçou a coexistir em uma expressão explosiva (ditadura do proletariado) para exprimir, num conceito sem precedente, a necessidade de uma realidade sem precedente.

Portanto, é perfeitamente exato: acoplando a palavra proletariado à palavra ditadura, Marx violentou, devemos reconhecer, a palavra ditadura. Ele a deslocou de seu sentido: mas para fazer uso de seu sentido.

Pois, se na tradição clássica, e, portanto, na linguagem existente, a palavra ditadura designara um poder absoluto, tratava-se unicamente então do poder político, ou seja, do poder de governar, quer ele fosse detido por um homem (Roma) ou por uma assembleia (Convenção), sob formas legais nos dois casos. Mas ninguém antes de Marx teria imaginado que se pudesse falar da ditadura de uma classe social, pois essa expressão não tinha nenhum sentido no quadro de referência obrigatório das instituições políticas. Ora, é justamente isso que fez Marx: ele arranca a palavra ditadura de seu domínio do poder político, para forçá-la a exprimir uma realidade radicalmente diferente de toda forma de poder político: essa espécie de poder absoluto, sem nome antes dele, que exerce necessariamente toda classe dominante (feudal, burguesa, proletária), não apenas político, mas muito além disso, na luta de classes que abrange o conjunto da vida social, da base à superestrutura, da exploração à ideologia circunstancialmente, mas somente circunstancialmente, pela política.

Tente fazer melhor com duas palavras, e você verá: não é tão fácil! Falar de dominação de classe (como fez O Manifesto) ou hegemonia de classe (como fez Gramsci): podem ser ou parecer ser expressões ou muito frágeis ou muito eruditas. Seria preciso uma palavra familiar bastante forte, e que deixe sua marca, para permitir não somente compreender, mas sentir a força admirável dessa relação de “poder absoluto” de classe. Seria preciso uma palavra que desse a ideia de um “poder absoluto” acima da lei: ditadura.

Porém, ao mesmo tempo, seria preciso uma palavra excepcional para designar esse poder de exceção: um poder que é “absoluto” justamente porque ele está acima das leis – traduzam: mais elevado, vasto e profundo que o poder político sozinho. Ora, como ditadura continha a ideia de um poder absoluto acima das leis, Marx se apropriou deste sentido para forçá-lo a dizer, acoplando ditadura a proletariado, algo bastante diferente: na luta de classes, o poder da classe dominante está acima das leis, isto é, muito acima e para além da política.

Lênin escreve: “A ditadura é uma importante palavra, rude, sangrenta, uma palavra que expressa a luta sem clemência, a luta até a morte de duas classes, de dois mundos, de duas épocas da história universal. Não se jogam tais palavras ao vento”.

É assim que o conceito de ditadura do proletariado, vestido dessas duas únicas palavras, entrou quase nu na teoria e na história, como uma violência feita na linguagem, como uma violência de linguagem para falar da violência da dominação de classe.

Isso quer dizer que o conceito de ditadura do proletariado repousa sobre a ideia de que a dominação de classe é à sua maneira um poder absoluto que não se reduz às formas do poder político?

Por ora, eu responderei: sim.

Mas isso quer dizer precisamente que o conceito de ditadura do proletariado não pode ser compreendido isoladamente. E, de fato, ele remete sempre a um outro conceito: o conceito de ditadura burguesa. Os dois conceitos são idênticos. O que muda é a classe que domina. Mas o que não muda é a alternativa: ou uma classe ou outra, ou a burguesia ou o proletariado. Mas, para compreender essa alternativa, é preciso acrescentar: é o conceito de ditadura da burguesia que detém o “segredo” do conceito de ditadura do proletariado.

Todo mundo conhece os paradoxos célebres de Marx, Engels e Lênin sobre a ditadura da burguesia. Em vários momentos, Lênin afirma que a democracia parlamentar burguesa mais “livre” é a forma por excelência da ditadura da burguesia (eu não discuto aqui a ideia contestável de que possa existir uma “forma por excelência”). O que ele faz? Ele coloca em evidência essa distinção fundamental: as formas políticas mediante as quais se exerce a ditadura de uma classe na luta de classes são uma coisa, outra coisa é a própria ditadura de classe. E Lênin acrescenta: a ditadura de uma classe se exerce efetivamente em e mediante formas políticas, mas não se reduz a isso. O que, coligido, significa: não se pode compreender o sentido e a função das formas políticas (variáveis segundo o curso da luta de classes) da ditadura de uma classe sem as reportar à ditadura dessa classe na luta de classes, e às relações de força nesta luta de classe.

Essa distinção entre ditadura de classe e formas políticas que contribuem para realizar esta ditadura vale tanto para o proletariado quanto para a burguesia. E é por isso que, colocando esse mesmo paradoxo a serviço da ditadura do proletariado, Lênin pode sustentar a ideia de que a forma política (e social, nós veremos o motivo) por excelência da ditadura do proletariado é “a democracia das mais amplas massas”, “mil vezes mais livre” que a mais livre das democracias burguesas.

Se não sustentamos firmemente esta distinção entre a ditadura da classe dominante na luta de classes e as formas políticas nas e mediante as quais essa ditadura também se exerce, não podemos compreender “a necessidade” da ditadura do proletariado (Marx).

Essa distinção repousa sobre uma grande ideia, fundamental na teoria marxista. Para Marx, as relações de luta de classes, (inclusive) sancionadas e reguladas pelo direito e as leis em proveito da classe dominante, não são, em última instância, relações jurídicas, mas relações de luta, ou seja, relações de força, em resumo relações de violência declarada ou não. Isso não quer dizer que, para Marx, o direito e as leis tenham uma essência “jurídica” pura, portanto sem violência, mas isso significa que: as relações de classes são, em última instância, relações extrajurídicas (com uma força distinta do direito e das leis), portanto, relações “acima das leis”, porque são, em última instância, relações de força e violência declarada ou não, significa que a dominação de uma classe na luta de classes deve ser “necessariamente” pensada como “poder acima das leis”: ditadura.

[…]

No coração da relação de produção capitalista, que divide as classes em classes e reproduz essa divisão através do duplo processo de acumulação e de proletarização, encontra-se, portanto, em última instância, (isto é, ancorada nesta “última instância” que é a produção), a violência de classe, esta violência “fora da lei” que exerce a classe capitalista sobre a classe operária.

A ditadura burguesa é ditadura porque é nada mais, em última instância, do que esta violência mais forte que as leis. Em última instância, mas apenas em última instância, pois esta violência não se pode exercer sem as formas do direito que a sancionam e a regram, sem as formas políticas que sancionam e regram a detenção do poder de Estado pela classe dominante, tendo em vista a sanção do direito, e sem as formas ideológicas que impõem a sujeição à relação de produção, ao direito e às leis da classe dominante. Se a guerra, entendida no sentido da guerra à qual se entregam dois Estados com seus exércitos, é, segundo Clausewitz, “a continuação da política por outros meios”, portanto, é preciso dizer que a política é a continuação da guerra (de classe) por outros meios: o direito, as leis políticas e as normas ideológicas. Mas sem essa guerra, sem essa violência, sem a violência da exploração de classe, não se pode compreender nem o direito, nem as leis, nem a ideologia.

A relação de classe é, então, uma relação de luta, de força “anterior a qualquer direito”, e é necessariamente uma relação antagonista. É essa relação inconciliável que realiza o primado da luta das classes sobre as classes.

[…]

Agora, atingimos em cheio os problemas políticos concretos ligados à ditadura do proletariado: tomada do poder de Estado, destruição do aparelho de Estado, formas políticas da ditadura do proletariado, extinção do Estado…

Tentemos, pois, esclarecer um pouco essas questões muito atuais e muito controversas, colocando-nos sempre do ponto de vista ao qual Marx nos convida, ou seja, o ponto de vista da fusão do movimento operário com a teoria marxista; do ponto de vista da ditadura do proletariado; ou simplesmente do ponto de vista da teoria marxista, tal como ela esclarece o conceito de ditadura do proletariado, e tal como o conceito de ditadura do proletariado esclarece a teoria marxista.

Inicialmente, a questão da tomada do poder de Estado pelo proletariado. É incontestável que, na tradição histórica e política cujos militantes vivos herdaram, o conceito de ditadura do proletariado é 100% identificado hoje com a tomada violenta do poder de Estado. É um fato que precisaria de todo um estudo histórico e político para esclarecer suas razões. Não posso examinar aqui as causas dessa identificação. Mas o que já está claro é que, do ponto de vista teórico, essa identificação não corresponde à nenhuma necessidade teórica, nem tampouco à nenhuma necessidade histórica geral, a menos que se caia num fatalismo histórico incapaz de se erguer acima da brutalidade do “fato consumado”.

[…]

A questão da destruição do aparelho de Estado, que tem correlação com a construção de um novo aparelho de Estado, é aparentemente a mais difícil. 

[…]

Marx e Lênin insistem claramente: “quebrar”, “destruir” o aparelho de Estado. E aprendemos a levar a sério a insistência deles. Eles queriam dizer, como os anarquistas, que é preciso “fazer tábula do Estado”? Não, porque se trata de substitui-lo por um novo Estado, um Estado singular, um “Estado que seja um não-Estado”, ou ainda, uma “Comuna” ou um semi-Estado. Este novo Estado é o Estado da ditadura do proletariado em pessoa. Evidentemente, para que este Estado singular seja o Estado da ditadura do proletariado, é preciso fazer mais do que transformar o antigo Estado burguês, é preciso “quebrar” e “destruir” alguma coisa no Estado burguês: precisamente aquilo que o faz ser o Estado da ditadura da burguesia. Mas, o quê?

Somente pode-se responder essa primeira questão sobre a destruição do aparelho de Estado burguês, fazendo uma segunda questão sobre o definhamento do Estado. O que quer dizer, concretamente, que a questão da destruição do aparelho de Estado burguês somente se compreende a partir do definhamento do Estado, ou seja, a partir da perspectiva do comunismo. Essa condição é absoluta.

Ao tornar-se dominante pela tomada do poder de Estado, a classe operária não se encontra na mesma situação que as antigas classes dominantes. Todas as antigas classes dominantes eram classes exploradoras: tinham (pensem na burguesia) feito seu ninho na antiga sociedade, lançado as bases materiais e sociais de um novo modo de produção, se introduzido no aparelho de Estado. Elas não tinham em mente de modo algum “destruir”, mas simplesmente substituir uma forma de exploração por outra. Isto era perigoso? Pode-se chegar a um acordo. É dando que se recebe: o aparelho de Estado da antiga classe dominante poderia colocar-se novamente em funcionamento, bastando transformá-lo sob medida, para adaptá-lo à nova forma de exploração. O antigo Estado não demandava outra coisa: colocar-se novamente em funcionamento.

A classe operária é uma classe diferente, é de uma outra natureza. É uma classe explorada, que não explora nenhuma classe. É a primeira classe na história que chega ao poder sem impor um modo de produção já instalado na antiga sociedade e sem a cumplicidade objetiva que existe sempre entre as classes exploradoras. A classe operária não oculta seus objetivos: o fim da exploração, a sociedade sem classes, o comunismo. Faz mais de 130 anos que os proclama, que forjou organizações da luta de classe, que deu mostras de sua resolução através de seus sacrifícios. Ela luta abertamente pelo comunismo. Atemoriza mais que a antiga burguesia: com a classe operária não mais existe o toma lá, dá cá. Ela convoca a união popular: mas é preciso dizer sim à união popular, e que o sim seja um sim. É possível que por uma iluminação milagrosa o aparelho de Estado burguês exija colocar-se novamente em funcionamento? A classe operária é a que menos gostaria de vê-lo.

Pois, quando se pensa na função policial, militar, econômica, política e ideológica do Estado; quando se pensa não somente no Estado visível (as instituições políticas, a polícia, o exército, os tribunais etc.), mas também no Estado invisível, em todos os vínculos infinitamente sutis, mas sólidos da ideologia burguesa que brotam dos aparelhos ideológicos de Estado; quando se pensa que é necessário não somente dominar esse aparelho de Estado, mas transformá-lo para ir até o comunismo, neste momento, a palavra “transformar” torna-se frágil e a palavra “quebrar” começa a soar. Direi simplesmente o seguinte: entre o mundo da burguesia e o mundo do comunismo há, em algum lugar, uma ruptura; entre a ideologia burguesa, que domina, estrutura e inspira todo o aparelho de Estado e seus diferentes aparelhos (repressivos e ideológicos: o sistema político, sindical, escolar, a informação, a “cultura”, a família etc.), seu dispositivo, sua divisão do trabalho, suas práticas etc., e a ideologia do comunismo, há, em algum lugar, uma ruptura. “Quebrar” o aparelho de Estado burguês é encontrar, a cada momento, para cada aparelho, ou mesmo para cada ramo de um aparelho, a forma justa desta ruptura e levá-la a cabo concretamente no próprio aparelho burguês.

Como todo mundo, tenho alguma ideia sobre o sentido dessa “destruição”, mas, como são ideias de um indivíduo, eu as guardo em silêncio. Não se trata de derrubar as instituições da noite para o dia, nem a fortiori abater as pessoas. A destruição do aparelho de Estado burguês é uma tarefa política que, como qualquer outra tarefa política, exige uma análise, uma estratégia e uma tática e, acima de tudo, que se reconheça o “elo decisivo” e, caso se queira agir, o momento oportuno para cada ação. Para pegar apenas um exemplo, Lênin dizia que, depois da tomada do poder de Estado, era preciso quebrar essa peça essencial do aparelho de Estado burguês que é a democracia parlamentar. Como ele concebia essa “destruição”? Ele desejava tornar a democracia parlamentar “ativa e viva”, suprimindo, em particular, a divisão do trabalho entre o legislativo e o executivo, tornando, a todo momento, os eleitos revogáveis pelo povo. Destruição? Era na realidade um remodelamento profundo, para tornar esse aparelho político apto a servir ao comunismo.

Uma questão permanece, entretanto, em aberto: quais podem ser as formas políticas nas quais se realiza a ditadura do proletariado?

Creio ter demonstrado que não se podia deduzir da ditadura de uma classe (burguesia, proletariado) as formas políticas nas quais também se realiza essa ditadura. Digo também, para clarificar o sentido, que a ditadura de classe se realiza no âmbito da sociedade inteira, ou seja, não somente pelas formas políticas de seu poder, mas também pelas formas de sua exploração econômica e pelas formas de sua dominação ideológica.

É decisivo mencionar essas três formas: econômica, política e ideológica – para que não se fique obscurecido pelo que se passa no único nível chamado político.

Dito isto, é preciso descartar um mal-entendido fundamental, que infelizmente pesa ainda sobre a “questão” da ditadura do proletariado e que assimila a ditadura do proletariado às diferentes formas possíveis da ditadura política, quer seja ela o feito de um homem (Stálin) ou de um partido (o partido comunista): a ditadura do proletariado, que se limita a indicar o fato da dominação de uma classe na luta de classes, não impõe nunca a priori a forma política de sua realização, seja aquela da ditadura, definida politicamente como poder tirânico, seja a de um homem ou de um partido.

Que Lênin pudesse, em determinado momento da história da revolução soviética, constatar que a ditadura do proletariado se exercia, de fato, sob a forma da ditadura política do partido bolchevique, confundido com o imenso aparelho de Estado, muito mal estruturado e muito fortemente burocratizado, e denunciar esse desvio em termos patéticos, prova ao mesmo tempo o risco histórico sempre possível de uma confusão, ou de uma degenerescência – que Stálin devia consagrar com hesitação de fala ou de consciência -, mas também a incompatibilidade e a heterogeneidade de princípio dos termos: ditadura do proletariado e forma política da ditadura.

Confusão histórica, incompatibilidade ou heterogeneidade teórica e política dos termos, não devemos ocultá-lo: aqui estamos numa encruzilhada dos caminhos. O que devemos compreender não é que existem caminhos (temos para isso cartógrafos de sobra), mas que eles se cruzam, ou seja, divergem. Devemos compreender que, sobre a questão das formas políticas da ditadura do proletariado, existem caminhos que se cruzam não por acaso, mas por necessidade. É essa necessidade que é preciso explicar, agora ou nunca.

Para ver aonde os caminhos conduzem, sobretudo quando se cruzam, é necessário mirar longe no horizonte: é preciso ter uma estratégia, a estratégia do comunismo. É preciso mirar longe no futuro da luta de classes, caso contrário, dizia Marx, a melhor organização da luta de classe proletária cai no oportunismo: basta-lhe sacrificar os interesses do futuro do proletariado nos seus interesses imediatos.

Pois, enfim, não se levou a sério, realmente a sério o que Marx dizia do socialismo: período de transição entre o modo de produção capitalista e o modo de produção comunista. Não se levou a sério essa simples realidade: não existe modo de produção socialista, mas uma transição, a forma inferior do comunismo, que se chama socialismo (Marx). E, por conta disso, não se levou tampouco a sério essa outra realidade: do mesmo modo que não existe modo de produção socialista, não existem (é simples) relações de produção socialistas. E tampouco se levou a sério a seguinte ideia de Marx e de Lênin: a luta de classe prossegue no período de transição chamado socialismo (e a prova é que o Estado subsiste nele) sob novas formas, sem relação visível com as formas familiares ao modo de produção capitalista, mas como uma existência real.

O que há por trás de todas essas afirmações concordantes e que a prática de Lênin sob a Revolução soviética jamais desmentiu? Há essa definição de Lênin do período de transição, portanto, do socialismo: período definido pela contradição entre o capitalismo e o comunismo, pela contradição entre “elementos” capitalistas e “elementos” comunistas. Os termos (“elementos”) não são seguramente os mais adequados. Mas é isso uma ideia vaga ou abstrata? Certamente não.

Quando a classe operária, que conseguiu o poder de Estado, toma suas primeiras medidas, o que ela faz? Ela expropria (pela lei ou, como em Portugal, pela vontade dos trabalhadores: os trabalhadores dos bancos “tomaram o poder em suas empresas”, a lei veio apenas depois. Que venha antes ou depois, a lei não é nada mais que uma forma de violência feita à realidade estabelecida) os detentores dos meios de produção e de troca. Ao fazer isso, a classe operária “nacionaliza” os grandes meios de produção e de troca. Eis aqui o ponto absolutamente decisivo, eis aqui a encruzilhada: considerado em si mesmo, esse ato é contraditório. Pois nacionalizar, é destruir a classe burguesa em suas fortalezas, nacionalizar é, então, traçar formalmente o futuro da apropriação dos meios de produção, é antecipar formalmente a abolição da “separação” entre os produtores diretos e os meios de produção que define o modo de produção capitalista, é, portanto, se comprometer formalmente com a via ao comunismo. Mas, ao mesmo tempo, nacionalizar não é nada diferente do que revestir o capitalismo de uma nova forma, a forma do capitalismo de Estado que assombrava Lênin, e que não é nada diferente da realização da tendência mais profunda do capitalismo, daquela que não se quer falar, a de um “capitalismo sem capitalistas” (Marx), onde o Estado burguês concentra e distribui as funções da acumulação e do investimento e, portanto, a reprodução da relação capitalista. Sim, da relação capitalista, porque o salariado subsiste, e com ele a exploração e as relações mercantis, ou seja, o poder do dinheiro.

Ao estudar as primeiras formas de existência histórica do modo de produção capitalista, Marx distinguia a “subsunção formal” (na qual subsistem as antigas formas de trabalho, o “ofício” dos artesãos, sob a nova relação capitalista: o salariado) da “subsunção real” (na qual as antigas formas de trabalho, o “ofício” dos artesãos, correspondem à nova relação capitalista da divisão e da organização do trabalho, fim do ofício, trabalho “supérfluo”, fragmentado, parcelado), que correspondem à nova relação capitalista (a concentração, a divisão do trabalho e sua concentração capitalista). É uma contradição desse gênero que se opera na apropriação coletiva dos meios de produção: com a diferença de que é a antiga relação (capitalista) que deve ser submetida à nova forma (comunista).

Digo forma comunista, porque ela é, na transformação das condições da produção (propriedade coletiva, planificação), apenas formal, já que ela não enceta a relação de produção (o salariado), não toca na organização e na divisão do trabalho. Mas digo ao mesmo tempo forma comunista, porque ela já está posta em marcha, uma subsunção que tende para seu futuro, que espera desse futuro que ele lhe dê a realidade e a existência. É verdade que tudo se opera nessa indecisão, nessa encruzilhada: ou a antiga relação capitalista levará vantagem sobre a nova forma comunista ou a nova forma comunista se tornará real e se imporá como a nova relação. Nesta alternativa, o que decide é a relação de forças na luta de classes. Mas como dizer? Nesse começo e por muito tempo, a luta de classes, que permanece ancorada na produção, que é sua praça-forte, se desloca para outros lugares e se exprime por outras formas, que não concernem apenas à produção, mas também à superestrutura. A luta de classes se desenvolve no novo Estado, que detém a nova propriedade dos meios de produção e de troca, e em torno deste Estado, e em torno do novo caráter de classe deste Estado e de seu aparelho, no partido e em torno do partido da classe operária, que organizou a luta de classe das massas, nas massas e em torno das próprias massas, de suas capacidades e de sua vontade revolucionárias. É então que se procede uma enorme e longa prova de força, que se chama a luta de classes sob a ditadura do proletariado, simultaneamente na produção, na política e na ideologia.

Se então alguém se pergunta quais são as formas políticas próprias à ditadura de classe do proletariado, veremos que elas derivam naturalmente das características próprias e das condições concretas dessa luta de classe. Para que a subsunção formal do comunismo se torne o comunismo real, para que a apropriação formal dos meios de produção torne-se real, para que a indecisão da relação de produção se incline para o lado do comunismo e não para o do capitalismo, é preciso que todas as forças das massas populares, multiplicadas por dez, com o máximo de lucidez e consciência, entrem no jogo da luta de classes. O que, por um momento, parecia racionalmente referir-se apenas à “destruição” do aparelho de Estado, como a invenção de novas formas adequadas para se destituir o Estado de suas funções transformadas, torna-se cem vezes mais verdadeiro quando se trata da luta de classe em toda a sua amplitude. Sem “a mais ampla democracia de massa”, a luta de classe proletária ou, dito de outra forma, a ditadura do proletariado, é impossível e impensável.

Democracia, portanto. E Lênin acrescenta: “democracia até suas últimas consequências”. Mas essas palavras, emprestadas também da linguagem da política existente, ou seja, burguesa, não enganam sobre seu sentido. É uma democracia distinta da democracia burguesa, parlamentar, com suas eleições fraudulentas, a demagogia de seus dispositivos (tudo para a clientela eleitoral), sua estabilidade artificial (dos eleitos por tantos anos), sua divisão do trabalho interna e externa (o legislativo separado do executivo e do judiciário) etc., que se trata. E quando Lenin afirma “democracia até suas últimas consequências”, é preciso segui-lo na margem do rio, para perceber que a democracia de massa começa na outra margem. Que a “democracia de massa” incorpore, transformando-as, as formas de democracia parlamentar, que ela quebre, indubitavelmente, as interdições de sua divisão do trabalho. Mas “quebre” também a interdição de duas outras grandes divisões do “trabalho” ante as quais a democracia parlamentar burguesa é cega: aquela que se realiza na produção e aquela que se realiza na ideologia. Como não ver a hipocrisia dessa democracia burguesa que não quer saber nada sobre o que se passa no local de trabalho, na exploração, não quer saber nada sobre as condições reais (elas mudam constantemente), não quer saber nada sobre as condições de moradia dos trabalhadores, não quer saber nada sobre suas condições de “transporte” individual ou coletivo? Como não denunciar a hipocrisia dessa democracia burguesa que confina, ou seja, estrangula, a política na ação dos eleitores e nas deliberações dos deputados, e que ignora soberbamente o que se passa no terreno da ação do aparelho de Estado e dos outros aparelhos ideológicos de Estado? A democracia de massa, segundo Lênin, é a intervenção das massas não somente na política, no sentido burguês, através do sistema parlamentar, mas também no aparelho de Estado, na produção, na ideologia. É preciso encontrar as formas apropriadas? Sim, afinal de contas, não é tão difícil, mas para encontrá-las, é preciso procurá-las e inventá-las, ainda que para isso seja preciso inicialmente conhecê-la e desejá-la. E é verdade que não se pode desejá-la se não se reconhece que essas intervenções são vitais para a luta de classes das massas, se não se sabe que o direito, as leis e as normas são os meios e as apostas da luta de classes, se não se sabe que a política, concebida no sentido estreito que lhe dá a burguesia, é somente uma pequena província no imenso domínio da luta de classes.

Conhecer isso depende de uma experiência. Ela se faz pela prática das massas. Ela se concentra na experiência da luta de classes. Ela se transmite pela memória das massas que são suas organizações da luta de classes. Se não se confunde com o Estado, se está atento à vontade das massas, o partido comunista, “um passo adiante, mas somente um passo”, e sobretudo nada de três passos para trás, pode desempenhar um papel decisivo. E seu papel é a tal ponto decisivo que se pode dizer justamente que a posição do partido pode servir de testemunho, na encruzilhada de caminhos da ditadura do proletariado, à boa orientação da tendência histórica. Diz-me como funciona o teu partido e eu te direi quais são as formas políticas de tua ditadura do proletariado, diz-me quais são essas formas e eu te direi se teu Estado definha ou se reforça, diga-me qual é o teu Estado, e eu te direi de qual classe, proletária ou burguesa, é tua ditadura.

É um modo de dizer. Pois se pode fazer o mesmo juízo tomando as coisas por qualquer outro ângulo. Diz-me qual é a tua organização do trabalho… diz-me qual é a tua planificação… diz-me quais são teus sindicatos… diz-me qual é a tua “revolução cultural” etc. Em todos os casos, as questões conduzem à mesma encruzilhada: com qual ditadura nos engajamos? Para qual ditadura estamos em marcha? E isso quer que se queira ou não.

Que aqueles que puderem, releiam Lênin e leiam Étienne Balibar[i], que o explica de maneira esclarecedora em seu último livro : encontrarão em cada página, ou em quase todas, essas questões, ou seja, a cada vez, a mesma questão lancinante: onde estamos? Para onde vamos? A mesma questão lancinante e dramática: porque para ter uma resposta, é preciso colocar todas essas questões ao mesmo tempo e, como uma remete à outra, é necessário considerá-las todas em conjunto. Mas o que mantém todo o conjunto de questões no espírito de Lênin, nos piores horrores da guerra e da guerra civil, nas catástrofes da fome e nas duras provas do bloqueio mundial, é a visão sagaz de uma luta sem clemência, que vai se inclinar para uma ditadura caso não se mantenha pela consciência, pelo esforço, pelo heroísmo e pelo sangue da outra ditadura, aquela de uma classe operária que sabe que é combate de vida e de morte: “A ditadura é uma importante palavra, rude, sangrenta, uma palavra que expressa a luta sem clemência, a luta até a morte de duas classes, de dois mundos, de duas épocas da história universal. Não se jogam tais palavras ao vento”.

É por isso que recordo todos esses pontos teóricos: não é preciso se deixar intimidar por aqueles que invocam hoje contra a teoria que dificulta uma prática que lhes convêm. A história tem demonstrado que a teoria marxista, quando não é recitada como uma oração ou invocada como uma autoridade, fala diretamente do real e de um modo surpreendente.

Por exemplo, se se destrói ou transforma o aparelho de Estado burguês, sem construir imediatamente um novo aparelho de Estado que não sirva, mediante a intervenção das massas, a seu próprio definhamento, teremos um novo aparelho de Estado burguês. O definhamento deve começar no momento da destruição ou da transformação. E isso não são palavras ao vento. O processo começa quando as organizações surgidas das massas se encarregam de certas funções do novo Estado: desde sua instalação, ou mesmo antes. Isso é um paradoxo? Não creio. Pois não há um tempo único na luta de classes, mas tempos que se entrecruzam, um avançado, outro em espera. Há coisas que podem começar antes da revolução e que depois serão efeito da revolução. Onde? Quando? Basta abrir os olhos. O que são, portanto, as organizações comunistas da luta de classe senão já o comunismo? E o que são então essas iniciativas populares que se vê nascer aqui e ali, na Espanha, na Itália ou em outros lugares, nas fábricas, nos bairros, nas escolas, nos asilos, senão já o comunismo?

Eis porque, em uma última palavra, defendo o conceito de ditadura do proletariado. Porque, reestabelecido, ele nos abre a estratégia do comunismo.

Ele nos lembra, e é hoje um ponto doloroso e crucial, que o socialismo não é um modo de produção, no qual as “relações de produção socialistas” “corresponderiam” a determinadas forças produtivas. Não existe um modo de produção socialista, não há relações de produção socialistas. [Ele nos lembra] que o socialismo não é essa sociedade estável, dotada de um poderoso Estado monopolista que sabe guardar-se das crises e distribuir a segurança do emprego e dos serviços sociais, – mas um “período de transição” contraditório, no qual, esperamos, os elementos comunistas ganham cada dia mais terreno sobre os elementos capitalistas, no qual a luta de classe e as classes continuam existindo sob formas novas, no qual a iniciativa das massas encarrega-se cada vez mais das funções do Estado, na perspectiva, não de um “socialismo desenvolvido”, mas simplesmente do comunismo.

E porque falo de comunismo, o conceito de ditadura do proletariado nos lembra também, e acima de tudo, que o comunismo não é uma palavra, nem um sonho para não se sabe qual futuro perdido. O comunismo é nossa única estratégia, e, como toda estratégia verdadeira, não somente dá a orientação hoje, mas começa hoje. Ou melhor, ele já começou. Ele nos repete a velha frase de Marx: o comunismo não é para nós um ideal, mas o movimento real que se reproduz aos nossos olhos. Sim, real. O comunismo é uma tendência objetiva já inscrita em nossa sociedade. A coletivização crescente da produção capitalista, as formas de organização e de luta do movimento operário, as iniciativas das massas populares e – por que não? – certas audácias de artistas, escritores, pesquisadores são desde agora esboços e traços do comunismo.

É preciso crer que Lênin dizia algo desse tipo quando afirmava, com suas próprias palavras, que são também nossas: a ditadura do proletariado é a democracia das mais amplas massas, uma liberdade que os homens jamais conheceram!


[i] [Nota do tradutor] Althusser refere-se aqui ao livro de Balibar, intitulado Sur la dictadure du prolétariat. Paris: François Maspero, 1976.

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- 24/07/2020