CEM FLORES

QUE CEM FLORES DESABROCHEM! QUE CEM ESCOLAS RIVALIZEM!

Comuna de Paris, Cultura, Destaque, Dossiês, Internacional, Movimento operário

O 18 de março de 1871: o início da Comuna de Paris, por Prosper-Olivier Lissagaray

Viva os 150 anos da imortal Comuna de Paris!

Cem Flores

18.03.2021

 

Considerando que o que o governo nos promete

Está muito longe de nos inspirar confiança

Nós decidimos tomar o poder

Para podermos levar uma vida melhor.

Considerando: vocês escutam os canhões

Outra linguagem não conseguem compreender

Deveremos então, sim, isso valerá a pena

Apontar os canhões contra os senhores!

Brecht, Os Dias da Comuna.

 

É hora de as pessoas entenderem o verdadeiro significado desta Revolução; e  isso pode ser resumido em poucas palavras. Significava o governo do povo pelo povo. Foi a primeira tentativa do proletariado de se governar.

Eleanor Marx

 

No dia de hoje, um 18 de março, 150 anos atrás, iniciava-se a primeira experiência de governo operário da história: a Comuna de Paris. Apesar de sua vida curta, apenas 72 dias, a data de seu surgimento é comemorada pelos movimentos operário e comunista de todo o mundo. Afinal, trata-se de um marco revolucionário fundamental na nossa história, cuja atualidade não se esgotará até que o capitalismo e o poder burguês estejam plenamente derrotados. O heroísmo daqueles homens, mulheres e crianças do proletariado parisiense ainda hoje nos inspira com seu exemplo!

Continuando a série de publicações sobre os 150 anos da Comuna, trazemos para os(as) camaradas e leitores(as) o terceiro capítulo, O 18 de Março, do clássico livro História da Comuna 1871, de Prosper-Olivier Lissagaray. A tradução para o português é da camarada Ana Barradas, que escreveu artigo sobre o livro e sobre a Comuna para o blog Bandeira Vermelha.


Leia as publicações do Cem Flores Viva os 150 anos da imortal Comuna de Paris!

– Engels em homenagem à Comuna de Paris, de 02.12.2019. https://cemflores.org/2019/12/02/engels-em-homenagem-a-comuna-de-paris/.

– Uma Carta de um Communard, de 04.01.2021. https://cemflores.org/2021/01/04/viva-os-150-anos-da-imortal-comuna-de-paris/.

– Marx e Engels: cartas anteriores à Comuna de Paris, de 05.02.2021. https://cemflores.org/2021/02/05/marx-e-engels-cartas-anteriores-a-comuna-de-paris/.

– Marx e Engels: cartas durante a Comuna de Paris, de 05.03.2021. https://cemflores.org/2021/03/05/marx-e-engels-cartas-durante-a-comuna-de-paris/.


Lissagaray foi um soldado da Comuna de Paris, um revolucionário que participou diretamente dos eventos que narra. Em 1886, a dirigente Eleanor Marx, que foi sua companheira, afirmou que o livro era “a única história autêntica e confiável até agora escrita do movimento mais memorável dos tempos modernos”.

Como dissemos em publicação anterior, o contexto histórico da Comuna era o da guerra entre França e Prússia, iniciada em julho de 1870. Em menos de dois meses de combate, o imperador francês Luís Bonaparte fora capturado. Um novo governo provisório, ainda dirigido por monarquistas, foi instalado na França. Seu líder era o reacionário Adolphe Thiers, responsável por negociar a rendição com os prussianos, que iniciaram um cerco a Paris em setembro de 1870, mantido até o final da Comuna.

A condição do proletariado francês era de penúria. Em Paris, os trabalhadores, já em armas e de posse de canhões (através dos batalhões da Guarda Nacional), resistiam ao capitulacionismo do governo e elevavam sua revolta com a nova república que se formava. Eles buscavam independência para continuar a resistir aos invasores e para construir um governo autônomo, a Comuna.

Os fatos relatados por Lissagaray, transcritos abaixo, se passam em Paris, em 18 de março de 1871. Tratam da insurreição popular frente à intenção do governo de Thiers de desarmar a Guarda Nacional, que se tornara um risco às classes dominantes francesas. O ataque burguês começara de madrugada e até obteve algumas vitórias iniciais. O proletariado de Paris, tão logo viu o exército nas ruas, reagiu em defesa de si mesmo, de suas armas e de sua cidade.

Para a burguesia e as demais classes dominantes francesas, já estava bem claro qual o seu inimigo: o comunismo. “Doutrinas comunistas” é o termo com o qual o apelo desesperado da burguesia derrotada em 18 de março de 1871 tenta ganhar o apoio das massas. O que a burguesia via com desespero era, no entanto, a própria face das massas proletárias no poder. Essas, ao contrário, se reconheciam e confraternizavam. Eis uma definição de comunismo.

No dia 18 de março de 1871, as massas proletárias – homens, mulheres e crianças – impedem que o governo burguês tome suas armas e seus canhões, os soldados baixam seus fuzis e se confraternizam alegremente com o povo e, identificando seus inimigos, prendem os seus generais. Dois desses são executados. Não há como não lembrar dos versos imortais da Internacional, composta no próprio ano de 1871 por um communard: “Paz entre nós, guerra aos senhores / Façamos greve de soldados / Somos irmãos, trabalhadores / Se a raça vil, cheia de galas / Nos quer à força canibais / Logo verás que as nossas balas / São para os nossos generais”.

Derrotados em seu intento contrarrevolucionário, Thiers e seu governo fogem para Versalhes, de onde irão organizar a reação e os futuros ataques à Paris. Quem assume provisoriamente o poder na cidade naquele 18 de março é o Comitê Central da Guarda Nacional – que incluía revolucionários da Associação internacional dos Trabalhadores (AIT), a 1º Internacional. Eles debatem sua própria legitimidade – como diria Marx, prova de sua “enorme decência” – e admitem apenas ficar no poder até a realização de novas eleições e a oficialização da Comuna de Paris, o que ocorreria dez dias depois. Essa revolução tornaria Paris uma fortaleza proletária a resistir contra a burguesia, em uma guerra de classes aberta.

No final do dia 18 de março de 1871, a bandeira vermelha tremula sobre Paris!

Guardas Nacionais defendem uma barricada na Comuna de Paris, no dia da insurreição, em 18 de março de 1871.

 

*          *          *

 

História da Comuna de 1871

Prosper-Olivier Lissagaray

 

Capítulo 3: O 18 de Março

 

 “Fizemos portanto o que devíamos; nada provocou a insurreição de Paris”

Dufaure [ministro da justiça do governo de Thiers durante a Comuna de Paris]

Maio de 76

Mapa dos distritos de Paris

A execução da ordem [de Thiers] foi tão tola como a ideia.

A 18 de março, às três horas da madrugada, essas tropas de combate, sem víveres e sem equipamento, espalham-se em todas as direções, vão para as colinas Chaumont, para Belleville, para o distrito do Temple, para a Bastilha, para o Hotel de Ville, para a praça Saint Michel, para o Luxembourg, no 13º distrito, para os Invalides. O general Susbielle, que marcha sobre Montmartre, comanda duas brigadas de cerca de seis mil homens. O bairro dorme. A brigada Paturel ocupa sem fazer fogo o Moulin de la Galette. A brigada Lecomte dirige-se para a torre de Solférino e só encontra um sentinela: Turpin. Como ele ergue a baioneta, os gendarmes abatem-no, correm para o posto da rua dos Rosiers, tomam-no e encerram os guardas nos porões da torre. Nas colinas Chaumont, em Belleville, os canhões são assaltados da mesma maneira. O governo triunfa em toda a linha e d’Aurelles envia aos jornais uma proclamação de vencedor, que foi publicada em vários vespertinos.

Canhões da Guarda Nacional em Montmartre

Só faltavam cavalos e tempo para dar seguimento a esta vitória. [General] Vinoy tinha-se praticamente esquecido disso. Só às oito horas começaram a atrelar algumas peças; muitas estavam ensarilhadas ou não tinham a parte dianteira.

Entretanto, os distritos acordam. Abrem as lojas pela manhã. Em volta das leiteiras, diante das tabernas, fala-se em voz baixa; aponta-se para os soldados, de metralhadoras assestadas para as ruas principais; nas paredes, um cartaz ainda úmido, assinado por Thiers e os seus ministros. Estes falam do comércio paralisado, da suspensão das encomendas e da retração dos capitais. “Habitantes de Paris, no vosso próprio interesse, o Governo resolveu agir. Que os bons cidadãos se apartem dos maus e ajudem a força pública. Prestarão serviço à República”, dizem os senhores Pouyer-Quertier, de Larcy, Dufaure e outros republicanos. A rematar, uma frase de dezembro de 1851[i]: “Os culpados serão entregues à justiça. É preciso, custe o que custar, que a ordem renasça, completa, imediata, inalterável…” Falava-se de ordem, o sangue ia correr.

As mulheres foram as primeiras, como nos dias da Revolução. As do 18 de março, castigadas pelo cerco [de Paris pelas tropas prussianas há mais de 6 meses] – tinham tido dupla ração de miséria – não esperaram pelos seus homens. Rodeiam as metralhadoras e interpelam os chefes de peça:

— É uma vergonha! Que fazes tu aí?

Os soldados calam-se. Às vezes um tenente diz:

— Vá lá, vizinhas, afastem-se!

As mulheres da Comuna

O tom de voz não é rude; elas ficam. De repente, toca a reunir. Uns guardas nacionais descobriram dois tambores no posto da rua Doudeauville e percorrem o 18º distrito. Às oito horas, já são 300 oficiais e guardas que sobem o boulevard Ornano. Sai um contingente de posto do 88º e gritam-lhe: “Viva a República!” Seguem caminho. O posto da rua Dejean junta-se a eles e, de coronhas no ar, soldados e guardas à mistura sobem a rua Muller, que leva às colinas, defendidas desse lado pelos soldados do 88º. Estes, vendo os camaradas no meio dos guardas, fazem-lhes sinal que venham, que lhes darão passagem. O general Lecomte detecta o movimento, manda-os substituir por polícias e prende-os na torre Solférino, acrescentando:

— Já vão ver o que vos espera!

Os que os substituem mal têm tempo de dar uns tiros. Guardas e soldados de infantaria vencem o parapeito; grande número de guardas, de coronhas no ar, acompanhados de mulheres e crianças, desembocam no flanco oposto, pela rua dos Rosiers. Lecomte, rodeado, ordena fogo três vezes, mas os homens continuam com a arma a tiracolo. A multidão concentra-se, confraterniza e prende Lecomte e os seus oficiais.

Os soldados que ele acabou de fechar na torre querem fuzilá-lo. Os guardas nacionais conseguem libertá-lo e, com grande dificuldade – a multidão toma-o por Vinoy – conduzem-no com os seus oficiais ao Cháteau-Rouge, quartel general dos batalhões de Montmartre. Aí, pedem-lhe que mande retirar das colinas. Ele assina a ordem sem hesitar, como fez em 1848[ii] o general Bréa. A ordem é levada aos oficiais e soldados que ainda ocupam a rua dos Rosiers. Os soldados entregam as espingardas entre vivas à República.

Três tiros de canhão de pólvora seca anunciam a Paris a reconquista das colinas.

Guarda Nacional em barricada

À esquerda de Lecomte, o general Paturel tentou em vão fazer descer pela rua Lepic alguns dos canhões do Moulin de la Galette. A multidão deteve os cavalos, cortou-lhes os arreios, infiltrou-se entre os soldados e levou os canhões, à força de braços, para as colinas; os soldados que guardam o fundo da rua, na praça Blanche, levantaram as coronhas ao ar. Na praça Pigalle, o general Susbielle manda carregar sobre a multidão concentrada na rua Houdon. Intimidados pelos apelos das mulheres, os caçadores fazem recuar os cavalos, despertando risos. Um capitão lança-se para a frente, de sabre na mão, fere um guarda e cai crivado de balas. Os soldados que abrem fogo por trás dos abarracamentos do boulevard são desalojados. O general Susbielle desaparece. Vinoy, postado na praça Clichy, põe-se a salvo. Uns sessenta soldados feitos prisioneiros são levados à subprefeitura de Montmartre.

Nas colinas Chaumont, em Belleville, no Luxembourg, o povo também tinha retido e retomado os canhões. Na Bastilha, onde o general Leflô quase é preso, a Guarda Nacional confraterniza com os soldados. Na praça, um momento de grande silêncio. Atrás de um caixão que vem da gare de Orléans, um velho de cabeça descoberta, seguido de um longo cortejo: Victor Hugo leva ao cemitério de Père-Lachaise o corpo do filho Charles. Os federados apresentam armas e abrem caminho pelas barricadas, para deixar passar a glória e a morte.

Às onze horas, o povo venceu a agressão em toda a linha, conservando quase todos os canhões – as atrelagens só levaram dez – e ganhando milhares de espingardas. Os batalhões federados estão de pé; os distritos são despavimentados.

Mulheres e crianças ajudam a Guarda Nacional a guardar os canhões

Desde as seis horas da manhã, d’Aurelles de Paladine mandava tocar a reunir, em vão, nos bairros do centro. Batalhões antes fiéis não enviavam mais de vinte homens ao ponto de concentração. Paris inteira, lendo os cartazes, dissera: “É o golpe de Estado”.

Ao meio-dia, d’Aurelles e Picard lançam o grande apelo: “O Governo chama-vos a defender os vossos lares, as vossas famílias, os vossos bens. Alguns indivíduos transviados, obedecendo apenas a chefes secretos, dirigem contra Paris os canhões que foram subtraídos aos prussianos”. Como esta acusação de indelicadeza para com os prussianos não comova ninguém, todos os ministros vêm em seu apoio: “Espalha-se o boato absurdo de que o Governo prepara um golpe de Estado… O Governo quis e quer acabar com um comité insurrecional cujos membros representam apenas as doutrinas comunistas, poriam Paris a saque e levariam o país à perdição”. Estas frases que evocavam Junho [de 1848] causaram dó. Os batalhões da ordem teriam podido alinhar um contingente que se visse; contudo, ele ficou reduzido a quinhentos ou seiscentos homens.

Thiers e o seu Governo tinham-se refugiado no Ministério das Relações Exteriores. Quando soube da debandada das tropas, Thiers deu ordens para as fazer concentrar no Champ de Mars. Abandonado pelos batalhões burgueses, falou em evacuar Paris, em reconstituir o exército em Versalhes. Velha ideia girondina proposta a Carlos X por Marmont, a Louis-Philippe e à Assembleia de 1848, e que tinha aproveitado ao general austríaco Windischgroetz. Vários ministros insurgiram-se, queriam que se montasse guarda a alguns pontos, ao Hôtel de Ville, às suas casernas ocupadas pela brigada Derroja, à Escola Militar, e que se tomassem posições no Trocadéro. O homenzinho [Thiers] só deu ouvidos às opiniões extremas, decidiu que se evacuasse toda a cidade, mesmo os fortes do sul, restituídos pelos prussianos havia quinze dias. Por volta das três horas, os batalhões populares do Gros-Caillou desfilaram diante do edifício, com os tambores e os clarins à frente. Os ministros julgaram-se perdidos. Thiers fugiu por uma escada escusa e partiu para Versalhes tão fora de si que, na ponte de Sèvres, deu ordens por escrito para se evacuar o monte Valérien.

Até ao momento desta fuga, os batalhões federados não tinham tentado nada contra coisa nenhuma. A agressão da manhã surpreendera o Comitê Central [da Guarda Nacional], tanto como Paris inteira. Na véspera à noite, os seus membros tinham-se separado como de costume, marcando encontro para o dia 18, às onze horas da noite, por trás da Bastilha, na escola da rua Basfroi, por já não ser segura a praça da Corderie, muito vigiada pela polícia. Desde o 15 de março, as novas eleições haviam-lhe dado mais alguns membros e tinha nomeado um comitê de defesa. À notícia do ataque, uns correram para a rua Basfroi, outros ocuparam-se a levantar os batalhões dos seus bairros. Às dez horas, encontrava-se reunida uma dúzia de membros, assediados com pedidos, reclamações e a braços com prisioneiros que lhes traziam de toda a parte. Informações exatas só chegaram às duas horas. Varlin ocupava-se das Batignolles, Bergeret de Montmartre, Duval do Panteão; Pindy estava no 3º, Faltot na rua de Sèvres. Ranvier e Brunel, sem pertencerem ao Comitê, agitavam Belleville e o 10º. Conseguiram então montar uma espécie de plano para fazer convergir os batalhões para o Hôtel de Ville e os membros do Comitê Central dispersaram-se em todas as direções.

Os batalhões estavam de fato em pé, mas não avançavam. Os bairros revolucionários temiam nova ofensiva; sem se aperceberem da plenitude da vitória, barricavam-se e ficavam quietos. Não saía nada de Montmartre, transformado em imenso formigueiro de guardas que vinham por novidades e soldados desgarrados para quem se faziam peditórios, porque não comiam desde manhã. Por volta das três e meia, vieram dizer ao comitê de vigilância montado na rua Clignancourt que o general Lecomte corria grande perigo. Uma turba de soldados cercava o Château-Rouge e exigia a sua execução imediata. Os membros deste comitê, Ferré, Bergeret e Jaclard enviaram imediatamente ordem ao comandante do Château-Rouge para proteger o prisioneiro. Quando esta ordem chegou, Lecomte acabava de sair dali.

Este desde há muito pedia que o conduzissem ao Comitê Central. Os chefes de posto, deveras perturbados pelos gritos da rua e querendo alijar responsabilidades, conhecendo apenas o comitê da rua dos Rosiers, tinham decidido conduzir até lá o general e os seus oficiais. Chegam pelas quatro horas, passando por uma multidão terrivelmente irritada. Contudo, ninguém os agride. O general é guardado à vista numa pequena divisão no térreo: os oficiais são levados para o primeiro andar, onde se encontram com vários camaradas também presos. Aí, recomeçam as cenas do Château-Rouge. Os soldados, exasperados, não param de gritar: “Morra!”

Os oficiais da Guarda Nacional extenuam-se a sustê-los, barram a porta, dizem: “Esperem pelo Comitê!”

Qual quê!? O Comitê Central está na outra ponta de Paris; o comitê da rua dos Rosiers dispersou-se, uns estão no comitê de vigilância da calçada Clignancourt, outros na subprefeitura, onde o comandante Dardelles, Raoul Rigault e Paschal Grousset discutem com o subprefeito Clemenceau, muito descontente com tudo o que se passa. Mas a palavra Comitê é mágica; consegue-se colocar sentinelas e suster um pouco a ira generalizada.

Pelas quatro horas e meia, ouve-se crescer um rumor na rua e, como que lançado por uma tromba, um homem de barbas brancas é projetado contra a casa. É Clément Thomas, o homem de Junho de 1848, que insultou os batalhões populares e que, mais que Ducrot, fez tudo para desonrar a Guarda Nacional. Reconhecido, preso na rua dos Martyrs onde inspecionava a barricada, subiu a colina coberto de sangue. Irónico acaso das revoluções, que deixa fugir o tubarão e entrega a rã à vingança!

A sua chegada decide tudo. Só se ouve um grito: “Morra!”

Há oficiais da Guarda Nacional que querem lutar, um capitão garibaldino, um hércules, Herpin-Lacroix, agarra-se às paredes do corredor. Martirizam-no, forçam a entrada; Clément Thomas é precipitado para o jardim atrás da casa; as balas perseguem-no, cai de rosto ao chão. Mal ele expirou, soldados do 88º arrombaram as trancas do quarto do general Lecomte e arrastam-no para o jardim, onde é morto à bala. O furor acalma-se logo. Ainda lá estão dez oficiais: ninguém os ameaça. São levados ao Cháteau-Rouge e, chegada a noite, Jaclard liberta-os.

À mesma hora, na estação ferroviária de Orléans, a multidão interceptava um general de uniforme de gala. Tomavam-no por d’Aurelles; era Chanzy. O mal-entendido podia ser-lhe mortal. Oficiais federados e um adjunto do 14º, Léo Meillet, intervêm, protegem-no, põem-no em segurança na prisão do setor onde se encontra, também preso, o general Langourian. Não se podia libertar os generais sem perigo, mas o deputado Turquet, que acompanhava Chanzy, foi posto em liberdade.

Pouco a pouco, os batalhões federados tomavam a ofensiva. Brunel cercava o quartel Prince-Eugène ocupado pelo 120º de infantaria, disposto a confraternizar. Foi fácil forçar as portas. Como o comandante, rodeado de oficiais, quisesse dar-se ares, Brunel mandou prendê-los a todos; a seguir, desceu pela rua do Temple em direção ao Hôtel de Ville. Pindy encaminhava-se na mesma direção, pela rua Vieille-du-Temple, e Ranvier pelo cais.

A Imprensa Nacional é ocupada às cinco horas. Às seis horas, procuram arrombar as portas do quartel Napoleão. Lá de dentro fazem uma descarga, que derruba três pessoas; os soldados gritam às janelas:

— Viva a República! Foram os soldados que atiraram!

Depois abrem as portas e entregam as espingardas. Às sete horas e meia, o Hôtel de Ville está cercado. Os            soldados que o ocupam fogem pelo subterrâneo do quartel Lobau. Às oito horas e meia, Jules Ferry e Fabre, totalmente abandonados pelos seus homens, deixados sem ordens do governo, partem também. Pouco depois, a coluna Brunel desemboca na praça e apodera-se da Maison Commune, deserta e às escuras. Brunel manda acender o gás e içar a bandeira vermelha na torre principal.

Agora os batalhões afluem constantemente. Brunel iniciou barricadas na rua de Rivoli e nos cais, guarneceu as imediações, distribuiu os soldados pelos postos e formou patrulhas compactas. Uma delas, cercando a subprefeitura do Louvre onde os subprefeitos deliberavam, quase prendeu Jules Ferry, que saltou pela janela.

Os subprefeitos e muitos adjuntos tinham-se reunido durante o dia na subprefeitura da Bolsa; muito desorientados com este ataque desordenado, esperavam informações e ideias. Por volta das quatro horas, procuraram o Governo. Thiers tinha desaparecido; Picard não os atendeu; d’Aurelles lavou as mãos, disse que os advogados tinham querido que as coisas corressem assim. À noite, foi preciso encontrar uma saída. Os batalhões federados cercavam o Hôtel de Ville e ocupavam a praça Vêndome para onde Varlin, Arnold e Bergeret tinham conduzido os batalhões de Batignolles e de Montmartre. Vacherot, Vautrain e alguns reacionários furibundos falavam em resistir a todo o custo, como se dispusessem de um exército. Outros mais sensatos procuravam uma solução. Pensaram pôr termo à questão se nomeassem o prefeito de polícia Edmond Adam, que se distinguira contra os insurrectos de Junho [de 1848], e, como general da Guarda Nacional, o coronel Langlois, em tempos internacionalista, no 31 de Outubro [de 1871, tentativa de insurreição blanquista] favorável ao movimento pela manhã e contrário à noite, deputado por causa de uma contusão recebida em Buzenval, burguês endurecido sob modos de exaltado. Às sete horas, Tirard, Méline, Tolain, Hérisson, Vacherot, Peyrat e Millière vieram apresentar essas soluções a Jules Favre. Este fê-los esperar, teve um sobressalto quando viu Millière e interrompeu-os à primeira frase:

— É verdade que fuzilaram os generais?

Assim que o confirmaram, gritou:

— Não tratamos com assassinos!

Vacherot e Vautrain ficaram encantados com esta firmeza, e fizeram-lho saber. Chega um estafeta: o Hôtel de Ville foi evacuado. Jules Favre despediu os subprefeitos que foram à subprefeitura do Louvre, onde o secretário-geral da subprefeitura central lhes pediu que ocupassem o Hôtel de Ville. Apareceu a patrulha de federados. Os subprefeitos não tiveram outra solução senão retirar-se para a subprefeitura da Bolsa, que transformaram em quartel-general.

O que restava do Governo, Dufaure, Jules Simon, Pothuau, Picard e Leflô tinham-se reunido secretamente na rua Abbatucci, onde Jules Favre os informou da iniciativa dos subprefeitos. Depuseram d’Aurelles, chamaram Langlois cuja gesticulação os tranquilizava, e nomearam-no general-chefe da Guarda Nacional. Langlois aceitou, foi à meia noite à subprefeitura da Bolsa levar esta boa nova, prometeu que o Governo poria Dorian na subprefeitura central e vincularia a Assembleia a uma lei municipal e, acolitado pelos deputados Lockroy e Cournet, este novo Lafayette partiu para o Hôtel de Ville, exclamando:

— Sigo para o martírio!

Detalhe da ilustração “Paris sob a bandeira vermelha – cena em frente ao Hôtel de Ville”, publicado pela revista Harper’s Weekly em 20 de maio de 1871.

A praça estava animada como em pleno dia. Pelas portas do Hôtel de Ville via-se circular a vida, mas nada que se parecesse com os tumultos passados. As sentinelas só deixavam entrar oficiais e membros do Comitê Central [da Guarda Nacional]. Tinham começado a chegar um a um, às onze horas e encontravam-se reunidos uns vinte ansiosos e vacilantes, no mesmo salão onde pontificara Trochu. Nenhum imaginara ter de assumir aquele poder que lhes caía tão pesadamente nos ombros. Muitos não queriam tomar decisões no Hôtel de Ville e repetiam constantemente:

— Não temos mandato para governar.

Retomava-se a discussão sempre que chegava alguém de novo. Um jovem, Edouard Moreau, pôs alguma ordem nas ideias. Ficou assente que não podiam abandonar o posto conquistado, mas que só lá ficariam para fazer eleições, dois ou três dias depois. De momento, era preciso enfrentar os ataques possíveis. Lullier estava presente, num dos seus momentos graves, respondendo por tudo, invocando também a votação do Vauxhall. Cometeram a imprudência de o nomear comandante da Guarda Nacional, quando Brunel, que tanto tinha feito, já estava instalado no Hôtel de Ville.

Às duas horas da manhã, Langlois faz-se anunciar. Enviara a sua proclamação ao Officiel [espécie de Diário Oficial].

— Quem sois? – perguntam as sentinelas.

— General da Guarda Nacional – responde o bravo coronel.

O Comité Central dispõe-se a recebê-lo.

— Quem vos nomeou?

— A Assembleia! O meu nome – acrescenta – é uma garantia de concórdia.

Mas Edouard Moreau contesta:

— A Guarda Nacional entende que lhe cabe nomear o seu chefe; a vossa investidura por uma Assembleia que acaba de atacar Paris não é de modo algum uma garantia de concórdia.

Langlois jura que só aceitou a nomeação para pôr fim a um mal-entendido.

— Muito bem – diz o Comitê – mas nós queremos os nossos chefes, fazer eleições municipais e tomar precauções contra os monárquicos. Se estais conosco, submetei-vos à eleição popular.

Langlois e Lockroy sustentam que só há um poder legítimo: a Assembleia; que ela não fará concessões a um comitê saído de uma insurreição. Esta argumentação a favor dos rurais esgota as paciências.

— Reconheceis, sim ou não, o Comité Central?

— Não – diz Langlois.

Pôs-se a andar, mais a sua proclamação.

A noite foi calma, de uma calma mortal para a liberdade. Pelas portas do sul, Vinoy levava para Versalhes regimentos, artilharia e bagagens. Os soldados arrastavam-se e insultavam os gendarmes. O estado-maior, seguindo a tradição, tinha perdido a cabeça, esquecia-se em Paris de três regimentos, seis baterias e todas as canhoneiras, que teria bastado abandonar ao curso das águas do rio. A menor demonstração dos federados teria sustido aquele êxodo. Mas, longe de fechar as portas, o novo comandante da Guarda Nacional, Lullier, deixou abertas todas as saídas ao exército – e disso se gabou mais tarde perante o conselho de guerra.

 


[i] Dezembro de 1851 se refere ao golpe de estado de Luís Bonaparte que inaugurou o segundo império francês.

[ii] Em junho de 1848 ocorreu outra insurreição revolucionária do povo de Paris, contra o governo reacionário republicano que se instalara depois da queda do rei Luís Felipe.

Essa ordem, instando a tropa a desfilar no meio dos guardas nacionais, foi redigida a lápis por um capitão. Lecomte transcreveu-a a pena sem modificar-lhe uma única palavra. O Conselho de Guerra negou o fato, para dar uma boa imagem desse general que morreu mediocremente.

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- 18/03/2021