CEM FLORES

QUE CEM FLORES DESABROCHEM! QUE CEM ESCOLAS RIVALIZEM!

Comuna de Paris, Cultura, Destaque, Dossiês, Internacional, Movimento operário, Teoria

Karl Marx. A Guerra Civil na França. Capítulo 3.

Viva os 150 anos da imortal Comuna de Paris!

Cem Flores

09.04.2021

A Guerra Civil na França é o livro que Karl Marx escreveu, em nome da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), a 1ª Internacional, durante a Comuna de Paris sobre essa primeira experiência de tomada do poder pela classe operária. A Guerra Civil na França foi aprovado pelo Conselho Geral da AIT em 30 de maio de 1871, apenas dois dias após a derrota da Comuna, e impresso e amplamente distribuído entre as massas trabalhadoras inglesas a partir do mês seguinte em sucessivas edições. A Guerra Civil na França foi imediatamente traduzido e publicado em francês, alemão, russo, italiano, espanhol, holandês, polonês e outras línguas, e circulou amplamente nesses países europeus e nos EUA nos meses e anos seguintes.

Na sequência de suas publicações em homenagem aos 150 anos da imortal Comuna de Paris, o Cem Flores publica o capítulo 3 de A Guerra Civil na França (a partir do site marxists.org), no qual Marx expõe as medidas adotadas pelo governo revolucionário da Comuna e generaliza seu significado histórico para a luta de classes do proletariado.


Leia as publicações do Cem Flores Viva os 150 anos da imortal Comuna de Paris!

Engels em homenagem à Comuna de Paris, de 02.12.2019.

Uma Carta de um Communard, de 04.01.2021.

Marx e Engels: cartas anteriores à Comuna de Paris, de 05.02.2021.

Marx e Engels: cartas durante a Comuna de Paris, de 05.03.2021.

O 18 de março de 1871: o início da Comuna de Paris, por Prosper-Olivier Lissagaray, de 18.03.2021.


Um tema bastante analisado por Marx nesse terceiro capítulo de A Guerra Civil na França é o Estado capitalista. A contrário de todas as ilusões da “esquerda” institucional e reformista sobre o estado capitalista como um elemento “em disputa”, propulsor do desenvolvimento nacional e de redução das desigualdades, entre outras deformações ideológicas, Marx nos mostra que, embora fantasmagoricamente o estado capitalista parece situar-se “acima da sociedade”, na realidade ele é o instrumento de dominação e de repressão da burguesia e demais classes dominantes contra o proletariado e as classes dominadas, um “meio para a escravização do trabalho pelo capital”:

Do mesmo passo em que o progresso da indústria moderna desenvolvia, alargava, intensificava o antagonismo de classe entre capital e trabalho, o poder de Estado assumia cada vez mais o caráter do poder nacional do capital sobre o trabalho, de uma força pública organizada para a escravização social, de uma máquina de despotismo de classe”.

A Comuna de Paris, na interpretação de Marx sobre suas medidas concretas, parecia ter plena consciência prática disso. A conclusão, portanto, é de que “a classe operária não pode apossar-se simplesmente da maquinaria de Estado já pronta e fazê-la funcionar para os seus próprios objetivos”. A tarefa, pelo contrário, é a de desmantelar a “máquina de despotismo de classe”.

A sequência de medidas da Comuna de Paris sobre o aparelho de estado, sua administração, justiça, polícia, representantes, são todas nessa mesma direção, a de identificar na prática os fundamentos desse funcionamento repressor do estado capitalista e aboli-los. Marx enumera essas medidas e explica seu significado no texto que publicamos a seguir. A primeira medida da Comuna de Paris foi a “supressão do exército permanente e a sua substituição pelo povo armado”. Em seguida, “a polícia foi logo despojada dos seus atributos políticos e transformada no instrumento da Comuna, responsável e revogável em qualquer momento”. A Comuna de Paris também acabou com a figura intocável do judiciário: “Tal como os restantes servidores públicos, magistrados e juízes haviam de ser eletivos, responsáveis e revogáveis”.

A administração da Comuna também era radicalmente diferente do “executivo” que conhecemos nos estados burgueses. Em sua composição de classe, a “maioria dos seus membros eram naturalmente operários ou representantes reconhecidos da classe operária”. Esses conselheiros eram “eleitos por sufrágio universal nos vários bairros da cidade, responsáveis e revogáveis em qualquer momento”. Como consequência, sua remuneração também não eram as dezenas de milhares de reais que hoje vemos na alta administração pública. Pelo contrário: “Desde os membros da Comuna para baixo, o serviço público tinha de ser feito em troca de salários de operários”.

Durante a existência desse inédito poder político, um destaque todo especial deve ser dado à relação das mulheres com a Comuna de Paris. Para as mulheres operárias e trabalhadoras, a Comuna não era algo alheio a elas. Ao contrário, elas eram a Comuna! Nas palavras de Marx: “as verdadeiras mulheres de Paris apareceram de novo à superfície, heroicas, nobres e dedicadas, como as mulheres da antiguidade”.

A educação pública, gratuita e geral também é uma realização da Comuna de Paris, cujas “instituições de educação foram abertas ao povo gratuitamente e ao mesmo tempo desembaraçadas de toda a interferência de Igreja e Estado”.

A Comuna de Paris também buscou melhorar as condições de vida da classe operária e demais classes trabalhadoras. Medidas nesse sentido incluem:

a abolição do trabalho noturno dos oficiais de padaria; a proibição, com penalização, da prática dos patrões que consistia em reduzir salários cobrando multas a gente que trabalha para eles, sob variados pretextos — um processo em que o patrão combina na sua própria pessoa os papéis de legislador, de juiz e de executor, e surripia o dinheiro para o bolso. Outra medida desta espécie foi a entrega a associações de operários, sob reserva de compensação, de todas as oficinas e fábricas fechadas, quer os capitalistas respectivos tivessem fugido quer tivessem preferido parar o trabalho”.

As medidas acima também mostram que a Comuna de Paris não chegou à “expropriação dos expropriadores”, não aboliu a propriedade privada. Na visão de Marx, essa era uma tendência da Comuna que, possivelmente, não chegou a ser implementada dada sua curta existência, apenas 72 dias.

Como resume Marx:

Quando a Comuna de Paris tomou a direção da revolução nas suas próprias mãos; quando simples operários ousaram pela primeira vez infringir o privilégio governamental dos seus “superiores naturais” e, em circunstâncias de dificuldade sem exemplo, executaram a sua obra modestamente, conscienciosamente e eficazmente”.

Era este o seu verdadeiro segredo: ela era essencialmente um governo da classe operária, o produto da luta da classe produtora contra a apropriadora, a forma política, finalmente descoberta, com a qual se realiza a emancipação econômica do trabalho”.

 

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A Guerra Civil na França

Karl Marx

Capítulo III

Na madrugada do 18 de Março, Paris acordou com o rebentamento do trovão de “Vive la Commune!” [“Viva a Comuna!”]. Que é a Comuna, essa esfinge que tanto atormenta o espírito burguês?

“Os proletários da capital” — dizia o Comitê Central no seu manifesto do 18 de Março — “no meio dos desfalecimentos e das traições das classes governantes, compreenderam que para eles tinha chegado a hora de salvar a situação tomando em mãos a direção dos negócios públicos… O proletariado… compreendeu que era seu dever imperioso e seu direito absoluto tomar em mãos os seus destinos e assegurar-lhes o triunfo conquistando o poder”.

18 de março de 1871, a insurreição cria a Comuna de Paris. Soldados tentam resgatar os canhões da Guarda Nacional em Montmartre. Diante da resistência dos communards a ofensiva fracassa e vários soldados baixam seus fuzis e aderem à Comuna.

Mas a classe operária não pode apossar-se simplesmente da maquinaria de Estado já pronta e fazê-la funcionar para os seus próprios objetivos.

O poder centralizado do Estado, com os seus órgãos onipresentes: exército permanente, polícia, burocracia, clero e magistratura — órgãos forjados segundo o plano de uma sistemática e hierárquica divisão de trabalho — tem origem nos dias da monarquia absoluta, ao serviço da classe média nascente como arma poderosa nas suas lutas contra o feudalismo. Contudo, o seu desenvolvimento permanecia obstruído por toda a espécie de entulho medieval, direitos senhoriais, privilégios locais, monopólios municipais e de guilda e constituições provinciais. A gigantesca vassourada da Revolução Francesa do século dezoito levou todas estas relíquias de tempos idos, limpando assim, simultaneamente, o terreno social dos seus últimos embaraços para a superestrutura do edifício do Estado moderno erguido sob o primeiro Império, ele próprio fruto das guerras de coalizão da velha Europa semifeudal contra a França moderna. Durante os regimes subsequentes, o governo, colocado sob controlo parlamentar — isto é, sob o controlo direto das classes possidentes —, não apenas se tornou um alfobre de enormes dúvidas nacionais e de impostos esmagadores; com os seus irresistíveis atrativos de lugares, proventos e clientela, não apenas se tornou o pomo de discórdia entre facções rivais e aventureiros das classes dirigentes; mas o seu carácter político mudou simultaneamente com as mudanças económicas da sociedade. Do mesmo passo em que o progresso da indústria moderna desenvolvia, alargava, intensificava o antagonismo de classe entre capital e trabalho, o poder de Estado assumia cada vez mais o carácter do poder nacional do capital sobre o trabalho, de uma força pública organizada para a escravização social, de uma máquina de despotismo de classe. Depois de qualquer revolução que marque uma fase progressiva na luta de classes, o carácter puramente repressivo do poder de Estado abre caminho com um relevo cada vez mais acentuado. A Revolução de 1830, que resultou na transferência de governo dos senhores da terra para os capitalistas, transferiu-o dos mais remotos para os mais diretos antagonistas dos operários. Os republicanos burgueses, que em nome da Revolução de Fevereiro tomaram o poder de Estado, serviram-se dele para os massacres de Junho, a fim de convencerem a classe operária de que a república “social” significava a República que assegurava a sua sujeição social e a fim de convencerem a massa realista [partidária da realeza] da classe burguesa e dos senhores da terra de que podiam deixar com segurança os cuidados e emolumentos do governo aos “republicanos” burgueses. Contudo, após o seu único feito heroico de Junho, os republicanos burgueses tiveram de recuar da frente para a retaguarda do «partido da ordem» — uma combinação formada por todas as fracções e facções rivais de entre as classes apropriadoras, no seu antagonismo agora abertamente declarado contra as classes produtoras. A forma adequada do seu governo de sociedade por ações foi a república parlamentar, com Louis Bonaparte por presidente. Foi um regime de confessado terrorismo de classe e de insulto deliberado para com a “vil multidão”. Se a república parlamentar, como dizia M. Thiers, “as dividia ao mínimo” (as diferentes frações da classe dirigente), ela abria um abismo entre esta classe e o corpo inteiro da sociedade fora das suas esparsas fileiras. As restrições com que as suas próprias divisões ainda tinham refreado o poder de Estado sob os regimes anteriores foram removidas com a sua união; e em face da ameaça de levantamento do proletariado, ela servia-se agora do poder de Estado, impiedosa e ostentosamente, como máquina de guerra nacional do capital contra o trabalho. Na sua ininterrupta cruzada contra as massas produtoras, ela foi forçada, contudo, não só a investir o executivo de poderes de repressão continuamente acrescidos mas, ao mesmo tempo, a despojar a sua própria fortaleza parlamentar — a Assembleia Nacional — de todos os seus meios de defesa, um após outro, contra o executivo. Na pessoa de Louis Bonaparte, o executivo pô-la fora. O fruto natural da república do “partido-da-ordem” foi o segundo Império.

O Império, com o coup d’etat por certidão de nascimento, o sufrágio universal por sanção e a espada por ceptro, declarava apoiar-se no campesinato, essa larga massa de produtores não envolvida diretamente na luta do capital e do trabalho. Declarava salvar a classe operária quebrando o parlamentarismo e, com ele, a indisfarçada subserviência do governo às classes possidentes. Declarava salvar as classes possidentes mantendo a supremacia económica destas sobre a classe operária; e declarava, finalmente, unir todas as classes, fazendo reviver para todas a quimera da glória nacional. Na realidade, era a única forma de governo possível num tempo em que a burguesia já tinha perdido a faculdade de governar a nação e a classe operária ainda a não tinha adquirido. Foi aclamado através do mundo como o salvador da sociedade. Sob o seu domínio, a sociedade burguesa, liberta de cuidados políticos, atingiu um desenvolvimento inesperado, até para ela própria. A sua indústria e o seu comércio expandiram-se em dimensões colossais; a burla financeira celebrou orgias cosmopolitas; a miséria das massas era contrabalançada por uma exibição sem pudor de luxúria sumptuosa, meretrícia e degradante. O poder de Estado, aparentemente voando alto acima da sociedade, era ele próprio, ao mesmo tempo, o maior escândalo desta sociedade e o alfobre mesmo de todas as suas corrupções. A sua própria podridão e a podridão da sociedade que ele havia salvo foram postas a nu pela baioneta da Prússia, ela própria ávida por transferir de Paris para Berlim a sede suprema deste regime. Ao mesmo tempo, o imperialismo [no sentido de dominação imperial] é a forma mais prostituída e derradeira do poder de Estado que a sociedade da classe média nascente tinha começado a elaborar como um meio da sua própria emancipação do feudalismo e que a sociedade burguesa plenamente desenvolvida tinha finalmente transformado num meio para a escravização do trabalho pelo capital.

A antítese direta do Império foi a Comuna. O grito de “república social” com o qual a Revolução de Fevereiro foi anunciada pelo proletariado de Paris não fez mais do que expressar uma vaga aspiração por uma república que não apenas havia de pôr de lado a forma monárquica da dominação de classe. A Comuna foi a forma positiva desta república.

Paris, a sede central do velho poder governamental e, ao mesmo tempo, a fortaleza social da classe operária francesa, levantara-se em armas contra a tentativa de Thiers e dos Rurais para restaurar e perpetuar o velho poder governamental que o Império lhes legara. Paris apenas pôde resistir porque, em consequência do cerco, se tinha desembaraçado do exército e o tinha substituído por uma Guarda Nacional que era, na sua massa, composta por operários. Este facto tinha agora de ser transformado numa instituição. O primeiro decreto da Comuna, por isso, foi a supressão do exército permanente e a sua substituição pelo povo armado.

Pintura de André Devambez. Comuna, O Povo em Armas ou o Chamado (1907).

A Comuna foi formada por conselheiros municipais, eleitos por sufrágio universal nos vários bairros da cidade, responsáveis e revogáveis em qualquer momento. A maioria dos seus membros eram naturalmente operários ou representantes reconhecidos da classe operária. A Comuna havia de ser não um corpo parlamentar mas operante, executivo e legislativo ao mesmo tempo. Em vez de continuar a ser o instrumento do governo central, a polícia foi logo despojada dos seus atributos políticos e transformada no instrumento da Comuna, responsável e revogável em qualquer momento. O mesmo aconteceu com os funcionários de todos os outros ramos da administração. Desde os membros da Comuna para baixo, o serviço público tinha de ser feito em troca de salários de operáriosOs direitos adquiridos e os subsídios de representação dos altos dignitários do Estado desapareceram com os próprios dignitários do Estado. As funções públicas deixaram de ser a propriedade privada dos testas-de-ferro do governo central. Não só a administração municipal mas toda a iniciativa até então exercida pelo Estado foram entregues nas mãos da Comuna.

Uma vez desembaraçada do exército permanente e da polícia, elementos da força física do antigo governo, a Comuna estava desejosa de quebrar a força espiritual de repressão, o “poder dos curas”, pelo desmantelamento e expropriação de todas as igrejas enquanto corpos possidentes. Os padres foram devolvidos aos retiros da vida privada, para terem aí o sustento das esmolas dos fiéis, à imitação dos seus predecessores, os apóstolos. Todas as instituições de educação foram abertas ao povo gratuitamente e ao mesmo tempo desembaraçadas de toda a interferência de Igreja e Estado. Assim, não apenas a educação foi tornada acessível a todos mas a própria ciência liberta das grilhetas que os preconceitos de classe e a força governamental lhe tinham imposto.

A Comuna sabia que entre seus inimigos estavam a ignorância e a reação, como demonstrado na ilustração acima.

Os funcionários judiciais haviam de ser despojados daquela falsa independência que só tinha servido para mascarar a sua abjeta subserviência a todos os governos sucessivos, aos quais, um após outro, eles tinham prestado e quebrado juramento de fidelidade. Tal como os restantes servidores públicos, magistrados e juízes haviam de ser eletivos, responsáveis e revogáveis.

A Comuna de Paris havia obviamente de servir de modelo a todos os grandes centros industriais da França. Uma vez estabelecido o regime comunal em Paris e nos centros secundários, o velho governo centralizado teria de dar lugar, nas províncias também, ao autogoverno dos produtores. Num esboço tosco de organização nacional que a Comuna não teve tempo de desenvolver, estabeleceu-se claramente que a Comuna havia de ser a forma política mesmo dos mais pequenos povoados do campo, e que nos distritos rurais o exército permanente havia de ser substituído por uma milícia nacional com um tempo de serviço extremamente curto. As comunas rurais de todos os distritos administrariam os seus assuntos comuns por uma assembleia de delegados na capital de distrito e estas assembleias distritais, por sua vez, enviariam deputados à Delegação Nacional em Paris, sendo cada delegado revogável a qualquer momento e vinculado pelo mandat imperatif [mandato imperativo] (instruções formais) dos seus eleitores. As poucas mas importantes funções que ainda restariam a um governo central não seriam suprimidas, como foi intencionalmente dito de maneira deturpada, mas executadas por agentes comunais, e por conseguinte estritamente responsáveis. A unidade da nação não havia de ser quebrada, mas, pelo contrário, organizada pela Constituição comunal e tornada realidade pela destruição do poder de Estado, o qual pretendia ser a encarnação dessa unidade, independente e superior à própria nação, de que não era senão uma excrescência parasitária. Enquanto os órgãos meramente repressivos do velho poder governamental haviam de ser amputados, as suas funções legítimas haviam de ser arrancadas a uma autoridade que usurpava a preeminência sobre a própria sociedade e restituídas aos agentes responsáveis da sociedade. Em vez de decidir uma vez cada três ou seis anos que membro da classe governante havia de representar mal o povo no Parlamento, o sufrágio universal havia de servir o povo, constituído em Comunas, assim como o sufrágio individual serve qualquer outro patrão em busca de operários e administradores para o seu negócio. E é bem sabido que as companhias, como os indivíduos, em matéria de negócio real sabem geralmente como colocar o homem certo no lugar certo e, se alguma vez cometem um erro, como repará-lo prontamente. Por outro lado, nada poderia ser mais estranho ao espírito da Comuna do que substituir o sufrágio universal pela investidura [N180] hierárquica.

É em geral a sorte de criações históricas completamente novas serem tomadas erradamente como a réplica de formas mais antigas e mesmo defuntas da vida social, com as quais podem sustentar uma certa semelhança. Assim, esta Comuna nova, que quebra o moderno poder de Estado, foi tomada erradamente como uma reprodução das Comunas medievais que precederam, primeiro, esse mesmo poder de Estado, e se tornaram depois o seu substrato. A Constituição Comunal foi tomada erradamente como uma tentativa para dispersar numa federação de pequenos Estados — como a sonharam Montesquieu e os Girondinos [N181] — essa unidade de grandes nações que, embora realizada originalmente pela força política, agora se tornou um poderoso coeficiente de produção social. O antagonismo da Comuna contra o poder de Estado foi tornado erradamente como uma forma exagerada da antiga luta contra a ultra centralização. Circunstâncias históricas peculiares podem ter impedido o desenvolvimento clássico, como na França, da forma burguesa de governo e podem ter permitido, como na Inglaterra, completar os grandes órgãos centrais de Estado por assembleias paroquiais [vestries] corruptas, por conselheiros traficantes, por ferozes administradores da assistência pública [poor-law guardians] nas cidades e por magistrados virtualmente hereditários nos condados. A Constituição Comunal teria restituído ao corpo social todas as forças até então absorvidas pelo Estado parasita, que se alimenta da sociedade e lhe estorva o livre movimento. Por este único ato ela teria iniciado a regeneração da França. A classe média francesa provincial viu na Comuna uma tentativa para restaurar a preponderância que a sua ordem manteve sobre o campo com Louis-Philippe e que foi suplantada, com Louis-Napoléon, pela pretensa dominação do campo sobre as cidades. Na realidade, a Constituição Comunal colocaria os produtores rurais sob a direção intelectual das capitais dos seus distritos e estas ter-lhes-iam assegurado, nos operários, os naturais procuradores dos seus interesses. A própria existência da Comuna implicava, como uma coisa evidente, liberdade municipal local, mas já não como um obstáculo ao poder de Estado, agora substituído. Só podia passar pela cabeça de um Bismarck, o qual, quando não comprometido nas suas intrigas de sangue e ferro, gosta sempre de retomar a sua velha ocupação, tão conveniente ao seu calibre mental, de colaborador do Kladderadatsch [semanário satírico ilustrado, editado em Berlim desde 1848] (o Punch de Berlim [N183]), só em tal cabeça podia entrar o atribuir à Comuna de Paris aspirações a essa caricatura da velha organização municipal francesa de 1791 — a constituição municipal prussiana — que rebaixa os governos de cidade a meras rodas secundárias na maquinaria policial do Estado prussiano. A Comuna fez uma realidade dessa deixa das revoluções burguesas — governo barato — destruindo as duas maiores fontes de despesa: o exército permanente e o funcionalismo de Estado. A sua própria existência pressupunha a não existência de monarquia, a qual, pelo menos na Europa, é o lastro normal e o disfarce indispensável da dominação de classe. Ela fornecia à República a base de instituições realmente democráticas. Mas nem governo barato nem “República verdadeira” eram o seu alvo último; eram-lhe meramente concomitantes.

A multiplicidade de interpretações a que a Comuna esteve sujeita e a multiplicidade de interesses que a explicaram em seu favor mostram que ela era uma forma política inteiramente expansiva, ao passo que todas as formas anteriores de governo têm sido marcadamente repressivas. Era este o seu verdadeiro segredo: ela era essencialmente um governo da classe operária, o produto da luta da classe produtora contra a apropriadora, a forma política, finalmente descoberta, com a qual se realiza a emancipação econômica do trabalho.

Não fosse esta última condição, a Constituição Comunal teria sido uma impossibilidade e um engano. A dominação política do produtor não pode coexistir com a perpetuação da sua escravidão social. A Comuna havia pois de servir como uma alavanca para extirpar os fundamentos económicos sobre os quais assenta a existência de classes e, por conseguinte, a dominação de classe. Emancipado o trabalho, todo o homem se torna um trabalhador e o trabalho produtivo deixa de ser um atributo de classe.

É um estranho facto. Apesar de toda a conversa grandiloquente e toda a imensa literatura dos últimos sessenta anos sobre a Emancipação do Trabalho, assim que em qualquer parte os trabalhadores tomam o assunto nas suas próprias mãos com determinação, surge logo toda a fraseologia apologética dos porta-vozes da presente sociedade com os seus dois polos: Capital e Escravatura Assalariada (o senhor da terra não é agora senão o sócio comanditário do capitalista), como se a sociedade capitalista ainda estivesse no seu mais puro estado de inocência virginal, com os seus antagonismos ainda não desenvolvidos, os seus enganos ainda não desmascarados, as suas realidades prostituídas ainda não postas a nu. A Comuna, exclamam eles, tenciona abolir a propriedade, base de toda a civilização! Sim, senhores, a Comuna tencionava abolir toda essa propriedade de classe que faz do trabalho de muitos a riqueza de poucos. Ela aspirava à expropriação dos expropriadores. Queria fazer da propriedade individual uma realidade transformando os meios de produção, terra e capital, agora principalmente meios de escravizar e explorar o trabalho, em meros instrumentos de trabalho livre e associado. — Mas isto é comunismo, comunismo «impossível»! Ora pois, aqueles membros das classes dominantes que são bastante inteligentes para perceber a impossibilidade de continuar o sistema presente — e são muitos — tornaram-se os apóstolos, importunos e de voz cheia, da produção cooperativa. Se não cabe à produção cooperativa permanecer uma fraude e uma armadilha; se lhe cabe suplantar o sistema capitalista; se cabe às sociedades cooperativas unidas regular a produção nacional segundo um plano comum, tomando-a assim sob o seu próprio controlo e pondo termo à anarquia constante e às convulsões periódicas que são a fatalidade da produção capitalista — que seria isto, senhores, senão comunismo, comunismo “possível”?

A classe operária não esperou milagres da Comuna. Ela não tem utopias prontas a introduzir par décret du peuple [por decreto do povo]. Sabe que para realizar a sua própria emancipação — e com ela essa forma superior para a qual tende irresistivelmente a sociedade presente pela sua própria atividade econômica — terá de passar por longas lutas, por uma série de processos históricos que transformam circunstâncias e homens. Não tem de realizar ideais mas libertar os elementos da sociedade nova de que está grávida a própria velha sociedade burguesa em colapso. Na plena consciência da sua missão histórica e com a resolução heroica de agir à altura dela, a classe operária pode permitir-se sorrir à invectiva grosseira dos lacaios de pluma e tinteiro e ao patrocínio didático dos doutrinadores burgueses de boas intenções, que derramam as suas trivialidades ignorantes e as suas manias sectárias no tom oracular da infalibilidade científica.

Quando a Comuna de Paris tomou a direção da revolução nas suas próprias mãos; quando simples operários ousaram pela primeira vez infringir o privilégio governamental dos seus “superiores naturais” e, em circunstâncias de dificuldade sem exemplo, executaram a sua obra modestamente, conscienciosamente e eficazmente — executaram-na com salários, o mais elevado dos quais mal atingia, segundo uma alta autoridade científica [Professor Huxley], um quinto do mínimo requerido para uma secretária de certo conselho escolar de Londres — o velho mundo contorceu-se em convulsões de raiva, à vista da Bandeira Vermelha, símbolo da República do Trabalho, a flutuar sobre o Hotel de Ville.

E, contudo, era a primeira revolução em que a classe operária era abertamente reconhecida como a única classe capaz de iniciativa social, mesmo pela grande massa da classe média de Paris — lojistas, comerciantes, negociantes — excetuados só os capitalistas ricos. A Comuna tinha salvo aqueles por uma sagaz regulamentação dessa causa permanentemente repetida de disputa entre as próprias classes médias: as contas de deve e haver [N184]. A mesma parte da classe média, depois de ter ajudado a derrotar a insurreição operária de Junho de 1848, foi logo sacrificada sem cerimónias aos seus credores [N185] pela então Assembleia Constituinte. Mas este não era o seu único motivo para se juntar agora em torno da classe operária. Ela sentia que só havia uma alternativa — a Comuna ou o Império — qualquer que fosse o nome com que pudesse reaparecer. O Império tinha-a arruinado economicamente pela devastação que fez da riqueza pública, pela burla financeira em grande escala, que encorajou, pelos adereços que emprestou à centralização artificialmente acelerada de capital e pela expropriação concomitante nas suas próprias fileiras. Ele tinha-a suprimido politicamente, tinha-a escandalizado moralmente pelas suas orgias, tinha insultado o seu voltairianismo ao entregar a educação dos seus filhos aos frères Ignorantins [N186], tinha revoltado o seu sentimento nacional francês ao precipitá-la de cabeça numa guerra que só deixava um equivalente para as ruínas que fizera: o desaparecimento do Império. De facto, após o êxodo de Paris de toda a alta bohême [boêmia] bonapartista e capitalista, o verdadeiro partido da ordem da classe média apareceu na forma da “Union Républicaine” [N187], alistando-se sob as cores da Comuna e defendendo-a contra a deturpação premeditada de Thiers. O tempo terá de mostrar se a gratidão deste grande corpo da classe média resistirá à severa prova atual.

A Comuna tinha inteira razão ao dizer aos camponeses: “A nossa vitória é a vossa única esperança”. De todas as mentiras saídas da casca em Versalhes e repercutidas pelo glorioso Europeu penny-a-liner [aquele que escreve por um penny por linha; escritor barato, venal], uma das mais tremendas foi a de que os Rurais representavam o campesinato francês. Pense-se só no amor do camponês francês pelos homens a quem teve de pagar, depois de 1815, os mil milhões de indemnização [N188]. Aos olhos do camponês francês, a própria existência de um grande proprietário fundiário é em si uma usurpação sobre as suas conquistas de 1789. O burguês, em 1848, tinha-lhe sobrecarregado a parcela de terra com a taxa adicional de quarenta e cinco cêntimos por franco; mas fê-lo, então, em nome da revolução; ao passo que, agora, tinha fomentado uma guerra civil contra a revolução para atirar sobre os ombros do camponês o fardo principal dos cinco mil milhões de indemnização a pagar ao prussiano. A Comuna, por outro lado, numa das suas primeiras proclamações, declarava que os verdadeiros causadores da guerra teriam de ser levados a pagar o seu custo. A Comuna teria libertado o camponês do imposto de sangue — ter-lhe-ia dado um governo barato —, teria transformado as suas atuais sanguessugas, o notário, o advogado, o oficial de diligências e outros vampiros judiciais, em agentes comunais assalariados, eleitos por ele e perante ele responsáveis. Tê-lo-ia livrado da tirania do garde champêtre [guarda rural], do gendarme e do prefeito; teria posto o esclarecimento pelo mestre-escola no lugar da estultificação pelo padre. E o camponês francês é, acima de tudo, um homem de cálculo. Teria achado extremamente razoável que a paga do padre, em vez de ser extorquida pelo cobrador de impostos, estivesse apenas dependente da ação espontânea dos instintos religiosos dos paroquianos. Tais eram as grandes vantagens imediatas que o governo da Comuna — e só esse governo — oferecia ao campesinato francês. É pois inteiramente supérfluo desenvolver aqui os problemas mais complicados, mas vitais, que só a Comuna estava apta, e ao mesmo tempo forçada, a resolver em favor do camponês, isto é, a dívida hipotecária, jazendo como um pesadelo sobre a sua parcela de solo, o prolétariat foncier (o proletariado rural) que sobre ela crescia diariamente, e a sua expropriação dessa parcela, imposta a um ritmo cada vez mais rápido pelo próprio desenvolvimento da agricultura moderna e da concorrência da lavoura capitalista.

O camponês francês tinha eleito Louis Bonaparte presidente da República; mas o partido da ordem criou o Império. Aquilo que o camponês francês quer realmente, começou a mostrá-lo em 1849 e 1850, opondo o seu maire ao prefeito do governo, o seu mestre-escola ao padre do governo e opondo-se ele próprio ao gendarme do governo. Todas as leis feitas pelo partido da ordem em Janeiro e Fevereiro de 1850 eram medidas confessas de repressão contra o camponês. O camponês era bonapartista porque a grande Revolução, com todos os benefícios que lhe trouxe, estava personificada, aos seus olhos, em Napoleão. Esta ilusão, rapidamente destruída sob o segundo Império (e, pela sua própria natureza, hostil aos Rurais), este preconceito do passado, como poderia ter resistido ao apelo da Comuna aos interesses vitais e necessidades urgentes do campesinato?

Os Rurais — era essa, de facto, a sua principal apreensão — sabiam que três meses de comunicação livre da Paris da Comuna com as províncias levaria a um levantamento geral dos camponeses; daí a sua ânsia em estabelecer um bloqueio de polícia à volta de Paris, como para fazer parar a propagação da peste bovina.

Se a Comuna era, assim, o verdadeiro representante de todos os elementos sãos da sociedade francesa e, portanto, o verdadeiro governo nacional, ela era ao mesmo tempo, como governo de operários, como campeã intrépida da emancipação do trabalho, expressivamente internacional. A vista do exército prussiano, que tinha anexado à Alemanha duas províncias francesas, a Comuna anexava à França o povo trabalhador do mundo inteiro.

O segundo Império tinha sido o jubileu da vigarice cosmopolita, com os devassos de todos os países a precipitarem-se ao seu chamamento para participarem nas suas orgias e na pilhagem do povo francês. Mesmo neste momento, o braço direito de Thiers é Ganesco, o valáquio imundo, e o seu braço esquerdo é Markovski, o espião russo. A Comuna concedeu a todos os estrangeiros a honra de morrer por uma causa imortal. Entre a guerra estrangeira, perdida pela traição da burguesia, e a guerra civil, provocada pela sua conspiração com o invasor estrangeiro, a burguesia tinha encontrado tempo para exibir o seu patriotismo organizando caçadas policiais aos alemães em França. A Comuna fez de um operário alemão [Leo Frankel] o seu ministro do Trabalho. Thiers, a burguesia, o segundo Império, tinham continuamente enganado a Polónia com ruidosas profissões de simpatia, entregando-a, na realidade, à Rússia, e fazendo o trabalho sujo desta. A Comuna honrou os filhos heroicos da Polônia [J. Dombrowski e W. Wróblewski] colocando-os à cabeça dos defensores de Paris. E, para marcar amplamente a nova era da história que ela estava consciente de iniciar, a Comuna deitou abaixo esse símbolo colossal da glória marcial, a coluna Vendôme [N189], sob os olhos dos vencedores prussianos, por um lado, e do exército bonapartista dirigido por generais bonapartistas, por outro.

A grande medida social da Comuna foi a sua própria existência atuante. As suas medidas especiais não podiam senão denotar a tendência de um governo do povo pelo povo. Tais foram a abolição do trabalho noturno dos oficiais de padaria; a proibição, com penalização, da prática dos patrões que consistia em reduzir salários cobrando multas a gente que trabalha para eles, sob variados pretextos — um processo em que o patrão combina na sua própria pessoa os papéis de legislador, de juiz e de executor, e surripia o dinheiro para o bolso. Outra medida desta espécie foi a entrega a associações de operários, sob reserva de compensação, de todas as oficinas e fábricas fechadas, quer os capitalistas respectivos tivessem fugido quer tivessem preferido parar o trabalho.

As medidas financeiras da Comuna, notáveis pela sua sagacidade e moderação, só podiam ser as que eram compatíveis com o estado de uma cidade cercada. Considerando os roubos colossais cometidos sobre a cidade de Paris pelas grandes companhias financeiras e pelos empreiteiros, com a proteção de Haussmann (35*), a Comuna teria tido um direito [title] incomparavelmente melhor para lhes confiscar a propriedade do que Louis-Napoléon teve contra a família Orléans. Os Hohenzollern e os oligarcas ingleses, que colheram, uns e outros, uma grande parte das suas propriedades da pilhagem da Igreja, ficaram grandemente chocados, naturalmente, com os apenas 8000 francos que a Comuna retirou da secularização.

Enquanto o governo de Versalhes, mal recuperou algum ânimo e alguma força, usava os meios mais violentos contra a Comuna; enquanto suprimia a livre expressão da opinião por toda a França, proibindo mesmo reuniões de delegados das grandes cidades; enquanto submetia Versalhes e o resto da França a uma espionagem que ultrapassou de longe a do segundo Império; enquanto fazia queimar pelos seus inquisidores-gendarmes todos os jornais impressos em Paris e inspecionava toda a correspondência de e para Paris; enquanto na Assembleia Nacional as mais tímidas tentativas para colocar uma palavra a favor de Paris eram submergidas em gritaria, de uma maneira desconhecida mesmo da Chambre introuvable de 1816 [N164]; com a guerra selvagem de Versalhes fora de Paris e, dentro, as suas tentativas de corrupção e conspiração — não teria a Comuna atraiçoado vergonhosamente a sua segurança, pretendendo respeitar todas as boas maneiras e aparências de liberalismo como num tempo de profunda paz? Tivesse o governo da Comuna sido semelhante ao de M. Thiers e não teria havido mais ocasião para suprimir jornais do partido da ordem em Paris do que houve para suprimir jornais da Comuna em Versalhes.

Era na verdade irritante para os Rurais que, no próprio momento em que declaravam ser o regresso à Igreja o único meio de salvação da França, a Comuna infiel desenterrasse os mistérios peculiares do convento de freiras de Picpus e da Igreja de Saint-Laurent [N190]. Era uma sátira contra M. Thiers o facto de que, enquanto ele fazia chover grã-cruzes sobre os generais bonapartistas, em reconhecimento da sua mestria a perder batalhas, a assinar capitulações e a enrolar cigarros em Wilhelmshõhe [N191], a Comuna demitia e prendia os seus generais sempre que eram suspeitos de negligência para com os seus deveres. A expulsão e prisão, pela Comuna, de um dos seus membros [Blanchet], que nela se tinha esgueirado sob um falso nome e sofrido seis dias de prisão em Lyon por bancarrota simples, não era um insulto deliberado, atirado a Jules Favre, o falsário, então ainda ministro dos Negócios Estrangeiros de França, ainda a vender a França a Bismarck e ainda a ditar as suas ordens a esse governo-modelo da Bélgica? Mas, na verdade, a Comuna não aspirava à infalibilidade, o atributo invariável de todos os governos de velho cunho. Ela publicava os seus ditos e feitos, inteirava o público de todas as suas falhas.

Em cada revolução intrometem-se, ao lado dos seus representantes verdadeiros, homens de um cunho diferente; alguns deles sobreviventes e devotos de revoluções passadas, sem discernimento do movimento presente, mas conservando influência popular pela sua honestidade e coragem conhecidas ou pela simples força da tradição; outros, meros vociferadores, que à força de repetir ano após ano o mesmo sortido de declamações estereotipadas contra o governo do dia, se insinuaram na reputação de revolucionários da primeira água. Depois do 18 de Março também surgiram tais homens e, nalguns casos, imaginaram desempenhar papéis preeminentes. A tanto quanto chegou o seu poder, estorvaram a ação real da classe operária, exatamente como homens desta espécie tinham estorvado o pleno desenvolvimento de cada revolução anterior. São um mal inevitável: com o tempo são sacudidos; mas tempo não foi concedido à Comuna.

Prodigiosa, na verdade, foi a mudança que a Comuna operou em Paris! Não mais qualquer traço da Paris meretrícia do segundo Império. Paris já não era o ponto de encontro dos senhores da terra britânicos, dos absentistas irlandeses [N192], dos ex-escravistas e ricos feitos à pressa [N97] americanos, dos ex-proprietários de servos russos e dos boiardos valáquios. Não mais cadáveres na morgue nem arrombamentos noturnos, quase nenhuns roubos; de facto, pela primeira vez desde os dias de Fevereiro de 1848, as ruas de Paris eram seguras, e isto sem qualquer polícia de qualquer espécie.

“Já não ouvimos falar”, dizia um membro da Comuna, “de assassínios, de roubos nem de agressões; dir-se-ia que a polícia levou mesmo com ela para Versalhes toda a sua clientela conservadora”.

As cocotes tinham reencontrado o rasto dos seus protetores — os homens de família, de religião e, acima de tudo, de propriedade, em fuga. Em vez daquelas, as verdadeiras mulheres de Paris apareceram de novo à superfície, heroicas, nobres e dedicadas, como as mulheres da antiguidade. A Paris operária, pensante, combatente, a sangrar — quase esquecida, na sua incubação de uma sociedade nova, dos canibais às suas portas — radiante no entusiasmo da sua iniciativa histórica!

Mulheres communardes de Montmartre durante a Comuna de Paris, com a bandeira “A Comuna ou a morte”.

Oposto a este mundo novo em Paris, observe-se o mundo velho em Versalhes — essa assembleia dos vampiros de todos os regimes defuntos, legitimistas e orleanistas, ávidos de se alimentarem da carcaça da nação — com uma cauda de republicanos antediluvianos, sancionando com a sua presença na Assembleia a rebelião dos escravistas, fiando-se, para a manutenção da sua república parlamentar, na vaidade do charlatão senil à sua cabeça, e caricaturando 1789 ao realizarem as suas reuniões de espectros no Jeu de Paume [Jogo da Péla] (38*). Ali estava ela, essa Assembleia, a representante de tudo o que estava morto em França, mantida numa aparência de vida só pelos sabres dos generais de Louis Bonaparte. Paris toda ela verdade, Versalhes toda ela mentira; e essa mentira, exalada pela boca de Thiers.

Thiers diz a uma deputação de presidentes de município de Seine-et-Oise:

“Podeis contar com a minha palavra, nunca faltei a ela”.

Diz à própria Assembleia que «ela é a mais livremente eleita e a mais liberal que a França teve alguma vez”; diz a sua soldadesca heterogénea que ela era “a admiração do mundo e o mais belo exército que a França teve alguma vez”; diz às províncias que o bombardeamento de Paris, por ele, era um mito:

“Se foram atirados alguns tiros de canhão, não foi pelo exército de Versalhes, mas por alguns insurrectos, para fazer crer que se batem quando nem sequer ousam mostrar-se”.

Diz outra vez às províncias que

“a artilharia de Versalhes não bombardeia Paris, apenas a canhoneia”.

Diz ao arcebispo de Paris que as pretensas execuções e represálias(!) atribuídas às tropas de Versalhes era tudo disparate. Diz a Paris que só estava ansioso “por libertá-la dos horríveis tiranos que a oprimem” e que, na realidade, a Paris da Comuna não era “mais do que um punhado de celerados”.

A Paris de M. Thiers não era a Paris real da “vil multidão” mas uma Paris fantasma, a Paris dos franc-fileurs [N194], a Paris macho e fêmea dos Boulevards — a Paris rica, capitalista, dourada, preguiçosa, que se apinhava agora em Versalhes, Saint-Denis, Rueil e Saint-Germain com os seus lacaios, os seus fura-greves, a sua bohême literária e as suas cocotesque considerava a guerra civil só uma diversão agradável, que olhava o desenrolar da batalha através de telescópios, que contava os tiros de canhão e jurava pela sua própria honra e pela das suas prostitutas que o espetáculo estava de longe mais bem montado do que o que costumava ser à Porte-Saint-Martin. Os homens que caíam estavam realmente mortos; os gritos dos feridos eram gritos mesmo a sério; e, além disso, a coisa era toda ela tão intensamente histórica.

É esta a Paris de M. Thiers, como a emigração de Koblenz [N195] era a França de M. de Calonne.

 

Notas de rodapé:

(35*) Durante o segundo Império, o barão Haussmann foi prefeito do Departamento do Sena, isto é, da Cidade de Paris. Introduziu uma quantidade de alterações no plano da cidade com o propósito de facilitar o esmagamento de insurreições operárias. (Nota da edição russa de 1905, publicada sob a direção de V. I. Lenine.)

(38*) Sala de jogos onde a Assembleia Nacional de 1789 tomou as suas célebres decisões[N193] — Nota de Engels à edição alemã de 1871.

Notas de fim de tomo:

[N97] No original: “shoddy aristocrats”. Shoddy: restos de algodão que ficam nos pentes depois da cardagem, matéria inutilizável e sem qualquer valor até que se encontrou um meio de tratamento e aproveitamento da mesma. Na América chama-se shoddy aristocrats aos homens que tinham enriquecido rapidamente com a Guerra Civil.

[164] “Chambre introuvable” (“Câmara impossível de encontrar”): Câmara dos Deputados em França em 1815-1816 (primeiros anos do regime da Restauração), composta por ultrarreacionários.

[N180] Investidura: sistema de designação de funcionários que tem como característica a dependência total dos funcionários dos escalões mais baixos da hierarquia relativamente aos dos escalões mais elevados.

[N181] Girondinos: na grande revolução burguesa francesa de fins do século XVIII, partido da grande burguesia (deve a sua designação ao departamento da Gironda), atuou contra o governo jacobino e as massas revolucionárias que o apoiavam sob a bandeira da defesa dos direitos dos departamentos à autonomia e à federação.

[N183] Punch, or the London Charivari (Polichinelo, ou o Charivari de Londres): semanário humorístico inglês de tendência liberal burguesa, publicado em Londres a partir de 1841.

[N184] Trata-se do decreto da Comuna de Paris de 16 de abril de 1871 prorrogando por três anos o prazo de pagamentos de todas as dívidas e abolindo o pagamento de juros por elas.

[N185] Marx alude à rejeição pela Assembleia Constituinte em 22 de agosto de 1848 do projeto de lei sobre as “concordatas amigáveis” (concordais a l’amiable), que previa o adiamento do pagamento das dívidas. Em consequência disto uma parte significativa da pequena burguesia caiu na ruína e ficou na dependência dos credores, membros da grande burguesia.

[N186] Frères ignorantins (Irmãos ignorantinhos): designação de uma ordem religiosa que surgiu em Reims em 1680, cujos membros se dedicavam a ensinar crianças pobres; nas escolas da ordem os alunos recebiam sobretudo uma educação religiosa, adquirindo conhecimentos muito exíguos dos outros domínios.

[N187] Union républicaine des départements (União Republicana dos Departamentos): organização política composta por representantes das camadas pequeno-burguesas, oriundos das diversas regiões de França e que viviam em Paris; apelou para a luta contra o governo de Versalhes e a Assembleia Nacional monárquica e para o apoio à Comuna de Paris em todos os departamentos.

[N188] Marx alude à lei de 27 de abril de 1825 sobre o pagamento aos ex-emigrados de indemnizações pelas propriedades rurais que lhes tinham sido confiscadas durante a revolução burguesa francesa.

[N189] A Coluna de Vendôme foi construída em 1806-1810 em Paris em honra das vitórias da França napoleónica; foi fundida com o bronze dos canhões inimigos capturados e era encimada por uma estátua de Napoleão. A 16 de maio de 1871, por decisão da Comuna de Paris, a Coluna de Vendôme foi derrubada.

[N190] No convento de Picpus foram descobertos casos de reclusão de freiras em celas durante muitos anos; foram encontrados também instrumentos de tortura; na Igreja de Saint-Laurent foi descoberto um cemitério clandestino, prova de que eram cometidos assassínios. A Comuna divulgou estes factos no jornal Mot d’Ordre (Palavra de Ordem) de 5 de maio de 1871, e também na brochura Les crimes des congregations religieuses (Os Crimes das Congregações Religiosas).

[N191] A principal ocupação dos prisioneiros de guerra franceses em Wilhelmshõhe era fazer cigarros para uso próprio.

[N192] Absentistas: grandes proprietários fundiários que habitualmente não viviam nas suas propriedades, que eram administradas por agentes rurais ou arrendadas a intermediários especuladores que por sua vez as entregavam em subarrendamento, em condições leoninas, a pequenos rendeiros.

[N193] A 9 de Julho de 1789 a Assembleia Nacional de França proclamou-se Assembleia Constituinte e realizou as primeiras transformações antifeudais e antiabsolutistas.

[N194] Francs-fileurs (literalmente “franco-fugitivos”): alcunha desdenhosa dada aos burgueses parisienses que fugiram da cidade durante o cerco. A alcunha tinha um carácter irónico dada a sua analogia com a palavra francs-tireurs (franco-atiradores), designação dos guerrilheiros franceses que participaram ativamente na luta contra os prussianos.

[N195] Koblenz, cidade da Alemanha. Durante a revolução burguesa francesa de fins do século XVIII foi o centro da emigração da nobreza monárquica e da preparação da intervenção contra a França revolucionária. Em Koblenz encontrava-se o governo emigrado chefiado por Calonne, ultrarreacionário, ex-ministro de Luís XVI.

https://www.marxists.org/portugues/marx/1871/guerra_civil/cap03.htm

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- 09/04/2021