Comuna de Paris. Declaração ao Povo Francês, de 19 de abril de 1871
Viva os 150 anos da imortal Comuna de Paris!
Cem Flores
23.04.2021
A Comuna de Paris, vitoriosa em 18 de março, elegeu seu Conselho (seu órgão dirigente) em 26 de março e o empossou dois dias depois. Esse Conselho será responsável pelas medidas da Comuna em relação à organização do trabalho, educação, artes, organização administrativa e serviços públicos etc. No dia 19 de abril de 1871, o Conselho aprovou uma Declaração ao Povo Francês, dirigida tanto à população de Paris quanto ao restante da França, às províncias. Como afirmou Prosper-Olivier Lissagaray, militante comunista, communard e historiador da Comuna em seu livro História da Comuna de 1871, capítulo 16, essa declaração seria “seu programa, caso fosse vitoriosa, seu testamento, caso sucumbisse”.
O Cem Flores traduziu e publica abaixo essa Declaração ao Povo Francês, de 19 de abril de 1871, no conjunto de suas publicações que celebram os 150 anos da imortal Comuna de Paris. Esse programa/testamento apresenta a visão dos dirigentes da Comuna (pelo menos de uma parte desses), no calor dos acontecimentos, sobre o que a Comuna representava, suas demandas e seus direitos, e sua visão sobre a nova era histórica que essa inédita revolução proletária abriu.
Leia as publicações do Cem Flores Viva os 150 anos da imortal Comuna de Paris!
– Engels em homenagem à Comuna de Paris, de 02.12.2019. https://cemflores.org/2019/12/02/engels-em-homenagem-a-comuna-de-paris/.
– Uma Carta de um Communard, de 04.01.2021. https://cemflores.org/2021/01/04/viva-os-150-anos-da-imortal-comuna-de-paris/.
– Marx e Engels: cartas anteriores à Comuna de Paris, de 05.02.2021. https://cemflores.org/2021/02/05/marx-e-engels-cartas-anteriores-a-comuna-de-paris/.
– Marx e Engels: cartas durante a Comuna de Paris, de 05.03.2021. https://cemflores.org/2021/03/05/marx-e-engels-cartas-durante-a-comuna-de-paris/.
– O 18 de março de 1871: o início da Comuna de Paris, por Prosper-Olivier Lissagaray, de 18.03.2021. https://cemflores.org/2021/03/18/o-18-de-marco-de-1871-o-inicio-da-comuna-de-paris-por-prosper-olivier-lissagaray/.
– Karl Marx. A Guerra Civil na França. Capítulo 3, de 09.04.2021. https://cemflores.org/2021/04/09/karl-marx-a-guerra-civil-na-franca-capitulo-3/.
De acordo com o relato de Lissagaray, o texto dessa Declaração foi apresentado pelo membro do Conselho Jules Vallès a partir das contribuições do jornalista Pierre Denis. Vallès e Denis, proudhonistas, foram os fundadores do jornal Le Cri du Peuple (O Grito do Povo), um dos principais diários a circular em Paris durante a Comuna, chegando a atingir tiragem de 100 mil exemplares.
Lissagaray critica o documento pelo seu chamamento vago às províncias e falta de detalhamento sobre a proposta de autonomia comunal. Para ele, a Comuna de Paris deveria ter tido um papel mais ativo na insurreição na província – Lyon, Saint-Etienne, Creusot, Marselha, Toulon e Narbonne registraram experiências de comunas por alguns dias. Da mesma forma, critica a Comuna por não ter se dirigido também à “imensa família operária que a observava ansiosamente” em todo o mundo.
No entanto, quando a Declaração enumera o que a Comuna de Paris entende por seus “direitos inerentes”, estão claramente listadas várias das medidas que minam o velho aparelho de estado burguês, chamado pelos communards de “centralização despótica”. Tais medidas revolucionárias apontam para os aspectos mais evidentes que tornam o estado um mecanismo de opressão e repressão das classes dominadas. A polícia seria substituída pela Guarda Nacional (constituída por todo cidadão maior de idade) e seus chefes seriam eleitos em cada bairro. Os juízes também passariam a ser eleitos, poderiam ser destituídos a qualquer momento, e passariam a ser responsabilizados diante da Comuna ou dos cidadãos, o mesmo ocorrendo com os funcionários da Comuna.
A Comuna garantia a qualquer cidadão a intervenção permanente e livre nos assuntos públicos. Essa liberdade também estava expressa pelo “livre e justo” exercício do direito de reunião e pela liberdade individual e de consciência. Não à toa, a publicação dessa Declaração é encimada pelo lema da Revolução Francesa, de 1789: Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Ou seja, a Comuna de Paris ainda sentia forte influência ideológica do liberalismo burguês revolucionário do século anterior.
A Declaração também garante a absoluta “liberdade do trabalho” e proclama seu direito de universalizar a propriedade. Para a Comuna de Paris, isso foi buscado mediante medidas como a tentativa de organização dos locais de trabalho como cooperativas, com mestres eleitos e responsáveis perante os/as trabalhadores; limitação da jornada de trabalho; proibição do trabalho noturno dos padeiros; inspeção em oficinas abandonadas, para serem assumidas pelos/as trabalhadores/as; proibição do desconto, pelos patrões, de multas nos salários; etc. A União das Mulheres também defendeu salários iguais para homens e mulheres.
Portanto, as formulações da Declaração refletem, por um lado, demandas concretas da massa trabalhadora parisiense pelo fim (ou redução) da exploração e por relações de trabalho “mais justas”, limitando o poder dos patrões. Por outro, refletem o predomínio da ideologia pequeno-burguesa de esquerda na Comuna de Paris. Os revolucionários comunistas, membros da Associação Internacional dos Trabalhadores, a 1ª Internacional, eram minoritários entre os communards e seus dirigentes.
A firme decisão revolucionária dos membros da Comuna de Paris, assim como a dos/as operários/as e da massa que a construiu, está claramente afirmada no final da Declaração. Os communards tinham a plena consciência de estar escrevendo uma das mais belas páginas da história e de estar abrindo uma nova era:
“Quanto a nós, cidadãos de Paris, nós temos a missão de realizar a revolução moderna, a maior e mais fecunda de todas aquelas que ilustram a história.
Nós temos o dever de lutar e de vencer!”
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Declaração ao Povo Francês
Comuna de Paris
Neste conflito doloroso e terrível, que impõe mais uma vez a Paris os horrores do cerco [pelo exército prussiano] e dos bombardeios [pelo exército de Versalhes], que derrama o sangue francês, que mata nossos irmãos, nossas mulheres, nossos filhos esmagados sob os obuses e as metralhadoras, é necessário que a opinião pública não seja dividida, que a consciência nacional não seja perturbada.
É preciso que Paris e todo o país saibam qual é a natureza, a razão, o objetivo da revolução que foi realizada. É preciso, enfim, que a responsabilidade pelos lutos, sofrimentos e infortúnios de que somos vítimas, recaia sobre aqueles que, depois de haver traído a França e entregue Paris aos estrangeiros, perseguem com obstinação cega e cruel a ruína da capital, a fim de enterrar no desastre da república e da liberdade, o duplo testemunho de sua traição e de seu crime.
A Comuna tem o dever de afirmar e determinar as aspirações e desejos da população de Paris; de precisar o caráter do movimento de 18 de março, mal compreendido, desconhecido e caluniado pelos políticos que se reúnem em Versalhes.
Mais uma vez, Paris trabalha e sofre por toda a França, para a qual ela prepara, pelos seus combates e sacrifícios, a regeneração intelectual, moral, administrativa e econômica, a glória e a prosperidade.
O que ela demanda?
O reconhecimento e a consolidação da república, única forma de governo compatível com os direitos do povo e o desenvolvimento regular e livre da sociedade;
A autonomia absoluta da Comuna estendida para todas as localidades da França, assegurando a cada uma a integralidade dos seus direitos e a todos os franceses o pleno exercício de suas faculdades e de suas atitudes, como homem, cidadão e trabalhador;
A autonomia da Comuna será limitada apenas pelo direito de igual autonomia para todas as outras comunas aderentes ao contrato, cuja associação deverá assegurar a unidade francesa.
Os direitos inerentes à Comuna são:
A votação do orçamento da comuna, suas receitas e despesas; a definição e a repartição dos impostos; a direção dos serviços locais; a organização de sua magistratura, da polícia e do ensino; a administração dos bens pertencentes à Comuna;
A escolha por eleição ou concurso, com responsabilização e o direito permanente de controle e destituição, dos juízes ou funcionários da Comuna a qualquer nível;
A garantia absoluta da liberdade individual, da liberdade de consciência e da liberdade do trabalho;
A intervenção permanente dos cidadãos nos assuntos da Comuna pela livre manifestação de suas ideias, a livre defesa de seus interesses: garantias dadas a essas manifestações pela Comuna, única encarregada de acompanhar e garantir o livre e justo exercício do direito de reunião e de publicidade;
A organização da defesa urbana e da Guarda Nacional, que elege seus chefes e é a única responsável por garantir a manutenção da ordem na cidade.
Paris não quer nada além disso em termos de garantias locais, com a condição, é claro, de encontrar na grande administração central delegação das comunas federadas para a realização e a prática dos mesmos princípios.
Mas, graças à sua autonomia e aproveitando sua liberdade de ação, Paris reserva-se o direito de executar como bem entender, as reformas administrativas e econômicas exigidas pela sua população; de criar instituições apropriadas para desenvolver e propagar a instrução, a produção, o comércio e o crédito; de universalizar o poder e a propriedade, de acordo com as necessidades do momento, os desejos dos interessados e os dados fornecidos pela experiência.
Nossos inimigos se enganam ou enganam o país, quando eles acusam Paris de querer impor sua vontade ou sua supremacia ao restante da nação e de almejar uma ditadura que seria um verdadeiro atentado contra a independência e a soberania das outras comunas.
Eles se enganam ou enganam nosso país, quando eles acusam Paris de buscar a destruição da unidade francesa, constituída pela Revolução, sob aclamação de nossos pais, reunidos para a festa da Federação, vindos de todas as partes da velha França.
A unidade, tal qual nos foi imposta até hoje pelo império, a monarquia e o parlamentarismo, não é nada mais que a centralização despótica, pouco inteligente, arbitrária ou onerosa.
A unidade política, tal qual quer Paris, é a associação voluntária de todas as iniciativas locais, a cooperação espontânea e livre de todas as energias individuais em vista de um objetivo comum, o bem-estar, a liberdade e a segurança de todos.
A revolução comunal, começada pela iniciativa popular do 18 de março, inaugura uma nova era de política experimental, positiva e científica.
É o fim do velho mundo governamental e clerical, do militarismo, do funcionalismo, da exploração, da agiotagem, dos monopólios, dos privilégios, aos quais o proletariado deve sua servidão e a pátria, seus infortúnios e seus desastres.
Que esta querida e grande pátria, enganada pelas mentiras e calúnias, fique, portanto, tranquila!
A luta entre Paris e Versalhes é daquelas que não podem terminar por compromissos ilusórios; o resultado não pode ser duvidoso. A vitória perseguida com uma energia indomável pela Guarda Nacional ficará com a ideia e o direito.
Nós fazemos um apelo à França!
Advertida que a Paris em armas possui tanto calma quanto bravura; que ela defende a ordem com tanta energia quanto entusiasmo; que ela se sacrifica com tanta razão quanto heroísmo; que ela não se armou senão por devoção à liberdade e à glória de todos, que a França faça cessar esse conflito sangrento!
Cabe à França desarmar Versalhes pela manifestação solene de sua vontade irresistível.
Chamada a se beneficiar de nossas conquistas, que ela se declare solidária aos nossos esforços; que ela seja nossa aliada neste combate que não pode terminar senão pelo triunfo da ideia comunal ou com a ruína de Paris!
Quanto a nós, cidadãos de Paris, nós temos a missão de realizar a revolução moderna, a maior e mais fecunda de todas aquelas que ilustram a história.
Nós temos o dever de lutar e de vencer!
Paris, 19 de abri de 1871
A Comuna de Paris