CEM FLORES

QUE CEM FLORES DESABROCHEM! QUE CEM ESCOLAS RIVALIZEM!

Cem Flores, Conjuntura, Nacional

A burguesia e Bolsonaro

Desde a campanha eleitoral de 2018 e durante todo o seu governo, Bolsonaro contou com o apoio amplamente majoritário do conjunto das classes dominantes, tanto em termos econômicos, quanto políticos (incluindo financiamento) e ideológicos”. Cem Flores.

 

Cem Flores

27.10.2021

 

Toda crise política, qualquer que seja seu resultado, é útil porque traz à tona coisas que permaneciam ocultas, destaca as forças que atuam na política, desmascara os enganos e os autoenganos, as frases e ficções, e proporciona uma brilhante demonstração de ‘como são as coisas’, metendo-as, por assim dizer, à força na cabeça”.

Lênin. Mais sobre a Crise Política. 3 de maio de 1914.

 

Na última quinta-feira, 21 de outubro, quatro graduados burocratas do segundo escalão do governo Bolsonaro pediram demissão do Ministério da Economia. Nesse único dia, a bolsa de valores caiu 2,75% e o dólar subiu 1,53%. Com uma nova queda na sexta, a semana passada terminou com a bolsa no nível mais baixo do ano. Já o dólar continuou a subir, chegando a R$ 5,71, seu maior valor desde o final de março.

Com isso, o mercado financeiro aumentou suas projeções de inflação e juros, tanto neste ano quanto no próximo, e reduziu suas expectativas para o crescimento do PIB, que já indicavam cenário praticamente recessivo em 2022. Um exemplo é o Itaú, que na segunda-feira, 25, revisou suas projeções para o PIB em 2022 de estagnantes +0,5% para recessivos -0,5%, com taxa média de desemprego de 12,9% e Selic a 11,25%. Segundo o maior grupo financeiro brasileiro, o problema é “o aumento da incerteza fiscal” com a quebra do teto de gastos pelo governo Bolsonaro e a solução, uma “rápida retomada da agenda de reformas”.

Muito barulho por nada? Por que uma movimentação do segundo escalão teve tanta repercussão, na imprensa e na economia, ainda mais sabendo que Guedes foi capaz de rapidamente substituir uns burocratas por outros?

A questão central que está em jogo nos parece ser a da continuidade do próprio apoio da burguesia (e da pequena burguesia) a Bolsonaro e seu governo. No entanto, o regime fiscal – e, de maneira mais ampla, a política econômica como um todo – é apenas um aspecto desse apoio, que deve ser analisado de maneira mais abrangente. Na nossa avaliação da conjuntura política buscamos mostrar que esse apoio da classe dominante a Bolsonaro envolve as condições concretas para a continuidade da recente ofensiva burguesa na luta de classes em seus aspectos econômico, político, ideológico e repressivo.

No campo econômico é importante para o apoio da burguesia ao governo que este avance na implantação do que temos chamado de Programa Hegemônico da Burguesia. Com esse termo nos referimos ao conjunto de “reformas” (previdência, trabalhista, sindical, administrativa, tributária etc.) e outras medidas econômicas (privatizações e concessões, abertura comercial, e um conjunto de medidas setoriais que podem ser resumidas como “passar a boiada”) que unificam, no geral, o conjunto das frações do capital, das classes dominantes. O programa hegemônico consegue unificar as classes dominantes no país pois ele representa a abertura de novos espaços à acumulação de capital, a eliminação de restrições estatais a essa acumulação, a redução dos salários (diretos e indiretos), a intensificação da exploração das massas dominadas e, como resultado de todos esses fatores, contribui para o aumento das taxas de lucros, impactadas pela crise do capital dos últimos anos.

E o “teto de gastos” – congelamento dos valores reais das despesas públicas no patamar pós-recessão de 2016 – implantado por Temer (para valer para os governos seguintes) é parte constitutiva do chamado “novo regime fiscal”, uma das peças centrais do programa hegemônico. Por isso mesmo, a condução errática da política econômica por Guedes é fonte de fissuras no apoio burguês a Bolsonaro. Como dissemos no nosso documento sobre conjuntura política, de 2 de outubro:

neste ano as fissuras começaram a ficar mais evidentes, inicialmente lideradas por alguns representantes ideológicos da burguesia (economistas e formuladores do programa hegemônico) e, mais recentemente, por alguns burgueses diretamente”.

Essas fissuras, iniciadas com os formuladores do programa hegemônico – principalmente economistas, os “espadachins mercenários” do capital, no dizer de Marx – agora atingem os próprios burocratas encarregados de implantar esse programa (e não romper com ele, como agora propõem Bolsonaro e Guedes). Alguns burgueses individualmente também têm dado declarações contra Bolsonaro e sua política econômica. As fissuras se ampliam.

No entanto, o fundamental, no aspecto econômico, são os lucros, seu aumento e as perspectivas de continuidade dessa retomada. E aqui não há “debandada” da burguesia em seu apoio a Bolsonaro, muito pelo contrário. Durante seu governo, ele sempre contou e continua a contar “com o apoio amplamente majoritário do conjunto das classes dominantes”, como afirmamos em 2 de outubro.

Mesmo em 2020, ano da crise da pandemia, estima-se que as 500 maiores empresas do país tiveram uma lucratividade contábil (lucro dividido pelo patrimônio líquido) de 9,2% que, desde 2012, só foi menor que as de 2018 e 2019. No primeiro semestre deste ano, segundo o banco central, os bancos lucraram R$ 62 bilhões, retomando o patamar pré-pandemia. No mesmo período a Vale, sozinha, lucrou R$ 70,7 bilhões e bateu seu recorde histórico. Considerando balanços de 277 empresas (sem a Vale e a Petrobrás), a taxa de lucro contábil atingiu 18,7% no segundo trimestre de 2021.

No campo ideológico o apoio da burguesia (e da pequena burguesia) a Bolsonaro representa a reafirmação de sua dominação de classe e a consequente busca de reforço da subordinação das classes dominadas, constituindo, portanto, parte importante da ofensiva burguesa. Como afirmamos no nosso documento:

Ideologicamente, a campanha e o governo buscaram se caracterizar pela defesa intransigente do que é hipocritamente chamado de “conservadorismo nos costumes”, além de um onipresente “anticomunismo” (“nossa bandeira jamais será vermelha”) … a disposição da burguesia para ampliar a ofensiva no combate sem tréguas a qualquer organização, mobilização e luta da classe operária e demais trabalhadores/as”.

No campo repressivo, que precisou ser reforçado devido à necessidade burguesa de aumentar a exploração e a opressão das massas dominadas, pela sua “ligação umbilical com o aparelho repressivo do estado (forças armadas, polícias) e seu braço “ilegal” (milícias), não havia candidato comparável a Bolsonaro”.

No campo político, não obstante a contínua crise, houve avanços na política institucional com a aprovação de diversos pontos das “reformas” que constituem o programa hegemônico. Na política anti-institucional, Bolsonaro tem jogado praticamente sozinho, num crescente desde, pelo menos, a manifestação de abril de 2020, em frente ao quartel general do exército, até as manifestações de 7 de setembro deste ano – todas, sem exceção, em defesa da ruptura institucional (fechamento do congresso e do STF, por exemplo), de intervenção militar e da entronização de Bolsonaro como ditador.

Exatamente essa dualidade institucional/anti-institucional, seus avanços e recuos, tem acentuado a crise política e a crise institucional neste ano. Por um lado, isso prejudica a implantação das “reformas” e o próprio desempenho econômico, tendendo a ampliar as fissuras no apoio burguês a Bolsonaro. Por outro, é aspecto necessário do seu movimento de extrema-direita, fascista, que busca concentração de poderes e autoritarismo crescentes, como forma de se apresentar à burguesia como o governante mais apropriado para eliminar as resistências à implementação do seu programa.

Ou seja, além de extrema-direita, fascista, racista, misógino e genocida, e mesmo antes dessas demais características, Bolsonaro representa as classes dominantes brasileiras, a burguesia brasileira, em sua ofensiva em todas as frentes contra a classe operária e demais classes trabalhadoras do país.

E, no entanto, o cenário de graves crises econômica e política, combinado com o fato de que as eleições gerais de 2022 ocorrerão em pouco menos de um ano, reduzem o “custo” para a burguesia de buscar trocar o seu “gestor” de plantão por outro “mais eficiente”, tendo em vista principalmente a sua perspectiva de lucros futuros.

Por isso, as diversas tentativas de obtenção do apoio da burguesia por parte dos futuros candidatos. Pelo lado de Bolsonaro, tanto o “silêncio” pós-7 de setembro (quando o “recado” foi dado), acertado com Temer e Alexandre de Moraes, quanto as acrobacias de Guedes para fingir manter o teto de gastos e, agora, a declaração sobre a privatização da Petrobrás. Pelo lado de Lula, “acertos ‘por cima’ de apoios políticos e na montagem de palanques regionais”, buscando se mostrar novamente confiável para a burguesia, no que já está obtendo resultados, como atestam do banqueiro André Esteves ao cientista político norte-americano Ian Bremmer, da Eurasia, que declarou que “Não acredito que haverá uma saída maciça de capital se Lula vencer as eleições. Na verdade, espero que haja uma estabilidade maior na economia”. Por fim, certos elementos burgueses ainda tentam emplacar uma terceira via, um candidato burguês de direita, porém mais “previsível” que Bolsonaro – por enquanto, infrutiferamente.

Em todos esses cenários, portanto, as eleições de 2022 tratam, ainda que sob formas distintas, da continuidade da ofensiva burguesa na luta de classes. Tergiversar sobre isso significa desarmar política, ideológica e organizativamente a classe operária para os combates futuros que ela deve travar, em difíceis condições, contra a burguesia, seus representantes e seu estado. Significa, igualmente, não seguir a orientação de Lênin:

olhemos a verdade de frente. Em política esta é sempre a melhor atitude e a única correta” (Lênin. Mais sobre a Crise Política).

 

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A seguir, reproduzimos o trecho do documento sobre a posição da burguesia (e da pequena burguesia) em relação a Bolsonaro e seu governo.

A versão integral do documento pode ser baixada em pdf aqui.

 

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A posição das classes dominantes e da pequena burguesia no apoio a Bolsonaro

  1. Desde a campanha eleitoral de 2018 e durante todo o seu governo, Bolsonaro contou com o apoio amplamente majoritário do conjunto das classes dominantes, tanto em termos econômicos, quanto políticos (incluindo financiamento) e ideológicos. Ideologicamente, a campanha e o governo buscaram se caracterizar pela defesa intransigente do que é hipocritamente chamado de “conservadorismo nos costumes”, além de um onipresente “anticomunismo” (“nossa bandeira jamais será vermelha”) que, sob a fachada anti-Lula e anti-PT esconde a disposição da burguesia para ampliar a ofensiva no combate sem tréguas a qualquer organização, mobilização e luta da classe operária e demais trabalhadores/as. Essas características se combinavam com a necessidade burguesa de aprofundar a aplicação de seu programa hegemônico em curso desde, pelo menos, 2015 (Dilma e, depois, Temer) e aumentar a exploração capitalista sobre a massa trabalhadora para retomar seus lucros, com a consequente maior repressão necessária para conter a reação e a resistência dessas massas. Em termos da ligação umbilical com o aparelho repressivo do estado (forças armadas, polícias) e seu braço “ilegal” (milícias), não havia candidato comparável a Bolsonaro.

 

  1. A convicção para aprofundar a exploração dos/as trabalhadores/as também era inegável e ganhou corpo com a indicação de Guedes para o superministério da economia e sua proposta de “reformas” emulando o “modelo” chileno da era Pinochet: virtual fim da previdência pública e sua substituição pela capitalização financeira, promessa de um trilhão de reais em privatizações, cortes de gastos cada vez mais profundos, reforma administrativa, novas rodadas de reformas trabalhistas e sindicais para eliminar conquistas trabalhistas e a revisão de toda a regulamentação estatal em termos trabalhistas, ambientais, fundiários, fiscalizatórios etc.

 

  1. Desse amplo conjunto de medidas, foram realizadas a reforma da previdência, ainda em 2019 (embora sem a capitalização), e inúmeras privatizações e concessões, que já somam centenas de bilhões de reais. Um caso especial dessas privatizações é o desmanche do grupo Petrobras (sem legislação específica, por autorização do STF) com a entrega das subsidiárias de distribuição e refino. Foram também aprovadas a chamada lei da liberdade econômica, com inúmeros empecilhos à fiscalização e regulação sobre o capital, e uma miríade de mudanças de legislação e regulação setoriais – a chamada “boiada”. Tem especial relevância e impacto direto nas massas trabalhadoras o aprofundamento das “reformas” trabalhista e sindical, especialmente as medidas durante a crise da pandemia (possibilidade de redução salarial, de suspensão do contrato de trabalho, de negociações individuais, reforço do negociado sobre o legislado), que já foram experimentadas com sucesso do ponto de vista dos patrões e que podem ser futuramente tornadas permanentes.

 

  1. Essas medidas e a sabotagem e o desmonte dos aparelhos estatais de fiscalização trabalhista, sindical, ambiental etc. se traduziram na retomada das taxas de lucro, aparentemente já acima dos resultados pós-crise de 2014-16, consolidando o apoio da burguesia ao seu governo. O que passa crescentemente a estar em discussão, para as classes dominantes, é a perspectiva de continuidade desse cenário de retomada da lucratividade, consideradas as perspectivas de nova estagnação para 2022 e de continuidade/agravamento da crise política, ao mesmo tempo que as eleições poderiam abrir uma perspectiva de troca do governo burguês de plantão.

 

  1. Além desses temas e acordos gerais, que atendem ao conjunto da burguesia, as políticas de Bolsonaro também partem, em geral, das propostas defendidas pelas principais frações do capital no país. Em relação ao capital bancário e ao mercado financeiro, a sequência do chamado tripé macroeconômico, inalterada desde 1999, de metas para a inflação (com o significativo aumento de juros neste ano e no próximo), câmbio flutuante (cuja desvalorização atual representou ganhos recordes para o capital exportador) e arrocho fiscal (exceto nos pagamentos de juros). Esse setor foi o destinatário das principais e mais imediatas ações na crise da pandemia, mais de R$1 trilhão, e continuou emplacando seus representantes diretos no ministério da economia e no banco central, como sempre. Com isso, registraram em 2019 (primeiro ano de Bolsonaro e antes da pandemia) possivelmente a maior lucratividade da década.

 

  1. O conjunto do capital aplicado na produção agropecuária – especialmente o grande capital e o capital monopolista, nacional e estrangeiro, do agronegócio exportador – continuou em expansão (com reduzido impacto da pandemia) tanto na área colhida e na produção quanto na produtividade. O governo (como todos os anteriores) manteve o financiamento privilegiado a esse setor, com recursos do tesouro nacional e juros muito baixos, da mesma forma que o ministério da agricultura continuou ocupado por seus representantes diretos. Além disso, suas demandas setoriais foram atendidas até mesmo além do esperado, com novas legislações reforçando a propriedade privada (e facilitando a grilagem) e a liberação de armas, fim da reforma agrária (continuando a política de Dilma e Temer), liberação indiscriminada de agrotóxicos, destruição ambiental, desmantelamento da fiscalização, e o incentivo e mesmo autorização (quase) explícita para a violência, invasões de terras.

 

  1. Os exportadores (agronegócio, mineração) acumularam lucros recordes neste governo, com a combinação de elevação da demanda internacional por commodities, dólar alto e financiamento barato. O capital aplicado na circulação de mercadorias (comércio varejista e atacadista, logística) passa por uma onda de concentração e centralização de capital, tanto nacional quanto estrangeiro, se beneficiando das novas tecnologias (comércio eletrônico, também ampliado na pandemia) e das medidas da reforma trabalhista, também obtendo lucros recordes. Idem no setor de saúde privado, que se beneficia com o subfinanciamento e a sabotagem ao SUS.

 

  1. O capital industrial – com baixa produtividade e dificuldade de competição internacional e redução da sua participação na economia – tem se beneficiado com o rebaixamento dos custos salariais (diretos e indiretos) e o aumento da exploração, também resultado das “reformas” trabalhista e sindical, permitindo alguma sustentação de suas taxas de lucro, ao menos no curto prazo.

 

  1. Mesmo que o apoio dos patrões a Bolsonaro continue amplamente majoritário, neste ano as fissuras começaram a ficar mais evidentes, inicialmente lideradas por alguns representantes ideológicos da burguesia (economistas e formuladores do programa hegemônico) e, mais recentemente, por alguns burgueses diretamente. Em março, uma carta aberta capitaneada por economistas, ex-ministros da fazenda e ex-presidentes do banco central e dois banqueiros (Itaú e Credit Suisse) criticava o desempenho do governo no combate à pandemia e seus consequentes impactos negativos no crescimento e nos lucros. Em agosto, nova carta organizada pelos mesmos banqueiros, agora com alguns empresários, participantes do mercado financeiro, economistas e personalidades defendia a democracia e as eleições de 2022 – concretamente, a “estabilidade” necessária para a continuidade dos seus negócios.

 

  1. Em setembro, a Fiesp encabeçou um texto anódino assinado por 248 entidades patronais (metade das quais do estado de São Paulo) pedindo harmonia, pacificação e estabilidade entre os poderes e expressando preocupação com a escalada da tensão – praticamente pedindo desculpas ao presidente por “ser forçada” a publicar o texto, convenientemente apenas após o 7 de setembro. Enquanto os formuladores do programa hegemônico da burguesia criticam abertamente o governo pela sua “falta de racionalidade” (abandono de “reformas” amplas que beneficiem o capital em geral, propostas tecnicamente mal formuladas), os patrões defendem as perspectivas concretas para o futuro de seus negócios e lucros, que já estão sendo afetadas pela escalada da crise política, “instabilidade” e “incerteza”.

 

  1. Bolsonaro também mantém apoio nas camadas médias, inclusive na parcela que dirige e compõe o aparelho repressivo armado – as forças armadas e as polícias. Nas camadas alta e média da pequena burguesia, Bolsonaro conta com um forte viés ideológico, que se expressa no anticomunismo (oposição ferrenha a qualquer ação, ainda que potencial, por organização, resistência e luta dos dominados), no desejo por ordem (na realidade, repressão aos “de baixo”), no conservadorismo (família “tradicional”, patriarcalismo, machismo, religiosidade). O aspecto econômico da crise do capital no Brasil, ao ameaçar as condições anteriores dessas camadas médias com o risco de rebaixamento ou mesmo de “proletarização” também reforça os aspectos ideológicos, traduzidos concretamente no seu apoio a Bolsonaro. Também aqui há fissuras, como é o caso de alguns movimentos de direita, conservadores, como o MBL e o Vem Pra Rua. A “ala esquerda” da pequena burguesia orbita PT, PSOL e outros partidos da esquerda institucional e eleitoreira.

 

  1. Ao que tudo indica, as forças armadas mantêm seu sólido apoio a Bolsonaro, tanto ao nível dos generais quanto da baixa oficialidade, não obstante a existência de críticos (Santos Cruz) e de defensores de maior institucionalidade (Mourão). Em termos de base ideológica, compartilham o anticomunismo, o desejo de ordem e o conservadorismo, acrescentando sua identificação (ideológica) com a própria pátria e a construção do seu destino. A isso soma-se uma importante base material no governo Bolsonaro: aumento de salários, preservação de regras previdenciárias diferenciadas, ampla participação no governo, ocupando milhares de cargos civis, investimentos bilionários em estatais militares (que também beneficiam militares da reserva, que se apresentam como “empresários”). No caso das polícias, além da mesma base ideológica, as demandas concretas apoiadas por Bolsonaro são de maior autonomia em relação aos governos estaduais (o que na prática já existe amplamente), maior formalização da eliminação/redução de controles e limites à sua atuação (excludente de ilicitude, ou licença para matar), além da pauta econômica (que não tem avançado, em geral, na crise atual) e demais questões corporativas.

 

  1. Esse retorno das forças armadas a posições dirigentes na esfera política culmina processo planejado desde meados da década passada, que começou a se concretizar com Temer e se aprofundou com Bolsonaro. Esse retorno da participação política explícita das forças armadas (e das polícias), e de sua chantagem armada, é parte constitutiva da atual crise política. Convém destacar três aspectos da questão militar: seu projeto, a anarquia militar e seu autoritarismo intrínseco. Ao contrário dos anos 1970, não há um projeto nacional-desenvolvimentista (autoritário) nas forças armadas. Seus dirigentes parecem integralmente alinhados à posição das classes dominantes de manter e reforçar a posição dominada no sistema imperialista como único caminho possível. A anarquia militar é contrapartida dessa retomada política, marcada por discursos e campanhas políticos dentro dos quarteis e em eventos militares e mesmo políticos, ameaças de insubordinação, motins e greves armadas frequentes. Sua continuidade levaria ao descontrole cada vez maior e ao aumento de violência, repressão, arbítrio e autoritarismo militar e policial. Parece crescente o risco de ações de provocação (como no Riocentro e outras, em períodos passados) para intensificar esse clima e buscar “justificar” tentativas de golpe.

 

  1. O reforço do autoritarismo, da centralização de poderes, da constante ameaça armada e do permanente risco (e ameaças) de golpe de estado são intrínsecos a esse cenário. Por um lado, explicitamente estimuladas pelo apoio militante de parte das classes dominantes e da pequena burguesia em suas demandas por intervenção militar. Por outro, essas ameaças respondem à crise econômica e à própria crise política – recessão/estagnação, perda de renda, risco de afetar os lucros, queda de popularidade de Bolsonaro, redução de suas chances na eleição de 2022. Essas ameaças aumentam quando parte das forças armadas e das polícias passam a ver as eleições como riscos à manutenção e ao reforço do seu próprio poder (político, territorial, econômico). A reação tem sido o reforço da chantagem armada como meio de conservar a posição conquistada, independentemente de qualquer resultado eleitoral, ou tentativas de ruptura institucional.

 

  1. Por essas razões são equivocadas a oposição binária entre “democracia” e golpe e a posição de que se (ou enquanto) não houver um golpe, permanecemos no regime democrático – sem necessidade de qualquer qualificação. A posição marxista-leninista sobre a democracia é que essa constitui, no capitalismo, uma das formas da dominação política da burguesia. Isso é o que ocorre concretamente hoje, tanto nos países dominados, quanto nos imperialistas – na experiência cotidiana tanto das classes dominantes quanto das dominadas.

 

  1. A conjuntura concreta em que vivem e lutam a classe operária e a massa trabalhadora no Brasil de hoje já é marcada pelo aprofundamento das características autoritárias e repressivas do capitalismo brasileiro (conjuntura na qual a questão militar é um fator importante, mas não o único). O permanente estado de exceção na prática, a militarização/milicianização da política e a violência político-repressiva, com a participação do judiciário, do legislativo e de outros governos, já estão claramente ocorrendo para as massas trabalhadoras e seus militantes há anos – independente de um possível golpe que mude de patamar essas tendências. Concretamente, tornaram-se eventos frequentes assassinatos/chacinas ou extorsões policiais e a repressão constante nas periferias e no campo (invasões de domicílios, batidas, ameaças, torturas); vigilância contra os movimentos (invasões de reuniões, repressão e/ou proibição de manifestações, dossiês governamentais, lesões corporais, mutilações); proibição judicial de greves e do livre funcionamento sindical etc. Todas essas características do crescente autoritarismo identificam muito bem suas vítimas (trabalhadores, pobres, favelados, pretos, manifestantes, militantes socialistas, de esquerda, populares, sindicalistas etc.) e são muito bem aceitas, quando não explicitamente apoiadas e estimuladas, pelas classes dominantes (e pela pequena burguesia), integrando sua ofensiva de classe.

 

  1. Essas características são necessárias e constitutivas do capitalismo em crise, com sua necessidade de maior repressão à organização e aos protestos populares. Defender a “manutenção da democracia” nesse contexto – sem considerar esses aspectos reais da vida das massas – é, por um lado, uma pauta pequeno burguesa, liberal, com pouca capacidade de atrair as massas trabalhadoras para uma mobilização ativa e, por outro, sinônimo de manutenção da dominação e opressão capitalistas e de sua condição atual de exploração, repressão e autoritarismo agravados.
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- 27/10/2021