CEM FLORES

QUE CEM FLORES DESABROCHEM! QUE CEM ESCOLAS RIVALIZEM!

Internacional

Abril e “piedosas intenções”, por António Barata

Manifestação de 1º de maio em Portugal, 1974.

Cem Flores

28.04.2023

No último dia 25, publicamos um texto sobre os 49 anos da queda do fascismo e do processo revolucionário em Portugal. Esse período da luta de classes portuguesa guarda ainda importantes e atuais lições sobre o combate revolucionário ao fascismo e os riscos das frentes “democráticas” para a causa do proletariado e das massas exploradas.

Dando continuidade a esse debate, indicamos o texto de António Barata divulgado no blog comunista Bandeira Vermelha. “Abril e ‘piedosas intenções’” nos atualiza sobre as disputas políticas e ideológicas que ainda ocorrem sobre o 25 de Abril e seus desdobramentos em Portugal. Para Barata, as comemorações majoritárias hoje celebram “a vitória da burguesia democrática sobre a burguesia fascista, como se o regime em que vivemos há 48 anos não resultasse do golpe reacionário do 25 de Novembro de 1975, que terminou com a crise revolucionária de 1974/75, permitindo à burguesia democrática conter o movimento popular no quadro do sistema capitalista e restaurar a sua ordem jurídica e política”. Ou seja, se prendem à “velha ladainha mistificadora” da democracia burguesa e apagam os lances de luta de classes ocorridos no processo revolucionário daquele período, que levaram à derrota das classes trabalhadoras.

“Certamente que falar e defender a democracia do trabalho, de base, que animava, estruturava e dava força e capacidade de mobilização a esse movimento popular e revolucionário organizado em Comissões de Moradores, de Trabalhadores, de Soldados e Marinheiros, choca de frente com a democracia representativa, parlamentar, da burguesia”, diz Barata. Mas se quisermos manter vivo a memória da luta contra o regime colonial-fascista da burguesia portuguesa e levantar a bandeira das massas exploradas de 1974/75, essa é exatamente a defesa a ser feita!

*          *          *

Abril e “piedosas intenções”

21.04.2023

António Barata

Este ano, em que se comemoram os 49 anos do derrube do fascismo pelo movimento dos capitães, os portugueses, os partidos e os movimentos políticos e as organizações populares e cívicas estão a ser convidadas pela Comissão Promotora das Comemorações Populares do 25 de Abril para participar no tradicional desfile. Até aqui nada de novo. A novidade está em que este ano a Comissão Promotora foi substancialmente alargada e, no seu apelo, integrou as reivindicações dos coletivos e das pessoas que integraram a grande manifestação de 1 de Abril promovida pelo coletivo Casas para Viver. O que é de saudar.

Mas há um senão.

Passando ao lado do tom pomposo que abre o apelo, onde se lembra o “heroico levantamento militar do Movimento das Forças Armadas”, e indo à sua substância, nele diz-se que há “que continuar a lutar para cumprir Abril porque cumprir Abril é garantir que todos os portugueses tenham acesso a pensões, reformas e salários dignos, à saúde, educação, cultura, habitação porque, como diz o poeta, sem isso não há liberdade a sério. Cumprir Abril é contribuir para a construção de uma sociedade em que se possa viver com dignidade, num meio ambiente amigo da natureza, em que a Paz, o diálogo e a cooperação entre as Nações e os Povos sejam uma realidade.”

Colocar as coisas nestes termos pode ser “abrangente”, mas não é mais que repetir a velha ladainha mistificadora sobre a conquista das “liberdades e garantias, direitos políticos, económicos, sociais e culturais, afirmou-se a soberania e independência nacionais – princípios, direitos e garantias consagrados na Constituição da República Portuguesa.” E não é o fato de depois se enumerarem as reivindicações que fariam “cumprir Abril” – a saber: defender e reforçar o Serviço Nacional de Saúde, investir na Educação e na Cultura, garantir o direito à habitação, combater a pobreza e o agravamento das desigualdades sociais, combater as alterações climáticas, garantir o direito de acesso à Justiça, lutar pela paz e combater o racismo e a xenofobia crescentes na nossa sociedade – que faz com que este apelo seja tão inócuo e inútil como os anteriores. Ou seja, um conjunto de palavras bonitas e consensuais, agora com uns tons de “populares e de esquerda”.

O problema não está nas reivindicações, que são justas, mas numa omissão que as transforma em retórica e nos põe a celebrar a vitória da burguesia democrática sobre a burguesia fascista, como se o regime em que vivemos há 48 anos não resultasse do golpe reacionário do 25 de Novembro de 1975, que terminou com a crise revolucionária de 1974/75, permitindo à burguesia democrática conter o movimento popular no quadro do sistema capitalista e restaurar a sua ordem jurídica e política.

Razão pela qual não deveria ser omisso que “cumprir Abril” (isto para usar a terminologia dos autores do apelo) não é irmanar os que estiveram do lado do movimento popular e revolucionário com os que o combateram. É trabalhar para derrubar o poder instaurado pelo golpe reacionário de 25 de Novembro, aquele que triunfou e liquidou o movimento popular e revolucionário, e que nos tem governado desde então. É não apagar da memória coletiva a iniciativa dos milhares de pobres, de trabalhadores, de operários e camponeses, de homens e mulheres, que não obedeceram aos apelos do MFA [Movimento das Forças Armadas] para que ficassem em casa e inundaram as ruas caçando pides [polícia internacional e de defesa do estado fascista] e exigindo o fim da polícia política (que o general Spínola queria manter), a prisão e julgamento de pides e bufos e a libertação de todos os presos políticos (e não só de alguns como era vontade de Spínola). E que depois começaram a ocupar as casas devolutas gritando que “as casas são do povo!”, “casas sim, barracas não!” e “nem gente sem casa, nem casas sem gente!”, e também as terras dos grandes agrários onde sempre trabalharam, dando início à reforma agrária; a sanear fascistas e bufos das empresas e repartições, a exigir o fim da guerra colonial e a impedir os soldados de embarcar (“nem mais um soldado para a colônias!”), que tomaram nas suas mãos a gestão das empresas abandonadas pelos patrões, e que sem perguntar nada a ninguém nem esperar ordens se meteram a construir casas e esgotos, a levar a água e a eletricidade onde não a havia, a ciar creches e postos médicos nos bairros pobres, a alfabetizar-se, a levar a cultura, a música, o cinema e o teatro a fábricas, bairros e aldeias, etc. Um movimento que contaminou os quartéis, onde os soldados começaram a questionar a hierarquia militar e a desobedecer, deixando a burguesia sem os meios de repressão necessários para se fazer obedecer.

Certamente que falar e defender a democracia do trabalho, de base, que animava, estruturava e dava força e capacidade de mobilização a esse movimento popular e revolucionário organizado em Comissões de Moradores, de Trabalhadores, de Soldados e Marinheiros, choca de frente com a democracia representativa, parlamentar, da burguesia.

Muitos dirão que este é um discurso do passado, fossilizado, que divide e obriga a fazer escolhas – incapazes de perceber que estão a servir de parvos úteis à burguesia e ao capital, só resta dizer que Nossa Senhora de Fátima os guarde.

Compartilhe
- 28/04/2023