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Destaque, Teoria

Étienne Balibar: A Retificação do “Manifesto Comunista” (1974) – 2ª parte

Cem Flores

22.05.2023

Para comemorar os 175 anos do Manifesto do Partido Comunista, dos revolucionários Karl Marx e Friedrich Engels, o Cem Flores resgatou o texto do filósofo Étienne Balibar chamado A Retificação do “Manifesto Comunista. Achamos que tal texto contém um importante debate sobre os fundamentos da teoria marxista e da posição comunista, presentes no Manifesto.


Acesse aqui a primeira parte de A Retificação do “Manifesto Comunista”


Nesta segunda e última parte do texto, Balibar continua sua análise sobre a retificação feita por Marx e Engels em suas teses sobre o Estado e a transição ao socialismo após a heroica Comuna de Paris. Graças não “a um esforço teórico, mas sob o efeito prático duma verdadeira experimentação histórica”, quais foram as lições da Comuna? Quais implicações elas geraram nas concepções de estado e revolução no materialismo histórico, esboçadas no Manifesto?

A Comuna foi a primeira experiência da ditadura do proletariado sobre a burguesia e uma verdadeira democracia para as massas exploradas. Nela, o proletariado tomou o poder e não aprimorou o aparelho de estado, como ocorria nas revoluções, burguesas, anteriores. O proletariado, se organizando enquanto classe dominante, fez surgir, desde o início do processo revolucionário, “ao lado do aparelho de Estado e contra ele formas de prática e de organização políticas totalmente diferentes: portanto, de fato, destruindo o aparelho de Estado existente, e substituindo-o não simplesmente por um outro aparelho, mas pelo conjunto doutro aparelho de Estado e mais outra coisa diferente de um aparelho de Estado”. Uma forma política que, segundo Marx, permite realizar a emancipação do proletariado.

Essa existência contraditória entre esse novo aparelho de estado e novas formas de organização política e econômica proletárias, como reforçaram as revoluções posteriores, é um elemento central na luta de classes na transição ao socialismo. Nesse terreno se travaram batalhas decisivas em torno da supressão ou permanência das relações de classe, relações de exploração, e, por conseguinte, da continuidade ou não do Estado. Portanto, eis um tema incontornável ao movimento comunista, que, 175 anos depois, continua a levantar a bandeira do Manifesto, a bandeira por uma terra sem amos ainda por vir!

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A RETIFICAÇÃO DO “MANIFESTO COMUNISTA” (Continuação)

 

II – LIÇÕES DA COMUNA

Podemos agora tratar da retificação operada por Marx em 1872, esta “correção essencial” de que fala Lênin.

Do que trata esta correção para a designar por uma palavra? Trata-se da ditadura do proletariado, cujo conceito está desenvolvido em A Guerra Civil em França e nos textos ulteriores de Marx e Engels referindo-se sempre explicitamente à experiência da Comuna de Paris.

Não é possível examinar aqui todos os problemas que são assim levantados: trata-se apenas de identificar o ponto preciso da correção.

Notamos antes de mais nada que o termo “ditadura do proletariado” não figura no Manifesto, ainda que aí figurem algumas expressões próximas. Com efeito, qualquer que seja a origem do termo (blanquista, segundo alguns), o conceito de ditadura do proletariado não foi definido por Marx senão no período seguinte, depois da redação do Manifesto. Mais precisamente, foi constituído em dois tempos:

– Primeiro tempo: de 1848 a 1852 (ver os textos da Nova Gazeta Renana, de As Lutas de Classes em França, do 18 Brumário), Marx dá uma definição unicamente negativa: expõe a necessidade de opor à ditadura da burguesia, que realiza o Estado moderno (incluindo o Estado democrático da república parlamentar), uma ditadura do proletariado; mostra que é necessário por isso mesmo despedaçar “a máquina de Estado existente”, em vez de a utilizar e de a “aperfeiçoar”, como fizeram todas as revoluções políticas anteriores, designadamente as revoluções francesas sucessivas. Marx extrai assim as lições do fracasso do proletariado em 1848-1949.

– Segundo tempo: em A Guerra Civil em França, analisando o que, na Comuna de Paris, não é um fracasso, mas, pelo contrário, “pelo simples fato da sua existência e da sua ação”, “um passo em frente dum alcance universal”, Marx pode dar uma definição positiva da “ditadura do proletariado”. Por outras palavras, pode, não graças a um esforço teórico, mas sob o efeito prático duma verdadeira experimentação histórica, mostrar para que se orienta praticamente a revolução proletária, analisar os aspectos da sua experiência, que adquirem de repente “um alcance universal”.

A ditadura do proletariado, tal como a esboça a Comuna de Paris, é, segundo Marx, “essencialmente” um governo da classe operária, o resultado da luta da classe dos produtores contra a classe dos apropriadores, “a forma política enfim encontrada que permitia realizar a libertação econômica do trabalho”[i]. Entre a ação “econômica” da Comuna, a sua prática de transformação das relações de produção e a sua forma política de ditadura do proletariado, há uma relação necessária. Não somente este novo tipo de “política econômica” pressupõe o conjunto da nova política dum “governo da classe operária”, mas esta tem como condição material uma nova forma política de exercício e de realização do poder, e a destruição radical das antigas.

Remeto aqui para a leitura, para mais pormenores, do próprio texto de A Guerra Civil em França (e do comentário de Lênin em O Estado e a Revolução). Aí poderemos convencer-nos de que os dois aspectos principais desta nova forma política são:

  1. O povo em armas, condição e garantia de todas as outras medidas (em vez do exército permanente);
  2. A supressão do parlamentarismo e do funcionalismo, tornados base do funcionamento do Estado burguês: a subordinação direta (revogabilidade e responsabilidade imediatas) dos eleitos e dos funcionários, recolocados ao nível do conjunto do povo (inclusivamente pelos seus “salários de operários”), o fim da aparente independência da justiça, da administração, do ensino, etc.

Isto não são, uma vez mais, senão “medidas imediatas”, impostas pelas circunstâncias, mas estas medidas têm um objetivo único: desmantelar a máquina de Estado existente, colocada “acima” da sociedade, e substituí-la por uma forma política diferente. Eis porque, como nota Marx, se trata, devido precisamente às contradições que comporta, duma “forma política suscetível de se desenvolver de forma ininterrupta”, de se transformar de novo no sentido da tendência objetiva que indica (ainda que o fracasso final da Comuna na sua luta militar contra as classes dominantes interrompa este desenvolvimento e obrigue a retomá-lo mais tarde, noutro espaço, em condições diferentes). Estas primeiras medidas bastam, no entanto, para provar que a ditadura do proletariado é bem a realização material da velha “contradição entre democracia e despotismo” (violência, ditadura), a democracia “para a imensa maioria” sob a forma da ditadura duma classe, a dos trabalhadores.

Ela é sobretudo a realização material dum Estado que ao mesmo tempo já é outra coisa diferente de um Estado, “de Estado […] transforma-se em qualquer coisa que não é já, propriamente falando, um Estado”.[ii]

Por outras palavras, a Comuna não prova somente que o que parecia “impossível” é “possível”[iii]. Ela prova que a contradição (onde a filosofia idealista vê a marca do impossível) é a marca do possível necessário: do real como tal.

Mas muito mais concretamente – e a “correção” trazida ao Manifesto pelos fatos torna-se agora clara – a Comuna prova que o “não-Estado” (a destruição do Estado) não é apenas um resultado final do processo revolucionário. É pelo contrário um aspecto inicial, imediatamente presente, sem o qual não existe nenhum processo revolucionário. Sem dúvida, como o demonstra Lênin contra toda a interpretação anarquista, a extinção (o desaparecimento) completa do Estado não pode produzir-se senão depois do desaparecimento completo das relações de classe (da exploração sob todas as suas formas): mas esta extinção começa imediatamente, e o seu começo imediato, não em intenção, mas nas medidas práticas que contradizem diretamente a inevitável “sobrevivência” do Estado, é a condição material da transformação efetiva das relações de produção, assim como da desaparição definitiva do próprio Estado.

Eis sem dúvida nenhuma o ponto essencial. Podemos portanto voltar-nos para o texto do Manifesto, e dar uma primeira resposta à pergunta inicial: por que é que Marx e Lênin falam de retificação, de “correção essencial”? em que é que ela consiste?

Adiantarei isto: é preciso tomar estes termos no sentido forte. Também eles implicam (mas desta vez no seio da teoria e da sua história) uma verdadeira contradição. Para compreender a necessidade da história da teoria marxista, é necessário avançar até se encontrar e enunciar uma contradição entre o Manifesto e A Guerra Civil em França, e não um simples “desenvolvimento”, um “enriquecimento”, uma “evolução”, etc. Mas esta contradição não opõe, de forma indeterminada, duas teorias: é uma contradição determinada, localizada, interior à própria teoria.

Em resumo:

  1. o termo de ditadura do proletariado está ausente do Manifesto;
  2. a necessidade imediata para a revolução proletária de “despedaçar a máquina”, de destruir “o aparelho de Estado existente”, está ausente;
  3. as medidas práticas correspondendo, mesmo de maneira insuficiente e particular, à destruição e à “extinção” do Estado estão totalmente ausentes: esta extinção não é pensada senão como um objetivo final longínquo. Não se trata senão da utilização positiva do Estado.

Podemos enunciar o resultado noutros termos: no Manifesto, “destruição (depois extinção) do Estado” e “revolução proletária” aparecem como dois processos distintos. Dum lado, a extinção do Estado não é verdadeiramente um processo revolucionário, um processo de luta e de afrontamentos sociais, necessariamente “violento” neste sentido, mas apenas uma evolução ou o resultado duma evolução. Não é necessário fazer disso objetivo duma prática determinada, basta realizar pouco a pouco as condições materiais (econômicas). A extinção dar-se-á a longo prazo, por acréscimo. Por outro lado, a revolução proletária não comporta, como um dos seus aspectos necessários, a destruição do Estado, a contradição entre a sua destruição necessária e a sua utilização igualmente necessária.

Pelo contrário, há no Manifesto, já o vimos, a ideia problemática da democracia idêntica a um “despotismo” (e até a uma ditadura), da conquista do poder político pela violência, da organização do proletariado em classe dominante.

Podemos pois afirmar: certamente, conforme o mostra Lênin, a formulação do Manifesto é inconciliável com o oportunismo, basta (ou antes bastou, em determinada conjuntura) para romper com ele, situa-se no terreno do materialismo histórico, onde põe um problema que já não poderá desaparecer. Ao mesmo tempo, como observa igualmente Lênin, esta formulação é “abstrata”. No entanto, esta abstração não pode concretizar-se sem que apareça uma contradição. O que lhe falta não é uma simples lacuna (um lado – o Estado – estaria já presente, o outro “não-Estado” – estaria ainda ausente). Mas esta ausência afeta no seu fundo a tese presente no Manifesto. E por conseguinte, quando a contradição aparece, o sentido do Manifesto encontra-se retrospectivamente mudado.

Bem entendido, tudo isso foi e continua a ser politicamente capital: porque em política não são as intenções ou as interpretações possíveis dum texto teórico que contam, mas apenas a sua letra, na medida em que ela produz efeitos políticos. Temos pois o direito de dizer que o Manifesto é politicamente equívoco, ou melhor, sofre duma indecisão num ponto essencial, com a condição de se compreender bem que esta indecisão não aparece senão postumamente ou, o que vem a dar no mesmo, correspondia à indecisão real na qual se encontrava o movimento operário antes de 1848 e, sobretudo, antes de 1871. E enfim, com a condição de se compreender que a teoria do Manifesto, tomada à letra, era ela própria uma das condições necessárias à supressão da indecisão teórica que ela continha.

III – A RETIFICAÇÃO

Trata-se agora de indicar quais são as consequências desta retificação, das quais algumas são apenas esboçadas ou até problemáticas, no conjunto das teses do Manifesto e do materialismo histórico.

Podem enumerar-se sem dificuldade pelo menos cinco, de resto estreitamente ligadas entre si:

  1. Uma transformação da definição do Estado.
  2. Uma transformação da teoria da história do Estado.
  3. Uma primeira determinação concreta do problema da abolição das classes e da exploração (por que é que a revolução proletária, diferentemente de todas as outras, não pode conduzir a nenhuma forma nova de exploração?).
  4. A possibilidade de sair definitivamente do círculo da antinomia política do anarquismo e do reformismo, do oportunismo “de esquerda” e do oportunismo “de direita”.
  5. A possibilidade, até mesmo a necessidade, de colocar de novo, em termos diferentes, o problema do “fim da política” da substituição da prática política pela prática “puramente econômica” da administração das coisas, etc.

Contentar-me-ei com algumas indicações incidindo sobre o primeiro e o último ponto, de maneira a mostrar a sua conexão.

1- Nova definição do Estado

A “retificação” de Marx implica uma transformação na definição de Estado (na verdade, este ponto não é estritamente separável do seguinte: uma transformação na concepção da história do Estado).

Coloque-se já o ponto essencial, que permite fazer avançar, na própria medida em que a retifica, a problemática do Manifesto: a nova definição do Estado repousa na distinção do poder de Estado e do aparelho de Estado. É pois uma definição complexa do Estado simultaneamente como poder de estado e como aparelho de Estado.

É-me necessário aqui pôr o leitor de sobreaviso: uma tal definição não tem nada a ver com o que poderia ser o objeto duma pretensa “ciência política marxista”, quero dizer, uma tipologia das formas (essencialmente jurídicas) do poder de Estado e do aparelho de Estado, e das suas combinações. Na realidade, trata-se de analisar as condições históricas da conquista e do exercício do poder de Estado, enquanto elas dependem da natureza do aparelho de Estado criado pelas classes dominantes.

A tese de Marx (desenvolvida em seguida por Engels e Lênin) é esta: o poder político duma classe dominante como a burguesia não se exerce “diretamente”, mas “indiretamente”, num duplo sentido.

O poder político não se exerce diretamente, no sentido em que a dominação econômica duma classe (a apropriação dos meios de produção e, nesta base, a extorsão do sobretrabalho) se bastaria a si própria. Não esqueçamos que esta dominação ou, mais precisamente, a exploração do trabalho que ela torna possível é ao mesmo tempo a base de toda a dominação e o objetivo que se trata de atingir permanentemente: ela é “reproduzida” pelo conjunto da luta de classe da classe dominante. Mas, precisamente deste ponto de vista, ela não se basta: exige o “desvio” duma luta de classe propriamente política.

O poder político também não se exerce diretamente no sentido em que a classe dominante exerceria ela própria como coletividade um poder político sobre as classes dominadas. Pode parecer que esta situação foi quase atingida em certos casos, como na “cidade antiga”, em que os proprietários são ao mesmo tempo os cidadãos: mas, se de fato uma tal situação pura existiu alguma vez, é de qualquer forma uma situação de que a evolução histórica do Estado se afasta, em lugar de a desenvolver. Neste sentido, o Estado capitalista, o Estado da classe capitalista, não é nunca o Estado dos capitalistas (não é nunca um “sindicato” de capitalistas). Por outras palavras, a classe dominante não se define diretamente como um “sujeito” político (ter-se-ia dito, na época clássica, “o soberano”). Se tal fosse o caso, não seria necessário procurar e encontrar, “por detrás” das aparências do Estado, a realidade das classes que o comandam, definidas em última instância pelo seu lugar no processo de produção-exploração.

De fato, o poder político duma classe dominante exerce-se realmente por intermédio dum aparelho especializado, colocado “acima” da sociedade, isto é, ao serviço da classe dominante. De mais (este ponto é duma extrema importância prática), as modalidades deste serviço são diferentes em formações sociais diferentes, se bem que elas preencham uma “função” geral comum, ao serviço de classes dominantes sucessivas. Daí precisamente a aparência de perenidade do Estado.

Em A origem da família, Engels começou por estudar estas modalidades e a história da constituição do aparelho de Estado. Chamou inclusivamente a atenção para os “destacamentos especiais de homens armados”, que constituem o núcleo propriamente repressivo do aparelho de Estado, e para a base material necessária que constitui o tributo do Estado ou o imposto. O imposto é uma forma econômica específica, distinta como tal da mais-valia (portanto do lucro) e, mais geralmente, de todas as formas históricas sucessivas do sobreproduto diretamente saídas das relações de exploração, se bem que ele não possa existir senão sobre a base destas formas, e se transforme historicamente com elas. As obras “políticas” de Marx e Engels, depois do período das revoluções de 1848, contêm por outro lado uma rica sucessão de análises das formas do aparelho de Estado capitalista e da sua função na luta de classes.

É portanto essencial examinar as consequências desta “diferença”. Na sequência da existência necessária do aparelho de Estado (e graças a ela), o poder político duma classe sobre uma ou várias outras, transforma-se, e assim se realiza de forma complexa. Muito esquematicamente realiza-se pelo jogo simultâneo de duas séries de relações:

  1. Implica dum lado o poder (poder de fato, resultado de lutas históricas) de representantes dessa classe sobre o aparelho: estes representantes são eles próprios uma fração determinada da classe dominante; e este poder pode ser o que se ganha ou perde numa luta, não só entre as classes, mas entre frações da classe dominante (ver, em França, as “revoluções” de 1830 e de 1848-1851, ou, mais perto de nós, o “golpe de Estado” do 13 de maio de 1958).
  2. Implica por outro lado o poder (poder legalmente organizado) do aparelho sobre a “sociedade”, enquanto coleção de grupos ou de indivíduos reunidos face ao aparelho e em relação a ele.

Por outras palavras, o poder político do Estado não se apresenta, melhor, não se realiza sob a forma de uma relação duma classe para com outra, se bem que seja justamente a este nível do poder político de Estado, cobrindo o conjunto dos processos de produção sociais, que a relação de classes se mantém e reproduz permanentemente na luta das classes. Entendamo-nos bem: a existência dos aparelho de Estado realiza, sob uma “forma transformada”, a dominação política da classe dominante, se bem que não esteja de maneira nenhuma na origem desta dominação política. Na origem da dominação política, só pode haver a relação de forças no interior da luta de classes e particularmente, em última instância, na luta de classes “econômica”, na exploração. Não há portanto poder sobrenatural do aparelho como tal (até mesmo da “instituição”, alvo preferido da falsa crítica pequeno-burguesa do Estado, desde Proudhon e Stirner aos nossos dias). Se a dominação política só encontra a realização e a sua realidade no funcionamento do aparelho de Estado, este é totalmente ininteligível separado da relação de classes que realiza.

No funcionamento do aparelho de Estado, a relação de classes está portanto dissimulada, e dissimulada pelo próprio mecanismo que a realiza. Com efeito, o aparelho de Estado não tem nunca a ver com as classes como tais, nem com as que detêm de fato o poder nem com as que lhe estão submetidas. Por este fato, o poder político apresenta-se como um poder (uma “autoridade”) do próprio Estado sobre a “sociedade”, seja esta definida por uma hierarquia de estatutos (castas, estados, etc.) ou como uma coletividade de pessoas individuais (mais ou menos iguais). Mais precisamente, é a existência do aparelho de Estado que constitui um em face do outro (e um cobrindo o outro) “o Estado” e a “sociedade”.

É preciso compreender bem que este mecanismo não é em si próprio uma ilusão, nem o são as formas jurídicas que o institucionalizam: não é na aparência, mas na realidade, que tanto os proletários como os capitalistas são indivíduos livres e iguais, e é como tal que estão registrados no estado civil, que vão (ou não vão) à escola, que fazem (ou não fazem) o serviço militar, que votam (ou não) nas eleições e nos plebiscitos, que são (ou não são) eleitos deputados ou conselheiros municipais, que assinam (ou não) contratos de propriedade ou de trabalho, etc. Mas este mecanismo é necessariamente produtor de ilusão ou de desconhecimento quanto à relação de classes que realiza. Porque é ele próprio objetivo, realizado em práticas materiais, permite explicar objetivamente o que torna a ilusão necessariamente ligada à representação do Estado e incorpora esta ilusão no seu modo de funcionamento, enfim, o que faz do aparelho de Estado, através das instituições e de práticas determinadas, não apenas um aparelho repressivo, mas também um aparelho ideológico.[iv]

O aparelho de Estado deve pois ser constituído de forma a permitir o exercício do poder por determinada classe. Deve permitir o exercício do poder pelos seus “representantes”. É pois necessário que estes sejam transformados em representantes da “sociedade”, (re)produzidos como seus representantes legítimos devido à própria estrutura do aparelho, e devido a que ocupam aí um “posto” – quer sejam eleitos para este posto, nomeados ou recrutados segundo outras modalidades. Donde a forma do Estado, com as suas hierarquias (de que a hierarquia fundada sobre a igualdade jurídica é um caso particular, último) e as suas relações de dependência (de que a dependência fundada na liberdade individual é um caso particular, último). Eis porque, em breves palavras, cada classe dominante tem por tarefa e por objetivo histórico não só servir-se do aparelho de Estado, mas primeiro criá-lo, desenvolvê-lo, organizá-lo, transformá-lo (o caráter “tipicamente” político das revoluções francesas de 1789, de 1830, de 1848, sublinhado por Marx, consiste justamente, aos seus olhos, no fato de elas isolarem relativamente este processo, e fazerem dele a entrada em jogo imediata de certas conjunturas da luta de classes).

Evidentemente, este mecanismo é, para falar como Marx, “aperfeiçoado”, é levado ao extremo da sua realização nas formas históricas do Estado que são o ponto de chegada das lutas de classes do passado: a “democracia burguesa”, onde o funcionamento do aparelho de Estado, sob o efeito de todas as lutas de classes anteriores inclui toda a “sociedade” diretamente no funcionamento do aparelho, opondo-o totalmente a ela por uma especialização e uma centralização sem precedentes. Os representantes da classe burguesa que exercem o poder que ela detém sobre o aparelho de Estado, devem então, duma forma ou doutra, ser transformados em representantes “do povo” inteiro. Deste ponto de vista, não há contradição, mas uma estreita complementaridade entre as análises do Manifesto, em que Marx mostra como, “para atingir os seus fins políticos próprios, a burguesia deve pôr em movimento todo o proletariado”, e as análises do parlamentarismo e do sufrágio universal dadas no 18 Brumário e nos textos ulteriores.

2- Uma nova prática da política

Regressemos então à ditadura do proletariado e à sua primeira definição. É preciso tentar precisar, cingindo-nos sempre, em princípio, aos mesmos textos, esta ideia dum Estado que já é também um “não-Estado”, em relação à distinção do poder de Estado e do aparelho de Estado.

Sabe-se que esta ideia não deixou nunca de parecer literalmente absurda à ideologia política burguesa, mesmo quando ela parece tencionar tomar em consideração, de maneira abstrata, a ideia dum fim do Estado. Ou o Estado existe e funciona, ou não existe: entre os dois termos desta “alternativa”, a ideologia burguesa não vê lugar senão para as “soluções médias”, para uma situação intermediária entre o Estado e o não-Estado, no sentido duma gradação (ou antes degradação) contínua e progressiva. Mas se o “não-Estado” não é mais do que o grau zero para o qual tende a degradação do Estado, por outras palavras, se nunca lidarmos senão com um único termo, o próprio Estado, então a fórmula de Marx é totalmente impensável, um jogo de palavras ou uma coisa sem sentido. É precisamente desta aporia “lógica” que a nova distinção operada por Marx permite sair.

O que prova com efeito a Comuna, pelo “simples fato da sua existência e da sua ação”, e que Marx regista em Guerra Civil? Se há um Estado que é em certa medida uma coisa diferente de um Estado, um “não-Estado”, não é evidentemente porque o poder de Estado do proletariado estaria atenuado, em vias de extinção; pelo contrário, reforça-se e não deve cessar de se fortalecer ao longo da ditadura do proletariado. Mas é na medida em que o aparelho de Estado deixa de ser um aparelho de Estado no sentido em que toda a história anterior o aperfeiçoou e em que a própria luta de classes não cessa de reforçar esta tendência. Porque o “povo armado” (não confundir, evidentemente, com o serviço militar obrigatório), tanto como a abolição do funcionalismo e do parlamentarismo, significam o fim da especialização e da separação características do aparelho de Estado.

E por conseguinte, enquanto em toda a história do passado, o reforço do poder de Estado duma classe sempre teve como condição material o reforço do aparelho de Estado, nós encontramo-nos pela primeira vez em presença duma situação exatamente contrária: o reforço do poder de Estado tem como condição o enfraquecimento do aparelho de Estado ou, mais exatamente, a luta contra a existência do aparelho de Estado.

O fato que assim se descobre, podemos nós enunciá-lo duma maneira geral: as classes exploradoras e a classe explorada que, pela primeira vez na história e devido exatamente ao seu lugar na produção, está em condições de tomar o poder por si própria, não podem exercer o seu poder (e até mesmo o seu poder absoluto: a sua “ditadura”) pelos mesmos meios e portanto nas mesmas formas. Não o podem, não no sentido duma impossibilidade moral, mas no sentido duma impossibilidade material: a máquina do Estado não funciona “por conta” da classe operária; ou não funciona mesmo, ou então funciona, mas por conta de alguém mais, que não pode ser senão o adversário de classe. É impossível ao proletariado conquistar, depois guardar e utilizar o poder político servindo-se dum instrumento análogo ao que servia as classes dominantes, ou então perde-o necessariamente sob uma forma ou outra, “violenta” ou “pacífica”.

Ora esta transformação revolucionária tem uma dupla condição, só ela permitindo compreender o papel que pode representar imediatamente na transformação das relações de produção, que levará ao desaparecimento da exploração do trabalho:

  1. A primeira condição, é a existência, ao lado do aparelho de Estado, de organizações políticas dum novo tipo, das organizações políticas de massa, das organizações políticas de trabalhadores, que controlem o aparelho de Estado e o submetam, inclusive sob a sua nova forma. É perante estas organizações que, segundo os termos de Marx, os eleitos e os funcionários que é impossível dispensar de repente são “imediatamente responsáveis e revogáveis”. Entendamos que não são responsáveis perante os indivíduos, até perante os trabalhadores tomados individualmente. Estas organizações estavam representadas na Comuna, sob uma forma esboçada, pelos “clubes” de trabalhadores-soldados e suas famílias.[v] Assim se esboça a organização efetiva da “maioria” que tende para abolir o mecanismo da “representação” do povo, o jogo do reenvio dos representantes da classe dominante para os representantes “da sociedade” no aparelho de Estado.
  2. Mas a segunda condição é ainda mais importante, pois ela condiciona a precedente: é a penetração da prática política na esfera do “trabalho”, da produção. Por outras palavras, o fim da separação absoluta, desenvolvida pelo próprio capitalismo, entre “política” e “economia”. Não no sentido duma “política econômica”, o que não tem nada de novo, nem através simplesmente da transferência do poder político para os trabalhadores, mas para que possam exercê-lo como trabalhadores, e sem deixar de o ser, a transferência, na esfera da produção, de toda uma parte da prática política. Assim pode pensar-se que o trabalho, e antes dele as suas condições sociais, se tornam não só uma prática “socialmente útil” e “socialmente organizada”, mas uma prática política. Voltarei a isto brevemente.

Podemos então voltar-nos uma última vez para o Manifesto, a fim de extrair as consequências destas novas formulações. Ao ler somente o Manifesto, não é completamente excluída uma interpretação da definição do Estado como “organização da classe dominante”, se pelo menos abstrairmos das “dificuldades” que as explicações de Marx levantavam. Esta interpretação remete para a analogia, para o paralelismo entre revolução burguesa e revolução proletária, e até entre o desenvolvimento da burguesia no seio da sociedade feudal e o do proletariado no seio da sociedade burguesa (“Assistimos hoje a um processo análogo […] as armas de que a burguesia se serviu para abater o feudalismo voltam-se hoje contra a própria burguesia”). Esta analogia é apenas formal, não tem senão uma função transitória e pedagógica; e até, como todo artifício pedagógico, comporta o seu próprio risco de induzir em erro. De fato, sob esta analogia, não há um paralelismo ou uma simetria mas uma oposição e uma dissimetria completas. Em particular, ao passo que a burguesia conquista historicamente o poder político constrangendo primeiro a feudalidade a ceder-lhe lugar no aparelho de Estado feudal, ao seu lado (é a interpretação que, no Manifesto, Marx e Engels davam já da monarquia absoluta), o proletariado não pode nunca controlar o aparelho de Estado existente, assim como não pode, sob o domínio da burguesia, ocupar aí progressivamente um lugar.

Paradoxalmente, o Manifesto, sem a sua correção, podia levar à ideia dum Estado burguês (“a burguesia organizada em classe dominante”) e dum Estado proletário (“o proletariado organizado em classe dominante”), certamente distintos, opostos nas suas bases sociais e nas políticas que prossegue, mas tendo um princípio (uma definição geral, uma essência) comum: a simples “organização em classe dominante”.

Ora, vemos pelo contrário que a burguesia “se organiza em classe dominante” apenas desenvolvendo a aparelho de Estado. E que o proletariado “se organiza em classe dominante” apenas fazendo surgir ao lado do aparelho de Estado e contra ele formas de prática e de organização políticas totalmente diferentes: portanto, de fato, destruindo o aparelho de Estado existente, e substituindo-o não simplesmente por um outro aparelho, mas pelo conjunto doutro aparelho de Estado e mais outra coisa diferente de um aparelho de Estado. Na ditadura do proletariado, a repressão, que é inerente a todo o Estado (incluindo, como insiste Marx, toda a democracia), não é apenas nem principalmente exercida por um aparelho (repressivo) especializado (o que Lênin comenta falando do “fim do poder especial de repressão”). Mas é também, cada vez mais, e principalmente, exercida por um poder “geral”: pelas massas organizadas de trabalhadores que o proletariado dirige. E da mesma forma, sem dúvida, “a centralização dos meios de produção entre as mãos do Estado” não pode ser reduzida à centralização nas mãos do aparelho de Estado, mesmo dominado pelo proletariado. Ao mesmo tempo que esta centralização (que é antes de tudo jurídica), e de maneira contraditória, constitui-se também uma centralização de tipo novo, resultante da organização dos próprios trabalhadores.

Compreende-se assim, para voltar ao problema que punha há pouco, que um “Estado que já é também um não-Estado” não é qualquer coisa intermediária entre a existência do Estado e o seu desaparecimento, um momento duma simples degradação. É uma realidade contraditória. E isso, porque nós não lidamos neste campo com um único termo, mas com dois. O “não-Estado” não é simplesmente o zero, a ausência de Estado: é a presença positiva dum outro termo. Não se trata de descrever a involução progressiva do Estado, mas sim a luta (política) contra o Estado e os meios desta luta.

Formulando estas conclusões, Marx não faz mais do que analisar e enunciar a tendência real que revelavam as lutas da Comuna. Não construía nenhuma “solução” que antecipava o futuro. Mas isso bastava para que se encontrem ao mesmo tempo definidas certas tarefas imediatas. Na primeira fila das quais a organização do partido do proletariado, em cujo seio, antes mesmo da revolução comunista, e para que ela seja possível, devem já coexistir estas duas tendências contraditórias. Assim se explica a luta ininterrupta conduzida por Marx e Engels para que a social-democracia não seja somente uma peça do aparelho político existente (o que é inevitável), mas também outra coisa complemente diferente. Esta luta, que prefigura a de Lênin, mereceria evidentemente só por si uma longa análise.

Podemos então, para acabar com uma questão em aberto, voltar ao problema que indicava mais acima, o colado pela ideia do Manifesto (e a do Anti-Dühring) respeitante ao “fim da política”.

O que pode significar agora esta ideia? É preciso ver que ela fica em parte inevitavelmente obscura, como tudo o que respeita às tendências de futuro do movimento histórico do proletariado. De fato, o conteúdo concreto desta ideia não está aliás senão no reconhecimento da forma atual destas tendências. Não é uma profecia. Quando, para nos cingirmos a ele, Marx nos fala do futuro, fala-nos também e antes de tudo do presente, por vezes do nosso presente mais imediato. Eis porque a análise que ele faz da tendência histórica influi ela própria na prática.

Mas como se apresenta a questão do “fim da política”, seguindo as análises de Marx e a sua transformação? Em 1847, Marx e Engels explicam que o fim do Estado (a sua extinção) implica o fim da política. Logicamente, se (como o demonstra a Comuna) o fim do Estado começa imediatamente, e se este “fim” não é uma diferença de grau, mas a combinação contraditória de duas tendências em luta, então o “fim da política” deve também “começar” imediatamente. No entanto, a tendência real, que se esboçava já na Comuna, é totalmente diferente: é a constituição, de início hesitante e frágil, duma outra forma de “política”.

Entendamo-nos bem. Não se trata de compreender isto: a Comuna mostraria que a prática política não se reduzia ao funcionamento do Estado. Pelo contrário, ela “reduzia-se” a isso precisamente. Não havia existência histórica para a prática política fora das suas condições materiais determinadas: o Estado, as formas do aparelho de Estado, desenvolvidas e “aperfeiçoadas” pelo capitalismo. Eis porque o proletariado, cuja ação histórica conduz a uma nova prática da política [vi], não tem outra via para aí chegar que não seja penetrar no terreno do Estado e do aparelho de Estado[vii]. Mas penetra aí a partir da sua própria base de classe e de unidade de classe que não deixa nunca (a produção material, a experiência da produção e a organização na produção), para combater a classe dominante ao mesmo tempo com as suas próprias armas (que se “voltariam contra ela”) e com as suas novas armas, que não tem nada a ver com as da burguesia. Tal é a novidade radical desta situação: a política feita por produtores, o poder do Estado visado, conquistado, depois exercido pelos produtores.[viii]

Podemos pois dizer isto: a tendência real observada por Marx não é também uma simples tendência, mas uma tendência complexa;

– dum lado, é a tendência para a destruição do Estado, portanto a tendência para o desaparecimento da política tanto quanto ela se identifica com a luta de classes por e no Estado;

– mas é também a tendência para a continuação duma nova forma de “política” ou, melhor, duma nova prática da política, se bem que esta seja necessariamente comandada primeiramente pelo imperativos duma luta de classe, portanto constituída contra o Estado, e em relação a ele. E esta segunda tendência é a própria condição de realização da primeira, visto que só ela representa a originalidade histórica do proletariado de forma positiva, e lhe dá os meios da sua luta.

Daí a pergunta que se impõe para acabar: o que é que prova que esta segunda tendência é apenas “transitória”, que não tem futuro? Se o comunismo não é um ideal, mas o resultado dum movimento e duma prática atuais, não devemos dizer pelo contrário que o proletariado se orienta para uma transformação da natureza da “política” e da sua prática? Não, como se sugere por vezes mercê duma leitura demasiado rápida destes textos, uma “desaparição da política em benefício da economia”, da organização “puramente técnica” da produção, etc. (o que traduz finalmente que se fica numa concepção burguesa, tanto da política como da economia), mas pelo contrário uma transformação da economia, da prática de produção, em tarefa diretamente política?

Não podemos dar resposta a este problema apenas com base nos textos de Marx, aos quais quis aqui limitar-me. Mas podemos confirmar o fundamento da questão, fazendo simplesmente o seguinte reparo.

O que significa a ideia da “administração das coisas”, encarregada de justificar o “fim da política”? Esta ideia tem um conteúdo positivo bem conhecido: designa o domínio, a apropriação da produção pelos próprios produtores, em oposição ao desapossamento dos produtores e à “anarquia da produção” que reina na sociedade atual[ix]. Mas ao lado deste conteúdo positivo, é preciso convir que ela nos propõe uma formulação equívoca, que pode induzir em erro. Porque esta formulação assenta inteiramente na antinomia jurídica burguesa das “pessoas” e das “coisas”, portanto na própria ideologia que a circulação mercantil e o funcionamento do Estado implicam. Opondo o “governo das pessoas” à “administração das coisas”, esta fórmula, isolada e tomada à letra, conduziria assim a um resultado duplamente contraditório com o materialismo histórico:

– substituiria, na análise do Estado, a sua origem real na luta de classes, pelo própria ilusão que resulta do seu funcionamento (a relação exclusiva com os indivíduos, com as pessoas);

– poderia sugerir que a produção comunista é uma produção fora de todas as relações sociais de produção, uma produção que se “reduz” à atividade de trabalho, à ação sobre a natureza de indivíduos livremente associados. À ideia de supressão da exploração (e das classes), substituiria assim involuntariamente a ideia de supressão das relações sociais de produção em geral, o que nos conduziria a reencontrar o velho sonho dum regresso ao estado da natureza.

É o próprio vazio duma tal representação que pode confirmar o bem fundado do nosso problema, constrangendo-nos a levar até lá a retificação do Manifesto, e sugerir-nos que nos voltemos para a experiência das revoluções sociais de hoje e de amanhã, para aí descobrir as formas concretas através das quais a constituição das relações de produção comunista utiliza e desenvolve a política proletária.


[i] A Guerra Civil em França, op. cit.

[ii] O Estado e a Revolução, op. cit.

[iii] “Sim, meus Senhores, a Comuna tencionava abolir esta propriedade de classe, que faz do trabalho do maior número a riqueza de alguns. Ela visava a expropriação dos expropriadores […]. Mas é o comunismo, é o “impossível” comunismo!” (A Guerra Civil em França).

[iv] Estas formulações permanecem indicativas, se bem que bastem ao nosso objetivo presente. Não nos indicam como funcionam, na sua complementariedade, o aspecto repressivo e o aspecto ideológico do aparelho de Estado: o que obrigaria a distinguir nitidamente e a analisar os aparelhos ideológicos de Estado. Foi o que tentou Althusser, sob a forma dum primeiro esboço, em La Pensée de Junho de 1970.

No Manifesto, esta ilusão é finalmente difícil de compreender, o que leva Marx, em fórmulas equívocas, a representar a sociedade burguesa como uma sociedade que “rasga todos os véus” da religião, da família, do Estado, e que constrange todos os homens a “encarar enfim as suas condições de existência e as suas relações mútuas com olhos desencantados”, uma sociedade na qual o fim das ilusões políticas seria o resultado espontâneo das próprias relações de produção capitalistas.

[v] Mas atenção: o que importa aos olhos de Marx, não é tanto a “teoria política” de que se inspiravam estas organizações (o “modelo” de 89 e 93, característica especificamente francesa transmitida por sucessão das “seções” parisienses à Comuna através das seitas operárias), pois aí residia justamente a sua fraqueza, em parte responsáveis pelas derrotas da Comuna, pela terrível confusão interna que objetivamente ajudou a repressão militar da burguesia francesa. O que interessa aos olhos de Marx é o seu caráter de organizações políticas de massa dos produtores. Eis porque a Comuna pôs imediatamente de forma ainda mais urgente do que antes, o problema do partido da classe operária.

[vi] Proponho esta expressão à falta doutra, para retomar a fórmula que já utilizou Althusser a propósito de Lênin, falando duma “nova prática da filosofia” (Lênin e a filosofia, Maspero, 1969). Para dizer a verdade, visto que, como demonstra Althusser, a filosofia não é nem mais nem menos do que a política na teoria, trata-se pois, sob duas modalidades, do mesmo problema.

[vii] Mais precisamente, como indiquei acima, o terreno dos aparelhos, tanto repressivos como ideológicos, cujo conjunto constitui o aparelho de Estado.

[viii] A atualidade imediata fornece-me, no momento em que escrevo, uma ilustração concreta desta dialética, exposta por um grande dirigente revolucionário do nosso tempo, Pham Van Dong: “É essencial, declara ele na sua entrevista ao jornal Le Monde de 18 de Maio de 1972, que os Estados Unidos tenham enfim reconhecido que os bombardeamentos da pista de Ho Chi Minh eram ineficazes, que eles tirem disso as conclusões, assim como do fracasse da “vietnamização”. As suas operações atingem um custo exorbitante, em pura perca. Eles fazem no entanto a guerra com todos os meios científicos de que podem dispor. Mas com os meios de que nós dispomos, fazemos cientificamente a guerra, mesmo quando nosso equipamento é modesto. Bem entendido, não esperamos limitar-nos no emprego das armas modernas que podemos obter, mas não basta possuir meios tecnológicos avançados para que a guerra seja cientificamente conduzida. A nossa maneira de conceber a guerra é científica porque combatemos no nosso terreno com vista aos nossos próprios objetivos e com os nossos métodos. É por isso que o adversário, mau grado todo o seu aparelho científico, é derrotado. Somos nós que mantemos a iniciativa” (sublinhados por mim).

[ix] Isto basta, bem entendido, para interditar definitivamente a confusão do marxismo com a ideia pequeno-burguesa da “autogestão”. Pode ser útil recordá-la na medida em que esta confusão, que remonta a uma tradição proudhoniana vivaz, não cessou de ressurgir entre nós, por vezes no seio do movimento operário.

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- 22/05/2023