CEM FLORES

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Cem Flores, Teoria

Engels e a Análise da Situação das Classes Trabalhadoras (livro digital)

Clique na imagem para acessar o livro digital.

Cem Flores

07.07.2023

Em 2020, completaram-se 200 anos do nascimento de Friedrich Engels, destacada liderança do proletariado e teórico comunista. Naquele ano, em homenagem a Engels, o Coletivo Cem Flores produziu um pequeno livro digital destacando as contribuições pioneiras do revolucionário para a análise das classes trabalhadoras no capitalismo.

Engels e a Análise da Situação das Classes Trabalhadoras traz uma análise do clássico A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. Lançado em 1845, foi uma das primeiras obras escritas por Engels. O autor tinha apenas 24 anos à época, mas já acumulara conhecimento e experiência sobre o assunto, tanto por seus estudos, quanto por seu contato com militantes do movimento operário, como a irlandesa Mary Burns.

“Uma das melhores obras na literatura socialista mundial”, de acordo com Lênin, tal livro de Engels foi fundamental para a construção do materialismo histórico. Apesar de várias limitações, reconhecidas pelo próprio autor ao longo da vida, essa obra de 1845 serviu de base para muitos outros avanços da ciência do proletariado, sendo citada várias vezes em O Capital, de Karl Marx, por exemplo. Sendo assim, colaborou e ainda colabora definitivamente para a teoria e a luta comunistas.

Em nosso livro de 2020, buscamos ressaltar os temas e as lições que achamos mais relevantes dessa obra: o advento do modo de produção capitalista e seu impacto na vida das massas trabalhadoras; o proletariado como classe fundamental do capitalismo; os efeitos da condição proletária sobre os proletários; a resistência contínua das classes trabalhadoras; a análise do proletariado enquanto análise de seu inimigo, a burguesia. Apesar de tratar da Inglaterra na metade do século XIX, em muitas partes nos espantamos, tamanha a similaridade com os dias atuais. Afinal, ainda estamos sob a mesma escravidão assalariada que se originou daquela época.

Sem análise da situação das classes e de sua luta na atual conjuntura, não há análise concreta de uma situação concreta. Sem os “fundamentos dos fatos”, não há construção de uma linha política revolucionária. Portanto, é tarefa fundamental dos/as comunistas hoje repetir o esforço de Engels: mergulhar nas condições de vida e trabalho das massas exploradas e estudá-las; inserir-se nas suas lutas em curso e estimulá-las.

Abaixo, reproduzimos o capítulo 2 de nosso livro.

 

*    *    *

2.

O advento do modo de produção capitalista e seu impacto na vida das massas trabalhadoras: a infraestrutura da sociedade como fundamento das classes

 

A primeira lição que Engels nos oferece para analisar as classes trabalhadoras e sua luta é a necessidade de compreender a base material da sociedade na qual estas estão: o estágio das forças produtivas, as relações de produção, a situação econômica como um todo. Esta é uma tese central do materialismo histórico, que será destacada em outros momentos pelo autor[i].

Para analisar a situação das classes trabalhadoras na Inglaterra da década de 1840, portanto, Engels parte do modo de produção capitalista que se tornara hegemônico naquela formação social, dos efeitos da revolução industrial sobre as classes. O livro começa com um breve resumo desta revolução na Inglaterra, que impulsionou o desenvolvimento das relações de produção capitalistas e efetivou a aplicação de avançadas maquinarias na produção e nos transportes/comunicação. Tais modificações no modo de produção do país alteram radicalmente aquela formação social. Em menos de um século, a Inglaterra passou de “um país como todos os outros, com pequenas cidades, indústrias diminutas e elementares e uma população rural dispersa, mas relativamente importante” para

um país ímpar, com uma capital de 2,5 milhões de habitantes, imensas cidades industriais, uma indústria que fornece produtos para o mundo todo e que fabrica quase tudo com a ajuda das máquinas mais complexas, com uma população densa, laboriosa e inteligente, cujas duas terças partes estão ocupadas na indústria (p. 58).

Operária trabalha em um tear mecânico. Obra de T. Allom, 1835.

A transformação capitalista não ocorre apenas nas cidades, mas também modifica a estrutura do campo, com investimento do capital na terra, aplicação de novas técnicas, exploração agrícola em larga escala, aumento da produtividade e contínuo assalariamento dos produtores diretos.

No fundo dessas características mais visíveis, Engels vai desvendando as determinações mais profundas desse modo de produção. Nota que o capitalismo é um sistema cuja produção ocorre “não para a satisfação imediata das necessidades, mas para a obtenção do lucro” (p. 123) de sua classe dominante, a burguesia, detentora dos meios de produção, das fábricas e das máquinas. Sendo assim, tende, de um lado, a constantes revoluções tecnológicas e à concentração da propriedade e da riqueza. De outro, tende a avolumar miséria na imensa maioria da população, que se torna cada vez mais proletarizada, ou seja, expropriada dos meios de sobrevivência, forçada a vender sua força de trabalho e competir com as máquinas.

Em seu prefácio de 1892, Engels resume que o sistema capitalista: “divide progressivamente a sociedade civilizada em duas partes: de um lado, uns poucos Rothschilds e Vanderbilts, proprietários de todos os meios de produção e de subsistência; de outro, a enorme massa de assalariados, que possui apenas a sua própria força de trabalho” (p. 348). Vemos aqui claramente o que Marx chamou de lei geral da acumulação capitalista[ii].

Voltemos aos termos do jovem Engels:

Com essas invenções, desde então aperfeiçoadas ano a ano, decidiu-se nos principais setores da indústria inglesa a vitória do trabalho mecânico sobre o trabalho manual e toda a sua história recente nos revela como os trabalhadores manuais foram sucessivamente deslocados de suas posições pelas máquinas. As consequências disso foram, por um lado, uma rápida redução dos preços de todas as mercadorias manufaturadas, o florescimento do comércio e da indústria, a conquista de quase todos os mercados estrangeiros não protegidos, o crescimento veloz dos capitais e da riqueza nacional; por outro lado, o crescimento ainda mais rápido do proletariado, a destruição de toda a propriedade e de toda a segurança de trabalho para a classe operária, a degradação moral, as agitações políticas e todos os fatos que tanto repugnam aos ingleses proprietários e que iremos examinar nas páginas seguintes. Se, mais acima, vimos as transformações provocadas nas relações sociais das classes inferiores por uma só máquina, mesmo tão rudimentar como a jenny[iii], não há por que se espantar com o que pode proporcionar um sistema plenamente coordenado de máquinas extremamente aperfeiçoadas, que recebe de nós a matéria-prima e nos devolve tecidos acabados (p. 50).

Ou seja, a moderna Inglaterra possibilitou ver que apesar do “progresso” técnico causado por esse modo de produção, suas determinações próprias e o objetivo último da produção (acúmulo de riqueza de uma classe pela exploração do trabalho alheio) resultam não em melhoria da vida para a maioria da população, pelo contrário. O desenvolvimento do capital é ao mesmo tempo desenvolvimento de uma profunda desigualdade, fundada nas classes, e de uma luta entre tais classes.

Se, no polo burguês, esse modo de produção tende a concentrar a riqueza nas mãos de cada vez menos proprietários, no polo oposto, proletário, o desenvolvimento capitalista tende a gerar continuamente uma divisão entre uma massa ativa, que consegue ser empregada e se assalariar, e outra massa descartada, “supérflua”, em estado de “reserva” e afundada na miséria.

“Quanto mais importante é o progresso, maior é a parcela da classe jogada no desemprego” (p. 174), lembra Engels. E essa parcela desempregada na produção, esse contingente de reserva

é a ‘população supérflua’ da Inglaterra, que arrasta uma existência penosa, mendigando e roubando, varrendo ruas e recolhendo imundícies, transportando coisas com um carrinho de mão ou um burro, fazendo comércio ambulante ou biscates. Em todas as grandes cidades inglesas encontram-se multidões desses indivíduos que, como dizem os ingleses, ‘mantêm o corpo e a alma juntos’ graças a pequenos ganhos ocasionais. São espantosos os expedientes a que esses indivíduos recorrem para ganhar qualquer coisa (p. 126).

Além dessa “lei geral”, Engels identifica a instabilidade do capitalismo, cuja produção tende a ser “anárquica” e continuamente produzir crises: “Prosperidade, crise, prosperidade, crise – um ciclo eterno no qual se move […] a indústria inglesa” (p. 123). Crises essas que, apesar de afetarem os negócios da burguesia, atingem com muito mais virulência exatamente a massa proletária:

[Nas crises] os salários caem, por causa da concorrência entre os desempregados, da redução do tempo de trabalho e da falta de vendas lucrativas; a miséria se generaliza entre os operários; as eventuais pequenas economias dos indivíduos são rapidamente devoradas; as instituições beneficentes se veem assoberbadas; o imposto para os pobres duplica, triplica e entretanto continua insuficiente; cresce o número de famintos; e de repente toda a massa da população ‘supérflua’ revela sua impressionante magnitude (p. 124).

Mesmo que várias dessas transformações ainda não tivessem chegado aos outros países, Engels considerava de suma importância dar atenção a elas. Isso porque, se tratavam de tendências gerais do modo de produção capitalista, em constante expansão através de um mercado cada vez mais mundial. Por isso, tomar Inglaterra como ilustração do modo de produção capitalista era útil, mas não eliminava, de nenhuma maneira, a necessidade de analisar as especificidades de cada formação social.

Se as condições de vida do proletariado não chegaram, na Alemanha, a atingir a forma clássica que alcançaram na Inglaterra, temos, no fundo, a mesma ordem social que, mais cedo ou mais tarde, se alçará ao mesmo extremo atingido do outro lado do canal da Mancha, salvo se a nação tomar a tempo medidas capazes de dotar o conjunto do sistema social de uma base nova. Existem igualmente na Alemanha as causas fundamentais que produziram, na Inglaterra, a miséria e a opressão do proletariado e tais causas produzirão aqui os mesmos resultados. Entrementes, a constatação da miséria inglesa nos permitirá constatar nossa própria miséria, a miséria alemã, e nos fornecerá um parâmetro para avaliar sua extensão e a gravidade do perigo – que se manifestou nas sublevações ocorridas na Silésia e na Boémia, – que, nesse domínio, ameaça imediatamente a tranquilidade da Alemanha (p. 42).

Por fim, e como dito acima, esse modo de produção tende a se constituir globalmente, enquanto um sistema mundial. Por isso, as posições das formações sociais nessa configuração global também afetam diretamente a situação das suas classes trabalhadoras:

Se existe um país que dispõe de meios para assumir o monopólio industrial, esse país é a América. Se a indústria inglesa for ultrapassada – o que necessariamente ocorrerá nos próximos vinte anos, se perdurarem as atuais condições sociais –, a maioria do proletariado inglês tornar-se-á definitivamente ‘supérflua’ e não terá mais alternativas que morrer de fome ou fazer a revolução (p. 325).


[i] “A existência e, portanto, também as colisões entre essas classes são condicionadas, por sua vez, pelo grau de desenvolvimento da sua condição econômica, pelo modo da sua produção e pelo modo do seu intercâmbio condicionado pelo modo de produção” (Prefácio à 3ª edição de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, 1885, Boitempo, p. 22).

[ii] “A acumulação de riqueza num polo é, ao mesmo tempo, a acumulação de miséria, o suplício do trabalho, a escravidão, a ignorância, a brutalização e a degradação moral no polo oposto, isto é, do lado da classe que produz seu próprio produto como capital” (O Capital, livro I, Boitempo, p. 472). Essa lei revela o “caráter antagônico da acumulação capitalista” para Marx.

[iii] Máquina de fiação multi-fusos.

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- 07/07/2023