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Destaque, Nacional

A Genética da Burguesia Brasileira, por Ney Nunes

Cem Flores

14.07.2023

Trazemos para os nossos camaradas e leitores, o prefácio do livro “Guerra de Classes”, de Ney Nunes, cujo título é “A Genética da Burguesia Brasileira”.

Ney Nunes é um camarada com uma longa militância comunista na luta de classes do Brasil, atuou em várias lutas sindicais e compõe desde a fundação a direção do Centro Cultural Octávio Brandão – CCOB. Esse Centro, como os próprios camaradas definem, é “uma associação sem fins lucrativos, sustentada pelas contribuições dos seus associados e amigos: trabalhadores, aposentados, moradores do bairro e estudantes. Nosso objetivo é contribuir para a elevação do nível sócio-cultural e de organização do povo trabalhador”. Ney Nunes é também um dos divulgadores do blog de notícias e análises sobre temas históricos e da atualidade Página 1917.

Nesse prefácio, já se vê a demarcação de campo com o reformismo e com o oportunismo, o que é característico dos textos do livro, de nenhuma conciliação de classes com a burguesia e de nenhuma ilusão eleitoreira, institucional ou numa suposta neutralidade do Estado. Independente da forma em que este estiver, sob a democracia burguesa, ou sob a ditadura burguesa, suas balas e cassetetes serão os garantidores da brutal exploração do proletariado em nosso país. Eis a “genética” de nossa burguesia, associada ao imperialismo na exploração combinada das massas trabalhadoras brasileiras.

Essas formulações são fundamentais para o resgate da posição proletária na luta de classes, sem a qual não poderemos retomar a reconstrução de um Partido Comunista que seja digno desse nome, com base marxista-leninista e com influência no proletariado, que lute de forma independente e autônoma na luta de classes contra a burguesia.

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A Genética da Burguesia Brasileira

Ney Nunes

A iniciativa de reunir neste livro uma coletânea dos meus artigos, em sua grande maioria publicados entre 2015 e 2022, resultou da percepção de que eles poderiam, de alguma forma, no seu conjunto, contribuir para desvendar alguns aspectos desse período tão conturbado da nossa história. Além disso, acredito existir um fio condutor entre eles: a exposição crítica das contradições de um sistema econômico e político que procura diuturnamente mascarar sua verdadeira face.

Nosso país não chegou à situação calamitosa que enfrenta atualmente por obra do acaso. Variadas determinantes históricas e conjunturais ao longo do tempo deram corpo a um quadro de dificuldades enormes para a maioria do povo brasileiro, em que pese a fartura de recursos naturais e condições favoráveis de um país continental. Desde a colonização, passando pelo império e a república, fomos inseridos de forma subalterna no capitalismo mundial, destino trágico e comum a toda América Latina. As classes dominantes brasileiras têm na sua genética a vocação para acumular riquezas agindo como mero apêndice do poder econômico das grandes potências. As variadas fases do desenvolvimento capitalista pelas quais passamos confirmam esse “determinismo genético”.

No início do século XX, em plena consolidação do sistema imperialista mundial, o Brasil, recém saído do escravismo, continuava essencialmente um exportador de produtos primários. Foi do negócio da escravidão e dessa relação umbilical e dependente com o mercado internacional que nasce a moderna burguesia brasileira.

O surgimento de um mercado de trabalho assalariado, que veio substituir a mão-de-obra escrava, combinado com a acumulação de capital obtida durante o longo período da escravidão, são fatores que permitem o desenvolvimento de um mercado de consumo mais diversificado, gerando novas possibilidades de acumulação para a burguesia no âmbito do sistema imperialista, hegemonizado nesta época pelos ingleses.

O capital envolvido no grande comércio exportador-importador, principalmente o ligado a economia cafeeira, está na origem da burguesia industrial brasileira. Seu desenvolvimento acelerado, alcançado nas primeiras duas décadas do século XX, registra sincronia com a expansão do capitalismo mundial na sua fase imperialista[i]. A sua ideologia de superexploração dos trabalhadores tem similitude com a cultura escravocrata do Brasil imperial, mesclada com a da segunda revolução industrial, esta, trazida pelos empresários imigrantes, principalmente italianos e alemães. Podemos facilmente identificar isso observando a forte reação contrária das associações comerciais e industriais frente as tímidas tentativas de estabelecimento de uma legislação social nesse período, como a regulação do trabalho do menor, lei de férias, entre outras. A carta enviada pelo Centro das Indústrias de Fiação e Tecelagem de São Paulo, em agosto de 1927, ao Presidente da Câmara dos Deputados, criticando a lei da idade mínima para o trabalho do menor, é um documento esclarecedor a esse respeito:

“[…]Entre nós, dá-se justamente o inverso do que occorre no estrangeiro: temos carencia de operarios. Mas, no entanto, pretendemos ser dos primeiros a fixar por meio de uma lei a idade minima de 14 annos, quando seria perfeitamente razoável fixarmos este minimo de idade em 13 annos pois, que, repetimos, o problema tem entre nós outros factores.

No Brasil, existem numerosíssimas creanças entre 13 e 14 anos que labutam nas industrias, concorrendo de forma efficientissima para a melhoria das condições dos que lhes são caros, sem que isto importe na perda da sua saúde ou no retardamento da sua evolução physica e psychica.

A proibição de serem empregados nas industrias menores entre 13 e 14 annos importará certamente em perturbações da nossa vida fabril, ainda incipiente, mas terá principalmente más consequencias para a economia domestica do proletariado.

Sem o menor intuito de produzir effeito, sem que nos mova nenhum sentimento subalterno de egoísmo, podemos comtudo affirmar que a disposição do Código de Menores que prohibe o menor de 18 anos de trabalhar mais de 6 horas por dia, com um tempo de repouso, mínimo de 1 hora, é profundamente desorganizadora do que aqui está feito em materia de trabalho industrial, […]”[ii].

Em resumo, temos dois eixos constitutivos da burguesia brasileira: o primeiro, superexploração do proletariado e o segundo, associação subalterna com o imperialismo. Assim, no começo do século XX, na divisão internacional do trabalho da economia capitalista mundial, o Brasil consolida-se enquanto país fornecedor de produtos primários e, por outro lado, comprador de bens de capital e produtos industriais mais elaborados. Restando ao capital industrial nacional a produção dos bens de consumo mais simples. O capital estrangeiro também reservou para si os investimentos na infraestrutura de transporte, energia e comunicações, além dos empréstimos ao governo e setor privado, sendo estes financiamentos vinculados, na maioria das vezes, às importações de equipamentos produzidos pelos países exportadores de capitais.

Foi com esse “DNA” que a burguesia brasileira chega ao início do século XXI completamente associada e subordinada ao imperialismo hegemônico no mundo, os EUA, além das relações subalternas que mantém com as demais potências capitalistas: principalmente China e o bloco da União Europeia.

Todo esse percurso, de mais de um século, não se deu isento de contradições interburguesas, assim como, de grandes lutas dos trabalhadores da cidade e do campo contra seus exploradores. Foram muitos os embates evolvendo todas as classes sociais, com desdobramentos políticos e militares de repercussão nacional e histórica, entre eles: a greve geral de 1917, as lutas operárias no final dos anos vinte, o golpe de 1930, guerra civil de 1932, insurreição da ANL em 1935, golpe do Estado Novo em 1937, golpe empresarial-militar de 1964, greves e mobilizações contra a ditadura que desembocaram na constituinte de 1988.

Ao longo desse tempo vivemos sob diversos regimes e arranjos políticos, todos sob a égide da burguesia e do imperialismo que são os verdadeiros detentores do poder. O agravamento da crise estrutural do capitalismo adquiriu contornos dramáticos em 2008, acentuando o desmanche, que já vinha ocorrendo há três décadas, dos pactos sociais geridos por governos liberais e sociais-democratas desde o fim da Segunda Guerra Mundial. O Brasil não ficaria de fora desse processo. A democracia burguesa, restaurada em 1988, vai ganhando contornos cada vez mais antidemocráticos e repressivos, o pacto social celebrado na constituinte foi rasgado em definitivo através das reformas trabalhista e da previdência.

A decadência econômica e social nos últimos trinta anos está estampada num sem número de estatísticas e na realidade a nossa volta: desemprego crônico, aumento da miséria, da lumpenização, do banditismo, dos territórios controlados por narcomilicianos, violência do aparato repressivo do Estado, péssimas condições de moradia, transporte, saúde e educação. Situações concretas que vão nos posicionando às portas da barbárie.

O quadro atual é reflexo dessa dominação secular da burguesia e do imperialismo em nosso país. O descalabro do governo de plantão, ao contrário do que muitos dizem, não é um “ponto fora da curva”, pelo contrário, representa exatamente a tendência do capitalismo em sua etapa agônica. O embate em curso entre liberais, sociais-democratas e fascistas limita-se a disputa pelo governo. Quanto ao poder, independente do bloco político vencedor, não está em jogo. O poder é burguês, seja ele exercido na forma de um regime do tipo liberal ou de inspiração fascista, este último, o desejado por Bolsonaro e sua camarilha reacionária.

A “democracia”, que somos chamados a defender diante das reiteradas ameaças golpistas do atual presidente, nada mais é do que uma das faces da ditadura do capital. Nas favelas, subúrbios e periferias das nossas grandes cidades, ela é ditadura aberta, militarizada e sem disfarces, exercida através do seu “Estado Associado”, as quadrilhas narcomilicianas.

Quando os trabalhadores conseguem se organizar para lutar por seus mínimos direitos, defrontam-se com o “democrático” aparato repressivo estatal amparado em instrumentos como a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), lei antiterrorismo, etc., são componentes dessa dita democracia onde qualquer greve pode ser considerada ilegal e o poder econômico da burguesia impõe a sua versão dos fatos por meio do oligopólio midiático.

Sabemos que o Brasil é um país de enormes recursos e potencialidades, com diversidade de climas, de solos e muitas riquezas naturais. O povo trabalhador há muito já poderia usufruir melhores condições de vida, livre das injustiças e opressões. Mas se pretendemos alcançar esse objetivo, além de superarmos as determinantes históricas e conjunturais que nos trouxeram até aqui, precisamos enfrentar a guerra de classes deflagrada pela ofensiva burguesa contra o proletariado em escala internacional. Para que esse enfrentamento seja vitorioso, o caminho passa pela retomada da consciência de classe do proletariado, avançando até uma consciência revolucionária de ruptura com a o poder da burguesia e do imperialismo.

Os artigos reunidos nessa coletânea buscam contribuir na construção desse caminho. Eles não analisam os eventos como meros observadores distantes, mas a partir de uma posição militante, engajada na luta do nosso povo contra o sistema econômico e político que serve essencialmente aos interesses da minoria de exploradores e privilegiados.


[i] Sergio Silva, Expansão Cafeeira e Origens da Indústria no Brasil, 6ª ed., p. 81, Alfa-Omega, 1985.

[ii] Edgard Carone, O Pensamento Industrial no Brasil (1880-1945), p.412, DIFEL, 1977.

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- 14/07/2023