O PL do negacionismo trabalhista. Por Valdete Souto Severo e Jorge Luiz Souto Maior
Entregadores de aplicativo de algumas cidades do Espírito Santo realizaram uma paralisação no início de março. A luta por melhores salários e condições de trabalho, contra a violência e a exploração cotidianas, continua nessa categoria. As conquistas virão da luta e não das mesas de enrolação do governo e dos patrões!
Cem Flores
19.03.2024
As categorias de trabalhadores/as de aplicativo surgiram nos últimos anos e já se tornaram muito expressivas no país, sobretudo aquelas vinculadas ao transporte de pessoas e de mercadorias. Segundo o IBGE, em 2022, o Brasil tinha cerca de 2,1 milhões de trabalhadores/as nessas categorias. Os aplicativos são utilizados tanto como principal fonte de renda, quanto renda complementar para sustentar a família do/a trabalhador/a.
Apesar das consideráveis diferenças entre essas categorias, elas se encontram hoje no centro de profundas transformações nas relações de trabalho, possibilitadas pelas novas tecnologias a serviço do capital, sendo igualmente afetadas pelo novo trabalho “autônomo” (sic!) via plataformas digitais. A forma e a intensidade como são controladas e exploradas geram um conjunto de demandas classistas em comum, em oposição aos seus patrões, os donos dos aplicativos e seus representantes. Aumentos e formas mais vantajosas de remuneração por execução de tarefa, redução de custos que são jogados nas costas dos/as trabalhadores/as, melhores condições de trabalho, garantias mínimas e possibilidade de descanso, dentre outras pautas, têm aparecido em diversas mobilizações nos últimos anos.
A luta dos trabalhadores/as de aplicativo já teve grandes momentos no país, como a paralisação nacional em 2020, o Breque dos Apps. E vem sendo disputada por diversos grupos políticos, da “esquerda” à direita. O sindicalismo pelego, hegemônico nas categorias formais e base de apoio do governo burguês de Lula-Alckmin, também busca ampliar sua influência nessas novas categorias.
Nesse contexto, no dia 04/03, o governo burguês de Lula-Alckmin apresentou uma proposta de regulamentação específica para os motoristas de aplicativo, mas que pode servir de parâmetro para outras categorias. Fruto de mais de um ano de negociações entre patrões, pelegos e governo – sem a participação da categoria – e vendida como um avanço para os/as trabalhadores/as, trata-se na verdade de mais um ataque às conquistas trabalhistas em benefício dos patrões.
E a escolha da data de divulgação do projeto não parece ter sido nada casual. No final de fevereiro, o STF formou maioria para considerar que seu julgamento sobre existir ou não vínculo empregatício entre a Uber e os/as motoristas terá repercussão geral. Ou seja, será a decisão final de mais de 17 mil ações na justiça trabalhista que demandam o reconhecimento de vínculo trabalhista. E bem sabemos o histórico do STF sobre causas trabalhistas. No mesmo dia do anúncio do governo, 04/03, a cara de pau da Uber entrou com uma ação no STF pedindo a suspensão de todos esses milhares de processos em toda a justiça brasileira.
Parece um joguinho ensaiado: numa quarta-feira, o STF anuncia repercussão geral no julgamento sobre vínculo empregatício com a Uber. Na segunda da semana seguinte, o governo apresenta um projeto de lei que nega o vínculo empregatício, que também serve como pressão ao STF (como se fosse necessário!). Somando as posições do executivo e do judiciário, a Uber pede a suspensão de milhares de ações de uma tacada só! Mais um bem bolado em benefício dos patrões!
A proposta, que ainda precisa ser aprovada no congresso nacional, formaliza uma relação de trabalho abaixo dos parâmetros mínimos da atual legislação trabalhista, tornando-se mais uma opção legal para o patronato impor altos níveis de exploração. Em resumo, não se reconhece vínculo empregatício e, portanto, não há regulamentação de férias nem descanso semanal remunerados; a jornada legal pode ser de até 12 horas (sem hora extra!) sendo considerado apenas o tempo das corridas e não o tempo logado (que era a reivindicação da categoria); não estão definidos precisamente os benefícios previdenciários dessa nova categoria profissional.
Como resumiu a imprensa dos patrões: “O novo modelo vai ao encontro do que queriam as empresas de aplicativo, que era considerar esses profissionais como autônomos, afastando a possibilidade de contratação pela CLT”. A nota da Uber sobre a proposta do governo é só elogios: “importante marco visando a uma regulamentação equilibrada do trabalho intermediado por plataformas”. A Amobitec, associação patronal, também saiu na defesa da proposta burguesa de Lula-Alckmin: “proposta contempla as prerrogativas de uma atividade na qual a independência e a autonomia do motorista são fatores fundamentais. Certamente será usada como exemplo para muitos países”. Como sabem todos/as os/as trabalhadores/as na sua luta cotidiana contra a exploração patronal: se é bom para os patrões, é ruim para as classes trabalhadoras!
Mais cara de pau ainda tem o IFood, que se apressou em dizer que essa legislação rebaixada dos/as trabalhadores/as “de quatro rodas” é muito para os/as “de duas rodas”! Segundo esses patrões, “É uma proposta que desagrada a plataforma, porque ela aumenta drasticamente o custo da operação sem trazer nenhuma contrapartida”. Segundo o IFood os/as trabalhadores/as teriam que trabalhar mais que o dobro do que já trabalham para terem os benefícios dessa lei!
No final das contas, Lula-Alckmin avançam legalmente na “reforma” trabalhista de Temer-Bolsonaro, dando mais um passo para destruir conquistas trabalhistas, fingindo cinicamente estar do lado dos/as trabalhadores/as!
Esse é mais um exemplo crucial de a qual classe serve esse governo, de sua nefasta cooptação e sabotagem da luta que subordinam as classes trabalhadoras aos interesses dos patrões. Esse governo é um governo inimigo dos/as trabalhadores/as.
Algumas vozes críticas se levantaram contra esse engodo do atual governo, como é o caso do militante comunista e youtuber Chavoso da USP e do professor Souto Maior. Divulgamos abaixo a análise crítica de Valdete Souto Severo, juíza do trabalho, e Souto Maior, professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), publicada recentemente no blog da Boitempo. Apesar de reproduzir certas ilusões em relação ao atual governo dos patrões e ao direito do trabalho, elemento fundamental da reprodução da escravidão assalariada, consideramos que a análise de Valdete Severo e Souto Maior contribui para a compreensão dessa proposta governamental enquanto mais um ataque do patronato, consolidando a ofensiva burguesa nas relações de trabalho e avançando na “reforma” trabalhista implementada no governo Temer e aprofundada no governo Bolsonaro.
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O PL do negacionismo trabalhista
Valdete Souto Severo e Jorge Luiz Souto Maior
“Vamos celebrar a estupidez humana
A estupidez de todas as nações
O meu país e sua corja de assassinos
Covardes, estupradores e ladrões
Vamos celebrar a estupidez do povo
Nossa polícia e televisão
Vamos celebrar nosso governo
E nosso Estado, que não é nação”
Perfeição, Legião Urbana
O PL proposto essa semana pelo governo federal – com seu contexto específico – consegue ser ainda pior do que a contrarreforma de 2017. É assim que precisamos compreender a proposta de regulação da atividade de motoristas contratados por empresas que operam seu negócio por intermédio de plataformas digitais. Na verdade, trata-se do pior momento da história dos direitos trabalhistas no Brasil.
O evento festivo da assinatura do PL, então, foi um show de horrores, forjado a partir de alegorias artificialmente propostas para criar uma realidade paralela. Aliás, bem ao estilo do dito “trabalho virtual”. Uma explicitação de autêntico negacionismo, vindo daqueles que, justamente, se apresentaram como um contraponto ao processo de bestialização vivenciado de 2018 a 2022.
Desde o início do ano passado, com presença ativa do governo, vinham sendo feitas discussões entre representações dos motoristas e das empresas que exploram sua força de trabalho. A proposta das empresas, desde o início, era a regulação precarizante: chamar de autônomos seus empregados; permitir que estes trabalhassem em limite (inconstitucional, é bom frisar) de 12h diárias; e que se mantivesse um sistema de controle das atividades dos motoristas, com permissivos punitivos, inclusive. E qual o teor do texto do PL apresentado ontem, com pompa e circunstância pelo governo? Exatamente o que as empresas propuseram desde o início.
O texto não reflete, portanto, diálogo e estudos para enfrentamento de uma questão que seria promovida pela inserção da nova tecnologia no mundo do trabalho. Considerando os dados concretos, refletidos no histórico e no resultado final do PL, trata-se, isto sim, de mera capitulação!
Em sentido diametralmente oposto ao que vem sendo realizado, em termos de regulação deste tipo de trabalho, o PL, no entanto, foi apresentado como a melhor proposta possível… Mas isto, evidentemente, apenas para os tomadores do trabalho!
O governo trabalhista capitula, cai de joelhos, e defende, explicitamente, os ideais dos patrões, ou, mais precisamente, do capital estrangeiro, em seu propósito de auferir grandes taxas de lucro por meio da exploração de um trabalho sem proteção social e poder de reivindicação. A leitura do texto causa indignação e revolta.
Foi a tarde da consagração da maior derrota da classe trabalhadora brasileira, mesmo que o PL, caso sejamos tomados por uma hecatombe, não seja aprovado no Congresso Nacional. Neste aspecto, a fala do Presidente da República é plenamente verdadeira. O evento foi histórico. Ele e seu governo entrarão para a história como os agentes que apresentaram e defenderam, de forma convicta, uma lei com potencial para destruir completamente o aparato jurídico de proteção dos trabalhadores e das trabalhadoras, ao qual se denomina Direito do Trabalho. Parece exagero? Pois bem, vamos lá.
A base das decisões que vêm sendo proferidas nas reclamações constitucionais propostas por essas mesmas empresas é a de que não são elas que se relacionam com os motoristas e sim o aplicativo; ou uma modalidade de contratação por meio de plataforma digital. Assim, por este passe de mágica, elas não se integrariam à figura do empregador. E o art. 3º do PL acolhe exatamente essa fantasia, dizendo que o motorista, “para fins trabalhistas”, ostenta a condição jurídica de um “trabalhador autônomo por plataforma”.
E não só.
Ao tratar desse trabalho como autônomo, o governo acaba de algum modo fazendo coro ao discurso de que tais relações devem ser submetidas à justiça comum. Contribui, portanto, para o movimento de esvaziamento da competência material da Justiça do Trabalho.
O PL já inicia referindo tratar de relação de trabalho “intermediada” por “empresas operadoras de aplicativos de transporte”. Mas não há intermediação. Ora, a empresa: admite, pois aceita ou não o cadastro de quem se candidata ao trabalho; assalaria, estabelecendo, inclusive, o valor do trabalho; e dirige a atividade, pois fixa o modo como o trabalho será prestado. Além disso, assume os riscos do empreendimento, pois é a empresa que contratamos, quando precisamos do transporte de coisas ou de pessoas.
Há referência, também no art. 3º, à “plena liberdade para decidir sobre dias, horários e períodos em que se conectará ao aplicativo”. No entanto, essa condição já existe em outras relações de trabalho e não guarda relação alguma com autonomia ou subordinação. É a mesma condição de quem realiza teletrabalho, por exemplo. A suposta liberdade não altera os moldes da exploração. É apenas o reconhecimento de uma característica desse vínculo específico e que, na prática, nem se realiza. E o mais importante: não constitui reconhecimento de direito algum, pois essa possibilidade de trabalhar em horários variáveis é condicionada (com ou sem a aprovação dessa lei) às tarifas praticadas pela empresa, à quantidade de motoristas atuando na mesma região, às características do lugar em que o trabalho está sendo realizado. Então, sequer essa condição é efetivamente expressão da liberdade de quem está vendendo sua força de trabalho.
A ausência de exclusividade também não é direito reconhecido por essa legislação. Em lugar algum na legislação trabalhista existe tal exigência para a formação de um vínculo de emprego. Do mesmo modo, a possibilidade de representação sindical é direito de todas as pessoas que vivem do trabalho, sendo desnecessária lei que a refira.
O §2º do artigo 3º impressiona. Refere que o “período máximo de conexão do trabalhador a uma mesma plataforma não poderá ultrapassar doze horas diárias”. 12 horas! 12 horas, todos os dias! Isso, apesar da Convenção 01 da OIT, de 1919, fixar o máximo de 8 horas de trabalho por dia. Apesar de o Art. 7º da Constituição fixar como direito “dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social” “XIII – duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias”. Um retrocesso inaceitável.
Ainda que estivéssemos diante de um contrato formulado a partir dos parâmetros do direito, não teríamos como sustentar a possibilidade de uma lei que contraria o limite máximo estabelecido por um dispositivo constitucional e que, nitidamente, fere direitos fundamentais. Não há como sustentar, juridicamente, a existência de um grupo de pessoas para as quais os direitos fundamentais e a Constituição não tenham validade.
O art. 5º é igualmente assustador. Estabelece a possibilidade de que as empresas operadoras de aplicativos adotem “normas e medidas para manter a qualidade dos serviços prestados por intermédio da plataforma, inclusive suspensões, bloqueios e exclusões”. Punição, no melhor estilo do que a linguagem, à época do capitalismo industrial, chamava de “gancho”. Algo que sequer a CLT prevê: a possibilidade de punir quem depende do trabalho para sobreviver. Nada pode representar melhor o quanto as relações de trabalho no Brasil seguem atravessadas por uma racionalidade escravista, que não vê limite à lógica da exploração e da precarização do trabalho.
Criaram a figura do trabalhador autônomo com direito de ser punido por aquele que não é seu patrão e que diz que não é seu patrão porque o trabalhador é livre!!! Dá até para entender a comemoração: precisa ter muita criatividade e inventividade para se chegar a uma tal formulação; ou muito cinismo!
A questão é que agora a proposta de precarização vem assinada por um ex-líder sindical, operário, cuja carreira política sustentou-se em seu compromisso com a classe trabalhadora.
O projeto estabelece, ainda, o direito da tomadora do trabalho de utilizar “sistemas de acompanhamento em tempo real da execução dos serviços e dos trajetos realizados”, ou seja, controle da jornada, e “sistemas de avaliação de trabalhadores e de usuários”, ou seja, metas para a extração de mais-valia. Ainda, podem oferecer “cursos ou treinamentos”, em óbvio direcionamento da atividade. Tudo, sem que se “configure relação de emprego nos termos do disposto na Consolidação das Leis do Trabalho”. Parece deboche.
Aliás, o art. 6º dispõe que a empresa poderá excluir unilateralmente o trabalhador da plataforma nas “hipóteses de fraudes, abusos ou mau uso da plataforma, garantido o direito de defesa”. Daí a comparação com a contrarreforma de 2017. Estamos diante de uma proposta de lei empresarial.
Mas dirão aqueles que seguem defendendo cegamente a postura adotada pelo governo: há garantia de remuneração mínima pelas horas trabalhadas. Ora, também aí não houve avanço, pois o reconhecimento de que se trata de um típico vínculo de emprego seria suficiente para que um salário mínimo fosse garantido. A regra, na realidade, tem também uma finalidade precarizante, pois se refere ao ressarcimento das despesas que o trabalhador suporta, a serem devidas “nos termos do regulamento”, incluídas no valor-hora. Ou seja, concretamente não haverá ressarcimento de despesas.
E submetidas as partes ao processo negocial livre, determinado pela lei de mercado, ou seja, da oferta e da procura, a tendência é que os ganhos tendam a um rebaixamento constante, ainda que um valor nominal esteja garantido, pois poder de compra não tem correlação exata com este valor.
Enfim, o que se tem é o projeto de uma lei para um trabalho sem direitos. Uma lei que garante às multinacionais que exploram trabalho de transporte por meio de plataformas digitais, a possibilidade de seguirem atuando à revelia da legislação trabalhista e do pacto constitucional de solidariedade. Uma lei que fere a regra da jornada máxima prevista na Constituição. Uma lei que autoriza punição entre particulares que se relacionam a partir dos parâmetros jurídicos da igualdade e da liberdade. Um festival de retrocessos.
Se estivéssemos no governo anterior, certamente setores da esquerda e entidades do mundo do trabalho, incluindo o próprio Presidente e seu partido político, já teriam apelidado a proposta de “PL da morte dos trabalhadores e das trabalhadoras”.
Mas não foi o governo golpista, nem foi aquele que debochou das pessoas mortas por asfixia, durante a pandemia, que acabaram desferindo este ataque à classe trabalhadora. A ferida está sendo provocada por um ato de violência vindo do governo trabalhista e fará sangrar os trabalhadores e as trabalhadoras, ainda mais do que vêm sangrando na realidade brasileira (e não é de hoje); fará sofrer quem depende do trabalho para sobreviver.
Talvez por tudo isso esteja doendo tanto.