CEM FLORES

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Clóvis Moura: Particularidades do Racismo Brasileiro

Cem Flores

07.06.2024

Elevador é quase um templo

Exemplo pra minar teu sono

Sai desse compromisso

Não vai no de serviço

Se o social tem dono, não vai

Quem cede a vez não quer vitória

Somos herança da memória

Temos a cor da noite

Filhos de todo açoite

Fato real de nossa história

Se preto de alma branca pra você

É o exemplo da dignidade

Não nos ajuda, só nos faz sofrer

Nem resgata nossa identidade

Jorge Aragão – Identidade

 

O coletivo Cem Flores avança em uma trajetória de estudos e análises da realidade racial negra brasileira, tendo em vista que, para nós, comunistas no Brasil, é questão fundamental entender a realidade classista e racial brasileira, sua história e desdobramentos a partir do estudo teórico marxista-leninista. Essa teoria é a chave cientifica que se integra à luta dos povos oprimidos ajudando-nos a formar uma direção revolucionária de massas. Pois somente uma revolução pode enterrar a exploração de classes e a opressão racial no país!


Veja as publicações do Cem Flores sobre a questão racial:

Falsa abolição… será?, por Unidade Preta Comunista, de 13/05/2023

Tese Sobre a Questão Negra do IV Congresso da Internacional Comunista, de 20/11/2021

Contra mais um brutal assassinato, ampliar a luta contra a opressão racista no Brasil!, de 21/11/2020

Racismo e Escravismo no Brasil, por Clóvis Moura, de 17/11/2020

Uma posição comunista sobre a questão racial, de 31/01/2020

Aprender com os Panteras Negras, de 09/01/2019


Na realidade, busca-se continuar no caminho já aberto por valorosos comunistas, como nossos comandantes e mártires negros: Osvaldão, Marighella, e outros, que dedicaram suas vidas pela segunda e verdadeira Abolição, aquela que também libertará as massas da exploração do capital em nosso país.

Para tal, resgatamos mais uma vez um autor que representa um dos pilares da análise marxista a respeito do escravismo e do racismo brasileiro: Clóvis Moura.

Clóvis Steiger de Assis Moura, conhecido como Clóvis Moura, nasceu em Amarante, no Piauí, no dia 10 de julho de 1925. Foi um importante comunista e intelectual brasileiro, produzindo célebres estudos sobre a escravidão e sobre a resistência dos negros no Brasil. Um dos pontos centrais de seu trabalho é a resistência negra contra a opressão violenta e a escravidão. Em 1975, fundou o Instituto Brasileiro de Estudos Africanistas (IBEA) e promoveu cursos, debates e atividades culturais com a participação dos militantes do movimento negro. Foi no interior da Bahia, na cidade de Juazeiro, nos anos 1940, que deu início à escrita de seu mais conhecido e pioneiro livro, Rebeliões da Senzala, publicado pela Editora Zumbi, em São Paulo, em 1959. A sua produção intelectual iniciada nos anos 1940 atravessou diferentes períodos da história nacional e teve como eixo o estudo da práxis negra a partir do materialismo histórico e dialético. Vinculou-se nos anos 1940 ao Partido Comunista do Brasil (PCB) na Bahia e foi diretamente influenciado pelo círculo de intelectuais formado por Jorge Amado, Edson Carneiro e Vivaldo da Costa Lima.

Conhecer a obra de Clóvis Moura nos permite compreender o racismo contemporâneo e como as raízes do escravismo afetam a sociedade até os dias atuais. Por meio de suas pesquisas e práticas, entendemos a participação ativa e efetiva da população negra escravizada na luta contra o escravismo, contra um sistema que viola os direitos fundamentais e contribuiu para propagação de uma sociedade racista e desigual entre seus membros. Clóvis ensina que o fim do regime escravista não transformou o país em um lugar de igualdade, a ruptura com a escravidão não resultou sequer em políticas públicas voltadas para a melhoria da população negra como “cidadão” e agente ativo da sociedade, e que a todo momento desde o período colonial até os dias atuais a população negra resiste lutando para permanecer viva!

Compartilhamos para a reflexão e estudo de todos os camaradas, um trecho retirado do livro: “Dialética Racial do Brasil Negro”, mais especificamente do artigo intitulado: “Particularidade do Racismo Brasileiro”. Nesse artigo o autor entrelaça experiências racistas de outros países como Estados Unidos e África do Sul fazendo um contraponto com a realidade do racismo brasileiro e suas particularidades, teses que servem como bússola para o entendimento real do nosso povo e na luta de construção da revolução no Brasil.

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Particularidades do racismo brasileiro

Clóvis Moura

1994

Quando falamos que um sistema classificatório racial no Brasil, subordinado a uma escala de valores raciais, evidentemente não nos referimos a um código elaborado e institucionalizado legalmente.

Assim como nunca elaboramos um Código Negro que regulamentasse a relação entre os senhores e os escravos, também não tivemos um tipo de apartheid da África do Sul ou uma Jim Crown dos Estados Unidos. Da mesma forma como a Constituição do Império omitiu a existência da escravidão e o jurista Teixeira de Freitas tenha recusado a coloca-la quando redigiu o projeto do Código Civil do Império, assim também esse sistema tenha atuado dinamicamente durante quase quinhentos anos. Pelo contrário. Enquanto as classes dominantes, suas estruturas de poder e elites deliberantes aplicavam essa estratégia discriminatória, através de uma série de táticas funcionando em diversos níveis e graus da estrutura, elaboraram, em contrapartida, como mecanismo de defesa ideológica a filosofia do branqueamento espontâneo via miscigenação e como complemento apresentavam-nos como o laboratório piloto da confraternização racial, cujo exemplo deveria ser seguido pelos demais países poli étnicos. Essa dupla face do comportamento das estruturas de poder racistas do Brasil será o que iremos abordar na conclusão deste capítulo.

Podemos dizer, em primeiro lugar, que no Brasil esse problema (relacionamento interétnico) foi conduzido em relação ao índio e ao negro de forma diferenciada, mas com o mesmo conteúdo de destruição da consciência étnica e cultural de ambos.

Em relação ao índio, primeiro houve a fase genocídica de ocupação de terra e da destruição de milhares dos seus membros. Depois, a fase de cristianização, da catequese, da chamada evangelização, ou seja, da destruição das suas religiões e sanções àqueles que não aceitassem submissamente a religião do colonizador que exercia nesse contexto o papel de bloco ideológico do Poder.

Em segundo lugar, foi a invasão das suas terrar em ritmo rápido e violento no início, e, depois, lenta e constante, a destruição daquelas tribos que ainda resistiam à integração, situação que perdura até hoje. Criou-se o Estatuto do Índio no qual os seus direitos foram regulados pelos brancos, sem que eles pudessem intervir como agente social e cultural dinâmico. Mas, de qualquer forma, os remanescentes dos povos indígenas não perderam totalmente a sua identidade, a sua territorialidade em parte. Com isto, têm polos de apoio que facilitam uma articulação de resistência, pois sabem até onde têm os seus direitos outorgados pelos brancos e aquilo a que têm direito legitimamente. A desigualdade entre o índio e o chamado homem branco iguala e une os índios na sua luta pela demarcação das suas terras (territorialidade) na luta contra a invasão das mesmas e procuram igualar-se em termos de cidadania. Com isto a sua consciência étnica mantém a sua identidade que se dinamiza no processo de resistência pelos seus direitos diferenciados porque foram-lhes fixados de fora, mas persiste a memória ancestral coletiva.

Com o negro, porém, a situação é diferente e as estratégias montadas foram mais sofisticadas e eficientes. O racismo tem outra tática para com ele. Em primeiro lugar, o negro é considerado cidadão com os mesmos direitos e deveres dos demais. No entanto, o que aconteceu historicamente desmente este mito. Trazido como escravo, tiram-lhe de forma definitiva a territorialidade, frustraram completamente a sua personalidade, fizeram-no falar outra língua, esquecer as suas linhagens, sua família foi fragmentada e/ou dissolvida, os seus rituais religiosos e iniciáticos tribais se desarticularam, o seu sistema de parentesco completamente impedido de ser exercido, e, com isto, fizeram-no perder, total ou parcialmente, mas de qualquer forma significativamente, a sua ancestralidade.

Além do mais, após o 13 de Maio e o sistema de marginalização social que se seguiu, colocaram-no como igual perante a lei, como se no seu cotidiano da sociedade competitiva (capitalismo dependente) que se criou esse princípio ou norma não passasse de um mito protetor para esconder desigualdades sociais, econômicas e étnicas. O Negro foi obrigado a disputar a sua sobrevivência social, cultural e mesmo biológica em uma sociedade secularmente racista, na qual as técnicas de seleção profissional, cultural, política e étnica são feitas para que ele permaneça imobilizado nas camadas mais oprimidas, exploradas e subalternizadas. Podemos dizer que os problemas de raça e classe se imbricam nesse processo de competição do Negro pois o interesse das classes dominantes é vê-lo marginalizado para baixar os salários dos trabalhadores em seu conjunto.

O racismo brasileiro, como vemos, na sua estratégia e nas suas táticas age sem demonstrar a sua rigidez, não aparece à luz, é ambíguo, meloso, pegajoso, mas altamente eficiente nos seus objetivos.

E por que isto acontece? Porque não podemos ter democracia racial em um país onde não se tem plena e completa democracia social, política, econômica, social e cultural. Um país que tem na sua estrutura social vestígios do sistema escravista, com uma concentração fundiária e de rendas das maiores do mundo; governado por oligarquias regionais retrógradas e broncas; um país no qual a concentração de rendas exclui total ou parcialmente 80% da sua população da possibilidade de usufruir um padrão de vida decente; que tem 30 milhões de menores abandonados, carentes ou criminalizados não pode ser uma democracia racial.

Quando democratizarmos, realmente, a sociedade brasileira nas suas relações de produção, quando os polos do poder forem descentralizados através da fragmentação da grande propriedade fundiária e o povo puder participar desse poder, quando construirmos um sistema de produção para o povo consumir em não para exportar, finalmente, quando sairmos de uma sociedade selvagem de competição e conflito, e criarmos uma sociedade de planejamento e cooperação, então, teremos aquela democracia racial pela qual todos nós almejamos.

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- 07/06/2024