A resistência das favelas e periferias em tempos de pandemia: solidariedade, reforço da organização popular e redes de ajuda mútua
Cem Flores
28.03.2020
Com essa publicação, o Cem Flores pretende trazer um panorama da rápida piora das condições de vida e de trabalho nas favelas e periferias brasileiras nas últimas semanas. A pandemia e a recessão estão a aprofundar a difícil situação pela qual as massas trabalhadores dessas comunidades já vinham passando.
Destacaremos também as formas concretas de resistência comunitária que estão aparecendo ou se reforçando nessas localidades para enfrentar o coronavírus e buscar alternativas de sobrevivência. Como mostram os exemplos de Paraisópolis, do Complexo do Alemão e de outras comunidades, essa resistência tem por base a organização autônoma da comunidade, a solidariedade e a ajuda mútua.
Acreditamos que tal assunto é da maior atualidade e relevância política para os(as) trabalhadores(as), lutadores(as) e comunistas de nosso país. São diversas as lições que provêm das favelas a serem desenvolvidos pelos(as) dominados(as) no geral em sua luta, também em seus lugares de trabalho, na nova conjuntura que se apresenta.
Importante lembrar que tal esforço de nosso Coletivo se soma a outras reflexões e textos que temos desenvolvido e divulgado sobre a linha de massas, a luta comunitária e o papel dos(as) comunistas:
- “O Que do Que Fazer?”, de Louis Althusser, e a relação entre os comunistas e as massas
- Teses do VI Congresso da Internacional Comunista – Excertos (1928)
- Aprender com os Panteras Negras
- Maior preocupação com a vida das massas e maior atenção aos métodos de trabalho
- De Hunan à Paris: relendo um clássico de Mao
A piora da situação das favelas e periferias desde o início da pandemia e da recessão
O mundo parou. Jesus Cristo, Alá, Oxalá, oh, meu Deus, peço piedade!
O mundo parou. Oh, livro sagrado, procuro razão pra essa enfermidade.
Poderosos e ignorantes vão pedir socorro.
Imagine o povão lá no morro passando mais fome e necessidade…
O mundo parou, música de Dudu Nobre, Dexter, Edi Rock e Ivo Meirelles
A pandemia do novo coronavírus, assim como a nova recessão que está a se construir, já tem impactado profundamente as populações das milhares de periferias e favelas do Brasil. Segundo a pesquisa Coronavírus nas favelas, feito pelo Data Favela, dos 1.142 entrevistados em 262 favelas, 97% responderam que tiveram sua rotina alterada nos últimos dias. Isso por conta de demissões e diminuição de serviços, bicos e faxinas; ausência de aulas e merenda para as crianças; falta de transporte; dificuldade em adquirir os itens de higiene e limpeza necessários… Fora o medo de mais uma doença (além da dengue, sarampo…) atingir seus familiares e amigos, das coisas piorarem ainda mais, e assim vir “mais fome e necessidade”, como diz a música.
As massas trabalhadoras que vivem nesses locais já vinham sofrendo de forma direta com o aumento da repressão e violência (seja pela mão da polícia, da milícia ou do tráfico), a piora nos empregos e na renda e o sucateamento dos serviços públicos. E a agora se veem diante do risco de mais uma doença de fácil transmissão, e cujos efeitos econômicos têm se feito sentir sobretudo e primeiramente nos(as) trabalhadores(as) de vínculos mais precários e informais.
As péssimas condições de habitação, saneamento, saúde e transporte às quais está submetida a maioria da população pobre e negra nas periferias e favelas do país, são um agravante para a transmissão do vírus. As casas, ruas e bairros não possuem infraestrutura e serviços básicos adequados.
Como diz um ativista e morador de favela ao portal Ponte:
a distribuição de água aqui no Complexo [do Alemão, RJ] não é regrado, algo diário em que todos os dias as pessoas têm água. Tem muitos pontos que faltam água. Inclusive hoje postei no meu Facebook pedindo para a galera comentar onde não tinha água e houve vários comentários de muitos pontos. Então a gente não consegue seguir as dicas básicas da Organização Mundial da Saúde, do Ministério da Saúde sobre, por exemplo, lavar as mãos o tempo inteiro quando chegar ou sair para a rua, quando tiver contato com outra pessoa. Essa higienização básica de lavar com água e sabão, que é mais barato do que o álcool em gel, nem todo mundo consegue fazer nesse momento.
Outro morador do Complexo e ativista do coletivo de comunicação Papo Reto ressalta também que: “Muitas casas não têm ventilação praticamente nenhuma, porque é uma colada na outra. Só tem porta, não tem janela. Estamos recomendando às pessoas para ficarem no cômodo mais ventilado de casa. Mas há casos muito complicados”.
Nas periferias, muitas famílias ainda têm que dividir pequenos espaços para morar. Sem contar a falta de dinheiro para sustentar os atuais gastos extras com a proteção ao vírus e a impossibilidade de se manter em quarentena de fato. Como diz Alex, da favela Monte Azul (SP), que mora com onze familiares:
Se alguém tiver o corona, como vou isolar? Minha casa é um cômodo só. […] Sem condições de comprar essas coisas [álcool em gel, máscara]. Na real, eu nem sei o que fazer, entendeu? Na casa de rico tem tudo. Eles estão trancados com álcool em gel, máscara e comida. Se eu não sair de manhã, meus moleques não têm comida.
Dos governos burgueses, essas massas podem esperar apenas demagogia e hipocrisia (Witzel, o assassino, falando em “priorizar as famílias pobres”!, sic!), ineficazes e insuficientes ações, quando não escárnio puro e simples, a exemplo do presidente da república mandando as famílias se virarem com seus idosos e doentes. Lembrando que, como dissemos recentemente:
As medidas [do governo federal] para “manutenção de empregos” são todas para reduzir os impostos dos empresários: não precisa mais pagar FGTS nem Simples e reduz pela metade o sistema S por 3 meses. O hipocritamente chamado “programa antidesemprego” prevê “redução proporcional de salários e jornada de trabalho”.
Já o assistencialismo burguês serve mais para dar holofotes às empresas hipócritas e “humanistas” de ocasião. Atrás das supostas boas ações e discursos solidários, temos visto o mais cru e brutal desejo de lucro dessa canalha, nem que seja através de sangue (dos trabalhadores). Só ver o caso emblemático do dono da Madero e seus “5 ou 7 mil mortos” necessários para a continuidade da valorização do capital.
Nem podem esperar as massas operárias e trabalhadoras alguma coisa da distante “esquerda” institucional, cuja preocupação do momento, para variar, é basicamente eleitoral. “Esquerda” que de forma oportunista quer voltar à gerência do Estado capitalista e não está comprometida com os interesses dos(as) trabalhadores(as), e sim com seu capitalismo utópico.
Ou seja, esses(as) trabalhadores(as) sabem que estão sós, mais uma vez. E que essa batalha será dura, como sempre foi tudo para eles(as).
A organização solidária nas favelas e periferias
“Façamos nós por nossas mãos. Tudo o que a nós nos diz respeito!”
Hino da Internacional Comunista
Mas essa “solidão” e dificuldade não significam isolamento, muito menos paralisia. Nem hoje, nem ao longo da história dessas comunidades, e de outros bairros de trabalhadores(as) no país. Pelo contrário, diante de imensas adversidades, da violenta e opressora ação das classes dominantes, essas comunidades têm lutado coletiva e incessantemente para sobreviver da melhor forma possível. Enfrentando o desemprego, a fome, a pobreza, a doença, a violência de forma cotidiana. Fazem isso, sobretudo, com base na solidariedade, através de suas próprias forças e recursos, com mutirões, vaquinhas, doações, e, claro, fazendo alianças e buscando suportes para atingir seus objetivos e defender seus interesses.
As periferias do país, há muito, são terrenos de inúmeras associações de bairro e moradores, de coletivos, instituições, mais ou menos formais, que trabalham e lutam diretamente em prol de uma vida melhor na comunidade, envolvendo ações no campo da alimentação, saúde, educação, segurança, esporte, cultura, lazer etc. Obviamente, todas essas coletividades possuem contradições internas, maiores ou menores, e são alvos de intervenção do Estado e das próprias classes dominantes para minar seu potencial político e organização autônoma, impor outras ideologias (como o empreendedorismo, o individualismo etc.), torna-las apêndices de comitês eleitorais e, quando não, reprimir pura e simplesmente. Mas tais limitações não anulam a força e importância dessas organizações para os(as) dominados(as) e sua luta.
Essa luta pela vida, essa organização comunitária em situações tão adversas como nas periferias brasileiras são parte da luta por melhores condições de vida e contra a exploração, contra os patrões e seu Estado. Vários exemplos históricos mostram que as organizações de bairros e da vida comunitária foram essenciais para a organização dos(as) trabalhadores(as) em sua luta enquanto classe. Em muitos momentos, foram também parte integrante dos protestos sindicais, populares e políticos. Sejam nos movimentos contra a carestia, nas greves operárias dos anos 1970-80… ou nas próprias favelas hoje!
O mesmo ativista e morador do Complexo, Raull, comenta que:
Esse gabinete [de crise] evoluiu para fortalecer um movimento anterior que existia através da junção de várias instituições do Alemão, chamada Juntos Pelo Complexo do Alemão. E aí o movimento começou a fazer duas frentes de trabalho: uma de conscientização interna sobre a importância de fazer o máximo para evitar que o coronavírus chegue na realidade da favela, e outra, com uma pressão para fora, para o poder público e a sociedade perceberem a gravidade e a diferença, a marca da desigualdade social na realidade do tratamento do corona na favela para dentro e na favela para fora.
Ou seja, tal gabinete de crise, construído pelos moradores e suas lideranças, visa agir de forma direta na vida da comunidade, resolver com suas próprias mãos um problema concreto e, concomitantemente, lutar para arrancar conquistas e melhorias do Estado e das classes dominantes. Seguindo assim o velho lema do movimento operário eternizada pelo Hino da Internacional citado acima: fazermos nós, por nossas mãos, tudo o que a nós nos diz respeito.
Organizando-se para combater o corona e a miséria
Toda conscientização nesse momento é válida, favela. Vamos nos cuidar e cuidar uns dos outros
Movimento Maré Vive
A luta contra o vírus e a miséria hoje está ocorrendo em várias frentes e formas nas periferias e favelas do país. Mas sua base é a auto-organização dos moradores e suas redes de solidariedade.
Afinal, como dissemos acima, a favela só pode contar com si mesma – e ela sabe disso. Como diz uma ativista do Complexo: “Desconhecemos a atuação da prefeitura aqui. Se eles estão fazendo alguma coisa, está muito oculto […] Mas a gente está se organizando para não sermos prejudicados”.
Ou ainda um líder comunitário de São Paulo: “A situação nas favelas do Brasil e aqui em Paraisópolis é de calamidade pública. […] Diante da situação que até o momento nenhum dos governos falou a palavra ‘favela’, nós estamos nos organizando para criar uma solução”.
Organização, consciência e solidariedade são as armas das massas para essa luta. A seguir, alguns aspectos e exemplos concretos dessa luta.
1) Auto-organização
Já mencionamos o exemplo da construção de um gabinete de crise no Complexo do Alemão, reforçando outra organização, Juntos Pelo Complexo do Alemão. Esse é um bom exemplo de como a situação atual de emergência, diante da pandemia e recessão, está estimulando os moradores a reforçarem sua auto-organização, buscarem uma maior união e unidade.
Além do trabalho de conscientização e organização dos moradores, de busca de apoio externo e conquistas concretas, o gabinete de crise do Complexo também está realizando campanhas de ajuda mútua para a aquisição e distribuição de itens de higiene. Para isso utiliza inclusive um sistema de comunicação próprio da comunidade: as rádio-poste.
A favela de Paraisópolis tem outro exemplo de reforço da organização autônoma da comunidade: a criação de um sistema de Presidente de Rua. São 420 voluntários, com idade entre 18 e 40 anos, fora do grupo de risco, que ficarão responsáveis por apoiar em média 50 domicílios vizinhos a sua casa, “fazendo a ponte entre a central de organização (União dos Moradores) e os moradores”.
Como informa a página do facebook da comunidade, o Presidente tem como funções:
- Indicar um Vice-Presidente para apoiar nas ações diárias.
- Repassar informações a respeito da quarentena produzidas e/ou enviadas pela organização central.
- Distribuir os alimentos e itens de higiene e demais itens que serão doados para as 50 famílias vizinhas (cestas básicas, botijão de gás, produtos de higiene, água, máscaras, luvas, outros).
- Conscientizar os moradores, buscando assegurar que estes permaneçam em casa e não saiam.
- Administrar o Grupo de WhatsApp com os membros das 50 casas.
O presidente de rua Maike Gonçalves, que serve a 188 famílias, diz: “Como nem governo nem prefeitura apareceram para ajudar em nada, as lideranças da quebrada assumiram e fizeram esse planejamento”.
Planejamento que é a criação de uma estrutura de poder das próprias massas que surgiu a partir de uma necessidade concreta e diante de um Estado de classe inimigo que está ali para fazer chacinas impunimente. Isso em uma das maiores favelas do país, onde moram cerca de 100 mil trabalhadores(as)!
2) Doações e ajuda mútua
Visando resolver de forma concreta os problemas de saúde e falta de recursos, diversas organizações e redes de moradores estão realizando vaquinhas, doações e buscando soluções emergenciais para o que está acontecendo e para o que virá.
Segundo o Jornal Empoderado:
19/03/2020, começou as doações de cestas básicas e a conscientização porta a porta dos bairros: São Benedito e Bairro da Penha (ES) e o grupo se expandiu para além de jovens do território. Os jovens estão cada vez mais empolgados e buscando alternativas e meios de ajudar as pessoas. Segundo a jovem Crislayne Zeferina “é preciso ir aonde o poder público não consegue chegar, entre becos e vielas onde as televisões estão queimadas e a informação está passando como algo distante”.
Mais uma vez Raull, do Complexo, lembra o porquê da doação não só de itens de higiene e limpeza, mas de alimento:
Alimento por quê? Porque acreditamos que uma das coisas que pode gerar contaminação é a quantidade de pessoas que ainda estão na rua. Por mais que esteja diminuindo, que a conscientização tenha avançado, são muitas pessoas na rua. Mas elas estão na rua pela necessidade, são as que dependem do dia a dia para gerar uma renda e comprar comida. Elas que estão vagando aleatórias, esperando fazer um bico, um trabalho qualquer, uma ajuda que venha para conseguir ter o que comer.
Ou seja, as organizações de moradores enxergam de forma muito mais concreta os desafios da quarentena para a massa trabalhadora e pobre do país do que, por exemplo, aqueles que individualizam a questão, como se fosse uma decisão da pessoa estar na rua ou não. Além de enxergarem de forma concreta, buscam a solução imediata e concretamente, organizando redes para auxiliar as famílias que estão com mais dificuldade.
Essas ações também estão sendo organizadas pelos Presidentes de Rua de Paraisópolis: “Está sendo organizada também uma “vaquinha” online para angariar doações para a compra de álcool em gel, marmitas e cestas básicas que serão distribuídas aos moradores”. Lá, também se está buscando inclusive alternativas para a ausência de leitos em hospitais públicos: “Sem perspectiva de leitos suficientes de UTI diante da perspectiva de aumento do número de casos graves, Rodrigues [líder comunitário] planeja alugar mansões vazias localizadas próximas à entrada de Paraisópolis para transformá-las em hospitais de campanha a partir das doações de colchões”.
Ou seja, o poder organizado dessas comunidades objetiva e também se sustenta através de ações concretas e imediatas com e para as massas, de acordo com um dado momento e contexto. Mesmo que esse poder esteja fragmentado entre várias comunidades, apresentem visíveis dificuldades para se reforçar e expandir, o fato é que ele existe, luta, com suas contradições, para se manter.
As lições das favelas: lutar pela nossa vida e saúde a partir de nossas próprias forças
O povo virá de cortiço, alagado e favela mostrando a miséria sobre a passarela.
Sem a fantasia que sai no jornal vai ser uma única escola, uma só bateria.
Quem vai ser jurado? Ninguém gostaria, que desfile assim não vai ter nada igual.
Não tem órgão oficial, nem governo, nem Liga, nem autoridade que compre essa briga.
Ninguém sabe a força desse pessoal. Melhor é o poder devolver a esse povo a alegria.
Senão todo mundo vai sambar no dia em que o morro descer e não for carnaval.
O Dia Em Que o Morro Descer e Não For Carnaval, música de Wilson das Neves
A piora das condições de vida nas periferias na atual conjuntura, e a resistência popular mais ou menos espontânea que está a se desenhar nessa nova conjuntura, não passam despercebidas aos inimigos de classe e seu Estado. Eles entendem e temem onde tudo isso pode parar a longo prazo: no próprio fim deles, diante do revide dos morros e das massas oprimidas, como profetiza o antigo samba de Wilson das Neves.
Não à toa analistas burgueses alertam para o risco de uma “convulsão social” e propõem reformas que aliviem a miséria momentaneamente; fascistas como Bolsonaro tentam se utilizar, para o lucro dos patrões, da situação desesperadora dessas massas diante do desemprego e recessão, propondo que tudo volte ao normal; dentre outras movimentações que visam desarticular os(as) dominados(as) nessa situação e luta concreta.
Para nós, o caminho correto para os(as) trabalhadores(as) nesse momento difícil passa por fortalecer, em todas as frentes, sua luta e organização, reforçando sua independência de classe. E, como vimos, as favelas e periferias em todo o país nos trazem iniciativas exemplares nesse sentido: combatendo concomitante o vírus e a miséria; organizando a própria vida e reivindicando por melhorias etc. Tendo como base a solidariedade de classe e a auto-organização das massas.
Mesmo com seus limites e contradições, essas organizações e movimentos trazem muitas lições para o presente e para o futuro e devem ser apoiadas vigorosamente pelos(as) comunistas. Se a situação está ruim e tende a piorar, não temos outra alternativa a não ser nos organizar mais para lutar mais; reconstruir e reforçar os organismos e instrumentos de luta e sobrevivência das massas. Por mais que pareçam pequenos e frágeis, esses exemplos, diante da barbárie na qual o povo está submetido, são eles os embriões a serem desenvolvidos e que apontam na direção de uma nova sociedade.
Como conclamavam os(as) camaradas Panteras Negras, em sua luta contra a segregação racial, a miséria e a opressão:
TODO PODER AO POVO!