A luta dos trabalhadores em tempos de crise e pandemia no Brasil
Cem Flores
21.04.2020
A última crise econômica no Brasil, iniciada em 2014 e ainda não superada, somada à ofensiva da burguesia para recuperar seus lucros, aumentou o desemprego e a informalidade, rebaixou os salários e as condições de trabalho, e tornou mais críticas as condições de luta dos trabalhadores e das trabalhadoras. Ou seja, deteriorou o mercado de trabalho brasileiro e a vida da grande massa trabalhadora. A atual crise, de caráter global, combinada com a pandemia do novo coronavírus, tem conseguido piorar rapidamente o que já estava muito ruim, com mais desemprego, menores salários, mais exploração…
A absoluta maioria dos trabalhadores e das trabalhadoras está ameaçada, dia após dia, por demissões e suspensões de contrato de trabalho em massa, e a tendência é que esse cenário se agrave. As atuais projeções do Instituto Brasileiro de Economia da FGV apontam para redução recorde da população ocupada nessa recessão de 2020 no Brasil. A taxa de desemprego pode subir para 18%, ou até 24%. Ou seja, entre 6 e 12 milhões de novos desempregados ao longo deste ano, que se somarão aos outros 12 milhões que já estavam desempregados antes do início dessa crise.
Se, de um lado, os patrões estão demitindo ou suspendendo os contratos em plena pandemia, de outro, e concomitantemente, eles têm continuado a exploração de sempre com a parcela da força de trabalho que permanece empregada. E sem hesitar na hora de reduzir os salários e/ou impor condições de trabalho que colocam ainda mais a vida dos trabalhadores e das trabalhadoras em risco.
Como sempre, o patronato possui a ajuda de seu Estado para atingir seus objetivos e defender seus interesses. Diante da nova crise, o “Comitê Central da Burguesia”, como definiam Marx e Engels o Estado Capitalista, em todos os seus “poderes”, tem agido diretamente em defesa dos patrões, seja com suspensão de impostos e de obrigações trabalhistas, com linhas de crédito baratas etc., seja facilitando o massacre da força de trabalho. Analisamos recentemente algumas medidas do governo federal que legalizam e incentivam reduções drásticas no salário e a ampliação da exploração, tanto no atual período de calamidade pública, quanto posteriormente a ele.
Tais medidas emergenciais somam-se e se complementam com o profundo ataque que as classes dominadas já vinham sofrendo com as ditas reformas (trabalhista, sindical, previdência e outras).
O cenário de caos da crise e da pandemia tem servido para destravar a aprovação de algumas dessas reformas “antigas”, como é o caso da Carteira de Trabalho Verde Amarela, que pretende criar uma subespécie de contratação ainda mais precária. Mesmo essa medida estando revogada no momento, após ser aprovada na câmara na madrugada do dia 15/04, a promessa e o acordo entre governo e senado é que esse ataque seja reeditado e “aperfeiçoado” (sic!) o mais breve possível. Isso nos mostra, mais uma vez, que, apesar das brigas palacianas e de palanque dos representantes políticos da burguesia, há um interesse fundamental, de classe, que os unifica: a manutenção dos lucros e a exploração das classes dominadas.
Mas não só o Estado Capitalista se apresenta como auxiliar nessa ofensiva contra a classe operária realizada pelo capital. Mais uma vez, os pelegos, representantes da burguesia no movimento sindical, como aprofundaremos a frente, estão sendo peças fundamentais para novas derrotas nesse momento tão dramático.
Por isso temos dito: Matar de corona, de fome e de exploração: eis a pacote de “salvação” da burguesia e seu governo para as massas trabalhadoras no Brasil!
Toda essa difícil situação, importante lembrar, não é só dos trabalhadores e das trabalhadoras de nosso país. Em todo o mundo, os impactos da crise e da pandemia no mercado de trabalho e na vida das classes dominadas como um todo têm sido rápidos e devastadores. Por exemplo, nos EUA, onde sobretudo a massa pobre, trabalhadora e negra está a morrer aos milhares pelo coronavírus, houve uma explosão nunca antes vista de pedidos de auxílio desemprego. Nas últimas cinco semanas, o número atingiu 22 milhões! O New York Times estima que a taxa de desemprego já tenha saltado para 13%, a maior porcentagem desde a Grande Depressão.
Mas tanto aqui como lá fora, há resistência contra essa contínua deterioração das condições de vida, contra o sistema capitalista que mostra de forma nítida, mais uma vez, toda sua podridão. Contra o pacote de morte da burguesia, estão a lutar por suas vidas! Fazem isso como podem, diante de décadas de fraca organização e de ausência de uma posição revolucionária com presença de massa. O que, de nenhuma maneira, reduz a relevância dessa resistência, que tem se dado, ao menos, de duas formas:
- Reforço das redes de solidariedade e ajuda mútua, objetivando a sobrevivência em contexto de desemprego e queda na renda, conjugados com o cenário de pandemia. Tratamos dessa luta, como ela tem aparecido em nosso país, no texto A resistência das favelas e periferias em tempos de pandemia: solidariedade, reforço da organização popular e redes de ajuda mútua.
- Paralisações nos locais de trabalho e protestos por melhores condições de trabalho, por salários e manutenção dos empregos. Na Itália, diversas fábricas foram paradas pelo proletariado contra os patrões, os governos e os sindicatos pelegos e em defesa do direito de quarentena. Nos EUA, várias categorias também têm parado de forma espontânea e protestado contra as condições sanitárias impostas pelo patronato. Na China, que já está com a quarentena finalizada em muitos lugares, tem-se registrado protestos contra atrasos ou queda nos salários e por condições de trabalho.
Nesta publicação, traremos exemplos de paralisações e protestos recentes no Brasil. Antes disso, analisaremos como estava a luta e o movimento sindical no período anterior. Como veremos, várias categorias têm lutado apesar da, e, por vezes, contra a pelegada que dirige o movimento e defendem ali o interesse dos patrões. Na opinião do coletivo Cem Flores, tal postura é fundamental para atravessarmos esse momento tão difícil.
Situação do movimento e da luta sindical no Brasil antes da nova crise/pandemia
Antes dessa nova crise, a situação do mercado de trabalho já estava precária. O alto desemprego e subemprego geram impacto negativo direto na luta sindical e nos seus resultados. Isso porque o poder de barganha da força de trabalho fica reduzido diante do número crescente de trabalhadores e trabalhadoras à disposição do capital sob menores salários e piores condições.
As greves, desde 2014, início da última recessão, se tornaram mais defensivas, por pagamento de salários atrasados, por exemplo, e com menores resultados. Nesse período, também ocorreu a reforma trabalhista (2017), que ampliou os poderes patronais, gerando um cenário ainda mais adverso para a luta sindical.
Desde 2017 há queda contínua nas greves e no número de horas paradas no Brasil, segundo o DIEESE. Em 2019, foram registradas 1.118 greves, pouco mais da metade das de 2016 (2.114), reforçando a tendência de fim do ciclo de greves que se iniciou em 2013, que inclusive se combinou com o ciclo de protestos de rua.
A piora no mercado de trabalho não é a única razão desse refluxo das lutas sindicais. Apesar de importantes iniciativas, movimentos e organizações terem surgido nesse último ciclo de greves, o fato é que o movimento sindical continuou hegemonizado pelo reformismo e pelo oportunismo, sobretudo a partir das principais centrais sindicais pelegas (CUT, Força Sindical, CTB etc.). Esses pelegos subordinam os interesses da classe aos interesses patronais. Como um dos resultados, há um enfraquecimento e esvaziamento da luta sindical. A taxa de sindicalização, que já era baixa antes, em 2018 ficou em apenas 12,5%, segundo o IBGE.
Como dissemos em recente publicação sobre as medidas de emergência do governo federal contra os trabalhadores e as trabalhadoras:
Outro grande desafio para essa resistência [das massas trabalhadoras] é a presença de posições burguesas, reformistas e oportunistas, de forma majoritária nas direções do movimento sindical. Em relação à MP 936, por exemplo, o atual pelego-presidente da CUT, Sérgio Nobre, teve o desaforo de falar que se trata de uma proposta apenas “insuficiente”(!). Isso porque, segundo o burocrata, a MP contempla mudanças que prejudicam a “retomada da economia” e não “protegem o setor produtivo”. Assim como, a Medida descarta as direções sindicais nas “negociações” entre empresas e trabalhadores(as). Ou seja, a CUT faz sua crítica não em nome dos trabalhadores e das trabalhadoras, mas, sobretudo, em nome dos próprios capitalistas e em defesa de sua própria corporação, fortemente atingida desde o fim do imposto sindical. A proposta dos pelegos não é lutar contra esse ataque às massas trabalhadoras, até porque a MP foi fruto de “cobrança” das centrais, mas meramente buscar modificar, no Congresso, entre os representantes dos patronais, os tais “pontos insuficientes”.
O sindicalismo pelego durante a nova crise/pandemia
Essa posição burguesa foi ratificada na última live das principais centrais sindicais (14/04). Não houve nenhum chamado à luta, à organização, ao enfrentamento, ou sequer de apoio às categorias que estão a se rebelar no Brasil e no mundo. Pelo contrário, a tônica das intervenções, como de costume, foi em defesa do diálogo e da disputa “responsável” na institucionalidade burguesa, por “políticas públicas”, em prol de um cínico “projeto de nação” que inclui o chicote da burguesia e o lombo da classe operária!
Não apenas diante da imprensa, dos governos, do legislativo e do judiciário que os pelegos têm defendido os interesses patronais e os seus próprios, deixando de lado os interesses dos trabalhadores e das trabalhadoras e sua organização de classe para enfrentar tamanhos ataques e tão grave situação. Como mostram o levantamento do site WSWS e outras fontes da imprensa, vários sindicatos se apressaram na atual conjuntura para assinar acordos coletivos extremamente danosos para suas categorias, na maioria das vezes sem nenhuma tentativa de resistência e luta e em descarado conluio com o patronato. Vejamos alguns exemplos:
- O Sindicato dos Comerciários de São Paulo aprovou com os patrões um banco de horas negativo que visa ampliar a jornada de trabalho da categoria por até um ano depois da pandemia. Com empresas do setor de supermercados e revenda de veículos, esse sindicato, controlado pela pelega UGT aprovou a redução do salário e da jornada de trabalho em até 50% por 60 dias, com apenas uma parcela resposta pelo governo, como define a MP 936.
- Sindicatos de metalúrgicos têm assinado suspensões de contratos e redução de salários e anunciado tais recuos e derrotas como vitórias. Ou chegando ao cúmulo de ir à imprensa defender tais medidas, como fez o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Wagnão, resgatando o falacioso “Programa de Proteção ao Emprego” da época de Dilma.
- Alguns sindicatos, como o dos trabalhadores em turismo, hospitalidade e de hotéis, restaurantes, bares e similares da grande Florianópolis (Sitratuh) estão até cobrando valores para ratificar “acordos” individuais que visam reduzir salários ou suspender contratos em sua categoria. Tentam se dar bem até na desgraça alheia…
- O Sindicato dos Trabalhadores em Hotéis, Bares, Restaurantes e Similares de São Paulo e Região (Sinthoresp) acordou suspensão de contrato com apenas pagamento de abono salarial para a categoria.
- Vários sindicatos de rodoviários têm assinado acordos recuados após breves paralisações e greves, que apenas prorrogam ou dissimulam as demissões, seja com dispensas não remuneradas ou suspensões “temporárias” de contrato.
Os trabalhadores e as trabalhadoras estão lutando apesar e contra essa pelegada que dirige o movimento. E essa luta, em defesa de suas próprias vidas, por condições de trabalho, pelo emprego, vai de encontro ao atual refluxo da mobilização sindical no Brasil. Vejamos alguns exemplos que também são inspirações a todos nós nessa conjuntura.
Lutando pela vida e por condições de trabalho, apesar e contra os pelegos!
No final de março, ocorreram diversas manifestações e paralisações de trabalho nas empresas de call center em cidades como São Paulo, Belo Horizonte, Teresina, Guarulhos, Goiânia, Recife, Salvador, Feira de Santana e Curitiba, dentre outras.
Tal categoria possui alto risco de contaminação: trabalha em locais fechados, com muitas pessoas, várias delas tendo que ir trabalhar doentes para não sofrer descontos nos salários. Segundo relatos de trabalhadoras, as empresas pouco estavam fazendo para ampliar a higienização, modificar os locais de trabalho e aplicar trabalho remoto.
Essa situação gerou revolta das dezenas de milhares de trabalhadores e trabalhadoras de call center por todo o Brasil, a maioria jovem e com baixíssimos salários. Por conta própria, e com auxílio das redes sociais, em vários locais a categoria realizou paralisações e protestos simultâneos em defesa de condições mínimas de trabalho.
Uma das paralisações de call center em Salvador, 19.03. “Conseguimos que fossem liberadas apenas as grávidas e maiores de 60 anos, mas os demais, inclusive muita gente gripada, permanece. Então, resolvemos parar e estamos esperando o sindicato para nos apoiar também”, afirmou a comissão autônoma da categoria criada para essa luta à imprensa.
De acordo com entrevistas do WSWS, em muitos casos os sindicatos só apareceram depois da mobilização e da luta, de fora da organização dos trabalhadores e das trabalhadoras, como no exemplo de Salvador. “Eu não tive contato com ninguém do sindicato, nem ouvi falar”, disse um trabalhador. “Para falar a verdade eu nem sei quem são […] só vão lá quando é eleição de chapa e no mais não sei mesmo o que fazem… Ah, recebem o desconto dos nossos contracheques”, disse outro.
O governo federal acabou decretando tal serviço como essencial, então esses trabalhadores continuam sem direito à quarentena. As mobilizações fizeram as empresas agirem possibilitando trabalho remoto, modificando alguns locais de trabalho etc. Mas são inúmeros trabalhadores e trabalhadoras que ainda correm risco de vida, quando não no trabalho, em transportes coletivos lotados. Em seus canais nas redes sociais, a indignação continua presente.
Outros setores decretados como essenciais, como supermercados e serviço de entrega de alimentos, sobretudo por aplicativos, também têm registrado paralisações pelo país. Essas categorias também visam condições de trabalho e proteção à sua saúde e utilizam as redes sociais para se articularem e potencializarem suas denúncias. O site Fever traz dois interessantes exemplos de lutas que ocorreram nesses setores sem a presença institucional dos sindicatos:
- “No dia 21 de março, trabalhadores da rede de mercados BH cruzaram os braços para reivindicar sua segurança. Os atendentes da loja em Lagoa da Prata, Minas Gerais, se reuniram na porta e se recusaram a trabalhar enquanto não fosse reduzido o número de pessoas dentro do mercado. “Ninguém vai trabalhar com esse tanto de gente no mercado, ninguém! Cês tão tudo brincando com a situação, mas a coisa é séria”, diz uma das funcionárias em vídeo gravado durante o protesto.”
- “Após três tentativas frustradas de greve anteriormente, desta vez (23/03) metade dos motoboys de app de Rio Branco (Acre) aderiu ao chamado nacional e paralisou suas atividades. Inicialmente buscando melhorias nos fretes e maior respeito dos donos de estabelecimento, a pauta pela proteção do coronavírus deu fôlego. Cerca de 50 motoboys — todos mantendo a distância segura de mais de 1,5 metros entre si — se reuniram para reivindicar da Prefeitura e das empresas de app luvas, máscaras, álcool gel e segurança para poderem trabalhar. Depois de reunidos, saíram em carreata pelas ruas da capital. Além desses que se reuniram, outros 50 decidiram ficar em casa e não trabalhar. Já em São Paulo a manifestação não teve grande adesão, apesar de ter sido registrado pelo menos 500 motoboys desligando o aplicativo no horário marcado.”
Mais uma paralisação com protesto de motoboys de aplicativos foi registrada em São Paulo no dia 20.04. Melhor remuneração e condições sanitárias mínimas foram as principais exigências. Muitos relatos desses trabalhadores têm circulado na internet.
Outro serviço essencial, que tem lutado diretamente contra o vírus e várias vezes sem a proteção e as condições necessárias, o dos trabalhadores e trabalhadoras da saúde, também tem realizado protestos. No dia 15/04, o Pronto-Socorro de Belém, parou em uma manifestação que denunciou a falta de equipamentos de proteção individual e o risco de contaminação de todos que frequentam a unidade de saúde.
Continuar a luta contra o vírus e a exploração!
Sabemos que os tempos difíceis se tornaram ainda mais dramáticos. E não podemos nem devemos esperar nada da burguesia, seu Estado e seus representantes, inclusive no movimento sindical. Os pelegos são outra barreira para a luta contra os atuais ataques e os que virão.
Seremos nós, trabalhadores e trabalhadoras, com nossa organização, nossa coragem e força, nossa união e luta, que iremos realizar a luta contra o vírus e a exploração! Assim como têm feito os operários da Itália, os garis dos EUA, os motoboys, as enfermeiras, as atendentes de telemarketing, os comerciários e as famílias das favelas e periferias. Esses e tantos outros exemplos são hoje o caminho a seguir e reforçar!
Como dissemos recentemente, esse duro momento também “será um importante aprendizado para entendermos que não necessitamos dos nossos inimigos de classe para sobreviver. Na verdade, eles nos impedem de viver de forma digna”. A luta continua!
O PRESENTE É DE LUTA!
O FUTURO SERÁ NOSSO!