CEM FLORES

QUE CEM FLORES DESABROCHEM! QUE CEM ESCOLAS RIVALIZEM!

Comuna de Paris, Cultura, Destaque, Dossiês, Internacional, Lênin, Movimento operário, Teoria

Lênin. Três Artigos sobre a Comuna de Paris

Viva os 150 anos da imortal Comuna de Paris!

Glória aos sucessores da grande causa da Comuna de Paris! Cartaz soviético de 1928.

Cem Flores

28.05.2021

Honram a memória dos combatentes da Comuna não só os operários franceses, senão também o proletariado de todo o mundo, pois ela não lutou apenas por um objetivo local ou nacional estreito, mas pela emancipação de toda a humanidade trabalhadora, de todos os humilhados e ofendidos. […] A causa da Comuna é a causa da revolução social, é a causa da completa emancipação política e econômica dos trabalhadores, é a causa do proletariado mundial. E, nesse sentido, é imortal.

Lênin. Em Memória da Comuna (1911).

 

Exatamente nesta data, 28 de maio, se completam os 150 anos do fim da Comuna de Paris, a primeira experiência de governo operário da história mundial. Pela primeira vez, as classes exploradas e dominadas, em armas, tomaram o poder de Estado e demonstraram que era possível derrotar a burguesia e seus aliados e começar a construir uma nova sociedade.

Exatamente por isso, a Comuna enfrentou a reação mais desesperada e feroz da burguesia e da aristocracia francesa, com o apoio das tropas alemães que ocupavam a França e cercavam Paris. A chacina da reação, de 21 a 28 de maio, tornou-se conhecida como “semana sangrenta”, na qual foram mortos cerca de 30 mil communards, enquanto outros 45 mil foram detidos, sendo posteriormente executados ou condenados ao desterro ou a trabalhos forçados. Ainda de acordo com as cifras citadas por Lênin, “No total, Paris perdeu 100 mil filhos, entre os quais se encontravam os melhores operários de todos os ofícios”.

O que foi essa Comuna que tanto ódio despertou nas classes dominantes francesas e dos demais países europeus? Quais seus principais acertos e erros? Que lições sua experiência trouxe para as lutas revolucionárias posteriores? Nos três textos que publicamos abaixo, Lênin analisa e responde essas questões, fazendo uma avaliação crítica da Comuna de Paris, extraindo suas lições e as aplicando ao processo revolucionário russo e apontando alguns princípios da luta proletária revolucionária.


Leia as publicações do Cem Flores Viva os 150 anos da imortal Comuna de Paris!

Engels em homenagem à Comuna de Paris, de 02.12.2019.

Uma Carta de um Communard, de 04.01.2021.

Marx e Engels: cartas anteriores à Comuna de Paris, de 05.02.2021.

Marx e Engels: cartas durante a Comuna de Paris, de 05.03.2021.

O 18 de março de 1871: o início da Comuna de Paris, por Prosper-Olivier Lissagaray, de 18.03.2021.

Karl Marx. A Guerra Civil na França. Capítulo 3, de 09.04.2021.

Engels. Introdução à Edição de 1891 de A Guerra Civil na França, de Marx, de 07.05.2021.


Lênin estudou detalhadamente a experiência da Comuna de Paris, ao menos desde 1905, e lhe dedicou o terceiro capítulo de O Estado e a Revolução. No artigo, “A Comuna de Paris e as Tarefas da Ditadura Democrática”, de julho de 1905, em meio a um debate com os mencheviques sobre o processo revolucionário russo em pleno curso, Lênin recorre à Comuna para tirar lições para sua conjuntura concreta.

No texto, Lênin defende vigorosamente o princípio da independência da organização proletária, dando como exemplo a atuação da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), a 1ª Internacional, durante a Comuna. Enquanto permaneciam organizados em um partido revolucionário da classe operária, os militantes da AIT participavam ativamente da Comuna, buscavam avançar o seu programa e as suas lutas.

Lênin também retoma no seu texto um princípio fundamental para a atuação dos comunistas, a partir da experiência da AIT na Comuna de Paris: “Onde quer que seja e de qualquer forma que se conduza a luta de classes, os membros da nossa associação devem estar nas primeiras filas”.

Na discussão sobre a participação dos comunistas em um governo provisório e sobre o seu programa – discussões concretas na conjuntura revolucionária de 1905 na Rússia – Lênin recorre às medidas tomadas pelo governo da Comuna, a partir do relato de Engels, para defini-las como de “caráter prático, não utópico”. Trazendo-as para a sua época, Lênin as define como o “programa mínimo do socialismo”.

Para Lênin, portanto, “ao tirarmos ensinamentos da Comuna de Paris, não devemos repetir os seus erros (não tomaram o Banco de França, não empreenderam a ofensiva contra Versalhes, não elaboraram um programa claro etc.), mas os seus passes práticos que tiveram êxito e que apontaram o caminho certo”. Conhecer a experiência histórica de luta da classe operária e das classes dominadas, analisar seus acertos e seus erros, e tomar lições para o nosso presente de lutas. Esta é uma lição fundamental de Lênin.

O segundo artigo de Lênin que transcrevemos abaixo é “Os Ensinamentos da Comuna”, de março de 1908. Nesse texto, Lênin faz uma dura crítica contra as ideologias nacionalistas e patrióticas (reformistas) que buscam influenciar o proletariado e subordiná-lo à burguesia, seu programa e sua ideologia. Pelo contrário, há uma luta de classes inconciliável entre burguesia e proletariado e a tarefa revolucionária deste último é derrotar o seu inimigo de classe.

Lênin recorda como, na conjuntura de 1871, de um país derrotado na guerra e ocupado militarmente por uma potência estrangeira, “traído” por suas classes dominantes, o proletariado se colocou uma tarefa “nacional”, de libertar a França dos invasores prussianos, e uma tarefa “social”, de libertar os operários e as demais classes trabalhadoras. Na análise de Lênin, por um lado, A combinação destas duas tarefas constitui o traço mais original da Comuna”. Por outro, A conjugação desses dois objetivos contraditórios — o patriotismo e o socialismo — constituiu o erro fatal dos socialistas franceses.

Por que essa contradição entre a “união nacional” e o socialismo? Em primeiro lugar, porque a ideologia de “união nacional”, de “frentes”, leva a um erro fundamental sobre o caráter de classe da burguesia. A burguesia não é “aliada” do proletariado, mas sua inimiga de classe. O governo republicano francês, a partir da queda do império em setembro de 1870, não tinha como missão “libertar a França” (pelo contrário, rendeu-se a aliou-se ao estrangeiro). Esse governo “considerava sua missão a luta contra o proletariado de Paris. Mas, cego pelas ilusões patrióticas, o proletariado não se apercebia disso”.

Em segundo lugar, porque levou o proletariado parisiense a “parar no meio do caminho”: “O proletariado parou a meio caminho: em vez de proceder à ‘expropriação dos expropriadores’, deixou-se levar por sonhos sobre o estabelecimento de uma justiça suprema num país unido por uma tarefa nacional comum”.

Em sua análise sobre 1871, com os olhos postos na sua conjuntura de 1908, Lênin critica essas “aberrações ‘nacionais’ e ‘patrióticas’” e tira o seguinte ensinamento da experiência histórica da Comuna de Paris: “o proletariado já não podia fundir os seus interesses com os de outras classes, que lhes eram hostis; … a missão do proletariado era lutar pela emancipação socialista do trabalho frente ao jugo da burguesia”.

O terceiro texto, “Em Memória da Comuna”, de abril de 1911, celebra os quarenta anos da Comuna de Paris. Mesmo tendo sido um movimento em grande parte espontâneo; um movimento “heterogêneo e confuso”, composto por várias classes e distintas motivações; mesmo sem um partido operário consolidado; – elementos importantes para compreender seus limites e sua derrota – Lênin define a Comuna como “um acontecimento histórico sem precedentes”.

Afinal, ao conquistar o poder de estado, os revolucionários parisienses tomaram medidas que abalaram “as cadeias que o amarram ao Capital. Por isso a Comuna constituiu-se enquanto uma experiência revolucionária, socialista (ainda que incompleta). Por isso também apenas os/as trabalhadores/as permaneceram com a Comuna até o final, identificados/as com o seu governo, o governo da sua classe.

Tal caráter de classe da Comuna também foi rapidamente identificado pelos seus inimigos de classe. “Toda a burguesia francesa, todos os latifundiários, especuladores da bolsa e fabricantes, todos os grandes e pequenos ladrões, todos os exploradores uniram-se contra ela”. Nessa união contra o governo revolucionário incluiu-se o exército prussiano invasor, tanto no cerco a Paris, quanto na libertação de prisioneiros de guerra para lutar contra a Comuna. Também por seu caráter de guerra de classe a burguesia promoveu uma “matança como jamais se havia visto em Paris”. O próprio diminuto e sanguinário chefe da reação tinha muito claro o seu objetivo: “Agora, acabou-se com o socialismo, por muito tempo!”

Mas, é claro, ele estava completamente equivocado. A luta proletária e revolucionária, que continuou, “recolheu a bandeira caída das mãos dos combatentes da Comuna e levou-a adiante com firmeza e valentia aos gritos de ‘Viva a revolução social! Viva a Comuna!’” Ninguém melhor que o próprio Lênin para comprovar isso, com a vitória bolchevique na Grande Revolução Socialista Russa de outubro de 1917.

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A Comuna de Paris e as Tarefas da Ditadura Democrática[i]

Lênin, 17 de julho de 1905

Os combatentes da Comuna de Paris vivem nos corações do Proletariado Revolucionário!

A atitude da Iskra sobre se é possível a participação dos socialdemocratas num governo provisório complicou-se hoje até ao limite. Em condições favoráveis é possível, também na opinião dos discípulos de Martinov, uma extensão tal da revolução que sirva de prólogo direto a uma grande transformação social, mas como se o próprio partido, a sua vontade, o seu trabalho e os seus planos não tivessem nada que ver com isso. “A Deus rogando, e com o maço dando”, reza o ditado com que se pretende contrariar o fatalismo religioso. “Às circunstâncias e ao processo rogando”, dizemos nós, “e com o maço dando!”. De contrário, alguém será um economista fatalista e não um socialdemocrata revolucionário. Leio na resolução da conferência menchevique:

“Somente num caso deveria a socialdemocracia, por iniciativa própria, dirigir os seus esforços no sentido de se apossar do poder e manter nele tanto quanto possível, ou seja, no caso de a revolução se propagar aos países adiantados da Europa, àqueles em que as condições para realizar o socialismo já alcançaram certa maturidade. Antes de mais, o menos que se pode é perguntar: será possível ‘dirigir os esforços’ para outra coisa e não por iniciativa própria? Por outro lado, o que resultaria, se invertêssemos a frase, assim: ‘Apenas num caso se propagaria a revolução da Rússia aos países adiantados da Europa Ocidental, a saber, se o POSDR conseguisse tomar em suas mãos o poder e manter-se nele muito tempo’?”

Se nos pomos a fazer prognósticos, porque não este? Nunca impede o máximo de energia. Para mais, ninguém fala da tomada do poder pelo partido; somente se fala da participação dirigente, na medida do possível, do partido na revolução, quando este tenha o poder nas suas mãos (se chega esse momento) e quando se façam esforços para arrebatar-lho de novo.

Quanto a se é possível e tolerável essa ditadura democrática do proletariado, é de interesse fornecer algumas informações acerca da história da Comuna de Paris, que foi um poder revolucionário e fez a revolução não só de baixo mas também de cima.

Foi a Comuna uma ditadura do proletariado?

Introdução de Engels à terceira edição de “A Guerra Civil na França” acaba nos seguintes termos:

Ultimamente, as palavras ‘ditadura do proletariado’ voltaram a consumir em santo horror o filisteu socialdemocrata. Pois, bem, senhores, quereis saber o que é que recorda esta ditadura? Olhai a Comuna de Paris: eis aí a ditadura do proletariado!

Porém, entre ditadura e ditadura há uma grande distância! Porventura foi esta uma ditadura do proletariado verdadeira e pura, no sentido da composição nitidamente socialdemocrata dos seus membros e do carácter das suas tarefas práticas? De maneira nenhuma! O proletariado consciente (apenas mais ou menos consciente), quer dizer, os membros da Internacional estavam em minoria; a maioria do governo era de representantes da democracia pequeno-burguesa. Um dos novíssimos investigadores (Gustavo Jaeckh) disse-o sem a menor ambiguidade. O Comité Central da Guarda Nacional, por exemplo, era constituído por trinta e cinco membros, sendo apenas dois socialistas (isto é, membros da Internacional) em compensação, eles (Varlin e Avoine) tinham uma influência enorme entre os seus companheiros de mando. Do mesmo Comité escreveu Lissagaray o seguinte:

“Eram os seus membros agitadores conhecidos? Socialistas? Absolutamente; eram pessoas de nomes desconhecidos: pequenos burgueses, lojistas e empregados subalternos”.

Não obstante, Varlin e Avoine fizeram parte desse Comité. Posteriormente, foram incluídos também Pindy, Ostyn e Jourde. O Jornal Operário de Nova York, órgão da Internacional, escreveu num artigo de 18 de julho de 1874:

A Comuna não foi obra da Internacional; Comuna e Internacional não são o mesmo, mas os membros da Internacional aprovaram o programa da Comuna, levando-o na própria altura muito mais longe do que o seu limite inicial; estes foram, igualmente, os seus mais zelosos e fiéis defensores, pois compreendiam a importância da Comuna para a classe operária”.

O “Conselho Geral”, que, como se sabe, era encabeçado por Marx, aprovou essa tática da Federação Parisiense da Internacional; dizia-se no seu manifesto:

Onde quer que seja e de qualquer forma que se conduza a luta de classes, os membros da nossa associação devem estar nas primeiras filas”.

No entanto, os membros da Internacional, nossos predecessores, não desejavam, em absoluto, fundir-se com a Comuna; sempre defenderam a sua particular organização de partido nitidamente proletário. Jaeckh escreve:

O Conselho Federal da Internacional soube assegurar em seguida a influência dos seus representantes no governo revolucionário”.

Sirva de magnífica demonstração da independência da organização proletária de então, apesar da participação dos seus representantes no governo, o seguinte convite:

No próximo sábado, 20 de maio, à uma em ponto, realizar-se-á uma assembleia urgente do Conselho Federal da Associação Internacional dos Trabalhadores. Convidam-se a assistir os membros da Comuna pertencentes à Internacional. Terão de prestar contas da posição que têm ocupado na Comuna, bem como da causa e essência das divergências surgidas no seu seio. Para assistir, é preciso o cartão de filiado”.

Eis outro documento curioso, a resolução da referida assembleia urgente:

A Associação Internacional dos Trabalhadores adotou na assembleia urgente de 20 de Maio a seguinte resolução: ‘Após ouvir os associados, que são ao mesmo tempo membros da Comuna, a assembleia considerou a sua conduta inteiramente leal e decidiu pedir-lhes que continuem a defender por todos os meios os interesses da classe operária e a procurar manter a unidade da Comuna, a fim de lutar com vigor contra os versalheses. Ademais, recomendou que se consiga a total publicidade das sessões da Comuna e se anule o parágrafo terceiro do seu Manifesto, por incompatível com o direito de o povo comprovar os atos do poder executivo, neste caso, do Comité de Saúde Pública’”.

Assistiram à assembleia seis membros da Comuna; outros três enviaram as suas desculpas. Em 19 de Março, Lissagaray contou na Comuna vinte e cinco representantes da classe operária, mas nem todos pertenciam à Internacional: inclusivamente, na altura, a maioria alinhava ao lado da pequena burguesia.

Não cabe aqui falar da história da Comuna nem do papel que nela desempenharam os membros da Internacional. Limitar-nos-emos a dizer que na Comissão Executiva estava Duval; na das Finanças Varlin, Jourde e Beslay; na Militar, Duval e Pindy, na de Segurança Pública, Assi e Chalain, e na do Trabalho, MalonFrankelTheisz, Dupont e Avrial. Em 16 de Abril, depois das novas eleições, entraram vários membros mais da Internacional (entre eles Longuet, genro de Marx), mas também havia na Comuna inimigos declarados da Internacional, como Vésinier, por exemplo. No fim da Comuna, as finanças estavam nas mãos de dois membros de muito talento da Internacional: Jourde e Varlin.

O Comércio e o Trabalho achavam-se debaixo da direção de Frankel; Correios, Telégrafo, a Casa da Moeda e os impostos diretos, eram igualmente governados por socialistas. Contudo, como disse Jaeckh, a maioria dos ministérios mais importantes permanecia nas mãos da pequena burguesia.

Assim, não resta a menor dúvida de que Engels, ao chamar ditadura do proletariado à Comuna, se referia unicamente à participação, ideológica, e além disso dirigente, dos representantes do proletariado no governo revolucionário de Paris.

Mas, porventura, a meta imediata da Comuna era a revolução socialista completa? Não podemos ter essas ilusões.

Efetivamente, no famoso Manifesto do Conselho Geral sobre a Comuna, escrito, sem dúvida, por Marx, diz-se:

A Comuna havia de servir de alavanca para extirpar os alicerces económicos sobre os quais assenta a dominação de classe”.

E mais adiante:

A classe operária não esperava da Comuna nenhum milagre. Os operários não têm nenhuma utopia pronta para implantar imediatamente. Sabem que para conseguir a sua própria emancipação, e com ela essa forma superior de vida para que tende irresistivelmente a sociedade atual, terão de passar por toda uma série de processos históricos, os quais transformarão as circunstâncias e os homens. A Comuna não tem de realizar nenhum ideal, mas simplesmente de libertar os elementos da nova sociedade que a velha sociedade burguesa agonizante traz no seu seio”.

Todas as medidas e toda a legislação social da Comuna apresentavam um caráter prático, não utópico. A Comuna realizava o que hoje chamamos “programa mínimo do socialismo”. Para o que se fez justamente neste capítulo, acrescentamos uma citação da já mencionada Introdução de Engels:

“Em 26 de Março foi eleita, e em 28 proclamada, a Comuna de Paris. O Comité Central da Guarda Nacional, que até então tivera o poder em suas mãos, se demitiu a favor da Comuna, depois de ter decretado a abolição da escandalosa ‘polícia de costumes’ de Paris. Em 30, a Comuna aboliu o serviço militar obrigatório, bem como o exército permanente, e declarou única força armada a Guarda Nacional, em que deviam alistar-se todos os cidadãos capazes de empunhar as armas. Perdoou as rendas de casa em atraso desde outubro de 1870 a abril de 1871, creditando em conta, para futuras dívidas de aluguel, as importâncias já adiantadas, e suspendeu a venda de objetos hipotecados nas casas municipais de penhores. No mesmo dia 30 foram confirmados nos seus cargos os estrangeiros eleitos para a Comuna, pois a ‘bandeira da Comuna é a bandeira da República mundial’. A 1 de Abril, acordou-se em que o soldo máximo que um funcionário da Comuna poderia ganhar, e portanto os próprios membros desta, não deveria exceder 6.000 francos (4.800 marcos). No dia seguinte, a Comuna decretou a separação da Igreja e do Estado, bem assim a supressão de todas as verbas consignadas no orçamento do Estado para fins religiosos, declarando propriedade nacional os bens da Igreja; em consequência disto, ordenou-se a 8 de abril, a eliminação nas escolas de todos os símbolos religiosos, imagens, dogmas, orações, numa palavra, de ‘tudo o que cai dentro da órbita da consciência individual’, ordem que se foi aplicando gradualmente. No dia 5, dado que as tropas de Versalhes fuzilavam diariamente os combatentes da Comuna capturados por elas, promulgou-se um decreto ordenando a detenção de reféns, mas esta disposição nunca se cumpriu na prática. No dia 6, o 137º Batalhão da Guarda Nacional arrancou da rua a guilhotina e queimou-a publicamente, por entre o entusiasmo popular. A 12, a Comuna resolveu que a Coluna Triunfal da praça Vendôme, fundida com o bronze dos canhões tomados por Napoleão depois guerra de 1809, fosse demolida, como símbolo de chauvinismo e incitação aos ódios entre as nações.

Esta disposição foi levada a efeito em 16 de maio. Em 16 de abril, a Comuna determinou que se abrisse um registo estatístico de todas as fábricas encerradas pelos patrões e se preparassem os planos para renovar a sua exploração com os operários que antes trabalhavam nelas, organizando-as em sociedades cooperativas, e que se planeasse também a organização de todas estas cooperativas numa grande União. Em 20, a Comuna declarou abolido o trabalho noturno dos padeiros e suprimiu igualmente as agências de empregos, que durante o Segundo Império eram um monopólio de certos indivíduos designados pela polícia, exploradores de primeira fila dos operários. Estes escritórios foram transferidos para as repartições dos vinte distritos, ou bairros, de Paris. Em 30 de abril, a Comuna ordenou o encerramento das casas de penhores, fundamentando-se em que eram uma forma de exploração privada dos operários, oposta aos direitos de estes disporem dos seus instrumentos de trabalho e de crédito. Em 5 de Maio, decidiu a demolição da Capela Expiatória, que havia sido erigida para redimir a execução de Luís XVI”.

Como é sabido, graças, em parte, aos erros cometidos e à sua excessiva nobreza, a Comuna não conseguiu vencer a reação; os communards pereceram; pois bem, denegriram ou desprestigiaram por isso a causa do proletariado, como grasna Martinov, qual pássaro de mau agouro, no que respeita a ser possível um governo revolucionário na Rússia? É evidente que não a denegriram nem a desprestigiaram, pois Marx escreveu da Comuna:

“A Paris dos operários, com a sua Comuna, será eternamente exaltada como arauto de uma nova sociedade. Os seus mártires têm um santuário no grande coração da classe operária. E aos seus exterminadores, a história já os amarrou a um pelourinho eterno, do qual não lograrão redimi-los todas as preces da sua clericalha”.

Parece-nos que a nossa breve informação histórica tem algo de instrutivo. Antes de mais, ensina-nos que a participação de representantes do proletariado socialista, com a pequena burguesia, num governo revolucionário, é perfeitamente admissível, por princípio, e absolutamente obrigatória em determinadas condições. Ensina-nos, além disso, que a verdadeira tarefa que a Comuna teve de cumprir foi, acima da tudo, o exercício da ditadura democrática e não socialista, ou seja, a aplicação do nosso “programa mínimo”. Por último, esta informação recorda-nos que, ao tirarmos ensinamentos da Comuna de Paris, não devemos repetir os seus erros (não tomaram o Banco de França, não empreenderam a ofensiva contra Versalhes, não elaboraram um programa claro etc.), mas os seus passes práticos que tiveram êxito e que apontaram o caminho certo. Não é a palavra “Comuna” o que devemos tomar dos grandes combatentes de 1871, nem repetir cegamente todas as suas diretivas; pelo contrário, devemos fazer por que ressaltem as diretivas programáticas e práticas correspondentes ao estado de coisas existente na Rússia e que estão formuladas nas palavras: ditadura democrática revolucionária do proletariado e dos camponeses.

Primeira Edição: Proletari, nº 8, de 17 (4) de julho de 1905.

 

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Os Ensinamentos da Comuna[ii]

Lênin, 23 de março de 1908

Cartaz soviético em homenagem ao 18 de Março, dia da insurreição que deu início à Comuna de Paris, em 1871.

Após o golpe de Estado que pôs termo à Revolução de 1848, a França caiu durante dezoito anos sob o jugo do regime napoleônico, que levou o país à ruína económica e também à humilhação nacional. Ao sublevar-se contra o velho regime, o proletariado assumiu duas tarefas, uma nacional, outra de classe: libertar a França da invasão alemã e libertar os operários do capitalismo, instaurando o socialismo. A combinação destas duas tarefas constitui o traço mais original da Comuna.

A burguesia formava então um “governo de defesa nacional”, sob cuja direção o proletariado tinha do lutar pela independência nacional. Tratava-se, na realidade, de um governo “de traição nacional” que considerava sua missão a luta contra o proletariado de Paris. Mas, cego pelas ilusões patrióticas, o proletariado não se apercebia disso. A ideia de patriotismo remontava à Grande Revolução do século XVIII; apoderou-se do espírito dos socialistas da Comuna, e Blanqui, por exemplo, revolucionário incontestável e adepto fervoroso do socialismo, não encontrou para o seu jornal título mais apropriado do que o angustioso grito burguês: “A Pátria está em perigo!” A conjugação desses dois objetivos contraditórios — o patriotismo e o socialismo — constituiu o erro fatal dos socialistas franceses. No Manifesto da Internacional, em setembro de 1870, Marx já advertia o proletariado francês contra o perigo de se deixar entusiasmar por uma falsa ideia nacional[iii]. Grandes transformações se tinham produzido depois da Grande Revolução, os antagonismos de classe tinham-se agravado, a luta contra a reação de toda a Europa unia a nação revolucionária no seu conjunto, o proletariado já não podia fundir os seus interesses com os de outras classes, que lhes eram hostis; a burguesia tinha de arcar com a responsabilidade da humilhação nacional; a missão do proletariado era lutar pela emancipação socialista do trabalho frente ao jugo da burguesia.

E, com efeito, o verdadeiro fundo do “patriotismo” burguês não tardou a aparecer. Depois de ter assinado uma paz vergonhosa com os prussianos, o governo de Versalhes procedeu à sua tarefa principal, empreendendo uma incursão contra o proletariado armado de Paris — que o assustava. Os trabalhadores responderam com a proclamação da Comuna e a declaração da guerra civil.

Apesar de o proletariado socialista estar dividido em numerosas facções, a Comuna foi um exemplo excelente da unanimidade com que o proletariado sabe realizar as tarefas democráticas, que a burguesia só sabe proclamar. Sem legislação particular e complicada, com toda a simplicidade, com atos, o proletariado no poder democratizou o regime social, suprimiu a burocracia e determinou a eleição dos funcionários pelo povo.

Mas dois erros deitaram a perder os frutos da uma brilhante vitória. O proletariado parou a meio caminho: em vez de proceder à “expropriação dos expropriadores”, deixou-se levar por sonhos sobre o estabelecimento de uma justiça suprema num país unido por uma tarefa nacional comum; não se apoderou de instituições como os bancos; as teorias proudhonianas da “troca justa”, etc., dominavam ainda entre os socialistas. O segundo erro foi a excessiva magnanimidade do proletariado; em vez de exterminar os seus inimigos, que era o que devia fazer, de fato, procurou exercer uma influência moral sobre eles, menosprezou a importância que as ações puramente militares têm na guerra civil e, em lugar de coroar a sua vitória em Paris com uma ofensiva resoluta sobre Versalhes, perdeu tempo e permitiu que o governo versalhês reunisse as forças tenebrosas e se preparasse para a semana sangrenta de maio.

Mas, apesar de todos os seus erros, a Comuna é o modelo mais grandioso do mais grandioso movimento proletário do século XIX. Marx deu um grande valor ao significado histórico da Comuna: se, no momento em que a “clique” de Versalhes, perfidamente, tentou apoderar-se das armas do proletariado de Paris, os trabalhadores lhas tivessem abandonado sem luta, o prejuízo da desmoralização que tal fraqueza teria semeado nas fileiras do movimento proletário seria infinitamente mais grave do que as perdas sofridas pela classe operária na luta pela defesa das suas armas. Por maiores que tenham sido os sacrifícios da Comuna, a importância que ela assume para a luta geral do proletariado compensou-os: a Comuna agitou profundamente o movimento socialista de toda a Europa, revelou a força da guerra civil, dissipou as ilusões patrióticas e acabou com a fé ingênua nas aspirações nacionais da burguesia. A Comuna ensinou o proletariado europeu a pôr de uma forma concreta as tarefas da revolução socialista.

O proletariado não esquecerá a lição recebida. A classe operária aproveitá-la-á, como já o fez na Rússia durante a insurreição de dezembro.

A época que precedeu e preparou a revolução russa tem uma certa semelhança com a época do jugo napoleônico na França. Também na Rússia a camarilha autocrática tinha conduzido o país aos horrores da ruína económica e da humilhação nacional. Porém, durante muito tempo, a revolução não pôde estalar, enquanto o desenvolvimento social não criasse as condições favoráveis a um movimento de massas. Os ataques isolados ao governo no período pré-revolucionário, apesar de todo o seu heroísmo, quebravam-se contra a indiferença das massas populares. Só a socialdemocracia, com um trabalho perseverante e metódico, soube conduzir as massas a formas superiores de luta: ações de massas e guerra civil com as armas na mão.

A socialdemocracia soube acabar, num proletariado jovem, com as aberrações “nacionais” e “patrióticas”, e quando se conseguiu, com a sua intervenção direta, arrancar ao tsar o Manifesto do 17 de outubro[iv], o proletariado começou a preparar-se energicamente para a seguinte e inevitável etapa da revolução: a insurreição armada. Liberto das ilusões “nacionais”, o proletariado concentrou as suas forças de classe nas suas organizações de massas: os Sovietes de deputados operários e soldados, etc. E apesar de todas as diferenças entre os objetivos e as tarefas da revolução russa e os da revolução francesa de 1871, o proletariado russo teve de recorrer ao meio de luta que a Comuna inaugurara, a guerra civil. Tendo presentes os ensinamentos da Comuna, sabia que o proletariado não deve negligenciar os meios pacíficos de luta, que servem os seus interesses quotidianos e são indispensáveis no período preparatório das revoluções. Mas também nunca deve esquecer que, em determinadas circunstâncias, a luta de classes adopta a forma de luta armada e de guerra civil; há momentos em que os interesses do proletariado exigem um extermínio implacável dos seus inimigos em combates em campo aberto. O proletariado francês demonstrou-o pela primeira vez durante a Comuna e o proletariado russo confirmou-o brilhantemente com a insurreição de dezembro.

Embora estas duas grandiosas sublevações da classe operária tenham sido sufocadas, uma nova insurreição, em que as forças dos inimigos do proletariado se revelarão débeis, não deixará de eclodir, levando o proletariado socialista a uma vitória completa.

Primeira Edição: Zagranitchnaya Gazeta, n.°2, 23 de março de 1908.

 

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Em Memória da Comuna

Lênin, 28 de abril de 1911

A relevância da Comuna de Paris é imortal. Cartaz soviético de 1935.

Passaram-se 40 anos desde que se proclamou a Comuna de Paris. Seguindo o costume, o proletariado francês honrou com comícios e manifestações a memória dos homens da revolução de 18 de março de 1871. No final de maio voltará a levar coroas de flores às tumbas dos communards fuzilados durante a terrível “semana de maio” e a jurar diante daquelas tumbas que lutará com firmeza até lograr o triunfo completo de suas ideias, até dar por cumprida a obra por eles legada.

Por que, pois, não só o proletariado francês, senão o de todo o mundo rende homenagem aos homens da Comuna como a seus precursores? Qual é a herança da Comuna?

A Comuna surgiu de maneira espontânea, ninguém a preparou de modo consciente e sistemático. A funesta guerra com a Alemanha, os sofrimentos do assédio, o desemprego operário e a ruína da pequena burguesia; a indignação das massas contra as classes superiores e as autoridades que haviam demonstrado uma incapacidade absoluta; a surda efervescência no seio da classe operária, descontente de sua situação e ansiosa por um novo regime social; a composição reacionária da Assembleia Nacional, que fazia temer os destinos da república foram as causas que concorreram com outras muitas para impulsionar a população parisiense para a revolução do 18 de março, que pôs de improviso o poder nas mãos da Guarda Nacional, em mãos da classe operária e da pequena burguesia, que havia aderido aos operários.

Foi um acontecimento histórico sem precedentes. Até então, o poder estivera, em geral, nas mãos dos latifundiários e dos capitalistas, quer dizer, de seus mandatários, que constituíam o chamado governo. Depois da revolução de 18 de março, quando o governo do senhor Thiers fugiu de Paris com suas tropas, sua polícia e seus funcionários, o povo ficou dono da situação e o poder passou para as mãos do proletariado. Porém, na sociedade moderna, o proletariado, avassalado no econômico pelo capital, não pode dominar na política se não rompe as cadeias que o atam ao capital. Daí que o movimento da Comuna deveria adquirir inevitavelmente um matiz socialista, quer dizer, deveria tender ao aniquilamento do domínio da burguesia, da dominação do capital, à destruição das próprias bases do regime social contemporâneo.

Em seu início tratou-se de um movimento heterogêneo e confuso ao extremo.

A ele somaram-se também os patriotas com a esperança de que a Comuna renovasse a guerra contra os alemães e levasse a um desenlace venturoso. Apoiaram-no também os pequenos lojistas, em perigo de arruinamento se não se adiasse o pagamento das letras vencidas e dos aluguéis (adiamento que lhes era negado pelo governo, mas que a Comuna lhes concedeu). Por último, no começo, também simpatizaram em certo grau com ele os republicanos burgueses, temerosos de que a reacionária Assembleia Nacional (a vilanagem, os violentos latifundiários) restabelecesse a monarquia. Porém, o papel fundamental nesse movimento foi desempenhado, naturalmente, pelos operários (sobretudo os artesãos parisienses), entre os quais se havia espalhado, nos últimos anos do Segundo Império da França, uma intensa propaganda socialista, estando muitos deles inclusive filiados à I Internacional (Associação Internacional dos Trabalhadores).

Unicamente os operários guardaram fidelidade à Comuna até o fim. Os republicanos burgueses e a pequena burguesia não tardaram em afastar-se dela: uns assustaram- se com o caráter revolucionário socialista do movimento, com seu caráter proletário; outros se afastaram dela quando viram que estava condenada a uma derrota inevitável. Unicamente os proletários franceses apoiaram a seu governo sem temor nem desmaio, só eles lutaram e morreram por ele, quer dizer, pela emancipação da classe operária, por um futuro melhor para todos os trabalhadores.

Abandonada por seus aliados de ontem e sem contar com nenhum apoio, a Comuna tinha de ser derrotada inevitavelmente. Toda a burguesia francesa, todos os latifundiários, especuladores da bolsa e fabricantes, todos os grandes e pequenos ladrões, todos os exploradores uniram-se contra ela. Com a ajuda de Bismarck (que pôs em liberdade 100 mil soldados franceses, prisioneiros dos alemães, para esmagar a Paris revolucionária), essa coalizão burguesa logrou confrontar com o proletariado parisiense os camponeses atrasados e a pequena burguesia de províncias e cercar meia Paris com um anel de ferro (a outra metade havia sido cercada pelo exército alemão). Em algumas cidades importantes da França (Marselha, Lyon, Saint-Etienne, Dijon e outras), os operários também tentaram tomar o poder, proclamar a Comuna e acudir a Paris, porém tais intentos logo fracassaram. E Paris, que havia sido o primeiro local a desfraldar a bandeira da insurreição proletária, ficou abandonada a suas próprias forças e condenada a uma morte certa.

Para que uma revolução social triunfe são necessárias, pelo menos, duas condições: um alto desenvolvimento das forças produtivas e um proletariado preparado para ela. Contudo, em 1871, não se deu nenhuma dessas condições. O capitalismo francês encontrava-se ainda pouco desenvolvido, a França era, então, fundamentalmente um país de pequena burguesia (artesãos, camponeses, lojistas, etc.). Por outra parte, não existia um partido operário, a classe operária não tinha preparação nem havia passado por um largo treinamento e, em sua massa, sequer havia noção totalmente clara de quais eram seus objetivos nem como se poderia alcançá-los. Não havia uma organização política séria do proletariado nem grandes sindicatos e cooperativas…

Entretanto, o que faltou principalmente à Comuna foi tempo, desafogo para perceber bem como iam as coisas e empreender a realização de seu programa. Apenas ela pôs mão à obra, o governo, entrincheirado em Versalhes e apoiado por toda a burguesia, desencadeou as hostilidades contra Paris. A Comuna teve de pensar, antes de tudo, em sua própria defesa. E até o final mesmo, que ocorreu na semana de 21 a 28 de maio, não houve tempo para pensar seriamente em outra coisa.

Por certo, em que pese a essas condições tão desfavoráveis e à brevidade de sua existência, a Comuna teve tempo de aplicar algumas medidas que caracterizam bastante seus verdadeiros sentido e objetivo. Substituiu o exército permanente, instrumento cego em mãos das classes dominantes, pelo armamento de todo o povo; proclamou a separação da Igreja do Estado; suprimiu a subvenção ao culto (quer dizer, o soldo que o Estado pagava aos padres) e deu um caráter estritamente laico à instrução pública, com o que assestou um rude golpe aos soldados de batina. Pouco foi o tempo para se fazer algo no terreno puramente social, porém esse pouco mostra com suficiente clareza seu caráter de governo popular, de governo operário: foi suprimido o trabalho noturno nas tarefas; foi abolido o sistema das multas, consagrado pela lei, com que se vitimavam os operários; finalmente, foi promulgado o famoso decreto de entrega de todas as fábricas e oficinas abandonadas ou paralisadas por seus donos às cooperativas operárias com o fim de retomar a produção. E para sublinhar, como se disséssemos, seu caráter de governo autenticamente democrático, proletário, a Comuna dispôs que a remuneração de todos os funcionários administrativos e do governo não fosse superior ao salário normal de um operário, nem passasse em nenhum caso dos 6.000 francos anuais (menos de 200 rublos ao mês).

Todas essas medidas mostravam com farta eloquência que a Comuna constituía uma ameaça de morte ao velho mundo, baseado no avassalamento e na exploração. Essa era a causa de a sociedade burguesa não poder dormir tranquila enquanto o Ajuntamento de Paris ostentasse a bandeira vermelha do proletariado. E quando a força organizada do governo pôde, afinal, dominar a força mal organizada da revolução, os generais bonapartistas, esses generais batidos pelos alemães e garbosos frente a seus compatriotas vencidos, os Rennen-kampf e Méller-Zakomelski franceses fizeram uma matança como jamais se havia visto em Paris. Cerca de 30 mil parisienses foram mortos pela soldadesca enfurecida; uns 45 mil foram detidos, executados logo muitos e desterrados ou enviados a trabalhos forçados milhares deles. No total, Paris perdeu 100 mil filhos, entre os quais se encontravam os melhores operários de todos os ofícios. A burguesia estava satisfeita. “Agora, acabou-se com o socialismo, por muito tempo!”, dizia seu sanguinário chefe, o diminuto Thiers, quando ele e seus generais afogaram em sangue a sublevação do proletariado de Paris. Mas de nada serviram os grunhidos desses corvos burgueses. Não passariam ainda seis anos da derrocada da Comuna, ainda se achavam muitos de seus lutadores em presídio ou no exílio, quando na França iniciou-se um novo movimento operário. A nova geração socialista, enriquecida com a experiência de seus predecessores e em absoluto desencorajada pela derrota que sofreram, recolheu a bandeira caída das mãos dos combatentes da Comuna e levou-a adiante com firmeza e valentia ao grito de “Viva a revolução social! Viva a Comuna!” E três ou quatro anos mais tarde, um novo partido operário e a agitação levantada por este no país obrigaram as classes dominantes a pôr em liberdade os communards que o governo ainda mantinha presos.

Honram a memória dos combatentes da Comuna não só os operários franceses, senão também o proletariado de todo o mundo, pois ela não lutou apenas por um objetivo local ou nacional estreito, mas pela emancipação de toda a humanidade trabalhadora, de todos os humilhados e ofendidos. Como combatente de vanguarda da revolução social, a Comuna granjeou a simpatia onde quer que sofra e lute o proletariado. O quadro de sua vida e de sua morte, o exemplo de um governo operário que conquistou e reteve em suas mãos durante mais de dois meses a capital do mundo e o espetáculo da heroica luta do proletariado e seus padecimentos depois da derrota têm levantado a moral de milhões de operários, têm alentado suas esperanças e têm ganho suas simpatias para o socialismo. O troar dos canhões de Paris despertou de seu profundo sono às camadas mais atrasadas do proletariado e deu em todas as partes um impulso à propaganda socialista revolucionária. Por isso não morreu a causa da Comuna, por isso segue vivendo até hoje em dia em cada um de nós.

A causa da Comuna é a causa da revolução social, é a causa da completa emancipação política e econômica dos trabalhadores, é a causa do proletariado mundial. E neste sentido é imortal.

Primeira Edição: Revista Rabochaya Gazeta, No. 4–5, 15 (28) de abril de 1911.

 

[i] A edição soviética das Obras Completas de Lênin informa em seu volume 11 que não foi possível estabelecer, de maneira definitiva, a autoria da versão final do artigo “A Comuna de Paris e as Tarefas da Ditadura Democrática”. No entanto, informa que Lênin redigiu o artigo, mudou seu título, introduziu várias emendas no texto e escreveu seu parágrafo final.

[ii] O artigo “Ensinamentos da Comuna” é a ata taquigráfica de um informe de Lênin. Quando de sua publicação, a redação do jornal precedeu-o da seguinte explicação: “Em 18 de Março, realizou-se em Genebra um comício internacional em comemoração a três datas proletárias memoráveis: o 25° aniversário da morte de Marx, o 60° Aniversário da Revolução de Março de 1848 e o 37° Aniversário da Comuna de Paris. Em nome do POSDR, usou da palavra o camarada Lênin, que falou da importância da Comuna”.

[iii] Karl Marx, “Segundo Manifesto do Conselho Geral da Associação Internacional dos Trabalhadores sobre a Guerra Franco-Prussiana“.

[iv] Alude-se ao manifesto de 17 de outubro de 1905, em que o tsar, assustado pelo auge da greve política de outubro em toda a Rússia, prometeu as “liberdades civis” e a Duma “legislativa”. O manifesto constituiu uma manobra política da autocracia, no intuito de ganhar tempo dividir as forças revolucionárias, frustrar a greve e esmagar a revolução.

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- 28/05/2021