CEM FLORES

QUE CEM FLORES DESABROCHEM! QUE CEM ESCOLAS RIVALIZEM!

Comuna de Paris, Dossiês, Internacional, Lutas, Movimento operário, Mulher

Corações batendo pela liberdade, por Ana Barradas

Viva os 150 anos da imortal Comuna de Paris!

Arte de Cristiano Siqueira.

Cem Flores

02.07.2021

 

As mulheres foram as primeiras, como nos dias da Revolução.

As do 18 de março, castigadas pelo cerco – tinham tido dupla ração de miséria –

não esperaram pelos seus homens.

Prosper-Olivier Lissagaray

 

Durante a Semana Sangrenta, foram as mulheres que levantaram e

defenderam a barricada da Place Blanche – e mantiveram-na até à morte.

Louise Michel

 

A primeira experiência de governo proletário, a Comuna de Paris, completa 150 anos em 2021. Em comemoração a esse evento inesquecível na história das massas exploradas e oprimidas, o Cem Flores vem realizando uma série de publicações sobre o tema. São traduções de textos da época, resgate de textos clássicos do marxismo e debates sobre aspectos centrais da experiência revolucionária do proletariado parisiense para trazer as lições daquela revolução para nossas lutas atuais.


Leia as publicações do Cem Flores Viva os 150 anos da imortal Comuna de Paris!

– Engels em homenagem à Comuna de Paris, de 02.12.2019.

– Uma Carta de um Communard, de 04.01.2021.

– Marx e Engels: cartas anteriores à Comuna de Paris, de 05.02.2021.

– Marx e Engels: cartas durante a Comuna de Paris, de 05.03.2021.

– O 18 de março de 1871: o início da Comuna de Paris, por Prosper-Olivier Lissagaray, de 18.03.2021.

– Karl Marx. A Guerra Civil na França. Capítulo 3, de 09.04.2021.

– Engels. Introdução à Edição de 1891 de A Guerra Civil na França, de Marx, de 07.05.2021.

Lênin. Três Artigos sobre a Comuna de Paris, de 28.05.2021.


A Comuna de Paris teve intensa participação das mulheres proletárias. Os 72 dias de guerra de classes aberta em Paris não foram apenas obra de homens: no exército proletário se perfilavam milhares de mulheres, exemplares na coragem e no combate. Elas que também lutavam contra a opressão secular na qual eram submetidas. Eis uma das grandes lições da Comuna de Paris a ser analisada e discutida.

Para isso, trazemos um texto de Ana Barradas, de 2017, publicado no Bandeira Vermelha, sobre o papel das mulheres e sua luta naquele processo revolucionário. O título do texto, Corações batendo pela liberdade, é uma citação de Louise Michel, uma grande liderança feminina da Comuna de Paris.

As communardes não só reivindicaram armas, como também participaram de combates armados nos momentos mais violentos e decisivos da Comuna. Centenas de mulheres combateram, na linha de frente, em defesa das barricadas contra as tropas burguesas de Versalhes. No dia 23 de maio de 1871, na praça Blanche, foram cerca de 120 mulheres, dentre elas Élisabeth Dmitrieff e Nathalhie Lemel (ambas militantes da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), a 1ª Internacional), que defenderam as barricadas. Louise Michel chegou a defender uma barricada em Clignancourt com a ajuda de apenas dois camaradas.

À esquerda, Louise Michel uniformizada para combate. No centro, Nathalie Lemel. À direita, Elizabeth Dmitrieff.

Além de participarem dos protestos e combates, as mulheres da Comuna construíram barricadas e fizeram outras tarefas no front, como vigilância e confisco de armas; foram ainda ativas na produção e distribuição de itens básicos, além de se ocuparem de serviços médicos e sociais. Barradas cita alguns exemplos em seu texto: “as vendedeiras do mercado de Les Halles levantaram, em meio dia, uma barricada de vinte metros de comprimento; outras populares vigiaram as portas da cidade e executaram mil e uma tarefas auxiliares. Para assegurar a subsistência, cada vez mais difi­cultada, organizaram oficinas cooperativas para angariação e distribuição de trabalho, refeitórios e serviços de assistência pública que se ocupavam dos feridos, dos indigentes e das famílias mais neces­sitadas.”

Outro manifesto dessa União das Mulheres, de 6 de maio de 1871, proclamava: “As Mulheres de Paris provarão à França e ao mundo de que elas também saberão, no momento de perigo supremo, […] dar como seus irmãos o seu sangue e suas vidas pela defesa e pelo triunfo da Comuna, isto é, do Povo!”

Vistas como figuras perigosas (de fato eram para as classes dominantes!), elas foram atacadas e reprimidas de todas as formas por Versalhes, antes, durante e depois da Comuna. Como lembra Barradas: “diabolizavam as mulheres e criavam mitos à sua volta: atribuíam-lhes a autoria de todos os fogos e referiam a suposta existência de um exército de “petroleiras” incendiárias; chamavam-lhes vitrioletistes, alegando que muitas tinham por missão desfigurar os oficiais e os soldados das forças da ordem atirando-lhes vitríolo à cara […] os tribunais burgueses sentenciaram 1051 mulheres; dessas, 756 eram operárias e 157 foram condenadas à morte

Dos combates à repressão, as mulheres foram exemplos de coragem, abnegação e firmeza. “Marie Augustine, lavadeira que chegou a ser capitoa da Guarda Nacional e que se distinguiu pela forma como incitou os homens a lutar durante a Semana Sangrenta, gritou aos juízes, antes de ser sentenciada a 20 anos de trabalhos forçados: ‘Desafio-vos a condenarem-me à morte! Sois dema­siado cobardes para me matardes’”. Já Louise Michel, sentenciou: “se me deixardes viver, nunca cessarei de clamar vingança e denunciarei os assassinos à vingança dos meus irmãos”. Promessa que de fato cumpriu!

Communardes presas em Versalhes aguardando seu julgamento, em 15 de agosto de 1871. Louise Michel aparece à direita na foto, de braços cruzados e saia branca.

Enfim, a Comuna deixou clara a relevância da mulher trabalhadora na revolução proletária, como também a relevância da revolução proletária na emancipação da mulher trabalhadora. A mulher proletária é parte essencial da revolução. E a revolução é essencial para a mulher proletária em sua libertação. Essa combinação, em direção à sociedade comunista, foi historicamente aplicada em outros momentos: na Revolução Russa, Revolução Chinesa, e em várias outras experiências revolucionárias que avançaram na construção dessa nova sociedade. Continuando assim a grandiosa obra e o vanguardismo das communardes, ainda atuais e necessários.

Sobre essa questão, resgatamos as formulações de Samora Machel:

A emancipação da mulher não é um ato de caridade, não resulta duma posição humanitária ou de compaixão. A libertação da mulher é uma necessidade fundamental da Revolução, uma garantia da sua continuidade, uma condição do seu triunfo. A Revolução tem por objetivo essencial a destruição do sistema de exploração, a construção duma nova sociedade libertadora das potencialidades do ser humano e que o reconcilia com o trabalho, com a natureza. É dentro deste contexto que surge a questão da emancipação da mulher. […] A ideia de esperarmos para, mais tarde, emancipar a mulher, é errónea, significa deixarmos as ideias reacionárias ganharem terreno para as combatermos quando estão fortes. É não combater o jacaré nas margens do rio, para o combatermos quando se encontra no meio da água.

 

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Corações batendo pela liberdade

Ana Barradas

Às vésperas das revoluções, as mulheres mais exploradas são as primeiras a desencadear ações de rua espontâneas por não tolerarem mais condições de vida muito duras. Estes atos de revolta acabam por desencadear outros mais amplos, todos eles desembocando às vezes na insurreição aberta. Foi o que aconteceu nos primeiros dias da Revolução Francesa, quando umas centenas de mulheres se manifestaram em frente ao palácio de Versalhes exigindo pão. E foi também com o que se passou na Comuna de Paris, passados mais de 80 anos. Em ambos casos, não sendo as mulheres exploradas a determinar a sequência dos atos revolucionários, a iniciativa delas foi contudo determinante para animar o resto da população a vir para a rua. Veremos o mesmo fenómeno na Revolução Russa, 46 anos após a Comuna de Paris.

Com efeito, desde os primeiros dias da insurreição da Comuna de Paris, iniciada a 18 de Março de 1871, grandes grupos de mulheres e crianças cercaram os soldados das tropas do governo, embaraçando-lhes os movimentos e incitando-os a revoltarem-se contra os superiores, que se preparavam para capitular perante a Prússia. Chegaram até a convencê-los a prender um dos generais. “Fizemos muito mal em permitir a essa gente que se aproximasse dos nossos soldados”, comentou outro general. Entretanto, Paris festejava a proclamação da Comuna.

As primeiras medidas do novo governo popular foram simples: suspensão dos juros sobre os objetos penhorados e ajustamento das rendas de casa. As mulheres exultaram: nada lhes podia inspirar mais confiança, porque viam assim aliviadas duas das principais cargas económicas que pesavam sobre as suas famílias.

Havia na altura em Paris 112.000 operárias: 60.000 trabalhavam na costura, com jornadas de 13 horas; 6.000 fabricavam flores artificiais. Mal conseguiam subsistir, porque as rendas de casa e a alimentação aumentavam, mas os salários não. Foram as terríveis condições da sua existência que natu­ralmente as impeliram para o lado dos insurrectos.

As mulheres apoiam a Comuna

Quando, a 2 de Abril, as tropas do rei atacaram a Comuna, as mulheres desceram em massa às ruas e quiseram marchar sobre Versalhes. Impedidas pela Guarda Nacional, nos dois dias seguintes desfilaram por Paris, apelando às armas e erguendo barricadas.

O exército dos insurrectos começou a registar pesadas baixas. Nesse mesmo dia, a Comuna assumia a responsabilidade pelas famílias “dos cidadãos que sucumbiram ou sucumbirão ao rechaçarem a agres­são dos realistas conjurados contra Paris”. A 11 de Abril, a Comissão Executiva tomou a decisão que mais tocou as mulheres: um decreto que previa uma pensão para a mulher, casada ou não, de qualquer guarda nacional morto em combate e para os filhos de ambos, perfilhados ou não. Reconhecia-se indiretamente a união livre, prática da esmagadora maioria dos casais populares.

Entretanto, para ajudar os insurrectos, as vendedeiras do mercado de Les Halles levantaram, em meio dia, uma barricada de vinte metros de comprimento; outras populares vigiaram as portas da cidade e executaram mil e uma tarefas auxiliares. Para assegurar a subsistência, cada vez mais difi­cultada, organizaram oficinas cooperativas para angariação e distribuição de trabalho, refeitórios e serviços de assistência pública que se ocupavam dos feridos, dos indigentes e das famílias mais neces­sitadas.

A participação das mulheres era também política. Muitas aderiram aos clubes revolucionários. Assistiu-se à fundação de clubes espe­cificamente femininos, como a União das Mulheres para a Defesa de Paris e Cuidados aos Feridos ou o Club de la Boule Noire, que militava pela criação de escolas profissionais femininas, pela abolição da prostituição e pelos direitos das mulheres. Entre esses direitos, o trabalho noturno foi abolido, como foram proibidos os descontos nos salários, as jornadas de trabalho foram reduzidas e começou a difundir-se a ideia das oito horas por dia, casas vazias foram ocupadas, instituiu-se a igualdade entre sexos, o casamento foi simplificado e tornou-se gratuito, as escolas passaram a ser mistas, a educação tornou-se gratuita, laica e compulsória, etc.

Sem desfalecimentos de coragem

A Comuna de Paris decretou a abolição do alistamento obrigatório, determinou que a guarda nacional era a única força militar permitida em Paris e todos os cidadãos válidos passavam a fazer parte da guarda nacional. Mais de mil mulheres de guardas nacionais, conquistadas, como os maridos, para a causa da Comuna, trabalharam nas ambulâncias, apesar da oposição dos oficiais e dos médicos. As cantineiras que prestavam serviço nas fileiras destes revoltosos também pegaram em armas. Chegaram a oferecer-se para ir buscar feridos, em condições perigosas. São muitos os nomes de mulheres que figuram entre os mortos em combate.

A cada dia que passava, aumentava o número de mulheres na rua, animadas pelas primeiras vitórias dos revolucionários. Esta adesão entusiástica era o sinal visível de que as forças da ordem perdiam o domínio da situação e que o sistema entrava em ruptura.

O espírito revolucionário das massas em revolta contagiou outras mulheres de várias origens, que viam nos acontecimentos uma oportunidade de expressar pela primeira vez as suas reivindicações e sentimentos mais profundos. Alguns deles bastante truculentos, como um apelo às armas do Clube das Mulheres Patriotas, que proclamava: “Os homens são cobardes; dizem que são os senhores da criação, mas não passam de imbecis”.

As professoras primárias destacaram-se graças à ação decidida da sua colega revolucionária Louise Michel. Na véspera da entrada das tropas gover­namentais em Paris, a Comissão de Educação da Comuna ainda teve tempo de aprovar o aumento dos salários das professoras. Decretou que eles seriam iguais aos dos colegas, “visto que as necessidades da vida são tão imperiosas para as mulheres como para os homens e, no que diz respeito à educação, o trabalho das mulheres é igual ao dos homens”.

Entretanto, a propaganda reacionária via nessa adesão feminina aos ideais da Comuna um dos alvos preferenciais dos seus ataques. Diabolizavam as mulheres e criavam mitos à sua volta: atribuíam-lhes a autoria de todos os fogos e referiam a suposta existência de um exército de “petroleiras” incendiárias; chamavam-lhes vitrioletistes, alegando que muitas tinham por missão desfigurar os oficiais e os soldados das forças da ordem atirando-lhes vitríolo à cara.

Referindo-se aos últimos dias de combates, antes do esmagamento final da Comuna, Louise Michel comentou nas suas Memórias, a propósito do ardor da luta feminina: “Os nossos amigos homens são mais atreitos a desfalecimentos de coragem que nós, as mulheres. Durante a Semana Sangrenta, foram as mulheres que levantaram e defenderam a barricada da Place Blanche – e mantiveram-na até à morte”.

A barricada da praça Blanche defendida pelas mulheres.

O massacre destas 120 combatentes calou fundo. Pela primeira vez, os homens começaram a olhá-las como iguais e companheiras. Percebeu-se que a participação feminina é indispensável para o triunfo da revolução. Quase cem anos depois da Revolução Francesa, elas reentravam com vigor renovado na política.

A semente estava lançada

Em Maio, a Comuna de Paris foi derrotada. Mantivera-se durante setenta e dois dias. Na terrível repressão que se seguiu, morreram na rua milhares de mulheres às mãos das tropas realistas. Naqueles primeiros dias, bastava uma mulher ter um ar pobre e andar com uma garrafa na mão, nem que fosse de leite, para ser classificada “petroleira” e executada ali mesmo.

Sufocada a resistência, os tribunais burgueses sentenciaram 1.051 mulheres; dessas, 756 eram operárias e 157 foram condenadas à morte (além de 6 crianças).

Mesmo na desgraça, muitas nunca perderam o ânimo. Marie Augustine, lavadeira que chegou a ser capitoa da Guarda Nacional e que se distinguiu pela forma como incitou os homens a lutar durante a Semana Sangrenta, gritou aos juízes, antes de ser sentenciada a 20 anos de trabalhos forçados: “Desafio-vos a condenarem-me à morte! Sois dema­siado cobardes para me matardes.” Louise Michel recusou advogado de defesa e dirigiu-se ao tribunal dizendo: “Pertenço por inteiro à revolução social e declaro aceitar toda a responsabilidade dos meus atos. O que reclamo de vós é que me deis, como meus juízes, o campo de Satory [campo de fuzilamentos], onde já tombaram muitos dos meus irmãos. Já que, segundo parece, todos os corações que batem pela liberdade só têm direito a um pouco de chumbo, reclamo a minha parte. Se me deixardes viver, nunca cessarei de clamar vingança e denunciarei os assassinos à vingança dos meus irmãos”. Florence Wandeval, operária de 23 anos que servira como cantineira num batalhão revolucionário, gritou diante dos juízes: “Limitei-me a deitar fogo às estuporadas Tulherias [residência real]. Agora pode vir um rei, que vai encontrar o palácio reduzido a cinzas. E a partir de hoje, muitos outros vão arder!”

Depois da derrota dos revo­lucionários, acentuou-se a exclusão das mulheres da vida pública. Contudo, a semente estava lançada. Em 1885, a incansável Louise Michel, regressada do exílio na Nova Caledónia, declarava: “O homem também sofre nesta sociedade, mas nenhuma tristeza é comparável à da mulher. (…) Sabemos quais são os nossos direitos e reclamamo-los. Não estamos a vosso lado, lutando no combate supremo? Vós, homens, não sois sufi­cientemente fortes para incluirdes nesse combate supremo a luta pelos direitos das mulheres? Depois, homens e mulheres, juntos, conquistarão os direitos de toda a humanidade. (…) Quando for a Revolução, vós, eu e toda a humanidade transformar-nos-emos. Tudo se modificará e tempos melhores virão, com alegrias que as pessoas de hoje não são capazes de imaginar. Depois da nossa época atormentada, virá o tempo em que homens e mulheres caminharão juntos pela vida fora, como bons companheiros, e será posta de parte a discussão sobre qual dos sexos é mais forte ou qual das raças do mundo prevalece sobre as outras”.

Esse tempo ainda não chegou. Mas as mulheres da Comuna de Paris ousaram sonhar e contribuíram assim poderosamente para aproximar um pouco mais de todos nós essa nova época.

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- 02/07/2021